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Escrevivências: ensino de história e narrativas autobiográficas na educação de jovens e adultos

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Academic year: 2021

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Escrevivências: ensino de história e narrativas autobiográficas na educação de jovens e adultos

Este trabalho é um recorte da minha pesquisa de mestrado e parte de inquietações profissionais, como professora da Educação de Jovens e Adultos - EJA - e pessoais, como ser humano e social e assim como Freire (1996, 37) me “movo como educadora, porque primeiro me movo como gente” e para trabalhar com educação, o “ser gente’ precisa estar a todo momento no foco de qualquer docente. Estou desenvolvendo esta pesquisa a partir de narrativas autobiográficas, fazendo da minha escrevivência meu esteio teórico-prático-acadêmico, portanto a minha metodologia de pesquisa e de escrita se unem aqui neste artigo.

Esta pesquisa está sendo desenvolvida na EJA do SESI Bahia no polo de Salvador e acredito que seja importante contextualizar a instituição devido a algumas especificidades do seu currículo e metodologia. No SESI o curso é ofertado na modalidade a distância com 80% da carga horária realizada através de uma plataforma de estudos e os 20% presencial distribuídos entre encontros para realização de oficinas, acesso ao laboratório de informática para estudos individuais e avaliações. O SESI é uma instituição que trabalha com EJA há mais de 20 anos visando principalmente a elevação da escolaridade dos trabalhadores da indústria e atende, também, a toda a sociedade.

Para prosseguir neste texto, preciso dizer a você, que está lendo, que não tenho pretensão de dar respostas, pois eu ainda estou em busca, e sempre estarei, mas de trazer algumas problematizações que vieram das minhas experiências como docente, especialmente atuando na EJA, e apresentar ideias que, neste momento, me parecem possíveis para o nosso fazer em sala de aula no ensino de História.

Este artigo está divido em três pontos de reflexão, fique à vontade para discordar, criticar, refazer, recriar, atualizar, enfim… apenas desejo que estas linhas te inquietem tanto quanto me inquietam ao ponto de te motivar a fazer outras perguntas e buscar novas respostas.

Pensando no currículo para EJA…

A primeira reflexão que proponho é sobre o currículo para a EJA e para pensar nisso, precisamos, também, entender quem são as pessoas que ocupam as cadeiras da EJA nas escolas. São as pessoas que Miguel Arroyo chama de “passageiros da noite”, aqueles que iniciam seus

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itinerários sendo os passageiros do amanhecer a caminho do trabalho e ao final do dia formam longas filas nas estações de transporte público para chegar à escola.

São trabalhadores e trabalhadoras, mães e pais, jovens, idosos e idosas que por diversos motivos não conseguiram seguir dentro da idade\ série estabelecida pelas Leis de Diretrizes e Bases da Educação promulgada em 1996. São pessoas que evadiram ou reprovaram porque não se adequaram ao sistema e tão pouco o sistema se adequou a elas, como defende Katerina Tomaseviski em 2006 quando fala que as instituições servem aos sujeitos, portanto elas devem se adaptar às necessidades e as condições de vida deles. Campos em sua dissertação, defendida em 2003, fala que as pessoas que estudam da EJA vêm de um processo de abandono da escola e contextos socioeconômicos complexos.

Estudantes da EJA são pessoas com trajetórias de vida e rotinas diferentes das crianças e adolescentes que não estão em distorção idade\série, portanto precisam de cuidados, currículos, avaliações, materiais didáticos, experiências escolares diferentes também e este é um ponto imprescindível a considerar. Alguns dos principais motivos que explicam a evasão escolar, giram em torno do fato de ingressarem muito cedo no mercado de trabalho, a falta de tempo para estarem diariamente na unidade escolar, falta de material didático adequado ao público e por não haver relação entre a escola e os conteúdos curriculares com as realidades deles.

Tendo em vista o perfil das pessoas que frequentam a EJA, acredito que já fica claro para você, que lê este artigo, que precisamos discutir sobre os parâmetros utilizados na construção do currículo escolar, em especial o de História, que constrói a consciência de si no tempo e no espaço para este público e meus incômodos começam quando me questiono sobre coisas como: o que faço com aquilo que estas pessoas trazem consigo, como suas experiências de trabalho, das associações de bairro, dos ministérios e pastorais religiosas, com suas biografias que desde cedo os/as colocam no enfrentamento do mundo e precisaram de sabedoria para driblar o sistema, a vivência do “buzu” cheio, da roda de amigos, das trocas familiares, do bom senso, que permite que a vizinha divida o alimento com a outra família que não tem o que comer ou do casal que adota uma criança que seria abandonada? Não seriam estas coisas temas para se debater numa aula de História?

Joelma Vilar e Isa Anjos em Currículos e práticas pedagógicas na Educação de Jovens e Adultos publicados em 2014, traz que o currículo da EJA elege eixos prioritários de trabalho como a inteligência cognitiva e o raciocínio lógico. Entretanto, as autoras consideram que esta

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perspectiva é reducionista porque separa o sujeito de sua história e subjetividades, desconsiderando seus contextos e a necessidade do desenvolvimento de diversos aspectos da formação e da aprendizagem que perpassam os sujeitos, como as habilidades sociais, culturais, políticas, as múltiplas linguagens, saberes e as diferenças que nos atravessam enquanto seres humanos.

A discussão de currículo envolve também concepção de escola, compreensão do papel dos sujeitos sociais e do que a escola deseja formar. Refletir sobre estas coisas requer, também, pensar nas posturas docentes e de gestão da instituição, ter profissionais que tenham a EJA não como o complemento da carga horária de trabalho, mas como modalidade de educação específica que implica pensar o que e como ensinar, a quem está ensinando, qual o objetivo da prática docente, dos conteúdos que levou para sala, qual a relação deles com as pessoas que fazem parte da turma e, principalmente, qual a relevância que a experiências da sala de aula está tendo na vida delas.

Roberto Sidnei Macedo em Etnocurrículo Etnoaprendizagens: educação referenciada na cultura publicado em 2015, faz uma observação que considero importante que é do lugar das culturas, diversidades e pluralidades no currículo, compreendendo que é importante reafirmar estas coisas, pois ele ainda é usado como espaço de afirmação das ideologias hegemônicas o que acirra ainda mais as exclusões.

A versão promulgada da BNCC, nem ao menos cita a EJA enquanto modalidade de educação que precisa ser pensada dentro de suas especificidades e que os ajude a se" emancipar da instabilidade a que a sociedade os condena” como Miguel Arroyo traz em “Balanço da EJA: o que mudou nos modos de vida dos jovens-adultos populares”, publicado em 2007, assim passa a compreensão de que as competências estabelecidas nela para as crianças e adolescentes são as mesmas a serem desenvolvidas nos adultos, desconsiderando os saberes pregressos deste público, dando continuidade a homogeneização do currículo e das pessoas que frequentam as escolas. Organização que não tem dado certo frente ao número de evasão de estudantes da EJA. O SESI, ao longo dos mais de vinte anos atuando com EJA passou por diversas mudanças, a última ocorreu em 2013 quando descontinuou a modalidade presencial e passou para a EaD e ao longo deste setes anos já teve algumas mudanças curriculares até chegar a matriz que está vigente, pensada especificamente para as necessidade do público adulto, partindo do conceito de aprendizagem ao longo da vida, proposto pela UNESCO, considerando

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e valorizando os saberes adquiridos em diversos âmbitos de nossas vivências, sejam formais, informais ou não formais.

O currículo foi elaborado especificamente para a EJA, sendo diferente da Educação Regular e de acordo com a Matriz de Reconhecimento de Saberes, elaborada pelo SESI em 2015 tem como princípios norteadores adequação do currículo aos adultos, a seus contextos e projeto de vida; a adaptabilidade às diversidades sociais e profissionais que resultam em ritmos de estudos, de tempo, e aprendizagens diferentes a cada sujeito; e a articulação entre as competências de modo que elas se complementem e possam ser trabalhadas de modo transversal.

Estes princípios se aplicam na prática através da flexibilidade de tempo da modalidade de estudos, da possibilidade de reposição dos encontros presenciais através de outras atividades, das diferentes formas de avaliar os sujeitos buscando, sobretudo o que trouxeram e o que aprenderam conosco na escola através da plataforma de estudos, encontros presenciais e com a promoção de atividades conjuntas entre diferentes áreas de conhecimento e com temas contemporâneos pertinentes a nossa realidade.

O lugar do Ensino de História na EJA

Como segundo ponto de reflexão, proponho a você, que chegou até aqui, pensarmos qual o lugar do Ensino de História neste contexto da EJA e qual o objetivo dele para este público de estudantes.

A história, enquanto disciplina escolar, por muito tempo foi pensada como instrumentos para a construção da identidade nacional branca e europeia, isto pode ser visto em trabalhos como os de Circe Bittencourti e Kátia Abudii e até hoje carregamos esta ideia e podemos perceber isto nas escolas que mantém o ritual de cantar o hino nacional, em detrimento da compreensão de sua letra por parte do corpo estudantil ou neste contexto que estamos vivendo carregado de pseudopatriotismo e sempre partindo do processo colonizador, como o ex ministro da educação, Weintraub, que declarou odiar a expressão “povos indígenas”, pois para ele só existe povo brasileiro. Nisto podemos perceber que ainda existe uma ideia de nos vincularmos a um passado comum que construa em nós algum tipo de espírito que nos una em torno de uma nação colonial. Mas e as/os estudantes da EJA neste processo de formação histórica?

Entendemos até aqui que estudantes da EJA já chegam com uma grande bagagem de conhecimento que foram adquiridas ao longo de suas vidas e que isto não pode ser

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desconsiderada, então não faz sentido entrar numa sala e trabalhar conteúdos factuais como se o fato pelo fato tivesse uma finalidade em si ou com o intuito de formar um cidadão patriota, como se desconhecessem os contextos em que vivem. O estudo do fato não garante compreensão do seu significado dentro do processo histórico ou que a pessoa que está estudando perceberá automaticamente o significado dele no tempo e no espaço e a influência que ele exerce no presente, isto ocorre através do desenvolvimento da consciência histórica.

Em Ensino de História e Consciência Histórica de Luis Fernando Cerri, publicado em 2014, o autor traz a percepção que a consciência histórica é subjacente aos sujeitos, porque temos a necessidade de atribuir sentido e significado a nós, as nossas origens, as nossas práticas. Precisamos saber quem somos, enquanto indivíduos de histórias e memórias pessoais e enquanto seres sociais, com histórias e memórias coletivas que ajudam a nos localizar no tempo\espaço, construir nossa identidade e referenciais de existência.

Nós agimos no mundo em que vivemos e buscamos referências para nossas ações no passado para balizá-las, tentar entender as consequências dela a partir das experiências passadas. Vivemos em contexto de pandemia da Covid-19 e durante os últimos oito meses quanto já não ouvimos sobre as epidemias ao longo da história, quantas comparações entre o nosso momento presente e a gripe espanhola, há um século atrás, para refletir sobre as medidas sanitárias eficientes para conter o vírus, como o isolamento social e o uso de máscaras. As críticas que teço as pessoas que quebram os protocolos de saúde pública orientados pela Organização Mundial de Saúde, que contestam fatos científicos comprovados e acreditam em teorias absurdas disseminadas em redes sociais é com base nos conhecimentos que tenho sobre nosso passado coletivo e no entendimento que as informações sobre ele nos dão base para não cometermos sempre os mesmos erros no presente.

Há algum tempo, em um primeiro dia de aula, perguntei à turma quais expectativas tinham sobre os nossos encontros e o que estudaríamos e de várias respostas uma foi desafiadora, pois veio em pergunta: para que aquelas aulas serviriam na vida prática e principalmente no trabalho? E a parte da utilidade para o trabalho foi a que ele mais desenvolveu, enfatizando o quanto ele precisava se capacitar para atender as necessidades da empresa. Nossas legislações de educação tem o enfoque muito grande no mundo do trabalho, principalmente se tratando de EJA, como se as pessoas fossem uma engrenagem de uma grande máquina e sua única função na vida fosse mantê-la funcionando a todo vapor. Charles Chaplin mostrou isso de forma brilhante em Tempos Modernos!

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Ao ouvir o estudante, perguntei em que ele trabalhava, se era com carteira assinada ou não e quais direitos ele tinha neste trabalho. Algumas coisas ele sabia e outras não, então perguntei se ele sabia como foi conquistado o direito ao salário mínimo, férias e 13º salário. A partir disso conversamos brevemente sobre as condições de trabalho com a revolução industrial e a luta dos movimentos sindicais aqui no Brasil no início do século XX para se ter uma CLT e propus à turma que ficassem atentas e buscassem informações sobre a reforma trabalhista que o Brasil estava sofrendo.

Os conteúdos trabalhados nas aulas de História precisam ser uma ferramenta para a compreensão do eu, do mundo e do eu no mundo. Para a EJA eles são mediadores de entendimento de suas próprias realidades e um meio para reconhecer quem são e nesse movimento ter a compreensão da complexidade da sociedade em que vivemos, das diversidades que nos atravessam e a consciência da necessidade do respeito e da tolerância com as outras pessoas e suas subjetividades, porque cada ser humano é único e as cosmovisões que construímos individualmente perpassam pelos processos históricos coletivos.

O ensino de História na EJA não deveria ser espaço nem de reprodução de fatos historicamente acumulado, tão pouco de formação apenas pensando no mundo do trabalho, mas de apropriação, reconhecimento e valorização dos potenciais críticos e reflexivos e das múltiplas inteligências que foram desenvolvidas ao longo da vida das pessoas que compõem as turmas, então suas histórias não tem lugar secundário, mas, como Paulo Freire trouxe em Pedagogia da Autonomia publicado em 1996, o contexto de vida dos sujeitos deve ser o lugar de partida de seus processos de aprendizagens, da curiosidade ingênua, fruto do senso comum adquirido nas experiências diárias.

A História é uma das ciências que contribui para a transição da curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica, quando na escola, o corpo docente aborda os fatos de forma crítica, levando fontes para serem problematizadas e instigando a escrita de narrativas a partir delas, relacionando passado e presente e trabalhando a História sob diversas óticas, fugindo do perigo da história única como nos alertou Chimamanda Adichie, para que as pessoas que compõem as turmas de EJA entendam a importância de suas histórias e experiências dentro de contextos políticos, sociais, econômicos, culturais além das fronteiras em que moram.

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A terceira reflexão que proponho neste artigo é que pensemos no lugar que cada sujeito da EJA ocupa em seu próprio processo de aprendizagem. Mais uma vez trazendo Paulo Freire e o contexto dos sujeitos, quero dizer aqui que as histórias de vida destas pessoas é uma fonte riquíssima de aprendizagens e processos históricos.

As pessoas que se matriculam na EJA do SESI passam por um processo de diagnóstico chamado de Reconhecimento de Saberes - RDS - com o intuito de mapear os conhecimentos pregressos delas e construir um plano de estudos específico para cada estudante de acordo com a sua necessidade de aprendizagem. O diagnóstico é feito com a construção de um e-portfólio, constituído de oito formulários que contemplam desde as memórias do passado, aspirações para o futuro, experiências sociais e profissionais e a relação entre estas vivências e as áreas de conhecimento. Neste processo de RDS são consideradas as vivências formais aceitando notas de ENCCEJA, ENEM, histórico escolar de estudantes em dependência de disciplinas, o CPA, que é exame supletivo do Estado na Bahia e as aprendizagens não formais e informais das experiências pessoais e profissionais.

Após o preenchimento, as informações são comparadas com a matriz curricular da instituição para identificar quais habilidades e competências dela estão presentes nas narrativas dos/das estudantes. Neste ponto há duas possibilidades: uma certificação total, quando a pessoa demonstra o conhecimento de todas as competências indicadas na matriz ou uma certificação parcial. Neste caso é feito um plano preliminar com as informações do e-portfólio e em um segundo momento chamado de Conselho de Reconhecimento de Saberes a/o estudante tem acesso ao seu plano e matriz curricular do SESI e pode avaliar quais competências obteve a certificação e quais ficaram em pendência e poderá, através de um diálogo com a professora, trazer outras experiências e saberes para, então, finalizar o plano de estudos, podendo ter certificação total ou parcial e dar continuidade aos estudos para a conclusão do nível de escolaridade.

Nos últimos quatro anos de trabalho no SESI com o processo de Reconhecimento de Saberes - RDS - tenho entendido a relevância destas narrativas no processo educativo de estudantes de EJA. Em minha experiência, eu vejo pelo sentido humano, o quanto minhas relações com as pessoas de minhas turmas são diferentes hoje, pois não os vejo apenas como alguém que foi à escola para aprender, mas como pessoas imbuídas de vidas rizomáticas. Não me incomoda quando alguém cochila, pois eu tenho noção de como foi sua rotina antes de chegar à escola ou o celular que toca na aula e a aluna deixa tudo e sai correndo da sala para

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atender porque sei que para estar naquele espaço, ela deixou as crianças em casa e muitas vezes a mais velha (que não é tão velha) que ficou por conta dos mais novos. No sentido pedagógico, eu vejo pessoas com diversas inteligências e saberes, que ao abrir os momentos de partilhas nas aulas aprendemos mutuamente e construímos novos conhecimentos coletivamente.

As narrativas registradas no RDS parte de uma ordem cronológica, pedindo a/o estudante fale de suas memórias de infância e adolescência, suas origens geográficas, histórica, social, econômica. Depois precisam dizer como se veem atualmente, quais mudanças percebem em si, como as experiências do passado foram importantes para constituir quem são hoje; quais motivações tiveram para voltar aos estudos, o que já realizou até o momento e fazer projeções para o futuro, pensando no que querem, incentivando que retomem os sonhos que ainda não foram possíveis de realizar.

As narrativas nem sempre vem seguindo a ordem cronológica proposta. A nossa memória tem formas muito específicas de se manifestar. Elas trazem lacunas e rasuras, se ancoram nos registros que fazemos ou como Pierre Nora em Entre memória e história: a problemática dos lugares, publicado em 1993 chama, são nosso lugares de memórias, que são constituídos de restos, dos fragmentos que preservamos em nós, nas lembranças, nos afetos, sabores, cheiros… e externamente a nós como registros fotográficos, em cartas, as ranhuras e desenhos feitos na parede pela criança, nas tradições que criamos… testemunhos de nossas passagens e feituras.

Sendo a memória tão fluída e subjetiva, nesta escrevivência dos formulários não seria diferente. Elas estão lá, presentes na descontinuidade de alguma história que começou a ser contato e por algum motivo ela tomou outro caminho, nas idas e vindas dentro do próprio passado como se a história estivesse sendo contada em flashback. Cada pessoa traz sua forma de fazer a sua autobiografia, seleciona o que acha pertinentes no momento, o que se sente confortável em contar ou ainda estes formulários acabam sendo o local de desabafar e registrar histórias que por diversos motivos não haviam sido contadas ainda.

Ao longo do tempo, neste processo de mediar o RDS, passei a me questionar qual o lugar destas narrativas em minha sala de aula, não apenas para entender o lugar de fala daquelas pessoas, mas como matéria-prima para o ensino de História, como material didático a ser utilizado, esmiuçado, problematizado, usando o método histórico de investigação das fontes. As histórias de vida revelam condições sociais, políticas, econômicas, culturais de determinadas épocas e espaços geográficos e trazem como estas condições marcaram a vida das pessoas.

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A primeira vez que trabalhei com algo do gênero foi com o livro Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960, que é um recorte dos diários que ela escreveu durante grande parte de sua vida. Entre leituras e diálogos em sala sobre o livro, considerando aspectos como o gênero textual, quem foi a autora, tempo e espaço em que viveu, as críticas que teceu a própria realidade, buscamos similaridades e diferenças entre a história dela e das pessoas que estavam na turma, mudanças e permanências dos anos 50 do século XX com os dias atuais. Trabalhamos com a escrita de diários. Cada estudante recebeu uma espécie de caderno feito com papel A4 e ficaram livres para organizar, e registrar seus cotidianos da forma que quisessem. No dia da entrega fizemos um momento de troca sobre a experiência de escrever sobre a própria vida, mas olhando para as memórias de forma consciente, analisando o que aconteceu, buscando referenciais no passado para compreender os processos históricos que estamos imersos.

Um breve relato de uma prática que acredito ter dado certo. Foi minha primeira experiência em sala e respeito aos limites de cada pessoa é muito importante. Muitas pessoas têm passagens muito sensíveis em suas vidas e há que ter cuidado e empatia para compreender certas nuances, recusas…, mas algo que entendo ser primordial é que cada pessoa presente em minha turma, saiba o que e porque estamos ensinando e aprendendo História

Então...

Como disse, a você que está lendo este artigo, lá no início do texto, estas linhas são um ensaio do que tenho lido e observado na minha prática docente para a minha pesquisa de dissertação. Talvez não tenha te trazido nenhuma resposta, mas espero ter te inquietado. Se você for docente da EJA, espero ter contribuído para que você olhe para as pessoas da sua turma considerando as subjetividades que as atravessam fora das paredes da escola e que este breve relato de prática possa te inspirar a trabalhar com as narrativas autobiográficas nas suas aulas de História.

A mim, este artigo contribuiu para que eu desse forma as coisas que venho ruminando ao longo destes dezenove meses de mestrado e que daqui saiam outras ideias e inspirações para o meu texto e para a minha dimensão propositiva.

Tudo é história! Não vivemos fora dela, tão pouco podemos deixar de forjá-la cotidianamente. Se não estamos nos livros canônicos da História, então que escrevamos os nossos!

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i “Os confrontos de uma disciplina escolar: da história sagrada à história profana”, publicado em 1993

ii “Formação da Alma e do Caráter Nacional: Ensino de História na Era Vargas, publicado em 1998 e “O ensino

de História como fator de coesão nacional: os programas de 1931” publicado em 1993.

Referências

ARROYO, Miguel. Balanço da EJA: o que mudou nos modos de vida dos jovens-adultos populares. REVEJ@-Revista de Educação de Jovens e Adultos, v. 1, n. 0, 2007.

CAMPOS, E. L. F.; OLIVEIRA D. A. A Infrequência dos alunos adultos trabalhadores, em processo de alfabetização, na Universidade Federal de Minas Gerais. 2003. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.

CERRI, Luís Fernando. Ensino de História e consciência histórica. Rio de Janeiro, FGV, 2011

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MACEDO, R. S.; MACEDO DE SÁ. S. M. Etnocurrículo, etnoaprendizagens: a Educação referenciada na cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28

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SESI. Metodologia de Reconhecimento de Saberes – MRS “Identificação, Validação e Certificação de Competências" para a Educação de Jovens e Adultos Sesi. Sesi, 2015.

TOMASEVSKI, K. Por que a educação não é gratuita? In: HADDAD, S.; GRACIANO, M. (Org.). A educação entre os direitos humanos. Campinas/São Paulo: Autores Associados/Ação Educativa, 2006. p. 61-91.

Referências

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