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Avalovara: o tempo na narrativa e a forma da representação social 1

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Academic year: 2021

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Avalovara: o tempo na narrativa e a forma da representação

social

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Avalovara: el tiempo en la narrativa y la forma de representación social

Avalovara: time in the narrative and the form of the social representation

João Paulo Afonso Neto2

Resumo

Este trabalho pretende abordar aspectos da composição literária do romance Avalovara (1973) de Osman Lins a temporalidade da linguagem e sua relação com a forma social representada na obra. A partir do diálogo da criação literária de Osman Lins com os conceitos de intuição e duração cunhados por Henri Bergson, e de acordo com a leitura da obra bergsoniana realizada por Gilles Deleuze, buscou-se destacar na obra osmaniana sua linguagem devenir, sua estética menor.

Palavras-chave: Avalovara; Duração; representação social; estética menor.

Resumen

Este trabajo pretende abordar aspectos de la composición literaria de la novela Avalovara (1973) de Osman Lins, la temporalidad del lenguaje y su relación con la forma social representada en la obra. A partir del diálogo de la creación literaria de Osman Lins con los conceptos de intuición y duración acuñados por Henri Bergson, y de acuerdo con la lectura de la obra bergsoniana realizada por Gilles Deleuze, se buscó resaltar en la obra osmaniana su devenir linguaje, su estética menor.

Palabras claves: Avalovara; Duración; representación social; estética menor.

Abstract

This work intends to approach aspects of the literary composition of the novel Avalovara (1973) by Osman Lins, the temporality of language and its relation with the social form represented in the work. From the dialogue of Osman Lins' literary creation with the concepts of intuition and duration coined by Henri Bergson, and according to the reading of the bergsonian work carried out by Gilles Deleuze, its sought to demonstrate in the osmanian work your devenir language, your minor aesthetics

Keywords: Avalovara; Duration; social representation; minor aesthetics.

Avalovara (1973) é um romance complexo, um texto ímpar para os padrões narrativos brasileiros dos anos 19703. Sua estrutura espaço-temporal tenta refletir as experiências das personagens imediatamente e sobrepondo espaços-memória, o presente discursivo é um tempo alargado pelas memórias das personagens principais Abel e . Essas

1 Artigo apresentado no II Congresso Internacional Online de Estudos sobre Culturas, na modalidade online,

2020.

2 Mestre em Estudos Literários; UNIR; Porto Velho, Rondônia, Brasil; e-mail: jpaulo.afonso@gmail.com 3 Adiante, o termo estética menor contextualizará essa caracterização.

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memórias descrevem um espaço-presente que recorta a narrativa, em cada recorte rege uma temporalidade e uma espacialidade autônomas, não obstante, conjuntivas. Osman lins constrói uma narrativa de micronarrativas que no caso das narrações dos protagonistas torna-se modelo expressivo da autonomia discursiva, ou relatividade discursiva; uma estrutura narrativa que foge aos modelos tradicionais apontando novas soluções romanescas.

O romance Avalovara está dividido em oito temas narrativos. Rege-os tempos e espaços diferentes, valorizando o que Osman Lins chama de aperspectivismo. Os temas são o desvelamento da vida de Abel, suas experiências, anseios, compreensão de mundo, revelações para o amor ao mesmo tempo em que sua procura por sentido do ser está ligada à produção da escrita. Para Abel a busca pelo texto é a busca pela vida. Mas esse personagem escritor não se abandona à procura sem antes ter consciência de que precisa de um plano.

A técnica narrativa desenvolvida por Osman Lins logo despertou a crítica. Antonio Candido na apresentação do romance à 1ª edição, vê em Avalovara um sinal característico da literatura contemporânea, a opaca delimitação dos gêneros textuais, uma outra forma de narrar experimentando limiares entre as linguagens fictícia e ensaística (CANDIDO, 2005, p. 9). Seguindo a esteira do principal estudo realizado acerca da temporalidade do romance Avalovara (1973), Tempo de Avalovara: as diferentes dimensões

temporais no romance de Osman Lins, de Marisa Balthasar Soares, tese de doutoramento

defendida em 2007 na FFLCH – USP; procuramos destacar certos desdobramentos da ideia de temporalidade a partir do estudo de Gilles Deleuze sobre a duração bergsoniana que singulariza a estrutura da obra osmaniana, relevantes para esta pesquisa na medida em que um destaca a estrutura narrativa como representação do mundo narrativo possível como alegorização do todo; outro ponto evidencia temporalidades narrativas como potenciais de criação poética e elementos de configuração da narrativa ficcional contemporânea.

O processo criativo expresso na obra Avalovara carrega o tempo da criação, ou imediatez da intuição criadora, tal como, ao mesmo tempo, realiza a crítica interna ao processo criativo. Nesse sentido, criação e crítica se presentificam na duração que faz a narração acontecer, eis então que a obra acontece, de acordo com a acepção deleuzeana de

acontecimento4 da obra.

O tempo da criação literária se dá ao mesmo tempo na reflexão do fazer literário, mostra-o o pensamento em potência criativa de Abel frente às opressões impostas aos

4Além de conter o perceptível da duração, efetuação no espaço e no tempo do sentido; o acontecimento não é

acidente (DELEUZE, 2009, p. 151). Deleuze, partindo dos estoicos, entende o acontecimento em dualidade: o incorpóreo (depois agenciador virtual), e os corpos onde se efetua. Sua expressão temporal está em Aion, portanto, mesmo em efetivação, o acontecimento é uma contra-efetuação.

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personagens-criadores: Loreius/Julius/Abel. A criação como promessa de absoluto, criadores que combatem as forças cerceadoras; personagens condicionados ao contexto histórico-social, nem por isso resignados, mas produzindo suas saídas para a vida: Loreius, escravo na Pompeia de 200 a. C., para ser liberto, aceita o desafio de compor um texto que represente a mobilidade do mundo e a imobilidade do divino proposto por seu senhor, Plubius Ubonius; Julius, relojoeiro, cria uma máquina representante da vida moderna, vida medida pelo tempo do relógio, mas a máquina também é característica do aleatório da vida, da imprecisão e surpresa na vida humana, vida imprecisa representada no sistema sonoro do relógio, cuja frase musical nunca é a mesma. Julius manifesta uma ideia geral sobre os relógios: “Os relógios, escreve J. H., têm estreita relação com o mundo e o que representam ultrapassa largamente

sua utilidade” (LINS, 2005, p. 156, grifo do autor). Sua busca quer a realização dessa imagem

e sua obra efetiva-se: “[...] soam as horas (um número incôngruo de notas) e então passamos a vê-lo com olhos novos: os sons, diversos dos que ouvimos em geral, surpreende-nos. Cresce nossa estranheza ao percebermos que não se repetem, antes variam nas horas seguintes” (LINS, 2005, p. 190). Julius é oprimido pelo tempo histórico em que vive, contexto da ascensão de Hitler ao poder, “[...] não falta muito para a conclusão [da obra] quando o intimam [...] a readaptar sua oficina, com o subsequente silêncio dos carrilhões [...]. O espectador do mundo, preocupado com o equilíbrio, com as junções felizes e afeito à fragilidade, passará a trabalhar para a Luftwaffe” (LINS, 2005, p. 333). Âmbito histórico que o faz refletir: “Para as horas que se acumulam no tempo como hordas, marcadas por uma brutalidade cuja natureza ele ainda não entende com clareza, são inúteis relógios como este” (LINS, 2005, p. 334).

Quanto a Abel, personagem escritor, sempre em luta com o texto, em busca do Texto e também afetado pelas relações amorosas, pensa em criar para ser livre, “[...] não há obra que não indique uma saída para a vida, que não trace um caminho entre as pedras” (DELEUZE, 1992, p. 179). Neste contexto, é possível ao leitor vincular a poética de Abel ao pensamento de Deleuze, quando o filósofo refere-se às obras filosóficas, científicas ou literárias enquanto resistência a uma vida redutível a palavras de ordem, à comunicação tão valorizada numa sociedade de controle, onde a liberdade de expressão e o acesso à informação seriam a caracterização maior da democracia. A obra de arte é situada pelo pensador como ato de resistência porque não comunica, não se preocupa com a informação:

A obra de arte nada tem a fazer com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a menor informação. Em contrapartida, há uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Aí, sim. Ela tem algo a fazer com a informação e com a comunicação, a título de resistência (DELEUZE, 2016, p. 341).

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Em um enfoque exterior à construção de Avalovara, o contexto histórico-político por que passava o Brasil na década de 1970, esta obra pode ser um exemplo do que afirma Deleuze quanto à resistência para uma vida livre. Avalovara como metáfora da resistência ao contexto sócio histórico e estético. Uma leitura deleuzeana da obra de Osman Lins enquanto resistência remete, ainda, à ideia de contraposição do discurso molar da literatura e da filosofia, que resiste ao discurso hegemônico, constituída, portanto, por discursos moleculares. O discurso molecular está a serviço de uma vida de criação, ou o que dá no mesmo, uma vida em fuga, uma saída para a vida; a intuição criadora da obra para a vida e da vida para a obra (DELEUZE; GUATTARI, 2010c).

Os atos de resistência de Abel, Julius e Loreius exemplificam a simbolização necessária à expressão da intuição criadora, busca da obra de arte, leia-se trecho do tema “T – Cecília entre os leões”:

Planejo escrever. Para quê? [...] Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir, de não ir levando ao azar minha vida. Uma decisão artificial, Cecília. Honesta, contudo [...]. Jogar umas palavras contra as outras, exercer sobre elas uma espécie de atrito, fustigando-as, até que elas desprendam chispas: até que saltem, dentre as palavras, demônios inesperados [...]. Resta-me, então, por este modo recusando todas as estúpidas formas oficiais de viver, isto que suponho ficar em minha alçada – intentar maquinações com as palavras. Projeto desesperado e enleante (LINS, 2005, p. 197-8).

Ter nas mãos, mesmo de modo enleante, a possibilidade da criação, é não sucumbir. Abel em volta com as reflexões sobre a escrita circunscreve caminhos possíveis da escrita, o desvelar e criar pelo texto.

A figura do Iólipo, ser zoomórfico que metaforiza a gestação criativa, porém, de um monstro; depois que nasce é o último, não procria (alusão ao temor do escritor que vive de nascimentos, partos?):

Este ser animalesco, também ao início enigmático, irrompe nos momentos críticos narrativos, inserindo-se, às vezes sorrateiramente, como uma figura sinistra que incorpora os mecanismos repressivos narrativos, paradoxalmente engendrando esterilidade (ANDRADE, 2014, p. 226).

O Iólipo é identificado à personagem de Olavo Hayano, figura opressiva, militar esposo de , “Assim Olavo Hayano. Nele, o rosto oculto, fora do meu alcance, é de monstro” (LINS, 2005, p. 281).

A narrativa que desenvolve o tema “P – O Relógio de Julius Heckethorn” a princípio parece estar em conflito com a ideia de duração na obra Avalovara no que se refere à narração. Por ser narrado em terceira pessoa, é possível ler um discurso distanciado do fluxo

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temporal interior caracterizador da duração. E pensar as referências históricas e geográficas como forças que objetivam mais do que subjetivam, ou seja, como se o plano da duração que singulariza percepções fora substituído pela objetividade analítica de um narrador onisciente, mesmo havendo marcações dêiticas do narrador em primeira pessoa. Porém, uma leitura mais atenta permite também outra percepção: de que a inclusão da personagem Julius Heckethorn e sua história neste item exemplifica a problemática temporal para a investigação do tempo da criação literária em Avalovara; pelo viés da coexistência de tempos característicos da intuição criadora, abertura para o tempo da reflexão poética. Pode-se ler as impressões subjetivas da personagem envolvendo o tempo cronológico também como evidenciadoras de algo diferente, a passagem da duração bergsoniana à concepção destacada por Gilles Deleuze (DELEUZE, 2012, p. 63) de durações; segundo tal concepção não há uma duração apenas, mas várias; variação esta que comporta mudanças de natureza temporal.

O tempo da criação da obra aproxima-se do conceito bergsoniano explicitado por Deleuze no que se refere à diferença de natureza, que, propiciada pela duração enquanto tempo indivisível quando de sua diferenciação, principia outro tempo:

Portanto, seria um grande erro acreditar que a duração fosse simplesmente indivisível, embora Bergson, por comodidade, exprima-se frequentemente assim. Na verdade, a duração divide-se e não para de dividir-se: eis porque ela é uma multiplicidade. Mas ela não se divide sem mudar de natureza; muda de natureza, dividindo-se: eis por que ela é uma multiplicidade não numérica, na qual, a cada estágio da divisão, pode-se falar de “indivisíveis” (DELEUZE, 2012, p. 36).

A afirmação comunica-se com a ideia de tempo da criação literária quando da intersecção no fluxo do narrador Abel, vista também como passagem da narrativa ficcional ao ensaio literário, leia-se um trecho da voz de Abel:

Há em seu rosto, apesar da força que sugere, uma atmosfera infantil [...]. Nos olhos claros, de cor indefinida, dentro deles ou mesmo coincidindo com eles, outros olhos – com outra idade e decerto olhos de outro rosto - me fixam, esteja ou não voltada para mim, fixam-me com avidez. Sob a pele transparente, à qual afluem ondas de sangue ao mínimo estímulo, pressinto – como quem procura recordar - a face escondida e que, mesmo sem ver, contemplo.

- Os textos, de certo modo, existem antes que sejam escritos. Vivemos imersos em textos virtuais. Minha vida inteira concentra-se em torno de um ato: buscar, sabendo ou não o quê. Assemelham-se um pouco às de um desmemoriado minhas relações com o mundo. Caço, hoje, um texto e estou convencido de que todo o segredo da minha passagem no mundo liga-se a isto (LINS, 2005, p. 65).

O tema “R - e Abel: encontros, percursos, revelações” experimenta a duração em modos. Em Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889), Henri Bergson definia a duração como indivisível, mas conforme suas investigações ontológicas aprofundavam-se, outros modos de tempo viram-se possíveis. Não que estejam fora da

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duração, “[...] a duração pareceu-lhe cada vez menos redutível a uma experiência psicológica,

tornando-se a essência variável das coisas e fornecendo o tema de uma ontologia complexa” (DELEUZE, 2012, p. 28). Assim, Deleuze explorará o tema da multiplicidade, distinguindo-as em multiplicidade quantitativa (quando sua divisão não opera mudança de natureza) e multiplicidade qualitativa (quando sua divisão opera mudança de natureza) (DELEUZE, 2012, p. 34); a leitura desta distinção revela a caracterização pretendida quanto à gênese do tempo da criação literária, pois a divisão do tempo narrativo, que pode ser identificada na mudança do gênero do discurso dentro da narrativa, singulariza uma narração originária a partir da divisão de uma primeira narração. Este entendimento afina-se ao que Bergson afirma: “[...] desde que a consciência tenha deles [elementos distintivos da multiplicidade qualitativa frente à quantitativa]5uma percepção distinta, o estado psíquico que resulta de sua

síntese terá, por isso mesmo, mudado” (BERSGON apud DELEUZE, 2012, p. 35). A multiplicidade de durações que a partir de Matéria e Memória (BERGSON, 1999) torna-se indubitável para o pensamento bergsoniano implica até mesmo a reconsideração do papel do espaço, este como sendo duração exterior, “esquema da matéria”, extensão; distinção problematizada por Gilles Deleuze (2012):

Com efeito, o espaço não é a matéria ou a extensão, mas o ‘esquema’ da matéria, isto é, a representação do termo em que o movimento de distensão desembocaria, como envoltório exterior de todas as extensões possíveis. Nesse sentido, não é a matéria, não é a extensão que está no espaço, mas bem o contrário” (DELEUZE, 2012, p. 76-7).

A percepção dessa diferença temporal, psicológica e extensiva passa a colaborar com o pensamento bergsoniano no que se refere à multiplicidade de durações. Como indica Deleuze:

[...] haveria uma só duração, um só tempo, do qual tudo participaria, inclusive nossas consciências, os viventes e o todo do mundo material. Ora, para surpresa do leitor, é essa última hipótese que Bergson apresenta como a mais satisfatória: um só

Tempo, uno, universal, impessoal. Em resumo, um monismo do Tempo [...].

(DELEUZE, 2012, p. 68, grifo do autor)

E não há contradição nisso, como veremos. O que se observa é a distinção, não obstante, a afinidade entre o que se passa dentro e fora de nós, “[...] eis por que há sempre

extensos em nossa duração e sempre há duração na matéria” (DELEUZE, 2012, p. 77; grifo

do autor). Pensar a mudança de natureza da duração correlativamente ao tempo da criação literária pressupõe um espaço virtual, espaço possível para o fluxo da criação, o espaço para o virtual da criação, para a criação de novidade. Em termos deleuzeanos, a expressão virtual redunda, mas preserve-se o termo, virtual “[...] é a característica da ideia; é a partir de sua

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realidade que a existência é produzida, e produzida em conformidade com um tempo e um espaço imanentes à Ideia” (DELEUZE, 2006, p. 298); “[...] a natureza do virtual é tal que atualizar-se é diferençar-se” (DELEUZE, 2006, p. 296). E também: “[...] o virtual deve ser definido como uma parte própria do objeto real – como se o objeto tivesse uma de suas partes no virtual e aí mergulhasse como numa dimensão objetiva” (DELEUZE, 2006, p. 294). Campo de possibilidades, o virtual literário efetiva-se na expressão-estilo do escritor.

Se não houvesse a possibilidade do espaço em relação mútua (porém distinta) com o tempo, a criação não seria sinônimo de novidade e de imprevisibilidade. O espaço funciona como campo de efetivação do virtual.

A discussão das relações entre tempo e pensamento, seus desdobramentos nas práticas culturais, científicas, filosóficas e artísticas encontra sua crise com limites bem definidos quanto às posições doutrinárias em fins do século XIX, com a polarização: de um lado os positivistas e do outro os espiritualistas, objetivismo vs. subjetivismo. Esse contexto crítico faz-nos compreender o surgimento de manifestações de várias tendências do pensamento nas várias áreas da cultura. Essas divisões ampliaram os espaços e as possibilidades da crítica e criação artísticas, e no campo sócio-político lançaria novos ideários que norteariam os artistas críticos em todo o domínio da cultura ocidental.

No caso brasileiro, o movimento modernista da Semana de Arte de 1922 de São Paulo foi a expressão da ruptura com a tradição artística nacional. O ideário modernista lançado na Semana de 1922 como modelo de pesquisas formais, e mais ainda a aproximação em termos de reflexão poética aos escritores franceses do Nouveau Roman (NITRINI, 1987), podem ser identificados nas narrativas de Osman Lins. A influência dos modernistas da Semana de 1922 , Oswald de Andrade e Mário de Andrade faz-se notar nas conquistas formais para a nova narrativa literária brasileira, a fissura da narrativa cronológica, por exemplo; assim como uma espécie de ajuste da linguagem literária à realidade cultural brasileira da década de 1970. Essa relação explica porque Avalovara diferiu do fazer literário hegemônico dos anos 1970. Tentar-se-á uma amostra das insurgências da criação osmaniana num contexto histórico regulador e vigilante de produção artística, contexto da concepção e publicação de Avalovara, 1973. O contexto histórico do surgimento de Avalovara pode dividir-se em duas faces, de um lado os censores estatais do regime militar implantado desde 1964, de outro a literatura engajada, em reação ao regime, cuja proposta agencia muito mais elementos extraliterários efetuando mudança na discursividade e conjunção de gêneros textuais, como o informe jornalístico, linguagem corrente dos escritores dos anos 1970, lembrando que o jornalismo tornara-se um novo meio de expressão literária; Alfredo Bosi

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(2000) identifica uma pluralidade de formas: “[...] a literatura-reportagem, assim como o teatro se fez então denúncia e o cinema, depoimento” (BOSI, 2000, p. 435); forma literária que dista da procura osmaniana. E o gênero crônica, que no Brasil tomou forma artística e cuja linguagem conversa como o gênero conto. Os principais escritores desse período participavam das publicações de crônicas em jornais, de Rubem Braga e Carlos Drummond de Andrade à Clarice Lispector.

Karl Schollhammer em concordância com Silviano Santiago também caracteriza esse período como compromissado com a temática de “crítica social e política contra qualquer tipo de autoritarismo” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 23). Como veremos adiante, Osman Lins não oculta sua participação na crítica social, porém, o tema recebe, por meio da linguagem criativa de Lins, outro labor poético. As referências ao período quando inseridas no romance Avalovara, tema “R - e Abel: encontros, percursos, revelações” estão sob uma forma temporal que presentifica o tema num contexto simultâneo à narração das experiências das personagens:

Ergue-se nas mudanças de marcha o vestido: seus joelhos luminosos. Algumas casas antigas e de aparência nobre, também estas malcuidadas, assinalam um período ascendente e encerrado. Castelo Branco adia sine die a execução de novas

cassações de mandatos. Um ciclista, conduzindo varas de pescar, passa sob a chuva

fina (LINS, 2005, p. 31-2, grifo do autor). [...]

Todas as luzes da noite, globos da iluminação pública, esmalte e cromado dos carros, faíscas brancas arrancadas pelo trolley dos ônibus na rede elétrica, letreiros, sinais de tráfego, mármores polidos e vidraças do Edifício Zarvos, letras efêmeras do jornal luminoso, LE MONDE CONSIDERA EQUÍVOCA VITÓRIA DO GOVERNO NO BRASIL, faroletes rubros e luzes dianteiras dos veículos e marcha, tudo liga-se e explode, fogo de artifício, círculo girando e ela no centro do círculo, do fogo (LINS, 2005, p. 32, grifo do autor).

As ficções que trabalham os temas históricos, políticos e sociais antes de

Avalovara desenvolvem-nos objetivamente priorizando-os na narração, desde obras

denunciantes das precárias relações sociais no Nordeste a partir de 1930, como O Quinze (1930) de Raquel de Queiroz, Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos, até o período dos anos 1960/1970, com sua hegemônica linguagem realista; enquanto na obra osmaniana em questão, o recurso da alusão como forma de presentificação e noção de simultaneidade não secundariza a temática sócio-histórica, embora a trate de outro modo. Em Lins a temática social passa por elaboração expressiva diferenciada da tendência referencial hegemônica citada acima.

Por outro lado, inscrever Osman Lins entre os artistas críticos significa dizer que é um artista consciente de seu ofício e de sua época. E, mesmo que haja a tentação de classificar

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seu movimento criativo como em Poéticas em Confronto (1987), cuja autora Sandra Nitrini analisa as relações entre Nouveau Roman e o livro de contos Nove, Novena (1966) de Osman Lins; ou “Do OuLiPo aos Iólipos, reflexos da literatura potencial osmaniana” de Vinícius Meira (FARIA; FERREIRA, 2009, p. 247), para ficarmos nesses dois estudiosos, o leitor da obra de Lins se depara com uma busca que envolve motivos cosmológicos e cosmogônicos, mais o arranjo estrutural. Esse leitor pode visualizar muito mais limiares do que limites; essa diferenciação da criação literária assim se apresenta em Avalovara:

- Empenho-me na conquista de uma afinação poética e legível entre a expressão e faces do real que permanecem como que selvagens, abrigadas, pela sua índole secreta, da linguagem e assim do conhecimento. Existem, mas veladas, à espera da nomeação, este segundo nascimento, revelador e definitivo. Consigo, por vezes, rápidas passagens, alcançar o cerne do sensível. O combate quase corporal que sustento com a palavra liga-se a essas perfurações. Um esforço no qual venho amestrando aptidões mais ou menos embotadas; e para o qual, inclusive, convergem as pausas de sombra, os intervalos em que, sem realmente ver e sim apenas revendo, caço o oculto. O claro e evidente deixa-me frio (LINS, 2005, p. 208).

O trecho destacado é um exemplo do ideário osmaniano quanto à produção da escrita, imagem da página em branco e seu preenchimento, do caos ao cosmos; e quanto ao papel social da literatura, assevera Lins: “Pois, exatamente, a literatura e o modo como é vista, acho eu, não constituem um fenômeno privado circunscrito a um círculo de letrados e sem implicações fora desses limites” (LINS, 1979, p. 47). O trecho está num contexto de reflexão osmaniana acerca do tratamento acadêmico dado ao texto literário como algo “[...] em si, cortando, se possível de maneira total, as suas ligações com as ansiedades dos homens” (LINS, 1979, p. 47). Assim o narrador Abel quando apresenta em escritura narrativa as perspectivas históricas do Brasil, significa o contexto de modo que uma criação propriamente formalista, sem qualquer índice de sua condição de produção, negaria o ideal poético de Lins: “A obra, essa entidade para nós concreta, imediata, não fria e distante matéria de análise, e sim resultado de um esforço total de nosso ser, de uma luta exaustiva em muitas frentes” (LINS, 1969, p. 55).

Lins ocupa-se dos grandes temas assentando-os na conquista da estrutura livre, realizada por algumas obras modernistas, tais como a forma de Macunaíma (1928), de Mário De Andrade - rapsódia, fora da ordem temporal e espacial predominante de sua época no Brasil - e Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) com sua forma parodística e cubo-futurista6. Lins insere em sua obra as meditações do escritor sobre a criação da estrutura: “[...] como introduzir, então, na obra, o princípio de imprevisto e de aleatório, inerente à vida?

6 Termo caracterizador utilizado por Haroldo de Campos no apêndice “Miramar na mira” da obra Memórias

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(LINS, 2005, p. 322), daí uma estrutura condizente com a expressão pretendida; e que participa do problema do presente trabalho: a forma da narrativa osmaniana em estudo trabalha com a livre estrutura porque livre é o tempo. É a estrutura que suporta as durações. Nesse sentido a duração faz aparecer outro aspecto significativo, duração enquanto estrutura, uma efetuação do virtual.

O que aparece em Avalovara é uma espécie de analítica da criação, ao mesmo tempo em que a busca pela experiência imediata do mundo possui força narrativa, diálogo entre o informe da escrita e o plano para a escrita. Esse conflito entre abstração/análise e imediatismo também pode ser concebido como a irredutível tensão da efetivação da obra de arte, numa espécie de movimento: da herança clássica da representação à efetuação material que valoriza a linguagem por sua forma e não pela ideia a ser transmitida. Osman Lins cria em tensão, esta, implicando e complicando a herança literária, sugerindo desdobramentos da arte modernista, suas conquistas expressivas; e comenta convergindo com André Gide (1869-1951), “[...] o escritor, longe de evitar ou ignorar suas dificuldades, nelas deve apoiar-se (LINS, 1969, p. 11).

A problemática da escrita narrativa abraçada pela personagem Abel, e que vai constituindo o movimento de Avalovara, voos e pousos, tempos e locais que evocam criações e possibilidades de criação, refletem no modo narrativo e na expressão escrita as tentativas de composição idealizadas pelo narrador protagonista. Leia-se Abel diante da sensualidade:

[...] Palavra e corpo, o rosto – fogo e seda – junto ao meu: . Afago seus cabelos, fartos, fortes, duas cabeleiras confundidas [...]. Do corpo nos meus braços, dos cabelos presos, cor de mel e aço, do alegre vestido, alça-se um perfume lancinante (LINS, 2005, p. 20).

[...] Repetem nossas línguas o jogo de avanços e recuos, próprio dos amantes. Os incisivos vez por outra tocam-se e então nossos músculos retraem-se [...]. A língua quente e agitada, feita para degustar os sabores da Terra, inverte esta função e faz-se alimento. Sabe a licor. De quê? Bebo o suco sempre renovado desse fruto vivo (LINS, 2005, p. 24).

Desde o presente extático de Abel em presença de , puramente sensual, como a citação acima, à memória do cosmos com a intranarrativa de Loreius, há dois modos narrativos disjuntos cuja temática está em ressonância com a obra como um todo. Nos dois exemplos temos a criativa tentativa de um escritor explorando variações formais de um mesmo tema, característica já apontada como aperspectivista pela oscilação da expressão literária.

Osman Lins cumpre o labor daqueles que trazem a si a missão de fertilizar o campo para a nutrição de seu povo, o texto literário como sendo metáfora dessa tensão

alimentar, plantar e colher, criar o texto e, em dupla via, alimentar uma cultura e ser

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intertextos. Em outra perspectiva, manter o mundo em sua órbita diante das forças destruidoras, isto é, o manuseio da ordem se dá com dominação do caos infinito, jogo do limitado com o ilimitado. A narrativa osmaniana se dá nessa experiência, ou seja, há algo de estável no incessante fluxo temporal; há algo de essencial no próprio tempo, a saber, a duração, a mudança; segundo a qual tudo que está, está para o porvir, para a diferença sempre à espreita e na corrente da criação. Assim, a escrita osmaniana sinaliza para outras possibilidades de criação literária de dentro de um contexto histórico-político onde a

representação era a régua para a boa ficção.

A mudança temporal levada a cabo pelo pensamento filosófico da modernidade histórica, ou seja, a inauguração de outro tempo, o tempo emancipado dos ciclos naturais e intrinsecamente ligado ao sujeito, inscrevem algumas obras literárias num lado de fora do movimento, digamos, heterônomo, da grande literatura ou literatura estabelecida (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 42)7. Deleuze analisa o devir de uma linguagem muito mais calada que falada: a literatura menor que surge ao:

Opor um uso puramente intensivo da língua a qualquer utilização simbólica ou mesmo significativa, ou simplesmente significante. Chegar a uma expressão perfeita e não formada, uma expressão material intensa [...]. A glória de uma tal literatura está em ser menor, isto é, revolucionária para qualquer literatura (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 43).

A ideia de literatura menor deleuzo-guattariana ao organizar regimes de signos, isto é, denunciar a coercitividade dos enunciados que produz o assujeitamento - uma figura pertencente ao pensamento da Identidade, - serviria como caracterizadora da escrita osmaniana em Avalovara para fugir do juízo formalista8 - método de leitura não condizente com a relevância da temática social dada por Osman Lins em sua obra. O termo literatura menor aparece na obra de Deleuze e Guattari (2003) como marcador ético da escrita, como resistência à opressão da língua e posteriormente como abertura às multiplicidades linguageiras a fim de desestratificá-las. Extraímos desse termo deleuzo-guattariano apenas alguns aspectos, tensionamo-lo para a compreensão de estilo/escrita/expressão do romance

Avalovara, preterindo o aspecto ético do escritor, indivíduo histórico, que no livro

mencionado é Franz Kafka como artista condicionado, ou seja, só importa o plano da expressão não o aspecto autor histórico. Doravante utilizaremos a expressão estética menor

7 A questão da literatura estabelecida analisada por Deleuze está em oposição à literatura menor,

desterritorializada, por esta estar em condições revolucionárias de fabricar outra língua dentro de uma língua, sair da língua dominante guardiã do sentido.

8 Osman Lins fora criticado por indiferença e alienação política numa época caracterizada por críticos e autores

em discussão conceitual sobre arte alienada e arte engajada. Para mais informações, ver o artigo “Osman lins: encontro com o autor de Avalovara”, de Raimundo Carrero, Revista Continente, 2013.

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em referência ao romance osmaniano em questão. Nesse aspecto, estética menor alude a uma agramaticalidade, e multiplicidades “[...] que permitem pensar os signos como potências de desterritorialização e explicitar um tipo de ‘funcionamento desfuncionante’ do linguageiro” (ALMEIDA, 2003, p. 196). Aparentemente distante em alguns elementos, porém, próximo noutros, o conceito literatura menor e agramaticalidade complementam-se para sustentar a estética menor osmaniana. No plano composicional de Avalovara, há uma conjugação das composições ética e estética, sendo que o presente trabalho destaca a estética.

A conceituação menor para a literatura relaciona-se com o sistema de escalas musicais, maior e menor,

O tom maior é o referencial, uma vez que o menor é sempre comparável ao maior. O tom menor confere à música, segundo Deleuze e Guattari (2007a, p. 38) na obra Mil platôs, cuja primeira edição data de 1980, um “[...] carácter fugidio, evasivo, acentrado”. O menor na música liberta-se do maior, entra em variação, faz a música vibrar, devir outra (NOVA CRUZ; NEITZEL, 2019, p. 4).

A literatura faz da língua devir, o escritor cria linguagem; tensiona a língua e a faz abrir-se ao múltiplo, ao fluxo dos sentidos produzidos nas relações. Em Avalovara, como já dito, os arranjos sintático e semiótico caminham nessa direção. Como no trecho:

Dos meninos de joelhos, sérios, no dia da primeira comunhão. Homens de c éu e bengal , lado a lado, uma pe na estendida e o o har distante, como se a câmara os surpreendesse num escasso silêncio entre diálogos profundos; mulheres sentadas, otovel apoiado numa esa de és etorcidos; fechando graciosamente um leq entre as ãos; moças de meia n gras e longos vesti claros, grande ç branco nos cabelos, sustendo um livro com uma frol entre as páginas e os o os voltados para mim; outras em meio a pedras e almeiras-reais refletidas no telão ao fundo; ao lado de cães; famí s reunidas, cada qual olhadno numa direção: no centro do grupo, um casal de crianças com chapéus de al vestidos de mar , segurando um ar ... Em meio a essa galeria composta e descorada, onde já inclusive se dissolve a identidade dos modelos, salta-me de súbito entre as mãos uma foto pouco hábil, datada de um mês, tirada em algum espetáculo circense: uma jovem sorrindo para a câmara, tendo nos braços um leão ainda novo, amordaçado (LINS, 2005, p. 99-100).

A deterioração da narratofotografia surge na supressão da letra como falta de nitidez (ações do tempo) do fotografado. A imagem na fotografia, forma maior da representação, e a imagem criada pela escrita enfatizam e fazem pensar nas ações humanas sempre devedoras ao modelo e por isso mesmo transgressoras desse. A linguagem escrita iconiza a linguagem fotográfica, a sucessão natural, o tempo, sua ação pretende-se representada numa forma de escrita. Lins intensifica a língua experimentando novas formas expressivas criando efeito poético só possível, como no exemplo acima, quando justapõe a natureza temporal da linguagem narrativa a uma espacialização do pictórico, numa tentativa de aproximar a escrita

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deteriorada (fonemas apagados) à imagem deteriorada da fotografia. Para além da descrição, Lins cria outra possibilidade representativa fora da língua maior.

Outro aspecto para uma estética menor em Avalovara refere-se, como já mencionado, ao contexto histórico-político brasileiro dos anos da ditadura militar representado na narrativa enquanto matéria crítica à política e crítica à criação literária. A personagem Abel enquanto escritor reage a seu contexto sócio-histórico ficcional, seguindo a proposição sartreana, também defendida por Osman Lins, “[...] o escritor, no dizer de Sartre, é aquele que se opõe. A literatura será sempre uma negatividade” (LINS, 1979, p. 162); e a busca da expressão literária conflitua e sinaliza no par opressão/criação uma ética do escritor, sua estética converge para uma conduta em defesa da liberdade, tanto de criação literária quanto social, de direito; defesa da coletividade, e de uma política democrática. Abel usa a figura do Iólipo: opressor, produtor de injustiça e violência; imagem da destruição e da impossibilidade de criar; causa de vazio e esterilidade. , por outro lado, associa Iólipo ao personagem Olavo Hayano, militar representante e guardião da ordem social e política estabelecida, esposo, talvez por isso traído: “Olavo Hayano me estupra com sua glande fria” (LINS, 2005, p. 260); Ele cerceia a liberdade: “Não consente sequer que eu determine a respeito de vestidos: acompanha-me às lojas e escolhe-os por mim. Cerceador, corta-me os passos. Pai e patrono” (LINS, 2005, p. 261); e emerge em monstruosidade:

As orelhas de Olavo Hayano, peludas, moles e longas, descem até o pescoço com verrugas. Parece, mesmo dormindo, dizer a si próprio: ‘Toda a injustiça que eu fizer terá sempre o nome de justiça. Sobram-me a força e a indiferença necessária para usar a força. A força, sem isso, não nos pertence’. O mais assustador é que, nesse espectro trevoso, falta uma parte do rosto (LINS, 2005, p. 326).

Figura opressiva à criação de novos modos de vida e causa da resistência de qualquer artista, filósofo ou cientista de qualquer época e lugar, Olavo Hayano, um Iólipo; a política ditatorial militar tem uma representação. As reflexões desdobradas a partir dessa figura são decisivas para a vida e literatura almejadas por Abel:

- A indiferença do escritor é adequada à sua presumível elevação de espírito? Para defender a unidade, o nível e a pureza de um projeto criador, mesmo que seja um projeto regulado pela ambição de ampliar a área do visível, tem-se o privilégio da indiferença? Preciso ainda saber se na verdade existe a indiferença: se não é, e só isto, um disfarce da cumplicidade. Busco as respostas dentro da noite e é como se estivesse nos intestinos de um cão. A sufocação e a sujeira, por mais que procure defender-me, fazem parte de mim, de nós. Pode o espírito a tudo sobrepor-se? Posso manter-me limpo, não infeccionado, dentro das tripas do cão? Ouço: ‘A indiferença reflete um acordo, tácito e dúbio, com os excrementos’. Não, não serei indiferente (LINS, 2005, p. 327).

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Reflexão do escritor sobre seu ofício, e crítica às formas artísticas caladas em sua matéria e conteúdo. Osman Lins produz uma obra num determinado contexto histórico brasileiro que não deixa passar incólume as adversidades da produção literária. A figura do Iólipo para Abel pode até ser estímulo à escrita,

[...] sei que obra e homem, ainda assim, estão contaminados e, o que é mais grave, comprometidos indiretamente com a realidade que aparentam desconhecer. Ele e sua obra resgatam uma anomalia: testemunham (testemunho enganoso, bem entendido) que a expansão, a pureza e a soberania da vida espiritual não são incompatíveis com a opressão, e nos levam mesmo a indagar se esta, além de as admitir, não propicia percursos do espírito (LINS, 2005, p. 314-5).

As criações ditas do espírito são afetadas pelos acontecimentos da realidade, sim; e contrariamente à estética da fuga defendida por uma tradição. Há uma insinuação dialética para a criação da obra: “[...] mesmo sendo a opressão um fenômeno brutal, o peso e o significado dos atos, na sua vigência, crescem na medida em que abrangem o domínio do espírito. Segue-se que o ato criador é particularmente exposto a tal emergência” (LINS, 2005, p. 282). A negatividade apontada por Sartre (LINS, 1979) como uma das funções da literatura, paradoxalmente é a sua afirmação, é a tensão e fertilidade do processo criador.

Como se possível, então, a libertação pela palavra, a exaltação das letras, o domínio de um universo; sentencia Abel: “- A palavra sagra reis, exorciza os possessos, efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho que descobre as carcaças podres” (LINS, 2005, p. 243). E Julius Heckethorn, criador de uma máquina, um relógio, cujo sistema sonoro representa o “aleatório, inerente à vida”, é instado a abrir mão de seu ofício:

Não falta muito para a conclusão quando o intimam (como outros relojoeiros, transformados em fabricantes de material bélico) a readaptar sua oficina [...]. O espectador do mundo, preocupado com o equilíbrio, com as junções felizes e afeito à fragilidade, passará a trabalhar para a Luftwaffe (LINS, 2005, p. 333).

Abel apropria-se dessas narrativas como exemplos de resistência às opressões a partir da criação, mesmo que essas obras tenham absorvido e condenado seus criadores.

Observem-se os efeitos do tempo aiônico movendo a narrativa na divisibilidade do tempo presente, essencialização do acontecimento que lança o presente ao passado, memória de , e futuro, anseio da escrita de Abel. Aion não delineia o presente, marca-o pela sua fuga, pelos instantes que dão ao leitor o desenrolar narrativo imediato marcado pelos verbos no presente: passado de , futuro da escrita de Abel. Distingue-se o tempo aiônico do cronológico pela operação ou tratamento do presente: Cronos implica sucessão, Aion conjunção, sua figura é o paradoxo. Essa distinção temporal diferencia a narrativa Avalovara

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de suas contemporâneas por operar uma narração com menções ao passado e futuro internos à diegese no presente. Aqui parece uma perturbação no tempo cronológico marcado pela temporalidade verbal das narrativas tradicionais. Para além da duração bergsoniana, Aion surge como outro motor diferenciador para a constituição de linhas de fuga, para o devir da criação literária, “[...] pura forma vazia do tempo, que se liberou de seu conteúdo presente” (PELBART, 2010, p. 72), ou seja, surge como tempo liberado, porque o tempo preenchido é cronológico, remete à efetuação física dos corpos, ao presente que Cronos delimita. Monegalha, num estudo sobre a filosofia deleuzeana, distingue Cronos como presente vivo; e Aion seria o vívido, intempestivo, manifesto da linguagem que efetua sentidos:

Todo enunciado que emitimos tem uma clara relação com Cronos, na medida em que ele se desenvolve durante o intervalo de tempo do presente vivo [...]. Mas a ligação da linguagem com o tempo não se esgota nessa ligação do enunciado com o presente vivo. Pois é uma função essencial da linguagem transpor os limites do presente vivo em que estamos inseridos para atingir um passado e um futuro ilimitados [...]. Ou seja, por meio da linguagem, estamos sempre extrapolando o campo de nosso presente vivo concreto, para nos abrir para um campo temporal ilimitado. Essa ultrapassagem do presente vivo é possibilitada, por sua vez, por uma segunda temporalidade, complementar àquela do presente vivo. Essa segunda temporalidade é exatamente o Aion (MONEGALHA, 2018, p. 94).

Não obstante, a diferença, a composição de Avalovara trabalha com os dois presentes e o efeito obtido extrapola a lógica narrativa predominante nas obras que lhe são contemporâneas. Não se trata de flashback, mas de valoração do passado em seu presente; e o presente da narração valoriza o vívido da narração aiônica.

Apresentou-se até aqui algumas singularidades da obra osmaniana quanto à sua composição: singularidade temporal, as várias durações e a conjunção aiônica; a sintaxe

bordejada, e também alusão ao ritmo da composição como signo. Ressalte-se que toda

criação depende do estado de liberdade do criador; liberdade crítica, direito de não pertencer ao quadro cultural hegemônico e principalmente liberdade para tentar modificar tal quadro. Para tanto, a participação do escritor nos debates culturais e políticos, a inserção de sua obra como resultado ético e poético nos meios sociais deve ser preservada. Assim o quis Osman Lins, assim o fez politicamente e esteticamente esse autor defensor das liberdades e das obras libertárias. Lembrando Gilles Deleuze a propósito de Franz Kafka (1883-1924), a forma adotada para composição da obra valoriza a ideia de abertura, de literatura e sociedade sem finalidades transcendentes; pois esse plano de composição trabalha com matéria imanente, agencia elementos que querem abrir novas frentes; trabalha num campo de forças intensas que não reivindicam telos algum. Assim sendo, a forma literária valorizada por Lins converge

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para a liberação de novos espaços sociais, literários e críticos. A forma inventiva como espelho para um social livre e desejoso de criações.

Em Deleuze e Félix Guattari (1930-1992), assim como em Lins, a concepção do escritor como criador de linguagem parece objetivar, pela leitura da forma nova, nova postura diante do mundo social. Se se concorda com Ezra Pound (1885-1972), para quem o artista é uma antena da raça, outro mundo é possível a partir da novidade da linguagem literária (ou outra) que é imanentemente necessária às modificações sociais; como se a literatura apontasse para um devir urgente de determinado estado social; e a arte contribuiria sensivelmente com suas imagens, muitas vezes utópicas. Deleuze e Guattari (2003) em análise da obra de Kafka salientam que numa literatura menor tudo é político porque se conduz a língua para fora do seu significado, de sua ordem, desterritorialização da língua. Embora a história concilie a língua menor à maior (reterritorialização), não se deve esquecer que a função do escritor é criar, traçar linhas de fuga, fazer fugir para uma vida incoercitiva.

Referências

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