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Conceição de Fátima Pereira Beltrão

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Academic year: 2021

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Conceição de Fátima Pereira Beltrão

A história das Jornadas da Clínica de Psicologia da Unijuí iniciou com o interesse de discutir com equipes de outras universidades a inserção da clínica no âmbito acadêmico. A construção da Jornada de 1999 partiu de uma pergunta: O que sustenta e viabiliza uma clínica de psicologia para além de uma determinação curricular?

Na tentativa de pensar a pergunta e não propriamente respondê-la, inicio com a própria história da clínica das patologias mentais. Podemos dividir essa história em três períodos: o primeiro se dá com Pinel (1745-1826) e outros grandes clínicos que, no século XVIII, fundam um trabalho de observação e diagnóstico que se sustenta através do olhar. Eram feitas rigorosas anotações a partir do que era visto. A clínica a partir do olhar começa no campo do psiquismo com mais de um século de atraso em relação a clínica médica e em especial a anatomia. A observação trás consigo a tentativa de classificar as patologias mentais em grandes campos, mas isso é acompanhado de reiterados fracassos que apontavam para a impossibilidade de construir um universal sem exceção a partir da fenomenologia. As divergências entre as escolas e os próprios clínicos, pesquisadores metódicos, disciplinados e bons escritores, se deve a inviabilidade de classificar e nomear as formações sintomáticas. Mas graças ao trabalho desses mestres, envolvidos em divergências que incluíam escolas alemãs, francesas, inglesas e nas controvérsias dentro das próprias instituições asilares, a patologia mental é retirada de seu ostracismo, na modernidade, e inserida no âmbito do trabalho público e da comunidade científica.

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Mas público e político são instâncias muito parceiras e no estudo e tratamento das patologias mentais está presente. O principal elemento que determina e separa a saúde da doença passa a ser a capacidade de produção. Essa divisão tem sua história escrita junto com a história do trabalho. A partir do empirismo inglês, com Locke o corpo passa a ser propriedade do indivíduo bem como tudo o que for fruto do seu trabalho. E a normalidade está vinculada então a capacidade de produzir riquezas. O pensamento nascente no século XVIII perdura até nossos dias na psicologia e na própria clínica, ou seja, que os homens podem ser melhorados e que a loucura é uma situação para ser melhorada. Isto é o que significa o tratamento moral introduzido por Pinel e sua escola. A cura representa, nessa concepção, a educação da vontade pressupondo que o homem ao proceder de uma forma normal ou moral o faz de acordo com sua vontade. Moral é uma palavra de origem latina, "more", que significa costumes. Logo quem está fora da moral está fora dos costumes.

O segundo período é inaugurado por Freud, que funda uma outra clínica, ancorada na suspensão do olhar. A introdução do divã mostra a ruptura de Freud e sua posição peculiar na relação com o paciente. O analista não privilegia a observação apoiada no eixo do olhar, mas volta sua atenção para a escuta dos pensamentos. Essa forma de tratamento não se dirige para a educação pela vontade, mas introduz o conceito de determinismo psíquico. Aluno de Charcot, o jovem médico vienense acompanha o momento de flagrante fracasso da escola de Salpetrière frente à determinada patologia, a histeria. Essa escola não encontra êxito em seus métodos de tratamento através da neurologia. Nos primórdios do século XX Freud ainda, com a descoberta da neurose obsessiva atesta mais uma vez a existência da patologia dos pensamentos.

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Se, historicamente, até o início desse século a clínica se volta para a busca da classificação ideal, se preocupando com a composição de um quadro universal, a psicanálise introduz a subversão, qual seja, de que a história é construída por cada paciente na sua relação com o analista. E a posição diagnóstica deixa de ser elaborada pelo observador e passa a ser feita a partir do laço que o analisante constrói com seu analista.

Localizamos o terceiro período na clínica da técnica. A corrente classificatória nunca foi abandonada e a encontramos nessa clínica para a qual a classificação, acrescida do procedimento, deixa em segundo plano a fala e a produção oriunda da experiência. Em primeiro lugar, é buscada a homogeneidade das operações como fundamento do exercício clínico enquanto científico. Não estamos muito distantes de Pinel, uma vez que a técnica pode ser uma fiel servidora da moral.

Foucault, no livro “Doença mental e psicologia”, nos auxilia a pensar o que seja a resistência à escuta no campo da psicologia. Diz o autor que desfazer a distância com a loucura é destruir a própria psicologia. Um certo tipo de psicologia que continua propondo o tratamento com o objetivo de colocar o indivíduo em acordo com os costumes. Esse traço moralizante ainda é uma herança da caça às bruxas, na Idade Média. Como exemplo, podemos tomar os tratados de psicopatologia sexual, não muito diferentes dos tratados de teologia moral medievais. Todos aqueles tratados inscreviam o que era o pecado e um capítulo, pelo menos, se dedicava ao pecado de cunho sexual, como um pecado contra os costumes. O moralmente religioso também significava estar dentro dos costumes, e desta forma fica enlaçado o religioso, os costumes e a normalidade. A psicologia contemporânea tem seu nascimento histórico e filosófico nesses tratados. Podemos ainda lembrar que a passagem do medieval à modernidade se funda num retorno à filosofia clássica romana

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que tem um de seus fundamentos no estoicismo. Essa escola filosófica, a partir da qual é construída a doutrina cristã do segundo testamento, coloca como ideal a razão que prima pela imperturbabilidade e o equilíbrio. Tudo que seja da ordem da desmedida e da ordem da paixão é considerado patológico. Dentro desse aspecto, a clínica já serviu e tem servido para excluir da sociedade todo aquele que atente contra os costumes definidos a partir dos estóicos e dos princípios da produtividade. Esses expediente foi utilizado com o próprio Marquês de Sade, nas perseguições políticas, com artistas que antecipavam seu tempo, e especialmente nas políticas higienistas ainda vigentes na atualidade.

A partir desse breve apanhado podemos destacar modos de operar, presentes na formulação da clínica psicológica contemporânea que fazem obstáculo, ou seja, resistência a escuta do inconsciente: O lugar do psicólogo como observador, a moral como parâmetro para a cura e a paixão pelo procedimento.

Descrendo a posição do observador, ela pode ser exemplificada através de um instrumento utilizado em muitas universidades, visando o aprendizado, que é a sala de espelhos, na qual, do outro lado do espelho, o aluno vê um paciente sendo entrevistado. Podemos perguntar: O que há ali para ser visto? Situação bem diferente é a da apresentação clínica de pacientes, na qual a fala do paciente também se endereça ao público e o público não está na posição de mero observador, mas em posição semelhante a do analista com seu analisante. O mero lugar de observador desconsidera o conceito freudiano da transferência, na qual o analista está implicado naquilo e com aquilo que o paciente fala. Não haveria aquela fala se não houvesse a presença daquele analista que porta determinados traços mínimos com os quais o analisante estabelece um laço e ali reedita sua fantasia primordial. Na sala de espelhos, o outro, de partida, já está de

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fora e é de esperar que ele fique de fora, inclusive por parte do paciente que sabe que pelo menos alguém está ali só para ficar de fora. Se assistimos Hitchcock, no filme “Marnie, a ladra”, a situação filmada não é nem um pouco ortodoxa, mas o espectador pode estar na cena porque o mago do suspense convoca para entrar na cena e não para apenas assisti-la. Também devemos recorrer a outra forma de arte, a pintura. Estar frente a um quadro de Van Gogh apresenta diferenças com relação a estar frente a um desses retratos do cartaz da presente jornada. Esses retratos reproduzidos no cartaz demonstram a própria clínica da observação, sendo, mais tarde, essa forma de documentação substituída por fotografias. Mas o intuito continuava sendo o de retratar a patologia. Constatamos isso uma vez que os retratos e fotos são acompanhados dos respectivos diagnósticos. Mas retornando a Van Gogh, em primeiro lugar é obra de arte porque de antemão sabemos que o é, este é um dos princípios da estética na arte não-clássica. Mas o importante nesse caso é que é obra de arte e merece o lugar nos museus porque com essa tela podemos estabelecer uma relação de dentro-fora. Esse é um ponto crucial na clínica, sem o qual não há clínica, que é justamente a operação do inconsciente que se atualiza desde que seja trabalhada a resistência daquele que escuta e que possa se deixar tomar na construção fantasmática do analisante, sem se tomar por isso.

A segunda forma de obstáculo à escuta do inconsciente é a moral, ou seja, pré-suposição daquilo que venha a ser a cura. Então, essa não está referida ao processo de experiência que se dá no momento mesmo da fala. Pode revelar-se através de conceitos corriqueiros como o prognóstico, métodos preventivos, cujo conceito de cura venha acompanhado de uma determinada posição do que vai ser o “bom” para o paciente e para a sociedade.

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Na paixão pelo procedimento novamente está elidida a relação com o outro, que pode apontar para uma modalidade de tabu de contato que coloca uma distância em relação às impurezas enquanto geradoras de mal-estar. Nesse caso, a patologia e suas produções são mantidas à distância e o psicólogo faz parceria de submissão ao procedimento ou à técnica, como defesa frente às múltiplas formações do inconsciente. A paixão da instrumentalidade coloca a formação do inconsciente do lado do psicólogo, situando-o no usufruto de sua fantasia inconsciente, obstaculizando qualquer possibilidade de escuta. Tanto a moral como a paixão pelo procedimento estão em decorrência da posição do observador. Nesse ponto retomamos a questão na clínica no âmbito acadêmico onde se mescla o tratamento, o ensino e a pesquisa. Como não cair na posição do artista que retratava a patologia?

Uma das possibilidades é de não economizar no mal-estar que o exercício clínico provoca. Como Freud postula que pelo processo de recalcamento a cultura não existe sem mal-estar, na clínica não se dá de forma diferente. Clinicar é se ver com a própria fantasmática provocada e instigada a cada laço transferencial, e isso não ocorre sem legítimo desconforto.

Bibliografia:

BERCHERIE, Paul. Os fundamentos da clínica. História e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1989.

FLEIG, Mario e BELTRÃO, Conceição. A neurose obsessiva ou o melhor dos mundo. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Neurose Obsessiva, 17, 71-78.

FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

POSTEL, Jacques e QUÉTEL, Claude. Nouvelle histoire de la psychiatrie. Toulouse: Privat, 1983.

Referências

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