Temas Centrais na Ética
kantiana
Viriato Soromenho-Marques Filosofia Política II FLUL 7 de Março de 2019Índice
1. A Razão em Kant. Estrutura e Dinâmicas. 2. Uma Ética da Autonomia e da Liberdade Sob a tensão do Finito/Infinito.
3. Deus, Mal e Humanidade na ética de Kant.
1
A Razão em Kant. Estrutura e Dinâmicas
Os dois interesses da razão
"O interesse [da razão] no seu uso especulativo consiste no conhecimento do objecto até aos mais elevados princípios
a priori, o interesse prático consiste na
determinação da vontade relativamente ao fim último e completo"(Das Interesse ihres spekulativen Gebrauchs, besteht in der Erkenntnis des Objekts bis zu den höchsten Prinzipien a priori, das des praktischen Gebrauchs in der Bestimmung des Willens, in Ansehung des letzten und vollständigen Zwecks), KpV, V, 119.
Do primado da razão prática
"Mas subordinar-se à razão especulativa, invertendo assim a ordem, não pode ser pedido à razão pura prática, pois, por último, todo o interesse é prático, e até o especulativo é somente condicionado, sendo apenas completo no uso prático"
(Der spekulativen Vernunft aber untergeordnet zu sein, und also die Ordnung umzukehren, kann man der reinen praktischen gar nicht zumuten, weil alles Interesse zuletzt praktisch ist, und selbst das der spekulativen Vernunft nur bedingt und im praktischen Gebrauch allein vollständig ist." KpV, V 121
Liberdade e sistema
"O conceito de liberdade na medida em que a sua realidade é provada por uma lei apodíctica da razão prática, constitui a pedra de toque de todo o edifício de uma sistema da razão pura, incluindo a especulativa" (Der Begriff der Freiheit so fern
dessen Realität durch ein apodiktisches Gesetz der praktischen Vernunft bewiesen ist, macht nun den Sclussstein von dem ganzen Gebäude eines Systems der reinen, selbst der spekulativen, Vernunft aus.),
Razão e Progresso
Em Kant não podemos falar de uma mecânica da razão, mas antes de um desenvolvimento orgânico da racionalidade (envolvendo a
maturação da Natureza e da História).
Não há uma concepção da racionalidade no sentido desta ser um predicado da
humanidade. Pelo contrário, é a humanidade que pertence (pelo menos parcialmente) ao horizonte da racionalidade.
2
Uma Ética da Autonomia e da Liberdade Sob a tensão do Finito/Infinito
O cosmos e a lei moral
• "Duas coisas enchem o espírito
duma admiração e duma
veneração sempre novas e
crescentes, quanto mais
frequente e incessantemente a
reflexão com isso se ocupa: o céu
estrelado por cima de mim e a lei
O Infinito cósmico sublinha a nossa
Nulidade como criaturas...
“O primeiro panorama de uma quantidade
inumerável de mundos destrói por assim
dizer a minha importância como criatura
animal, que deve devolver a matéria da
qual se formou ao planeta (um simples
ponto no universo) depois de ter sido
durante um curto período de tempo (não
se sabe como) dotado de força vital (...)”
O infinito (possível) da dignidade da
Pessoa
“O segundo, pelo contrário, eleva
infinitamente o meu valor como uma
inteligência, através da minha
personalidade, na qual a lei moral me
revela uma vida independente da
animalidade e mesmo de todo o mundo
sensível (...)"KpV., Ak. V, pp. 161-2.
O primado da forma
A ética kantiana é inteiramente
formal. Ela não dá leis para as
acções, tarefa que cabe ao
direito positivo, ela dá sim leis
"apenas para as máximas das
acções" (nur für die Maximen
der Handlungen, MS-TL, VI,
388).
A lei como móbil da vontade autónoma
"O móbil que o homem pode ter antes que lhe seja
posto um alvo (fim), não pode claramente ser outra coisa senão a própria lei, pelo respeito que provoca (sem que sejam determinados os fins que através dessa adequação possam ser atingidos). Porque a lei é -- relativamente ao
elemento formal do arbítrio -- a única coisa que resta quando eu coloco fora de consideração a matéria (o alvo, como lhe chama o Senhor
Das Gesetz als Triebfeder
• Die Triebfeder, welche der Mensch vorher haben
kann, ehe ihm ein Ziel (Zweck) vorgesteckt wird, kann doch offenbar nichts andres sein, als das Gesetz selbst, durch die Achtung, die es
(unbestimmt, welche Zwecke man haben und durch dessen Befolgung erreichen mag)
einflösst. Denn das Gesetz in Ansehung des Formalen der Willkür ist ja das einzige, was übrig bleibt, wann ich die Materie der Willkür (das Ziel, wie sie Hr. G. nennt) aus dem Spiel gelassen habe). TP, VIII, 282).
A inversão dos papéis da cabeça e do
coração em Garve
"Eu confesso pela minha parte que
compreendo muito bem, na minha cabeça,
essa divisão das ideias, mas que não encontro no meu coração essa separação entre desejos e esforços" (Ich für mein Teil gestehe, dass ich diese Teilung der Ideen mit meinem Kopfe sehr wohl begreife, dass ich aber diese Teilung der Wünsche und Bestrebungen in meinem Herzen nicht finde. Christian Gave, 1792:134-135).
A liberdade e a lei moral
"(...) A liberdade é sem dúvida a
ratio essendi da lei moral, mas a lei
moral é a ratio cognoscendi da
liberdade"
([...] die Freiheit allerdings dieratio essendi des moralischen Gesetzes,
das moralische Gesetz aber die ratio
O equívoco de Feder sobre os postulados facultativos da razão prática
"Mas nos homens existem inclinações
que não se deixam submeter às leis
racionais da moralidade sem o
pressuposto da existência de Deus e
de uma outra vida"
(In den Menschen abersind Neigungen die sich diesen
Vernunftgesetzen der Sittlichkeit nicht
unterwerfen lassen, ohne Voraussetzung des Daseyns Gottes und eines andern Lebens,
O coração e a cabeça
Theorie und Praxis (1793) VIII, 285: Herz e
Kopf: Não é do coração [que Kant associa a
uma compreensão do carácter imediato da lei moral sobre a vontade], mas da cabeça -- habituada que está a avaliar de acordo com explicações psicológicas, que se baseiam na necessidade natural e no cálculo -- que há-de esperar-se obstáculos à execução do dever.
Uma ética da espontaneidade do
imperativo categórico
TP. VIII, 286: O exemplo da criança e
do depositum: contra Garve, que
considerava demasiado complexas e
subtis as motivações morais, Kant vai
defender a extrema simplicidade do
dever
. 287: A hesitação na acção égeralmente sinal de que é a felicidade
Moral e esperança
"Assim, a moral não é propriamente a
doutrina que nos ensina como nos
devemos tornar felizes, mas como
nos devemos tornar dignos da
felicidade."(
Daher ist auch die Moral nicht eigentlich die Lehre, wie wir uns glücklich machen, sondern wie wir der Glückseligkeit würdig werden sollen.),
A ética como semente de um novo
mundo
1ª fórmula da Lei Universal (GMS,
Ak. IV, 421-P.59): "O imperativo
categórico é portanto só um único,
que é este: age apenas segundo
uma máxima tal que possas ao
mesmo tempo querer que ela se
torne lei universal.
“
3
Deus, Mal e Humanidade na ética
de Kant.
O mal e o bem
"O homem não tem nenhuma
inclinação imediata para o mal,
mas ele ama o bem sincera e
imediatamente"
(Der Mensch hat
keine unmittelbare Neigung zum
Bosen, aber das Gute liebt er
aufrichtig [sinceramente] und
unmittelbare),R.1409, XV, 614
O mal humano é perversão e não
fundamento
Religion, VI, 37: A "malignidade" (die
Bösartigkeit) da natureza humana não é da
ordem da "maldade" (Bosheit) -- o que seria o caso de uma intenção diabólica que
aceitasse o mal enquanto fundamento das suas máximas (mesmo o mais criminoso
dos homens reconhece negativamente a lei moral) -- o mal no homem é uma "perversão do coração" (Verkehrtheit des Herzens).
O Mal Radical
O radikales Böses não é um anátema
ontológico definitivo, é uma PROPENSÃO (Hang, propensio, Neigung) da natureza humana.
Pelo contrário, o bem é caracterizado como radicando numa estrutura antropológica mais sólida, numa “disposição” (Anlage), que é
desenvolvida pela própria conformidade
histórica a uma legislação universal ética e jurídica.
A liberdade (e o mal) como mistérios
> Religion, VI, 62: A lei moral incondicional é um mistério incompreensível para a razão. > Religion, VI, 138: A liberdade é-nos
revelada a partir da determinação do arbítrio pela lei moral, mas o seu fundamento é
Rousseau e o primado do agir
"O homem não foi feito para o
gozo, mas para a acção
“(Der Mensch war nicht zum Geniessen,
sondern zum Handeln gemacht). R.1521,
Sobre o carácter sagrado dos direitos
humanos
"Nada existe neste mundo de mais
sagrado do que os direitos da
humanidade na nossa pessoa e
o direito dos seres humanos
" (Heilig ist nichts auf der Welt als die Rechte der Menschheit in unserer Person und das Recht der Menschen.) R.7308, XIX, 308Deus como tarefa prática
"Esta ideia de um Senhor moral
do mundo é uma tarefa para
a nossa razão prática"
(Diese
Idee eines moralischen
Weltherrschers ist eine Aufgabe für
unsere praktische Vernunft),
A essência de Deus é um produto da nossa
razão
“1. A essência de Deus [...] é um
produto da nossa razão pura. 2. A
sua natureza é para nós
completamente imperscrutável"
(1. Das Wesen Gottes[..] ist ein Product unserer blosreinen Vernunft. 2. Seine Natur ist uns ganz unerforschlich [imperscrutável]). XXIII, 435.
Comunidade ou sociedade civil ética
(ethischbürgerliche Gesellschaft) (1)
"Podemos denominar uma união entre homens sob simples leis de virtude, segundo as prescrições desta ideia, uma sociedade ética, e, na medida em que essas leis são de ordem pública, uma sociedade civil ética (em oposição à sociedade civil jurídica) ou ainda uma comunidade ética" ( Mann kann eine Verbindung
der Menschen unter blossen Tugendgesetzen, nach Vorschrift dieser Idee, eine ethische, und, sofern diese Gesetze öffentlich sind, eine ethischbürgerliche (im Gegensatz der rechtlichbürgerlichen) Gesellschaft, oder ein ethisches gemeines Wesen, Religion, VI,
Comunidade ou sociedade civil ética
(ethischbürgerliche Gesellschaft) (2)
Essa ideia, constitui, na expressão de F. Alquié, uma espécie de laicização da categoria de cidade
de Deus. Contudo, mais uma vez a doutrina
kantiana não entra em qualquer domínio ostensivo. Se consideramos essa comunidade ética como "um povo moral de Deus" (ein
moralisches Volk Gottes), então cabe a cada
homem não esperar pela acção divina, mas agir de forma a poder ser digno de pertencer a semelhante comunidade, como se tudo dependesse de si próprio, da acção de cada homem (Religion, VI, 100-101).
Comunidade ou sociedade civil ética
(ethischbürgerliche Gesellschaft) (3)
Na comunidade ética é contemplada a totalidade dos homens como seres racionais, unidos por
laços morais que transcendem a radicação
meramente jurídico-política. Pessoas construindo o reino dos fins. A comunidade ética realiza a
síntese entre a responsabilidade individual, da moralidade e a associação colectiva baseada na conformidade exterior à lei, da legalidade. É o
momento em que a filosofia prática de Kant se transforma em utopia ética.
Feuerbach (1839): Kant e conceito de
género humano
"Mais precisamente expressou-se a censura de que segundo Hegel Deus era somente um
conceito de género, a saber, o conceito de
género da humanidade. A única coisa a
lamentar é que Hegel não tenha ele mesmo acentuado com precisão, o referido conceito de género da humanidade, que Kant
verdadeiramente introduziu pela primeira vez na Filosofia (na sua Ideia para uma história da humanidade com propósito cosmopolita e na sua recensão sobre as Ideias para uma
Feuerbach, Hegel e Kant
“Bestimmter hat man ausgedrückt den Vorwurf, dass Gott nach Hegel nur ein Gattungsbegriff, und zwar der Gattungsbegriff der Menschheit sei. Zu bedauern ist nur, dass Hegel dies nicht selbst bestimmt ausgesprochen, überhaupt den Gattungsbegriff der Menschheit, den Kant
eigentlich erst in der Philosophie einführte [in seiner 'Ideen zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht' und in seiner
Rezension von Herders 'Ideen zur Philosophie
Adler: Deus e humanidade
"A fé da razão prática de Kant em
Deus não é, portanto, no fundo
nada mais do que a fé na
possibilidade de desenvolvimento
da humanidade"
(Der Glaube derpraktischen Vernunft Kants an Gott ist also im Grunde nichts anderes als der Glaube an die Entwicklungsmöglichkeit der Menschheit, M.
Referências bibliográficas (1)
ADLER, Max, Kant und der Sozialismus (1904), Max Adler
Aufgewählte Schriften, ed. A. Pfabigen e N. Leser, Wien,
Österreicheischer Bundesverlag, 1981, pp. 407-423.
-- Das Soziologische in Kants Erkenntniskritik. Ein Beitrag zur Auseinandessetzung zwischen Naturalismus und Kritizismus (1924), Aalen, Scientia Verlag, 1975.
--Kant und der Marxismus-Gesammelte Aufsätze zur
Erkenntniskritik und Theorie des Sozialen (1925), Aalen,
Scientia Verlag, 1975.
ALQUIÉ, La morale de Kant, Paris, Centre de Documentation Universitaire-Sorbonne-Paris V, 1978.
COHEN, Hermann, Ethik des reinen Willens (1907), Hermann
Referências bibliográficas (2)
• - CRUSIUS, Christian August, Anweisung vernünftig zu leben (reimpressão da edição de Leipzig-1744), C.A.Crusius-Die
philosophischen Hauptwerke, ed. G. Tonelli, Hildesheim,
Georg Olms, 1969, vol. I.
• - DELBOS, Victor, La philosophie pratique de Kant (1ª ed. 1926), Paris, P.U.F., 1969.
• - FEDER, Johann Georg Heinrich, "Versuch einer möglichst kurzen Darstellung des Kantischen Systems" (reimpressão da
Philosophische Bibliothek, vol. III, Göttingen, 1790), Bruxelles, Culture et Civilisation, 1968, pp. 1-66.
• - FEUERBACH, Ludwig, Über Philosophie und Christentum in
Beziehung auf den der Hegelschen Philosophie gemachten
Vorwurf der Unchristlichkeit (1839), L. Feuerbach Gesammelte Werke, ed. W. Schuffenhauer, Berlin, Akademie Verlag, vol. 8.
Referências bibliográficas (3)
• GARVE, Christian, "Versuche über
verschiedene Gegenstände aus der Moral, Literatur und dem gesellschaftlichen Leben" (1792), Über Theorie und Praxis, ed. Dieter
Henrich, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1967, pp. 134-138.
• HUTCHESON, Francis, An inquiry into the
original of our ideas of beauty and virtue
(1725), Collected Works of F. Hutcheson, ed. B. Fabian, Hildesheim, Georg Olms, 1971, vol. I.
Referências bibliográficas (4)
• NITSCH, Frederick August, A general and introductory
view of Professor Kant's principles concerning Man, the World and the Deity (reimpressão da edição de
Londres - 1796), ed. R. Welleck, New York/london, Garland Publishing, Inc., 1976.
• - RIBEIRO DOS SANTOS, L.,"Ler a Crítica da razão
prática em português", Filosofia, nº1, 1985,
pp.62-74.
• - ROUSSEAU, J.-J., Émile ou de l' éducation (1762),