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América Latina na transição dos séculos XX e XXI: neoliberalismo, desigualdade social e o Estado *1

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Academic year: 2021

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América Latina na transição dos séculos XX e XXI: neoliberalismo, desigualdade social e o Estado*1

Resumo

O presente artigo analisou a transição entre os séculos XX e XXI e seus impactos sobre a sociedade na América Latina. Tendo em vista a consolidação da superpotência norte-americana na entrada do novo século, as políticas de livre-comércio passaram a dar o tom para a atividade econômica, principalmente, na América Latina. Dado o avanço do neoliberalismo, o artigo propõe analisar as políticas sociais adotadas ao longo desse período e propor algumas reflexões à cerca do papel do Estado ao longo desse processo e frente à globalização do novo milênio.

Introdução

O mundo viu-se inserido na construção de uma nova ordem no final do século XX e inicio do século XXI, tanto em função do desmantelamento do ambiente bipolarizado, quanto pelas mudanças econômicas que resultaram em grandes processos e transformações sociais. A globalização que se intensificou nesse período culminou na abertura das economias nacionais, porém não de forma homogênea, gerando atores incluídos e excluídos tanto na esfera interna como na internacional. A diversidade ganhou cada vez mais peso e a acumulação de riqueza se agravou (VISENTINI; PEREIRA, 2008).

O espaço vago deixado pela União Soviética foi logo absorvido pelo discurso neoliberal que se expandiu fortemente nos anos 1980 e 1990. O esvaziamento da luta política da esquerda colaborou para o levante do neoliberalismo em muitas partes do mundo. A América Latina, um dos principais campos de dominação da grande-potência norte-americana, foi local chave para a experimentação e aplicação do neoliberalismo.

* MARTINS DOS SANTOS, Bibiana. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharel em Relações Internacionais com ênfase em Marketing e Negócios pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. E-mail: bibianamsantos@gmail.com

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O continente latino-americano adentrou as últimas duas décadas no século XX em meio a uma crise econômica. Na mesma época, a maioria dos países da América Latina passava por uma onda redemocratizante e as políticas neoliberais davam o tom para a atividade econômica. É preciso atentar para as desigualdades sociais – tão visíveis nos países latino-americanos – que não tiveram suas estruturas rompidas durante a nova agenda política liberal. Em um caminho oposto ao esperado, a pobreza criou raízes na sociedade latino-americana através do aumento de desemprego e deterioração dos salários (SARAIVA, 2007).

Com vistas a disciplinar os terceiro mundistas, o neoliberalismo utilizou-se da potente coerção do aparato internacional, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização Mundial do Comércio (OMC), Banco Mundial, Organização das Nações Unidas (ONU). Tais organismos entraram na causa do desenvolvimento por meio da imposição de condicionantes para empréstimos e ajudas com vistas à incorporação dos países marginalizados ao livre mercado. (VISENTINI; PEREIRA, 2008).

Através de uma análise ainda mais crítica, como a realizada por Ha-Joon Chang (2004), nota-se que os pacotes desenvolvimentistas formulados por muitas agências internacionais têm como principais características a negação e/ou desconhecimento da história e os processos que resultaram no crescimento econômico do atual primeiro mundo. Conforme o autor, os países desenvolvidos adotaram medidas protecionistas e subsídios para alavancar sua indústria e tecnologia. No entanto, hoje “chutando a escada” utilizada para atingir a prosperidade econômica, as nações ricas impõem aos demais países um pacote de políticas diferenciado, as “boas práticas” do livre-comércio.

Cabe ressaltar a vívida atividade dessas e outras Organizações Internacionais e Não Governamentais para a manutenção das políticas voltadas ao desenvolvimento dos mais pobres, também no período Pós-Guerra Fria e nos dias atuais. É nesse sentido que as demandas sociais ganharam o palco global e transcenderam as barreiras territoriais das nações, dando lugar para intervenções internacionais. Por meio da globalização e de um sistema mais interligado, desafios que antes eram tratados na ordem nacional, passaram a receber mais respostas internacionais, a partir do final do século XX (SARAIVA, 2007). Por outro lado, algumas respostas locais e regionais aos problemas socioeconômicos também começaram a ser ativadas nesse período, como os processos de integração, cooperação e formação de blocos econômicos. Caso do MERCOSUL e o NAFTA, mais específicos do contexto americano (VISENTINI; PEREIRA, 2008).

Tendo em vista esse cenário na transição dos séculos XX e XXI e a profundas transformações sociais decorrentes de novas abordagens políticas, este artigo visa focar seus

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esforços para a América Latina. Um continente frequentemente aquém da formulação estratégica internacional, mas que sofreu grandes impactos sociais em detrimento das mudanças geridas na esfera mundial. Esta análise está organizada a fim de entender como

as transformações do mundo capitalista, nessa transição de milênio, afetaram os países latino-americanos. Em um segundo momento, em forma de ensaio, o artigo propõe levantar, mais do que definir, um debate sobre alternativas ao modelo neoliberal e a relação entre sociedade e Estado.

1. Neoliberalismo na América Latina na transição do milênio

No final do século XX, em meados de 1980, a maioria do continente latino-americano estava se reinserindo em processos democráticos. No entanto, esses novos governos foram profundamente afetados pela globalização em curso, o final da Guerra Fria e o livre-comércio. Diante da crise econômica mundial, as novas democracias latino-americanas tinham capacidades limitadas para amparar a população (HOBSBAWM, 1995).

Em razão do baixo nível de resposta estatal sobre os impactos sociais da crise internacional, a população pobre sofreu e as mazelas sociais se aprofundaram, caracterizando os anos 80 como uma década perdida (HARVEY, 2005). A redução do Estado nesse período se explica por diversas razões, tanto pelas políticas liberais antiestatais, quanto pelo surgimento de novos atores, como as organizações supranacionais. Nesse sentido, Hobsbawm (1995) chama a atenção para o enfraquecimento do Estado-Nação tanto para sua operação política interna quanto em relação à projeção externa. Porém, curiosamente, embora esse final do século XX tenha sido marcado por um péssimo desempenho do capitalismo, a derrocada da União Soviética concedeu o poder necessário para que o neoliberalismo reinasse sobre o mundo, principalmente, no terceiro mundo.

De acordo com Pierre Salama e Jacques Valier (1997), no final do século XX, o mundo subdesenvolvido tornou-se o foco das atenções e discursos da potência norte-americana, demarcados principalmente pelo Consenso de Washington. Este delimitava o

neoliberalismo como modelo de desenvolvimento internacional e através da

institucionalização de uma agência voltada à regulação das trocas comerciais, a OMC, as pressões sobre as economias nacionais aumentaram (HARVEY, 2005).

O caminho liberal para o combate a pobreza, conforme Salama e Valier (1997), é composto por dois aspectos primordiais. Primeiramente, foca-se em estabilizar a economia e findar os processos inflacionários e, posteriormente, em aplicar políticas de cunho liberal.

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Tais procedimentos são traduzidos em redução dos gastos sociais, privatizações, liberalização do mercado de trabalho e mercado financeiro, austeridade salarial e encerramento dos subsídios e controle de preços. O grande objetivo da via neoliberal é fomentar a economia e, a partir do crescimento esperado, reduzir os índices de pobreza. Porém, como analisado pelos dois autores acima, tal resultado pode fracassar ou não ser alcançado em sua plenitude, abrindo espaço para o retorno de processos inflacionários e aumento da pobreza.

Conforme analisado por Chang (2004), o crescimento econômico projetado, de fato, não se concretizou. Segundo dados coletados do Banco Mundial (1980 e 2001), o crescimento anual do PIB per capita da América Latina e Caribe entre 1960 e 1970 foi de 2,9%, entre 1970-1980 foi estimado em 3,2%, porém durante as reformas liberais, entre 1980 e 1990 o mesmo índice caiu para -0,3% e na década subsequente foi apurado em 1,7% (apud CHANG, 2004: 219-221).

A conjuntura criada pelas políticas econômicas liberais tiveram reflexos negativos sobre a vida da população menos favorecida. De acordo, com a ideologia liberal, tais medidas de curto prazo tendem a ser recompensadas pelo aumento da igualdade social através das “mãos livres” do mercado, no longo prazo. Assim, caberia às classes mais pobres aguentar um possível alargamento de sua vulnerabilidade socioeconômica, para posteriormente, usufruir da transformação viabilizada pela liberalização da economia. Nessa visão, como bem coloca Salama e Valier, “o “social” só pode ser um derivado do econômico.” (1997: 106).

No entanto, a crise econômica que perdurava no mundo e o medo da fragmentação social e reascensão de governos populistas e revoltas, foram decisivos para modificar alguns padrões do liberalismo na América Latina. A partir desse receio, os formuladores de política, em conjunto com os bancos de fomento mundial, optaram por dar assistência às camadas sociais mais fragilizadas com as reformais liberais. Nesse sentido, o Estado foi acionado, sobre alicerces neoliberais, para participar da concepção de uma nova agenda social.

Essa junção entre o Estado e a vertente liberal deu-se, principalmente, em contraposição aos regimes sociais que apresentaram pouco ou nenhum avanço sobre a condição da pobreza no terceiro mundo nos anos anteriores. O caso da América Latina foi tomado como base para a formulação dessa nova agenda de políticas socias. No continente, o Estado do Bem-Estar e o sistema social começaram a tomar forma em meados da década de 1930, através de alguns governos populistas (SALAMA; VALIER, 1997).

O modelo de Estado do Bem-Estar Social que prevaleceu nos países subdesenvolvidos em grande parte do século XX foi marcado por um baixo nível de universalização e uniformização dos serviços públicos. Conforme os autores Salama e Valier (1997), a

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organização de regimes sociais nesses moldes resultou em baixa abrangência dos serviços públicos em meio à população e alto nível de diferenciação na qualidade na prestação dos serviços. Somando-se esse cenário às peculiaridades da região latino-americana, como sistemas fiscais fragilizados, relação de poder entre classes e diferentes regimes de acumulação de riqueza, o sistema de proteção social sentiu um abalo da crise de 1980. O emprego despencou e um alto grau de informalidade atingiu a economia, afetando a arrecadação de tributos por parte do Estado e o repasse para os serviços públicos. Dessa forma, foi possível visualizar a incapacidade do Estado e do antigo sistema de proteção social em diminuir os níveis de pobreza e desigualdade social entre os latino-americanos.

Salama e Valier (1997) indicam que a proposição liberal utilizou esses momentos desestabilizadores das políticas sociais tradicionais, principalmente tomando a América Latina como base, para justificar a tensão econômica que se estabeleceu nos anos 80 e fomentar a credibilidade da sua nova abordagem. Segundo relatórios do Banco Mundial, a pobreza teria aumentado ao longo da década de 1980 em razão dos regimes de Bem-Estar. O Banco Mundial, em 1993, definiu tais sistemas de proteção como “economicamente ineficientes e socialmente injustos” (apud SALAMA; VALIER, 1997: 114). Tais constatações serviam para legitimar a via liberal e culpar o sistema de proteção sobre o agravamento das condições de vulnerabilidade sociais. No entanto, é preciso despertar para o contexto enviesado desse discurso, como mostram os dois autores. A retórica liberal ignorou os efeitos da liberalização econômica sobre a crise dos anos 1980 e minimizou sua participação para o aumento da exclusão, do trabalho informal e da precarização dos trabalhadores assalariados.

A partir da construção de um Estado pautado no liberalismo econômico, os antigos sistemas de proteção social sofreram grandes desmantelamentos para poder instituir as políticas sociais liberais. Na prática, conforme Salama e Valier (1997), estas medidas sociais foram instituídas para controlar a insatisfação popular frente à austeridade provocada pela liberalização econômica. Sendo usados, principalmente, nos primeiros anos da reforma liberal, quando a população de classe baixa tende a sofre mais com o enxugamento da máquina estatal. Por outro lado, a implementação de políticas sociais sob um revés liberal, vem de encontro com o medo sobre a fragmentação da sociedade e o risco os processos de democratização.

As políticas sociais liberais, por sua vez, caracterizaram-se pela distinção entre os indivíduos pobres e aqueles extremamente pobres, focando majoritariamente nestes últimos. Conforme Salama e Valier (1997), essa camada mais pobre representava desempregados habitantes de favelas, trabalhadores rurais, sem terras, mães, crianças e idosos com saúde

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debilitada, indivíduos com necessidades alimentares específicas, moradores de regiões desérticas e pessoas em péssimas condições de moradia (1997: 117). Para dar assistência a esse conjunto de pessoas nasceram as “redes de seguridade” (HOBSBAWM, 1995), como um suporte social mínimo e temporário, enquanto o mercado estava em vias de projetar seu crescimento. Projetos com esse enfoque receberam apoio financeiro do Banco Mundial, chegando a representar metade dos empréstimos da instituição entre 1984 e 1986 (SALAMA; VALIER; 1997: 118).

Como também observou Harvey (2005), o Estado manteve-se presente na economia, mesmo que em uma nova configuração, distinguindo-se bastante do discurso clássico liberalista. Dessa forma, o Estado sofreu redução de gastos, o que implicou na defasagem dos serviços públicos. Essa modificação na oferta dos serviços públicos impactou na demanda das classes altas e médias sobre saúde e educação de qualidade. Tal demanda resultou na criação da oferta desses serviços na esfera do mercado, ou seja, iniciou-se um processo de privatização em massa de serviços de saúde e educação, dentre outros, como habitação e infraestrutura.

Enquanto os ricos e a classe média passaram a usufruir desses serviços através do mercado, o pobre (mas não tão pobre) não conseguia mais acesso ao serviço público, pois este ficou destinado ao individuo em condições extremamente vulneráveis. Esse fator marcou, de forma clara, a consolidação dos poderes de classes nas sociedades impactadas pelos padrões neoliberais. O mesmo ciclo ainda pode ser observado na América Latina, principalmente no Brasil em relação ao Sistema Único de Saúde (SUS) e as clínicas e hospitais particulares, bem como através da comparação das redes públicas e privadas de educação.

Além disso, essas políticas foram aplicadas, em muitos casos, via participação popular e comunitária e também através de Organizações Não Governamentais (ONGs) devido à corte de gastos imposto ao Estado. Dessa forma, as políticas foram caracterizadas por um alto grau de descentralização e contaram com a participação de atores locais em detrimento do controle nacional. Ao avaliar os resultados dessas políticas, Salama e Valier (1997) nos convidam a analisá-los sob dois prismas, a esfera social e a política.

Na esfera social, os resultados são bastante negativos. A centralização das políticas sociais nos cidadãos miseráveis excluiu uma camada gigante da população que também necessitava dos serviços públicos, principalmente em um período de liberalização econômica e controle salarial. Não é possível negar que alguns avanços aconteceram, principalmente em relação à melhora da infraestrutura de certas regiões, porém não se pode caracterizar esse período por um profundo reordenamento das estruturas desiguais da sociedade, muito menos,

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com relação à inclusão social e redução da pobreza. Os principais aspectos que impediram o sucesso dessas políticas na questão social foram a distinção entre níveis de pobreza, a redução e defasagem dos serviços públicos em conjunto com escassos recursos financeiros para o Estado, devido à baixa arrecadação.

Através da observação da relação estatal com o mercado e o consumo, Bauman (2008) teceu uma crítica à “mão livre” do capitalismo, que na prática, segundo ele, não se perdura. Muito pelo contrário, o Estado é utilizado como meio para fortalecer a acumulação capitalista na medida em que ela se baseia cada vez mais no consumo. Dentro desse cenário, as atenções estatais que deveriam estar voltadas para a população vulnerável se volta contra ela, através de ferramentas coercitivas para frear o descontentamento social. Por essa ótica de subjulgamento do Estado para as demandas do mercado, a pobreza ganha o segundo plano da manobra política e econômica e, dessa forma, perdura-se. É, portanto, uma ilusão avaliar os aspectos de longo prazo do neoliberalismo como condicionantes para se atingir uma sociedade mais igualitária.

Na esfera política, por outro lado, os ganhos foram grandes. O principal trunfo das políticas sociais liberais foi o uso coerente entre discurso e prática. Nesse caso especificamente, o discurso baseou-se na crítica ao estabelecimento de um falho Estado de Bem-Estar nos anos anteriores. A crítica concentrava-se no intervencionismo do Estado e a elevada burocracia que consumia os recursos públicos de forma ineficiente e, principalmente, o sistema de proteção social que não atingia os mais necessitados, como já mencionado anteriormente. Deste modo, as políticas liberais “aprenderam” com as críticas realizadas ao modelo anterior e garantiram o apoio popular. Por último, também é válido exaltar o efetivo controle dos processos hiperinflacionários exercido nesse período (SALAMA; VALIER, 1997).

2. Alternativas ao neoliberalismo e reflexões sobre o papel do Estado

Gostaria de começar essa reflexão, através da última frase de Harvey no livro “O Neoliberalismo” (2005): “Há uma perspectiva muitíssimo mais nobre da liberdade a ser conquistada do que aquela que o neoliberalismo prega. Há um sistema muitíssimo mais valioso de governança a ser construído do que aquele que o neoconservadorismo permite.” (2005: 220). Harvey não indicou qual seria este outro modelo em específico, mas as movimentações sociais e políticas que se seguiram na América Latina no inicio do século

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XXI caracterizaram-se pela volta da valorização do Estado como mediador dos problemas sociais e a principal alternativa capaz de garantir o bem-estar da população.

Conforme Hobsbawm recomendou (1995), o Estado teve sua autoridade reafirmada no século XXI com a grande missão de inferir sobre a distribuição de riquezas e equilibrar o cenário desigual deixado pelas intervenções neoliberais no final do milênio. No entanto, embora o Estado seja a figura capaz de reequilibrar as mazelas deixadas pelo neoliberalismo, é preciso atentar para as condições internacionais atuais que fortificam o sistema neoliberal. Em meio ao cenário previsto por Hobsbawm (1995), o futuro do Estado-nação está em teste, do jeito como nós o concebemos. Organismos internacionais tem cada vez mais respaldo sobre as decisões econômicas, políticas e sociais dos países, principalmente, aqueles subjulgados à ordem internacional, o mundo subdesenvolvido.

Além disso, conforme Harvey (2005) observou muito bem, não há muitos aspectos participativos e democráticos que fundamentam os projetos, intervenções, políticas e regras de organizações como o Banco Mundial, o FMI, a ONU e a OMC. Nesse sentido, a liberdade de que fala David Harvey (trazida no início dessa sessão) deve ser levada para níveis ainda mais amplos. A via para o desenvolvimento econômico deveria ser uma escolha de cada país, não uma imposição. Ainda sim, deveria ser escolhida pautada na história e conhecimento do caminho a ser trilhado e seus impactos.

Por outro lado, Salama e Valier (1997) trazem um ponto interessante para pensar o assunto: “Como imaginar, em particular, que se possa implantar alguma política econômica e social sem julgamento quanto ao caráter benéfico dos efeitos das medidas tomadas?” (1997: 175). Dessa forma, os autores colocam no centro da mesa a questão ética e, principalmente, a responsabilidade da condução política, econômica e social. Vamos utilizar, então, à questão ética para enfrentar o que Ha-Joon Chang (2004) denunciou como o ato de “chutar a escada” do desenvolvimento que os países do primeiro mundo fazem. A imposição de políticas neoliberais por parte de organismos internacionais segue esta ética (embora nem sempre consciente), que não leva em consideração a liberdade de escolha dos demais países e muito menos o reconhecimento e história dos países desenvolvidos.

Nessa direção, é preciso rever os padrões internacionais de desenvolvimento e formular novas abordagens que coincidam com os recursos, capacidades e necessidades de cada país em cada período histórico. Sobre isso Chang fala da necessidade de contestar o atual “establishment internacional da política de desenvolvimento” (2004: 231). Através de uma mudança desse nível, as nações subdesenvolvidas irão se beneficiar positivamente, porém não sozinhas, todo o planeta tende a ser impactado, devido às redes cada vez mais interconectadas

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e interdependentes entre os países. Com vistas à empoderar os países do terceiro mundo e suas respectivas populações, Chang chama a atenção para a necessidade de mais estudos e produções intelectuais sobre o assunto para clarear e extinguir as lendas que circulam as teorias de desenvolvimento econômico (CHANG, 2004: 230). Além da simples análise histórica e acadêmica da situação, a produção de conhecimento sobre desenvolvimento e agenda social deve dialogar e fomentar movimentos políticos (HARVEY, 2005). Por esse ponto de vista, a mobilização é central para retomar a busca pela justiça e igualdade social. Dessa forma, a mobilização social serviria para questionar a dominação de classe que o neoliberalismo acentuou.

Enquanto alguns grupos se envolvem na luta política clássica através de partidos, outra vertente se organiza com o objetivo de inserir a sociedade civil no debate e na construção de alternativas em coerência com a situação social, sem finalidades políticas ou partidárias. Embora diferentes todas essas alternativas para governança e solução dos problemas sociais se conectam através da crítica que tecem à retórica neoliberal (HARVEY, 2005).

Já no plano internacional, Harvey indica os benefícios de uma aliança entre governos e pensadores de esquerda para fugir a lógica competitiva e individualista do liberalismo e fomentar as capacidades locais de governabilidade (2005: 217), bem como, cooperações multilaterais. Em concordância, Martins (2011) ainda alerta que a superação definitiva do modelo neoliberal deve, obrigatoriamente, passar por um nível de cooperação e diálogo internacional, pois, do contrário, este sistema deve se readequar e retornar.

A cooperação internacional tem a faceta também de equilibrar o enfraquecimento do Estado-Nação frente ao sistema internacional robusto que vemos no século XXI. Por outro lado, em alguns contextos, a busca por cooperação e o estabelecimento de relações multilaterais serve como forma de rearticular os Estados do terceiro mundo em relações sul-sul e criar um zona de independência e diálogo mais igualitário frente às grandes potências.

Faz-se necessário a concepção de um diálogo e um projeto de longo prazo para que o continente latino-americano se posicione diante dos demais atores internacionais e defenda os interesses da população que foram levantados na transição do século XX para o século XXI. Dessa forma, a cooperação no continente deve ser fomenta para fortalecer as agendas sociais nacionais frente às pressões dos organismos internacionais. O mesmo se perpetua entre os movimentos sociais internos dos países latino-americanos que precisam manter suas revindicações frente ao Estado, dialogando com a comunidade acadêmica e com pesquisas sobre desenvolvimento socioeconômico e políticas sociais. Conforme finaliza Martins: “A América Latina se encontra diante de uma grande encruzilhada nas próximas décadas. Ou ela

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se submete ao padrão de políticas públicas da hegemonia decadente [...] ou se lança em busca de sua autodeterminação e desenvolvimento.” (2011: 352).

3. Considerações finais

O artigo foi dedicado a uma análise histórica e crítica sobre os processos de condução política neoliberal nos países latino-americanos que afetaram a vida social e econômica do continente. Através dessa revisão histórica, alguns mitos e incoerências discursivas do neoliberalismo puderam ser visualizados, principalmente por reafirmar a dominação da divisão de classe na sociedade latino-americana e no terceiro mundo, como um todo.

A figura estatal, por sua vez, apresentou diferentes nuances ao longo da transição nos séculos XX e XXI. No processo de redemocratização, o Estado, que antes estava sob o controle de forças militares em muitos países latino-americanos, foram lançados frente à globalização e as pressões internacionais para aderir ao consenso neoliberal. No período inicial a esse reenquadramento o Estado foi mínimo seguindo os preceitos básicos do liberalismo clássico. Diante das crises ao longo dos anos 80, foi preciso readaptar a figura do Estado para atenuar as demandas sociais e, assim, evitar revoltas e novas fraturas políticas, tendo em vista a fragilidade da democracia em muitos países do continente.

No processo de reinserir o Estado nas questões sociais os neoliberais focalizaram seu sistema de proteção social para a parcela da população mais vulnerável, os extremamente pobres, tendo em mente a melhora do cenário econômico que seria propiciada pela liberalização dos mercados. Tais medidas em prol de uma camada pequena da população fortaleceu o mercado de serviços básicos como as clínicas de saúde e hospitais particulares, o sistema de previdência privado, escolas particulares e etc. Por fim, os neoliberais terminaram por consolidar ainda mais as dominações de classe durante suas reformas e perpetuar a pobreza e a desigualdade social.

Em um cenário cada vez mais interdependente e globalizado é necessário atentar para os caminhos futuros do Estado-Nação. É notável o aparecimento de diferentes e inúmeros organismos internacionais que constituem nossos atores no sistema mundo, por vezes capazes de subjulgar os poderes nacionais dos Estados. Assim, o que estaria reservado para o futuro dos sistemas de proteção social ou os projetos de desenvolvimento econômicos? Uma via possível, comentada e pautada por alguns dos autores aqui trabalhados, reforça a importância da cooperação entre os governos de esquerdas no continente, bem como, a retomada dos processos de integração na busca de um diálogo mais igualitário na esfera multilateral com as

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grandes potências. Por outro lado, na esfera interna dá-se a relevância da democracia e da mobilização social em prol de uma dinâmica social de combate à desigualdade.

As reflexões aqui desenvolvidas deverão, de alguma forma, ser continuadas e aprofundadas como tema de dissertação de mestrado da autora e, dessa forma, ressalta-se o caráter inicial dessa pesquisa e suas provocações. Também se chama a atenção para as recomendações de David Harvey e Ha-Joon Chang a respeito da importância da produção intelectual e análise histórica de processos de desenvolvimento econômico e transformações sociais. Segundo os autores, a reflexão acadêmica sobre esses assuntos tem grande contribuição a dar para os movimentos sociais no sentido de lhes conceder maior conhecimento de causa e poder de agência sobre o cenário atual de desigualdade, principalmente as observadas na América Latina.

Referências bibliográficas

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VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz. História do mundo

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Referências

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