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AS RELAÇÕES SOCIAS E FAMILIARES NA ESTRUTURAÇÃO DE UM PLANO INSURRECIONAL NA ALDEIA DOS ANJOS

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AS RELAÇÕES SOCIAS E FAMILIARES NA ESTRUTURAÇÃO DE UM

PLANO INSURRECIONAL NA ALDEIA DOS ANJOS

Wagner de Azevedo Pedroso1 Muitas foram as resistências escravas – fugas, suicídios, quilombos, rebeliões, entre outras que poderiamos destacar –, mas para compreendermos essas resistências, e no caso em questão, as rebeliões, se faz necessário analisarmos as relações sociais e familiares que foram sendo estabelecidas entre cativos/cativos, cativos/brancos pobres e cativos/senhores2, e são estas relações que iremos analisar a partir de uma tentativa insurrecional ocorrida no Distrito de Nossa Senhora da Aldeia dos Anjos3, no ano de 1863.

As relações sociais e familiares dos escravos sempre foram dinâmicas e, constantemente, tinham a intenção de amenizar as constantes dificuldades da vida em cativeiro, proporcionando aos mesmos uma maior acessibilidade a recursos que não eram disponibilizados em seu cotidiano. Essas relações permitiam uma maior interação entre os escravos, sob esta perspectiva, parecenos que os escravos relacionavam-se buscando única e exclusivamente suprir tais interesses, mas será que foram estas relações foram estabelecidas somente pelo seus interesses? Ou os interesses surgidos, possibilitavam a reflexão sobre como se utilizar de suas relações sociais? Para nós, ambas são reais, mas acreditamos ser importante destacar que estas relações foram consequências do ambiente interno do cativeiro, assim como do contexto político e econômico da época na qual viviam, devendo ser considerado a organização econômica, social e cultura local para compreendermos de forma mais clara as relações estabelecidas entre estes cativos.

Estas relações sociais não só ajudavam os escravos, mas, em muitos casos, prejudicavam um grupo escravo, em detrimento de outro, ou de um indivíduo, J.J. Reis ao analisar a Revolta de Malês nos traz algumas reflexões sobre as diferentes percepções escravas dentro do sistema escravista, nos apontando as preocupações de perda de vantagens já adquiridas por um grupo, crioulos, em

1

Mestrando do Programa de Pós-Graducação em História da UFRGS – e-mail: wagbaco@gmail.com

2 Aqui nos deteremos nas relações cativos/cativos e cativos/senhores, sendo que será dado maior atenção a relação

estabelecida entre cativos/cativos.

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detrimento de outro, africanos, que deturparia um ambiente no qual este primeiro grupo já estava acostumado a lidar, conhecendo suas brechas e limites, apontando que:

Salvo algumas exceções, de norte a sul das Américas os crioulos não se envolveram em levantes escravos onde eram inferiores em número aos africanos... É como se crioulos e mulatos se sentissem mais ameaçados pela possibilidade de uma ainda desconhecida dominação africana do que pelo já familiar governo dos senhores brancos. Essa posição política estava fundamentada em práticas sociais sedimentadas, em experiências e trajetórias coletivas diferenciadas. Os afro-brasileiros haviam nascido e se socializado na escravidão e, portanto, ao contrário dos africanos, não tinham um ponto de referência (e de radical contradição) fora dessa experiência. Isso não significa que fossem escravos felizes e ajustados ao sistema. Eles apenas viviam suas próprias contradições com a classe senhorial e por isso empunhavam outras armas no combate a ela.4

São estas diferenças de interesses e o risco de perda de vantagens, que contribuiram, em grande parte, para a desagregação entre os escravos. Partindo dessa percepção, é compreenssível que grande parte das tentativas insurrecionais tenham sido delatadas pelos próprios escravos, devido a esses receios de realocamentos dentro do próprio sistema escravista, mas principalmente é necessário compreender que ao nos referirmos a segunda metade do século XIX, o contexto social do período possibilitava uma visão de manumissão muito mais palpável aos escravos,

devendo ser considerado que o chamado “paradigma ideológico colonial”5 estava muito

desestruturado neste momento, o que permitiria uma certa concessão de vantagens que poderiam ser ampliadas com a contribuição para com os senhores, que lhe “abanavam” com sua possível liberdade, ou mesmo com a concessão de alguma vantagem dentro do sistema escravista. Genovese, ao analisar as rebeliões escravas nos Estados Unidos, aponta para a grande dificuldade em conseguir levar o plano de rebelião em segredo, pois

... todo movimento popular conta com abundância de traidores, covardes, espiões e agentes provocadores, de tal modo que lidar com eles torna-se o primeiro teste de engenhosidade para a liderança rebelde. O contexto permanece em questão. A inadequação de preparação e de execução - ou de organização - contribuiu para o fracasso das mais sérias revoltas de escravos nas Américas.6

4 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês, 1835. São Paulo: Companhia das

Letras, 2003, p.320-321.

5 REIS, J.J e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia

das Letras, 1989, p. 66 e 70. A escravidão... não terminava nas porteiras de nenhuma fazenda em particular, mas fazia parte da lei geral da propriedade e, em termos amplos da ordem socialmente aceita... o grande obstáculo às fugas era a própria sociedade escravista, sua forma de ser e de estar, sua percepção da realidade, seus valores, o que chamaremos paradigma ideológico colonial... O conflito aberto... esbarrava em condições extremamente desfavoráveis durante a vigência do paradigma ideológico colonial a sociedade, aqui como nas fugas, era vigilante. A repressão era imediata quando não antecipada, e uma legislação sempre mais meticulosa após cada movimento, desde 1807, tornou virtualmente impossível qualquer levante depois de 1840.

6 GENOVESE, Eugene Dominick. Da rebelião à revolução: as revoltas de escravos negros nas Américas. São Paulo:

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Podemos ainda destacar que grande parte das insurreições ocorrida durante a primeira metade do século XIX foram delatadas por escravos que tomaram conhecimento de algum plano insurrecional, assim também ocorreu em uma tentativa de insurreição escrava, no Distrito de Nossa Senhora da Aldeia dos Anjos, em 1863, na qual

... no dia 24 de maio do corrente anno, no Distrito de Nossa Senhora dos Anjos Aldeia aguardarvão todos o dia aprazado para realizarem seu [dannado] intuito, a d‟est‟arte obterem por meio da força a liberdade a [troco] da qual se coligarão, sendo que só por malogração de tal plano, visto o rompimento do sigillo por parte de um

dos escravos convocados q’não adherio a insurreição, a tornar publica, foi que não levarão a effeito o mesmo

intuito bastando isto para q‟mor parte dos reos se [saísse] em fuga... [Grifo nosso]7

A busca por adeptos sempre era uma atividade repleta de perigos, por mais que as relações sociais e familiares fossem presentes, não eram condições para a adesão ao plano, o que podemos verificar nos discurso do preto Luiz, escravo de José Alves, que ao ser perguntado “Quem era o chefe d'esse levante?”, responde

Que andavão convidando por toda parte Nazario, Bento, Manoel Rafael, Manoel Capitão, e o Miguel e que este

mandava sempre recados para seus filhos que tem no Pinhal Gregorio e Elias, aquelle de Innocencio Maciel e este de Antonio Maciel, mas que estes não querião acompanhar. [Grifo nosso]8

Podemos refletir que as relações presentes nestas redes sociais e familiares não erão somente um mecanismo a favor dos rebeldes no momento de agregar escravos as fileiras insurgentes, mas sim uma possibilidade, que esbarrava na percepção que cada cativo teria quanto as perda que iria sofrer nesta adesão, sendo uma decisão que fugia ao grupo de conhecedores do plano, sendo quase sempre uma decisão individual, na qual cada escravo ponderava, através de suas experiências, medos e interesses o que era melhor a sua vida. Nesse sentido concordo com Genovese que ao refletir9 sobre o porque, apesar da violência e falta de liberdade no sistema escravista nos Estados

Unidos, muitos escravos não aderiam aos ideais rebeldes, escreve que

Nada poderia ser mais ingênuo ou arrogante do que indagar por que Nat Turner não surgiu em cada fazenda do sul, como se, do conforto de nossas salas de estar, tivéssemos o direito de ditar a outros (e ainda mais retrospectivamente), quando, como e por que teriam de arriscar suas vidas e as daqueles a quem amavam.10

Devemos compreender as relações sociais entre os cativos como um mecanismo que buscava, principalmente, facilitar a vida do escravo, buscando formas de se aproveitarem das

7 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060. Libello crime

accuzatorio – folha 78 verso.

8

APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

9 E “desdenhar”, de certa forma, a quem não entende o porquê de nem todos os escravos terem tomado posições mais

radicais quanto a resistência escrava.

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brechas existentes no sistema escravista, assim como conhecerem seus limites. A sua utilização na estruturação de planos insurrecionais era um facilitador para a comunicação e também uma forma de ponderarem quanto e em quem poderiam confiar, como podemos perceber no interrogatório de Antônio, escravo de Francisco Maciel, quando lhe é “Perguntado como era a desordem que querião faser os escravos na Aldea? Respondeo que não sabe d'essa desordem porque seos parceiros não se fiavão d'elle respondente, por ser linguarudo.”[Grifo nosso]11. Suas ações procuravam reduzir ao

máximo a possibilidade de vazamento de informações, mas como todo o plano que procurava agregar grande parcela de pessoas, aumentava consideravelmente a possibilidade das delações, ou mesmo vazamento de informações por um escravo mais entusiasmado com o planejamento, questão elucidada por J.J. Reis para o caso do Levante de Malês, quando

Na volta para casa, Guilhermina encontrou a comadre Sabina da Cruz, outra liberta nagô, que vinha ansiosa

conversar sobre o mesmo assunto. Vinha falar de um dos conspiradores, seu companheiro Victório Sule, com quem tivera uma briga feia naquela manhã. Ao retornar à noite, depois de um dia de trabalho (vendia comida

na Cidade Baixa), encontrou a casa de pernas para o ar. Victório, ausente, saíra levando roupas suas. Ela saiu em busca do “pai de seus filhos”, verdade, ela parece ter chegado à casa do africano liberto Manoel Calafate, quase ao pé da ladeira da Praça, portanto, perto do largo da igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, hoje desaparecida. Victório ali estava jantando em companhia do “maioral” e muitos outros africanos, provavelmente na preparação dos últimos detalhes da revolta do dia seguinte. Sabina não chegou a ver o

companheiro naquela noite, mas teve um áspero diálogo com a negra Edum, que lhe dissera que ela só veria seu homem quando os africanos se tornassem senhores da terra, ao que Sabina respondeu desafiadora que “no outro dia haviam de ser senhor de surra e não de terra”. E correu para falar com Guilhermina, provavelmente sabedora da confiança da comadre junto aos brancos.12

O relato nos aponta para a dificuldade em manter em sigilo o planejamento, pois as possibilidades de tornar-se público tal plano eram muito amplas, desde alguém falar mais do que devia para alguém que não manteria em sigilo o plano, ou no caso acima, para alguém que está em uma situação de conflito com seu companheiro, o que pode ter contribuído para a delação do plano. Eram muitas as possibilidades de rompimento do sigilo, pois as relações entre os escravos não eram comodas, e nem ausentes de conflitos dentro do grupo13. Infelizmente o processo-crime referente a

tentativa insurrecional no Distrito de Nossa Senhora da Aldeia dos Anjos, não aponta quem foi, e nem como ocorreu, a denúncia do plano, não nos permitindo verificar os motivos da denúncia, o

11 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

12 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês, 1835. São Paulo: Companhia das

Letras, 2003. p.320-321, p.127.

13

Quando escrevemos grupo, entendemos este como o conjunto de pessoas que eram utilizados como mão-de-obra escrava, não os percebemos como um grupo uno que se compreendiam como iguais. Concordamos com REIS e SILVA, que “Não podemos... pensá-los como um bloco homogêneo apenas por serem escravos”. REIS, J.J e SILVA, Eduardo.

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que encontramos no processo, são descrições que afirmam a delação do planejamento, pelo rompimento do sigilo por algum escravo que não aderiu ao plano, assim como discursos de cativos que afirmam, aos interrogadores, ter tentado descobrir sobre o planejamento para delatarem a seus senhores.

Mesmo com a ausência de informações para uma maior compreensão do planejamento, ou como uma colega disse uma vez, que “esse processo é um „diz que me disse‟ dos escravos”, mas mesmo este “diz que me disse” pode nos apontar as estratégias e pensamentos presentes dos insurgentes da Aldeia dos Anjos, ou mesmo de seus conhecedores. E são nesses relatos que foi possível verificar, por exemplo, a percepção dos escravos com relação a família real brasileira, quando Feliciano, escravo de Antônio Paim, ao ser

“perguntado para que érão esses cavallos? Respondeo que Quinto lhe disse que a esse que convidasse levassem as melhores cavallos que seus senhores tivessem porque os criolos [hião] para cavalaria e os da costa para infantaria porque os seus companheiros lhe disião que a Rainha em miado de setembro vinha a Porto Alegre

havia de gritar liberdade e a vista disso não [dessem] que então hião brigar. [Grifo nosso] 14

Questão já abordada por Paulo Moreira, na qual ao analisar esse mesmo caso, aponta para a força que realeza mantinha entre os escravos, citando Flávio Gomes, aponta para a percepção dos escravos, com relação ao soberano a favor da liberdade dos escravos e que seriam os senhores os únicos interessados no mantenimento do escravismo. E citando Geertz, escreve que

... o carisma do soberano tem “conteúdo sagrado” e seus deslocamentos pelo país – ao mesmo tempo que satisfazem curiosidades e instauram nos corações e mentes dos súditos a figura antropomórfica do poder monárquico – inventam sentimentos de pertencimento a um mesmo grupo (nacional, no caso em análise), mesmo que não sejam duradouros. 15

Devemos destacar que esse foi um dos discursos utilizados pelos planejadores desta tentativa insurrecional, mas podemos apontar ainda que grande parte dos escravos buscavam, em suas redes sociais, apoio a suas percepções sobre o sistema escravista no qual viviam. E mesmo quem não aderiu a tal levante, por não concordar, ou ao menos alegar isso, não delataram o plano, como podemos verificar no interrogatório do pardo Manoel, escravo de José Antonio de Jesus, que

disse que domingo ultimo Domingos escravo de Joaquim Honorato Paim veio falar-lhe junto da venda digo da casa de Miguel Soares e o convidou para faser uma guerra com os outros e como respondeu que não se metia

nisso lhe encarregou que não falasse a ninguem. perguntado porque não contou a seu senho? Respondeu que se arrepende não ter feito. Achando-se presente o pardo Domingos disse que tudo isto éra falço sendo serto

que esteve domingo na povoação foi a venda de Miguel Soares comprar tres lenços e não converçar com pelo

14 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

15 MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano, Porto

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pardo Manoel foi dito que é verdade o que declarou e que os escravos de Joaquim Pinheiro, Luis e Joaquim e Francisco escravo de José Ignacio de Souza virão o Domingos converçando com elle respondente. 16

Fato interessante é notar a presença de outros escravos nos interrogatórios e de suas interferências durante as perguntas, no caso acima, a revolta de Domingos, alegando que tudo era mentira, acaba por gerar a reação de Manoel, que aponta outros escravos como testemunhas de sua conversa com o mesmo Domingos, defendendo-se da acusação, e consequentemente, envolvendo mais três escravos no processo em questão.

Ainda cabe ressaltar que suas redes de relações eram fortes e amplas, e que os favores eram retribuídos entre escravos constantemente como podemos destacar no discurso do preto Mathias, escravo de Manoel José de Barcellos:

perguntado qual era a desordem que os negros de Maciel querião faser? Respondeu que não sabe porque não se fiarão delle por que um delles Antonio fes queixa delle respondente ao senhor e ficarão mal perguntado como

estando mal fes compras para Manoel? Respondeu que Manoel lhe emprestou o cavallo e por isso lhe fes esse favor. 17

Considerando esse relato, é possível refletir sobre as variadas funções das redes de sociabilidade criada entre os escravos, assim como o nível que elas podiam chegar, podendo se ater a um pequeno favor, até mesmo ao ingresso na fileira insurgente. Mas as relações de ajuda mútua, entre cativos, devem ser vistas, como já foi dito, como uma forma de facilitar a vida escrava. O interessante nesse relato se refere ao “ficar de mal”, pois o desentendimento foi com Antônio, mas como o próprio Mathias diz, “não se fiarão delle por que um delles Antonio fes queixa delle respondente”18, mas mesmo assim ele faz o favor a Manoel, que fazia parte da tentativa de levante,

em razão da dívida que tinha com o mesmo pelo empréstimo do cavalo. Isso pode nos apontar a importância da redes sociais destes cativos, e entendemos, como Mônica Dantas, analisando as relações entre iguais das camadas mais pobres, ao escrever que “No dia-a-dia, portanto, tão importante quanto um eventual auxílio de um potentado, parecia ser também vitais as ajudas conseguidas entre iguais”19. Apesar de a análise se focar nos pobres livres, acredito que as ajudas

16 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060. 17

APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

18

APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

19 DANTAS, Mônica Duarte. Para além do mandonismo: Estado, poder pessoal e homens livres pobres no Império do

Brasil. In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Junia Ferreira; BICALHO, Maria Fernanda. O Governo dos Povos. São Paulo: Ed. Alameda, 2009, p.354.

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entre iguais era algo que perpassava todas as camadas sociais, inclusive a dos escravos. Ainda citando Dantas é importante refletir que

No Império brasileiro a vida da população pobre era marcada pela instabilidade, mas tal instabilidade não significava completa dependência, incapacidade de formação de laços horizontais e ignorância dos dilemas e disputas que afetavam não só suas vidas, mas também daqueles que os cercavam20

Partindo dessa perspectiva, acredito que as relações dos escravos foram se fortalecendo, não por uma percepção de identidade escrava, mas, principalmente, pelo panorama presente no início da segunda metade do século XIX, na qual a proibição do tráfico negreiro, em 185021, acabou por gerar

uma falsa ideia de que o fim do trabalho escravo estava próximo, e as pessoas que defendiam “ferrenhamente” o fim do tráfico, assim como, a importância de se implementar a mão-de-obra livre, em substituição a escrava, acabaram deixando de lado o debate, acreditando que o “processo emancipatório” estava por ser finalizado, fato que não ocorreu da forma esperada22. Mas nesse

momento em que os “defensores” da liberdade escrava estavam “descansados” e convictos de que o processo estava funcionando, como ficaram os escravos? como passaram a pleitear sua liberdade? Como ficou sua situação no sistema escravista? Consideramos, assim como J.J.Reis que

As relações sociais do cotidiano estavam enredadas em uma ideologia paternalista que, embora não excluísse totalmente o africano, sobretudo o ladino, envolvia com maior força os escravos e libertos brasileiros. Nascido de relações localizadas de poder no microcosmo social em que se confrontavam escravo e senhor, esse paternalismo senhorial se aproxima de um tipo de hegemonia político-ideológica e cultural. Era sistema de controle e dominação de classe.23

Seguindo esse pressuposto, acreditamos que grande parte das atitudes tomadas pelos escravos na segunda metade do século XIX, foram ampliadas de duas formas, a primeira diz

20 DANTAS, op. Cit., p.354.

21 “É verdade que a proibição do tráfico atlântico de escravos, isoladamente, não implicava agenda necessária de

emancipação gradual. Junto, porém, com a chamada Lei de Terras, aprovada apenas 14 dias depois, sinalizava para um projeto de reformas que contemplava a substituição da escravidão como horizonte. O contexto internacional e as disputas políticas entre as elites imperiais precisam ser levados em consideração para entender essa inflexão. E não apenas eles. Também a ação coletiva dos chamados cidadãos “passivos” e dos homens e mulheres escravizados contaram decisivamente”. MATTOS, Hebe. Raça e cidadania no crepúsculo da modernidade escravista no Brasil. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial: Volume III – 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

22 “Depois da lei de 1850... Nos anos seguintes, embora não se possa dizer que o pensamento antiescravista

emudecera, parece ter havido um arrefecimento das publicações sobre a questão. A lei aparentava um grande passo para a eliminação do sistema escravista”[Grifo nosso]. COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo:

Livraria de Ciências Humanas, 1989, p.401.

23 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês, 1835. São Paulo: Companhia das

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respeito a escravos que não empreenderam soluções mais radicais na busca por sua liberdade, mas sim nas negociações diárias, cada vez mais variadas; a outra questão diz respeito ao medo branco24,

que pode ter aumentado consideravelmente o que realmente foram estas insurreições, tanto com relação a seus participantes, como em relação a seus objetivos. Podemos perceber no apêndice do relatório geral, 1863 de um representante francês em Porto Alegre a repercussão da tentativa insurrecional na Aldeia dos Anjos, assim como a percepção criada sobre sua amplitude e objetivos, no qual afirma que

Pelo final do mês de agosto passado foi descoberta, felizmente a tempo, uma conspiração tramada por

escravos da Aldeia dos Anjos, bem próxima a esta capital, na qual possuía ramificações extensas. Tratava-se de nada menos de que uma sublevação com o projeto de abrir as cadeias civis que transbordam de malfeitores e de assassinos, a fim de realizar em seguida seus funestos desígnios.[Grifo nosso]25

Pensamos que, com relação a tentativa insurrecional na Aldeia dos Anjos, as ramificações foram amplas, envolvendo cativos crioulos, africanos, pardos e mulatos, tal amplitude não aponta para a união escrava, mas sim para interesses comuns entre os cativos, mesmo assim, não podemos compreender que tais escravos participaram ativamente do planejamento, mas sim, que suas redes sociais, possibilitaram-lhes verificar suas possibilidades de ações, dentro do sistema escravista, utilizando-se de suas percepções quanto ao espaço geográfico no qual viviam, do uso da questão da vinda da rainha, ou da perspectiva escrava sobre a liberdade, como podemos notar no discurso do preto Justo, escravo de Porfirio Antonio de Jesus, quando

Perguntado o que sabia acerca do levante que os negros querião faser?

Respondeo que Feliciano escravo de Antonio Paim domingo atrazado foi a lavoura onde elle respondente

estava trabalhando e disse que não trabalhase mais porque estavão todos para ficarem forros e que por isso já não trabalhava, que tinha milho para colher mais que não podia perder de saber disso a fundo porque o seu parceiro Quinto lhe tinha dito que havia uma reunião [ao pé] da casa de Baptista, que reunião os negros da

costa para enfantaria e os criolos para cavalaria e que por isso hia saber disso para tambem se reunir por que os

24 Aqui nos reportamos a Célia Azevedo, quando escreve que “com todo um imaginário construído a partir do medo ou

da insegurança suscitada pelos conflitos reais ou simplesmente potenciais entre uma diminuta elite composta tanto dos

grandes proprietários como das chamadas camadas médias de profissionais liberais e uma massa de gente miserável - escravos e livres -, cuja existência não passava pelas instituições políticas dominantes, o que significava conferir-lhes um perigoso grau de autonomia que nenhuma lei repressiva por si só poderia coibir.” [Grifo nosso]. AZEVEDO, Célia M. Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites: século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1983, p.30-31.

25 Cabe destacar que o representante francês também se refere, em seu relatório, a condição escrava na província do Rio

Grande de São Pedro, neste período próximo a 1863, apontando que “Há algum tempo, observa-se entre os escravos um tendência mais acentuada do que nunca em sacudir o jugo de seu cativeiro com esses meios extremos. Frequentemente, toma-se conhecimento dos suicídios, dos infanticídios e dos assassinatos cometidos nas pessoas de seus senhores e donos, não somente no interior, mas também nas cidade”. D’ORNANO, Paulo Baptiste. Um Barão na Província: apêndice do Relatório Geral, 1863 / Paul Baptiste d’Ornano; tradução Fúlvia Moretto, apresentação Sérgio da Costa Franco. Porto Alegre: IEL: EDIPUCRS, 1996, p.31-32.

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brancos érão uns pelos outros por isso os negros tambem devião faser o mesmo e que na volta lhe avia contar melhor não só para que elle o acompanhase como para avisar os escravos dos visinhos, e levar os melhores cavalos de seu senhor.26

A ideia de liberdade estava ligada a questão do “trabalhar” ou “não-trabalhar”27, sendo que

para atingir essa liberdade era necessário se unirem, assim como os brancos, mas que união seria essa que os dividia entre “negros da costa para enfantaria e os criolos para cavalaria”, porque desta distinção? Qual a percepção sobre essa diferença? Questões que não são possíveis perceber mais profundamente nos discursos presentes no processo-crime, mas que deviam fazer parte do dia-a-dia dos escravos, mas percebidas por eles, ou instituída de cima? Nesse ponto concordamos com Luiz Couceiro quando afirma que:

Estamos lidando com a categoria africano no Império do Brasil como uma categoria social e historicamente construída. A natureza das fontes de investigação com as quais trabalhamos confirmam a idéia de que os próprios africanos não eram os seus próprios classificadores strictu sensu. Membros da elite política imperial classificavam-nos pelo que entendiam de seus comportamentos... As identidades sociais estão, assim, definidas por sistemas de classificação socialmente reconhecidos, porém em momento algum estáticos.28

Com isso não deixo de acreditar que os escravos formaram e contribuíram para construção de identidades múltiplas em sua vida em cativeiro, mas acredito que estas múltiplas identidades foram delineadas, de certa forma, através da divisão visualizada pelos brancos, mas que se estabeleceram em razão da maneira como os escravos, em grupo, ou individualmente, lideram com cada situação que tinham que enfrentar diariamente. Para compreender essas identidades que surgiram é importante visualizar a forma como se estabeleceram as relações entre os cativos, assim como as formas pelas quais eles buscaram suportar sua vida em cativeiro. Considerando que durante a segunda metade do século XIX as relações foram se modificando, com as do início do século, foram se dinamizando e achando, cada vez mais, apoio junto a opinião pública, o que fez com que os escravos se sentissem mais protegidos e assim empreendessem uma força maior contra

26 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

27 Nos referimos a percepção da sociedade brasileira na qual o trabalho era visto como função do escravo, visto de

forma depreciativa, ou conforme Emilia Viotti da Costa, aponta “A ideia de trabalho trazia consigo uma sugestão de degradação. Também para o negro, o trabalho, fruto da escravidão, aparecia como obrigação penosa, confundia-se com o cativeiro, associava-se às torturas do eito. A liberdade deveria, necessariamente, aparecer-lhe como promessa de ausência de obrigações e de trabalho”. COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Livraria de Ciências Humanas, 1989, p.15.

28 COUCEIRO, Luiz Alberto. No caminho do medo ao crime... Os africanos e o Atlântico: imagens sociais no Império

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o sistema, ampliando brechas já existes ou mesmo os limites instituídos29. Acreditamos que os

limites foram ampliados pelos escravos que percebendo mudanças na estrutura social de suas localidades empreenderam ações que modificaram sua condição na ordem social, ou pelo menos, flexionaram os limites impostos a eles.

Com o fim do tráfico negreiro em 1850 a entrada de novos escravos africanos foi cessada, devendo assim, avaliar que em 1863 a escravaria presente no Brasil era composta de escravos nascidos no Brasil ou africanos ladinos, com certo conhecimento do sistema escravista. Podemos dessa maneira refletir que a diferença existente entre conhecedores das brechas e limites escravos, haviam sido reduzidas a um nível muito pequeno, mantendo-se agora mais a um nível individual do que de grupos étnicos – africanos x crioulos ou africanos e mulatos30. Consideramos que como nos

aponta Flávio Gomes, que “Com o fim do tráfico negreiro em 1850, provavelmente os fazendeiros e lavradores da região não conseguiram renovar seus plantéis devido ao súbito aumento de preços dos escravos”31. Partindo dessa percepção devemos também avaliar que estes escravos, do período em

questão, que compunham a escravaria do Distrito de Nossa Senhora da Aldeia do Anjos já eram bastante conhecidos dos senhores, como podemos perceber nos discursos presentes nos interrogatórios (Tabela I), quando lhe são perguntados se conheciam as testemunhas que faziam parte do processo, verificamos que todos os réus conheciam alguns desses senhores, ou mesmo a todos, há muito tempo. Além disso, é possível perceber que alguns destes senhores apontam para o comportamento de alguns escravos os quais conheciam, como podemos perceber nos relatos citados (Tabela II), tanto dos escravos, como dos senhores:

29

“Na verdade, não se deve buscar, nesses protestos, significados inexoráveis de projetos teleológicos para destruir, de uma só vez, o regime da escravidão. As lutas dos escravos, sejam quais fossem suas formas, representavam processos

contínuos de transformações históricas das relações escravistas. Resistência e acomodação escravas - incluindo aí, como vimos, embates, conflitos, agenciamentos e enfrentamentos - podiam significar, ao invés de valores

fundamentalmente diferentes, apenas lados opostos da mesma moeda”[Grifo nosso]. GOMES, Flávio dos Santos.

Jogando a Rede: Revendo as Malhas: Fugas e Fugitivos no Brasil Escravista. Tempo, Rio de Janeiro, vol.1, 1996, p.93.

30 Concordamos aqui com Stuart Schwartz quando ao analisar sobre os negros e mulatos, com relação a sua união em

rebeliões escravas, escreve que “Foram pouquíssimas as ocasiões em que movimentos de escravos e não-escravos se cruzaram... Raramente, porém, uniram-se a escravos em causa comum. Seus planos para o futuro consistiam não em

esmagar o regime explorador que os restringia, mas em conseguir acesso aos benefícios que aquela estrutura prometia, especialmente durante um período de rápidas mudanças políticas. As rebeliões escravas, portanto, servem aqui como uma medida não de resistência ou opressão, e sim da consciência e estratégia, bem como do funcionamento dessa sociedade escravista em um momento de crise” [Grifo nosso]. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos:

engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.381.

31 GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX. In: REIS, João José e GOMES, Flávio dos

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TABELA I REUS E SUAS RESPOSTAS NO INTERROG ATÓRIO

Interrogados De onde é natural Onde reside A quanto tempo

Qual a sua profissão e meios de vida

Onde estava ao tempo em que teve lugar a tentativa de insurreição de que é acusado

Conhece as pessoas que jurarão como testemunhas neste processo e a quanto tempo

Tem algum motivo particular a que atribui a denuncia

Tem factos a allegar que o justifique ou mostre a sua innocencia

reo Feliciano, escravo de Antonio Pahim de Andrade certão de Pernambuc o Districto da Aldeia dos Anjos sete annos mais ou menos trabalhador

de [rossa] estava em Santa Cruz Caminho da serra.

os conhece como seos visinhos, e que só de Francisco Gomes tem maior conhecimento a muito tempo

que não tem

Respondeo por seo curador em tempo competente allegará o fez de [direito] e como

reo Antonio escravo

de Francisco Maciel Costa Africa da Botiá districto de Aldeia três annos trabalhador de [rossa] estava em casa de seo senhor

conhece a três; Antonio Lemos, Miguel Silva, e Marcos Carvalho, a muito tempo

que não tem

Respondeo pela [ilegível] de seo curador que em tempo allegará o que fez a bem de seu [direito] reo Matheus escravo

de Manoel Barcellos Faxinal districto da Capella de Viamão Districto da Aldeia alguns

vinte annos roceiro

estava em casa de seo senhor

conheço a Francisco Gomes, Miguel Silva, Antonio de Lima, e Luis Jacintho, a muito tempo

que não tem

Respondeo por seo curador que em tempo competente allegará o que fez o bem de sua justiça

reo Manoel Rafael escravo de Innocencio Maciel Butiá districto da Aldeia Butiá em casa do velho Francisco Maciel [dois]

annos roceiro estava em casa do velho Francisco Maciel no Butiá

conheço a todos, a excepção de Marcos Carvalho – e a muito tempo que não

Respondeo pela [ilegível] de seo curador que em tempo allegará o que fez a bem de sua justiça reo Aniceto escravo

de Januário Gomes Pahim Da Freguesia da Aldeia segundo Districto da Aldeia, em casa de seo senhor [doze]

annos roceiro estava na [rossa] [ilegível] de seo senhor conheço a todos a muito tempo. que não

Respondeo pela [ilegível] de seo curador que em tempo allegará o que fez a bem de sua justiça reo José escravo de

Innocente Maciel Costa Africa da Districto Pinhal do dezesete annos roceiro estava em casa de seo senhor

conheço a Francisco Gomes e Marcos Carvalho a muito tempo, e os mais não conhece

que não tem

Respondeo pela [ilegível] de seo curador que em tempo allegará o que fez a bem de seu [direito] e justiça

reo Bento escravo de Francisco Maciel Pinhal termo desta cidade Botia, districto da Freguesia da Aldeia oito annos mais ou menos roceiro

estava em casa de seo

senhor conhece a todos desde que veio morar na Aldeia Não tem Respondeo por seo curador que em tempo allegará reo Luis escravo de

José Alves Na África No do Pinhal districto

oito annos mais ou

menos roceiro Em casa de seo senhor

Conheço a todos a muito

tempo Não

Respondeo por seo curador que em tempo apresentará sua defesa

Curador dos réus: Doutor Eugenio Pinto Cardoso Malheiros TABELA II TESTEMU NHAS E SEUS DISCURSO S32

Nome Cor Idade Estado Civil Profissão Naturalidade Morador Folha do Processo PERGUNTAS E RESPOSTA

1 ª Marcos Carvalho de Oliveira Branco 30

anos Casado Vive lavoura de Desta Provincia

Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos Aldeia 42 (F e V) e 43 (F)

Disse que depois de [comessarem] as diligencias com a [presença] do Douto Chefe de Polícia na Aldeia soube que os escravos das fazendas próximas pretendião [insurgir-se], e levantarem-se, ouvindo mais que os que herão interrogados declararão que Nazário hera o seo chefe. Perguntado se sabe de quantos escravos se compunhão essa insurreição? Respondeu que não sabe. Perguntado se os reos presentes[pertencião] ao número dos que se querião levantar - Respondeo que não os pode indicar especificamente

2 ª Miguel de Oliveira e Silva Branco 41

anos Casado Vive negócios de Desta Provincia

Freguesia da Aldeia dos Anjos

43 (V) e 44 (F)

Disse que no dia em que o Doutor Chefe de Polícia chegou a Aldeia soube que os escravos do lugar estavão no intuito de faserem insurreição, sendo Nasario Nasario seo chefe, e ouviu isto de diversas pessoas cujos nomes se não recorda. Perguntado se os reos presentes [pertencião] ao número dos que se querião insurrecionar - Respondeo que não sabe

3 ª Francisco Gomes Ferreira Soares

Branco 49 anos Casado Vive lavoura de Desta Provincia

Segundo Distrito da Freguesia dos Anjos Aldeia 44 (V), 45 (F e V) e 46 (F)

Perguntado se sabe da culpabilidade dos réus presentes? Respondeo que só sabe que Aniceto fora convidar a outros na Sapucaia e que Matheus foi comprar pólvora na Aldeia para Manoel escravo de Maciel Maciel, por ter ouvido dos próprios reos... Perguntado se sabe que os reos presentes são escravos [altaminos]? Respondeo que nunca ouvio serem conhecidos por isso, e, que

Feliciano, e Aniceto, são seos visinhos, e umildes, e os demais não conheço.

[Grifo nosso]

(12)

4 ª

Antonio Pinto de Lemos

Branco 38 anos Casado Vive negócios de De Portugal Freguesia dos Anjos da Aldeia

46 (F e V)

e 47 (F) Perguntado se os reos presentes herão escravos [ilegível]? – Respondeo que nunca ouvio queixas delles enquanto negociasse com os senhores [Grifo nosso] 5

ª

Luis Jacintho Ferreira

Branco 34 anos Solteiro Vive negócios de Desta Provincia

Freguesia de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia 48 (V) e 49 (F e V)

Disse mais que ouvio dizer que o reo presente Aniceto andou avisando para essa reunião... Perguntado se os reos presentes herão [alteiros] para com seos senhores - Respondeo que não os ouvio indicar como tais [Grifo nosso]

Apontaremos agora algumas reflexões que viemos a fazer ao cruzarmos alguns dos discursos escravos, presente no processo-crime em questão, primeiramente devemos compreender que a busca de uma união escrava foi o argumento principal da tentativa insurrecional empreendida pelos escravos da Aldeia dos Anjos33 e que foi a partir dela que se iniciou o discurso que fará parte

de todo o processo, e que foi utilizado na busca dos participantes em suas relações de amizade ou conhecidos confiáveis, procurando sempre descartar aos que sentiam algum risco de delatar suas pretensões. Iniciaremos esta avaliação buscando apontar as facilidades da sua mobilidade, entre as fazendas vizinhas, como podemos perceber no discurso do preto Luis, escravo de José Alves, que perguntado

P. Se antes de fugirem Manoel Capitão escravo de Francisco Maciel tinha andado pelo Pinhal e o que fasia? R. Que tinha estado em tres domingos conversando com Alexandre para convidarem os outros escravos e se levantarem e brigarem com os brancos.

P. Quem estava prompto para o levante?

R. Que do Pinhal era só Alexandre e os outros não queria e que do Passo Grande e da Figueira muitos estavão promptos, conforme lhe disse Alexandre, sendo Aniceto, de Jannuario Pahim, Isaias de Firmino, Adão Peixoto de João Machado, Aniceto de Manoel Soares. Israel de Manoel Soares, Florentino de José Machado, e Salvador e Claudino de André Machado.

P. Quem era o chefe d'esse levante?

R. Que andavão convidando por toda parte Nazario, Bento, Manoel Rafael, Manoel Capitão, e o Miguel e que este mandava sempre recados para seus filhos que tem no Pinhal Gregorio e Elias, aquelle de Innocencio Maciel e este de Antonio Maciel, mas que estes não querião acompanhar. Disse mais que Alexandre lhe contou que Nazario, Bento e Manoel Capitão disião que antes de se moverem do Pinhal havião de matar os senhores

33

Quando escrevemos escravos da Aldeia dos Anjos, nos referimos aos escravos que estavam aliciando cativos para as fileiras insurgentes, não pretendemos em nenhum momento defender a formação de uma identidade negra escrava única, até mesmo porque acreditamos que esta união nunca chegou a se concretizar, aqui concordamos com Reis, que o momento em questão da tentativa insurrecional possibilitava “[...] transformar adversários naturais em aliados muitas vezes involuntários. Com isso, foram aos poucos superado suas próprias divisões, embora nunca as eliminassem

completamente, e rompendo o isolamento a que tinham sido empurrados.” [Grifo nosso]. REIS, J.J e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 53.

Acreditamos ainda que houve sim uma luta pelo fim da escravidão, ou melhor dizendo, do sistema de mão-de-obra escrava, por parte dos senhores, e que os escravos souberam aproveitar tais discussões para individual, ou

coletivamente, lutarem por sua liberdade. Mas mesmo posteriormente ao fim da escravidão se manteve um pensamento paternalista no qual, em certo sentindo, um grande número de escravos ainda viam em seus antigos senhores os seus defensores, até mesmo porque o fim da escravidão, não representou o fim das dificuldades e do preconceito, a figura do negro continuou a representar a população inferior, a população que representava o atraso, e aqui concordo com Emilia Viotti da Costa quando escreve que “Realizada principalmente por brancos e negros ou mulatos pertencentes à sua clientela, legitimada por um ato do Parlamento, ratificada pelas classes dominantes, a abolição libertou os brancos do

fardo da escravidão, abandonando os ex-escravos à sua própria sorte”. COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia.

(13)

d'elle respondente a Innocente Maciel e Antonio Maciel para tomarem o armamento que tem em casa e para não serem perseguidos por esses senhores [moços].34

Pelo discurso é perceptível que a mobilidade escrava era algo vista como normal ou pelo menos aceitável, sendo que os escravos a usavam correntemente – seja com o concentimento dos senhores ou as escondidas –, conforme suas necessidades e utilizando-a como um mecanismo corrente na sociedade do período. Seguindo os discursos de mobilidade espacial, podemos apontar o discurso do “preto Manoel escravo de Innocente Maciel Netto, representa ter vinte e cinco annos, solteiro, filho de Antonio, escravo de João Barcellos, natural d‟este termo, roceiro, morador no Butiá em Casa de Francisco Maciel”, que:

Perguntado como era o alevantamento que elle queria faser com os outros escravos d'Aldea?

R. Que não sabia de nada que só fallou a Pedro escravo de José Lima para irem em uma terça-feira a casa de Baptista no Botiá porque Nazario lhe disse que o chamasem para conversarem e que só depois de fugir de casa no principio da semana passada foi que Nazario lhe disse que estavão promptos os escravos da Capella de Andre Machado e de outros do Paço Grande para fazerem um alevantamento e gritarem liberdade: que sahio de casa porque seo senhor tinha ameaçado de mandar castigar a todos os escravos em razão de faltar milho no paiol, e por ver uma partida acompanhando seo senhor [moço] José Fonceca.

P. Se no domingo anterior do dia em que fugio esteve no Butiá em casa de Baptista com José, escravo de Domingos Corrêa e o que lhes fallou?

R. Que esteve e que só fallou sobre um negocio de um pohanco que queria vender.

P. se n'esse mesmo domingo esteve na roça de Pedro escravo de José de Souza Lima e o que lhe disse? R. que esteve e só lhe disse que nazario lhe queria fallar.

P. Se no mesmo domingo esteve com Constantino, escravo de José Francisco de Souza? R. que foi a essa fasenda de noite já tarde a tomar a benção sua mãe.35

Percebemos que este escravo teve uma ampla movimentação pelas fazendas vizinhas, assim como “muitas questões” a tratar com seus companheiros de cativeiro. Esta movimentação escrava e troca de favores foi fundamental para estes escravos, que procuraram explorar ao máximo suas redes sociais, agregando a maior quantidade possível de escravos ao seu intuito insurgente, suas relações se estabeleceram a partir de troca de favores e utilização de vários cativos na busca de convergências de redes sociais diferentes, criando uma rede maior que possibilitasse ampliar o contingente de insurgentes, como podemos perceber no discurso do preto Justo, escravo de Porfirio Antonio de Jesus, que:

perguntado se esteve na povoação segunda feira de noite?

Respondeu que esteve e que veio faser umas compras e vender um pouco de milho de Manoel escravo de Francisco Manoel sem ver o Manoel Rafael na casa de joaquim Ignacio onde comprou uma folha de papel e quis comprar um pouco de fumo mais não achou

perguntado se não quis também comprar uma libra de polvora?

34 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060. Mantive a

transcrição conforme a escrita do próprio processo, na qual P. refere-se a pergunta e R. a resposta.

(14)

Respondeu que era verdade e foi o mesmo Manoel que lhe mandou comprar mais não achou perguntado se Manoel tem espinguarda?

Respondeu que athe a pouco não tinha e que não sabe se agora já tem e que Antonio escravo de Maciel estava ontem hontem com uma espinguarda36

Este mesmo escravo não aderiu ao levante, e alega, como já apontamos anteriormete que os outros escravos “não se fiarão delle” por que um deles tinha feito queixa dele para seu senhor. Mas a relação de apoio entre eles se manteve, pois o favor feito, gerava um favor devido ao mesmo, criando um círculo de favores, que representavam apoios internos entre os escravos, facilitando suas ações no dia-a-dia. E é possível refletir que o rompimento do cumprimento de tais favores poderia representar para os cativos, favores que estes escravos poderiam deixar de possuir para cobrar posteriormente favores, como podemos perceber no relato do preto Mathias, escravo de Manoel José de Barcellos, citado anteriormente, no qual foi:

perguntado qual era a desordem que os negros de Maciel querião faser? Respondeu que não sabe porque não se fiarão delle por que um delles Antonio fes queixa delle respondente ao senhor e ficarão mal perguntado como

estando mal fes compras para Manoel? Respondeu que Manoel lhe emprestou o cavallo e por isso lhe fes esse favor. 37

Compreendemos que Mathias fez este favor a Manoel, pois o rompimento desse favor, representaria, o rompimento não com Manoel, mas com toda a rede de sociabilidade da qual Manoel fazia parte, sendo assim, devemos entender que as redes de sociabilidade dos escravos se cruzavam entre si, partindo de cruzamentos que permitiam sustentar as brechas existentes na sociedade escravista, assim como ampliar os limites permitidos aos mesmos. Suas redes foram o instrumento de ação junto a escravos/escravos, escravos/libertos, escravos/pobres livres e escravos/senhores.

Fugindo um pouco da questão específica da mobilidade espacial e relações sociais, mas não muito, devemos apresentar novamente o discurso do preto Feliciano, escravo de Antonio Paim, que:

perguntado que converça teve Domingo atrazado na rossa com justo escravo de Porfirio Antonio de Jesus? Respondeo que Quinto lhe tinha dito que hião faser um ajuntamento para gritarem liberdade e para isso o convidou e mandou convidar outros por isso foi convidar a Justo elle contou o mesmo que Quinto lhe tinha dito

perguntado se justo tambem estava pronto para esse ajuntamento?

Respondeu que Justo se callou, e elle respondente disse mais a Justo que sahia digo que hia saber melhor e voltava para lhe diser e saber da resposta de Justo mais não se encontrarão

perguntando se não disse a Justo que levasse os melhores cavallos de seu senhor respondeu que sim

perguntado para que érão esses cavallos?

36 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060. 37 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

(15)

Respondeo que Quinto lhe disse que a esse que convidasse levassem os melhores cavallos que seus senhores tivessem porque os criolos [hião] para cavalaria e os da costa para infantaria porque os seus companheiros lhe disião que a Rainha em miado de setembro vinha a Porto Alegre havia de gritar liberdade e a vista disso não [dessem] que então hião brigar38

Nesta parte dos questionamentos, após relatar toda sua participação no levante é feita a seguinte pergunta a Feliciano, “perguntado porque não contou a seu senhor?” sobre o planejamento, deu a resposta mais óbvia que poderia dar alguém que acaba de relatar, ou melhor, confessar sua participação no planejamento insurrecional, ou seja, “que para não descobrir”, que outra resposta poderia ter dado? Mas os questionamentos não pararam por aí, seguiram após essa resposta, com mais uma pergunta que dizia “se não disse a Justo que os brancos erão uns pelos outros e que por isso elles tambem devião faser o mesmo?” ao que Feliciano “Respondeu que sim”, confirmando assim sua inserção no discurso criado para a arregimentação de escravos para as fileiras insurgentes. Para finalizar essa pausa na questão da mobilidade escrava e de suas relações, acho importante apontar que o escravo Feliciano foi considerado inocente na participação da tentativa insurrecional, e é possível verificar que, conforme o inventário de seu senhor de 187239, Feliciano aparece como

escravo livre. Assim concordamos com J.J. Reis e Eduardo Silva quando escrevem

Os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo, se situando na sua maioria e a maior parte do tempo numa zona de indefinição entre um e outro pólo. O escravo aparentemente acomodado e até submisso de um dia podia tornar-se o rebelde do dia seguinte, a depender da oportunidade e das circunstâncias. Vencido no campo de batalha, o rebelde retornava ao trabalho disciplinado dos campos de cana ou café e a partir dali forcejava os limites da escravidão em negociações sem fim, às vezes bem, às vezes malsucedidas... Só sugerimos que, ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos.40

Voltando a questão das relações escravas, acredito ser importante destacar que as percepções escravas se convergem em muitos momentos, demonstrando que o discurso do levante foi difundido amplamente, por vários escravos, assim como também, uma simples cobrança de um empréstimo

38 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060. 39

Inventariados: Antônio Paim de Andrade e sua mulher Maria Antônia de Jesus / Descrição: 14 escravos, 12 não libertos, 02 libertos, 09 masculino, 05 feminino / Francisco, 34 anos, 400$; Constante, 22 anos, 600$; David, 18 anos, 500$; Antero, 7 anos, 200$; Justina, 23 anos, 500$; Feliciano (L), 60 anos, 200$; Inácio, 50 anos, 250$; Manoel, 40 anos, 400$; Manoel, 8 anos, 200$; Patrício (L), 5 anos, 150$; Cesária, 50 anos, 150$; Josefa, 19 anos, 500$; Inácia, 17 anos, 400$; Tomásia, 10 anos, 350$. [Grifo nosso]. Rio Grande do Sul. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. Departamento de Arquivo Público. Documentos da escravidão: inventários: o escravo deixado como

herança. Vol. I / Coordenação Bruno Stelmach Pessi – Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas

(CORAG), 2010. 4 v.

40 REIS, J.J e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia

das Letras, 1989, p.7. Aqui apontamos apenas que os escravos viviam em conflitos e negociações permanentes com seus senhores, e mesmo com os escravos de sua localidade.

(16)

poderia se tornar um instrumento para divulgação desse discurso, como podemos perceber no discurso do réo Joze, escravo de Innocente Maciel, que:

sabes por que estas prezo? Que sim

por que é?

Por que a quatro semanas indo elle réo ao Botiá buscar seu ponche Nazario lhe disse que convidace a Felisberto escravo de Joze Antonio Fernandes, e Antonio, do senhor Antonio de Maciel, e Miguel escravo de Francisco Maciel por mim réo mandou dizer ao filho Gregorio que não ficase

para que éra esse convite?

Que Nazario lhe disse que avia um levante de negros e no domingo que éra ontem de avião reunir, porem que elle Nazario avi a fazer

para que era esse levante dos negros?

Que éra para se juntar todos os escravos na costa da serra e pedirem sua liberdade e quando os brancos (não quizessem dar a liberdade então brigarem) digo os brancos viécem sobre elles,al, digo elles então brigarem athe morrerem todos41

Essas redes sociais foram se ampliando e agregando cada vez mais escravos, ou ao menos divulgando o plano ao maior número possível de escravos, mas nem tudo era tão fácil como pode parecer, o aumento do número de conhecedores do plano, também acabou por chegar ao conhecimento de escravos que não queriam participar do levante e que poderiam ser um dos responsáveis por delatar tal plano aos seus senhores, como podemos notar no discurso do preto Narciso, escravo de Manoel Ignacio Soares, que:

perguntado se foi convidado para faser levantamento com outros escravos?

Respondeo que terça-feira de tarde José escravo de João Teixeira lhe disse que Manoel Rafael, escravo de Innocente Maciel lhe tinha convidado para ir huma reunião em casa de Baptista do Bothia, [ilegível] elle respondente que fosse para algum fandango, José lhe disse que segundo tinha ouvido de Manoel Rafael

sismaram que querião faser alguma desorde: então elle respondente lhe aconcelhou que fosse ver o que héra e viesse dar parte para elle respondente contar a seu senhor: e declarou mais a José que se os outros fallassem no nome delle respondente lhe disse, que estava pronto porque do contrario os podião matar.[Grifo nosso]42

A amplitude do discurso insurgente atingiu níveis muito altos que acabaram por tornar seu sigilo algo praticamente impossível, começando a atingir, cada vez mais, escravos que não estavam dispostos a participar do levante, e ativando outras redes sociais, que eram contrárias a insurreição, como podemos notar no discurso do preto José, escravo de João Teixeira, que:

perguntado se teve algum convite para se reunir com outros escravos?

Respondeu que no domingo encontrou-se em casa de Baptista no Bothia com José escravo de Domingos Correia que lhe perguntou se Manoel Rafael não lhe tinha dito nada, como respondesse não, José nada lhe quis contar disendo só que havia ajuntamento na quarta-feira na casa de Baptista. Disse mais que no mesmo Domingo encontrou a Manoel Rafael no passo do chará e com elle voltou para a casa do Baptista ahi Manoel Rafael entrou para a [Atafonna] e pois-se a converçar com José e disse que tinha muito que andar que hia a casa de José Francisco e Antonio Mineiro: voltando elle respondente com José de Domingos Correia converçarão o que já disse: na terça feira contou a Narciso que andavão fasendo convites para ajuntamento na

41 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060. 42 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

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quarta feira, e que elle pençava ser desordem porque tinha ouvido Manoel Rafael diser na porteira do Baptista que na Cidade havia [alvorouto], e que devião quebrar a cabessa desses diabos; em vista disso elle respondente não queria ir a esse ajuntamento: mais Narciso lhe aconcelhou que fosse para ver o que hera e vir lhe contar.

Disse mais que suspeitou do ajuntamento por ser no meio da semana.[Grifo nosso]43

Suas relações se tornaram cada vez mais perigosas para o mantenimento do sigilo, devido a amplitude que obteve junto aos cativos do Distrito da Aldeia dos Anjos, as redes sociais que se cruzaram estavam cada vez mais amplas e mais ágeis, tanto para sua divulgação junto aos cativos, como também para sua delação junto aos senhores, sendo assim, quanto mais próximo de sua concretização, mais próximo de sua delação. Podemos perceber então que nos dois últimos relatos os escravos José e Narciso confirmam a versão um do outro, José, “o aconselhado”, e Narciso, “o aconselhador” que incumbiu José de participar da reunião para lhe contar o que houve e assim poder relatar o ocorrido a seu senhor.

Cabe ainda nos referirmos ao dia utilizado para a comunicação entre os insurgentes, quase sempre no “domingo”44, como podemos destacar nos discursos citados anteriormente, de pardo

Manoel, escravo de José Antonio de Jesus, preto Justo, escravo de Porfirio Antonio de Jesus, preto Luis, escravo de José Alves, preto Manoel e preto Joze, escravo de Innocente Maciel Netto e do preto José, escravo de João Teixeira, que sempre visitavam as fazendas vizinhas nestes momentos. É interessante apontar para a última frase de José, escravo de João Teixeira quando “Disse mais que suspeitou do ajuntamento por se no meio da semana”[Grifo nosso]45, o que nos leva a analisar que

as conversas durante o domingo eram normais e aceitas, por isso não suspeitas, enquanto as do

43

APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

44

É importante destacar que o planejamento desta insurreição escrava do Distrito de Nossa Senhora da Aldeia dos Anjos, tinha previsão, conforme o “preto Manoel Capitão”, quando lhe foi perguntado como era a desordem, respondeu “que Nazario lhe falou pelo tempo de Espirito Santo, disse que havias de levantar-se para vir a Aldeia tirar armamento seguirem para o passo grande, acampar e se reunisse gente pedirem a liberdade e se não desse a liberdade seguião para a cidade e se também lá não dessem fazião fogo” [Grifo nosso]. APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060. Considerando isso concordamos com Reis, ao escrever que “De acordo com esta a hora certa era aquela em que o senhor baixava a guarda, por exemplo nos períodos de festas, domingos e dias santos. Um número muito grande de conspirações e revoltas escravas ocorreu exatamente nesses períodos, não só no Brasil, mas mundo afora... Na festa escrava rolavam lances culturais bastante distantes de qualquer ideário "liberal", por mais amplo, frouxo e abstrato que se considere o termo. Na festa identidade e solidariedade coletivas eram

potencializadas através de rituais que afirmavam os valores e exorcizavam as dores do grupo. Ali se instaurava um clima extraordinário de liberdade e de reversão ritual do mundo que os escravos rebeldes desejaram perpetuar. As revoltas eram planejadas para os dias festivos, especialmente as noites festivas, não só porque seus líderes contavam com o relaxamento do controle senhorial, mas porque contavam com a reunião de escravos possuídos por um espírito de redenção.” REIS, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, n.28, ano1995-1996, p.31.

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meio da semana representavam uma ruptura com os limites instituídos aos escravos, e que desencadeavam as suspeitas quanto ao que estava sendo conversado nestes momentos não autorizados, ou pelo menos não tão comuns.

Acreditamos que estas brechas encontradas pelos insurgentes, no sistema escravista, deviam estar dentro do que Flávio Gomes denominou “campo negro” que seria uma

“complexa rede social. Uma rede que podia envolver em determinadas regiões escravistas brasileiras inúmeros movimentos sociais e práticas socioeconômicas em torno de interesses diversos. O campo negro, construído lentamente, acabou por se tornar palco de luta e solidariedade entre os diversos personagens que vivenciavam os mundos da escravidão.46

E foram as redes sociais deste chamado “campo negro” que os escravos insurgentes utilizaram-se para a divulgação de seus ideais, aproveitando-se das negociações diárias entre os cativos, sejam elas, econômicas, culturais ou sociais/familiares, ou todas juntas. Ao correr de todo o processo-crime é possível perceber as sutilezas, ou não, das relações escravas, de um simples favor, a uma cobrança de dívida, entre diversas outras ações, que foram sendo aproveitadas conforme a situação que lhes eram impostas pelo momento em questão. Mas continuemos com alguns outros casos presentes no processo e que elucidam um pouco mais as interações existentes entre estes cativos.

Seguindo os discursos dos escravos nos deparamos com vários outros escravos citados nos relatos do processo, escravos apontados como responsáveis pela divulgação do levante e de seus ideias, entre eles podemos destacar o dirscurso do preto Quinto, escravo de Antonio Paim de Andrade, que

perguntado se teve uma converça com Luis escravo de Francisco Paim sobre um ajuntamento que devia de aver?

Respondeu que na sexta feira passada disse a Luis em casa que Bento e Nazario lhe tinhão contado que havia um ajuntamento para os lados do Itacolomy e que quando fosse tempo havisarião

perguntado se não declararão o dia do ajuntamento e o fim?

Respondeu que não, que [...] disserão que havião de avisar os companheiros quando fosse tempo

perguntado se foi encarregado de convidar o Luis e a outros? Respondeu que não que só contou a Luis 47

Quinto foi avisado do levante, mas não sabia muito sobre ele, pelo menos é o que afirma48,

mas mesmo assim conta para Luis sobre o “ajuntamento”, o que é possível confirmar com o discurso do preto Luis, escravo de Francisco Paim que

46 GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX. In: REIS, João José e GOMES, Flávio dos

Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.278.

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perguntado se esteve segunda feira em casa de Maria Correia? Respondeu que esteve

perguntado qual a converça que teve com José e Narciso?

Respondeu que disse a estes que Quinto sexta feira, lhe tinha dito que havia um ajuntamento e para isso o convidou, e que elle disse que estava pronto [persoadido] que fosse para [fandango] mais Manoel escravo de Francisco Gomes, que também se achava, disse a elle respondente que se soubesse para que éra este ajuntamento não havia de diser que hia tão prontamente, a vista disso elle respondente perguntou para que éra esse ajuntamento, Quinto lhe disse que hera para faserem um levante que para o qual tinha sido convidado pelos escravos de Maciel, e que por isso também convidara a elle respondente para os acompanhar e convidar a outros ao que respondeu elle respondente que não hia nem convidava a outros

perguntado se não foi convidado por outros? Respondeu que não

perguntado por que não contou a seu senhor?

Respondeu que seu senhor não lhe dava confiança para contar nada49

A relação de Quinto50 com Luis, ativou também a relação de Luis com José e

Narciso, que já havia sido comentada anteriormente, no qual Narciso aconselhou a Luis que fosse a reunião para contar o que ouviu sobre a estruturação da tal insurreição, gerando assim outro plano que pretendia tornar o plano insurrecional público, assim delatando suas ramificações e seus participantes, o que ganhariam, não temos como afirmar, mas podemos apontar que talvez poderiam perder algumas de suas vantagens, de sua posição junto a seus senhores, ou mesmo de uma possível liberdade, caso aderissem a tal plano insurgente. Seguindo nosso percurso nos deparamos com o discurso do preto Adriano de Nação escravo de Joaquim Pereira Pinheiro, que no dia 30 de agosto de 1863, “apresentou-se voluntariamente ao Cappitão José Jacintho Ferreira que o trouxe a Juizo” e:

perguntado para que fim foi convidado por Nazario para convidar os escravos da Fasenda grande?

Respondeu que não foi convidado por Nazario que teve um avizo por Laurindo escravo de Joaquim digo Pedro Paim para que elle respondente fosse receber dinheiro de Nazario e que elle respondente tambem avisasse a gente da Fasenda grande para o mesmo fim mais que não avisou

perguntado se não foi receber esse dinheiro de Nazario?

Respondeu que foi mais não chegou athé a casa de Nazario por causa da chuva que o fez voltar do caminho e mesmo não fez grande empenho porque Nazario nada lhe devia51

48

Além do escravo Luis, os escravos Feliciano e José, também apontam terem sido convidados para a insurreição através de Quinto, o que leva a questionar o “pouco” que ele dizia saber sobre o levante.

49 APERS (Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul) – Sumário Júri, maço 35, processo 1060.

50 Acreditamos ser necessário apontar algumas questões referentes a Quinto, o réo foi julgado inocente, mas é possível

verificar que todos os réus tiveram a defesa de um mesmo curador pago pelos seus senhores, e mesmo os que foram considerados culpados obtiveram uma pena pequena, se considerarmos o crime do qual foram acusados e ao

compararmos com outras penas referentes a este mesmo tipo de crime, em outras localidades e períodos, a pena para os culpados foi de apenas 50 açoites. Mas voltemos ao escravo Quinto que teve solicitada sua soltura por fiança, por não ter sido considerado um dos “cabeças” da insurreição, soltura que foi permitida, ao lermos o livro “Os cativos e os homens de bem”, de Paulo Moreira, nos deparamos com os apontamentos, feitos pelo autor, dos escravos libertados com recursos do Governo Imperial e enviados para a Guerra do Paraguai, nestes escravos encontramos o preto Quinto que foi libertado 68, sendo que “O ressarcimento pago ao senhor do escravo Quinto – 1:000$000 réis – foi o menor registrado, oscilando os demais entre 1:400$000 e 1:500$000 réis, conforme era ordenado pela Corte” MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano, Porto Alegre 1858-1888. Porto Alegre: EST, 2003. 356 p. (p.230)

(20)

No dia 4 de setembro de 1863, novamente o preto Adriano, escravo de Joaquim Pinheiro, comparece, agora, ao Distrito de Polícia de Porto Alegre para responder as seguintes questões:

Perguntado se foi por mandado de Bento, Nazario e outros escravos de Francisco Maciel, avisar os escravos da Fasenda Grande para o levante que dizia haver na Aldea?

R. que haverá duas semanas encontrou com Nasario no Campo do Itaculumi que lhe disse que fosse a fazenda grande chamar Antonio angola para vir receber dinheiro, mas elle respondente disse a Nazario que fosse elle mesmo, e d'ahia separarão e nem hum dos dous foi aquella fasenda.

Achando se presente escravo Manoel Capitão e perguntado se era ou não verdade que Adriano tinha ido avisar os escravos da fasenda grande para o levante.

R. que Nazario lhe disse que tinha lá mandado Adriano, mas não sabe se é verdade.52

O “preto Adriano, escravo de Joaquim Pinheiro, representa ter sessenta annos, casado, affricano, roceiro, mora em casa de seo senhor na Aldea”, falou em seu primeiro discurso que não conversou com Nasário, ao que se contradiz no segundo discurso quando alega que falou com Nasário, e que tiveram uma conversa um pouco “rispida”, no qual Adriano se recusa a fazer um favor a Nasário. Os discursos vão se alterando, conforme o correr do processo, os escravos passam a se defender mais, o curador passa a responder no lugar dos réus, mas mesmo assim ainda pode-se apontar que as relações, presentes nos discursos do processo-crime, foram se ampliando, se fortalecendo e suas ideias se difundindo entre os escravos, tanto a seu favor, quanto aos contrários a seu propósito, mas podemos destacar que estas relações foram extremamente aproveitadas pelos cativos, que procuraram converger suas ligações e suas influências para a realização de tal intuito, conclusão obvia, mas a forma como se definiriam é que levariam a sua concretização, ou não, pensamos ser praticamente impossível se concretizarem, não por os escravos serem incapazes de realizá-las, mas sim, que o período em questão não possibilitaria a realização de um levante, primeiramente por entendermos que na sociedade brasileira, e no caso em questão na riograndese, estivesse muito mais palpável o acesso a manumissão escrava, assim como da própria concessão de favores que amenizavam a vida do dia-a-dia do escravo. Essa perspectiva nos leva a refletir que para alguma insurreição se realizar seria necessário uma maior adessão escrava, que seria praticamente impossível de se pensar no momento, pois as brechas escravas, assim como seus limites estavam muito ampliandos para conseguir agregar um grande número de escravos, visto que as possibilidades de adquirir vantagens junto ao sistema escravista vigente fossem muito amplas no momento, aumentando consideravelmente a possibilidade de delação de tal planejamento. Temos ainda que compreender que o fim do tráfico em 1850, acabou com a perspectiva de entrada de

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