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MEMÓRIAS, FESTAS E IDENTIDADES NEGRAS EM MINAS GERAIS LÍVIA NASCIMENTO MONTEIRO

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MEMÓRIAS, FESTAS E IDENTIDADES NEGRAS EM MINAS GERAIS

LÍVIA NASCIMENTO MONTEIRO

“Ô seu rei, dá licença pra rainha.

Ela é a senhora do Rosário, ela é nossa rainha”

É com essa música que os congadeiros e moçambiqueiros iniciam a celebração em louvor aos seus santos de devoção: Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora das Mercês e São Benedito. Pedindo licença, avisando no toque da caixa e da sanfona, dançando e cantando, mais de noventa homens, necessariamente negros, vestidos de roupa branca, fita colorida na cabeça e guizo no pé adentram o espaço público da pacata cidade há mais de oitenta anos.

As congadas são manifestações culturais bastante expressivas nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás e Paraná. Os grupos se apresentam em forma de cortejo real, incluem danças e cantos e são compostos predominantemente por homens e mulheres negros(as), que se reúnem para louvar seus santos de devoção. As congadas também são chamadas de ternos, guardas, cortes ou bandas e entre os mais tradicionais grupos estão o Moçambique, o Congo, a Marujada, o Candombe, os Caboclinhos, o Catopê e outros (BRASILEIRO, 2010). Existem as festividades do Reinado, estrutura mais ampla e complexa, que abrange as guardas, os ternos e contempla vários rituais de devoção e festa – e a congada, além de se referir à festa, também dá nome às guardas do Congo.

A festa de Nossa Senhora do Rosário organizada pela Sociedade de Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande aconteceu pela primeira vez no ano de 1928, ano da sua fundação. No terno da Congada e no terno de Moçambique, que são compostas pelos mesmos homens, necessariamente negros, que juntos compõem a Sociedade de Congada e Moçambique de Piedade do Rio Grande-MG, a rede de relações mantida entre os membros está nos laços de parentesco, compadrio e

Doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista CNPq. Assistente de

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solidariedade entre tais. Sob a chefia do capitão, do rei e da rainha Conga, todos os homens dançam e cantam em louvor aos seus santos de devoção.

Ao longo do século XX, os membros das três gerações da Congada e Moçambique de Piedade reinventaram seus ritmos, suas danças e celebrações e suas festas mesclaram práticas como procissões, cerimônia de coroação dos reis, rainhas e princesas, banquetes e várias representações dramáticas.

As três gerações (SIRINELLI, 2006: 135) de congadeiros e moçambiqueiros são, respectivamente: a primeira, que são os fundadores do grupo na década de 1920, todos descendentes de escravos, já falecidos; a segunda, filhos e sobrinhos da primeira geração, marcados pelo fenômeno da migração de Piedade para outras cidades e para o reencontro nas festas anuais e a terceira geração, atual e responsável pela transformação em festa turística e possível registro como patrimônio imaterial do estado de Minas Gerais.

Para Marina de Mello e Souza, o culto a Nossa Senhora do Rosário permitiu que os escravos e seus descendentes entrassem em contato direto com o saber dos ancestrais, num exemplo de compreensão eminentemente africana de uma simbologia católica (MELLO E SOUZA, 2002).

Vale destacar que as festas de Congadas no Brasil ligam-se amplamente às experiências sociais que permearam (e continuam permeando) o pós-abolição no Brasil, “territórios nos quais silêncios, esquecimentos e protestos constituíram estratégias possíveis e não-excludentes, utilizadas por ex-escravos e “pessoas de cor” para se tornarem cidadãos da República e da nação” (CUNHA, 2007). Os fundadores da Congada e Moçambique de Piedade são descendentes de famílias escravas, que com o fim da escravidão, recriaram seus laços e memórias na realização das festas.

A festa atualmente acontece no último fim de semana do mês de maio – anteriormente acontecia no mês de outubro. Pelas entrevistas realizadas no decorrer da festa do ano de 2011 com diversos membros da Congada e Moçambique e alguns moradores da cidade, a mudança do mês dos festejos foi motivada por conta das chuvas: o mês de outubro é chuvoso na região e a Congada e Moçambique não conseguia dançar nas ruas sem calçamento, assim, mudaram para o mês de maio, que caracteriza-se por seco e frio na região, além de ser o mês dedicado ao culto de Maria na religião católica.

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“Senhor morto para dentro, senhora do Rosário para fora”.1

Foi com essa expressão que o jovem dançador da Congada e Moçambique, Romário Tomé me explicou o início dos preparativos para a festa de Nossa Senhora do Rosário em Piedade. A expressão “Senhor morto para dentro” refere-se ao dia da morte de Cristo, sexta-feira santa para os católicos e data o início dos preparativos para a festa do Rosário, momento de colocar a “senhora do Rosário para fora”. O período compreendido entre os meses de maio à outubro significa que o Rosário está aberto, ou seja, é o momento que acontece os festejos do Reinado em todo o estado de Minas Gerais.

Em Piedade, após a semana santa, iniciam-se os preparativos para a festa; nos próximos meses, muitos congadeiros e seus familiares se dividem nas funções para a montagem da mesma, como a busca por arrecadar fundos para a compra dos materiais necessários, a preparação das vestimentas, chapéus, toalhas, guizos e outros adereços, os ensaios musicais, as rezas e novenas realizadas entre outros.

Na semana que antecede a festa, os preparativos se intensificam. Com a chegada das barracas – e dos barraqueiros – que vendem diferentes produtos, como roupas, sapatos, utensílios domésticos e comidas, a festa está quase pronta para começar. A demarcação dos locais das barracas é um ponto conflitante entre os festeiros – que são as pessoas responsáveis pela organização da festa - os agentes da prefeitura e os membros da Congada e Moçambique. O principal motivo do conflito é a distribuição da renda das barracas, pois cada uma paga pelo alvará na prefeitura e essa quantia é dividida entre a Congada e a paróquia.

Existem no decorrer dos mais de oitenta anos de festa, negociações para a ocupação do espaço público – como a Igreja e a praça. No passado, a festa permitia a ocupação desse espaço normalmente utilizado por brancos, atualmente, a festa é ocupada por turistas, máquinas fotográficas e um cortejo em torno dos ternos. A população local, atualmente, assiste a festa, acompanha o cortejo mas não ajuda na sua organização, tudo fica à cargo da Sociedade congadeira.

Foi nas últimas décadas do século XX que a festa consolidou-se no calendário festivo da Igreja Católica e turístico do município, diferente da primeira metade do

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século, que pelos depoimentos colhidos entre os moradores tais não eram tão “prestigiadas” como as atuais.2 No passado, a festa estava restrita aos congadeiros e seus familiares. Esse histórico de segregação deixou marcas profundas nas formas como as festas se apropriaram do espaço e da cidade e nos diversos formatos, memórias e significados tecidos em torno da festa.

No período em que acontece os festejos, ocorre uma subversão da hierarquia social vigente, com a elevação simbólica dos congadeiros e moçambiqueiros que, no três dias de festa, passam a ocupar uma posição superior. “A congada expressa uma

forma de resistência baseada antes, na negociação pela busca de reconhecimento social, do que no confronto direto” (COSTA, 2006:13).

No primeiro dia da festa, sexta-feira, a procissão em louvor à São Benedito acontece ao entardecer, mas sem a participação da Congada e Moçambique. O terno toma as ruas após a missa, realizada à noite e se apresenta em volta da fogueira. Nesse momento, o grupo veste a camisa produzida para ser vendida na festa e as músicas cantadas intercalam trechos da Congada e outras do Moçambique. Nas próximas madrugadas, com média de temperatura que chega a 7°, a fogueira será montada por muitos congadeiros e moçambiqueiros e antes de 6 horas da manhã, uma nova estará reerguida para os rituais noturnos.

No sábado, pela manhã, o terno de Congada colore as ruas da cidade. O som da sanfona e os passos de leveza e alegria contagia a população que acompanha o cortejo que sai da casa do casal sr. Waldemar (fundador) e tia Nica e vai para a matriz de Nossa Senhora da Piedade participar da missa afro. Após a missa, o grupo dirige-se para o almoço, realizado na escola municipal e pago atualmente por um admirador da festa.

Em se tratando dos banquetes das “festas de maio”, Dona Efigênia Nascimento tem muita experiência. Esteve à frente do grupo de mulheres cozinheiras da festa por 40 anos e na sua narrativa, conta que “tirou esmola” durante todo esse tempo. As esmolas são os donativos doados para a festa, por toda a comunidade. Dona Efigênia se recorda

2 As entrevistas foram realizadas com dois antigos moradores da cidade, brancos e que não pertencem à Congada. Dizem não lembrar-se das antigas festas pelo fato de ser o dia de folga dos trabalhadores da fazenda, então, eles trabalhavam no lugar dos negros. Entrevista com o Sr. José Edwiges Araújo e o Sr. Orlando Alves do Nascimento, realizadas em maio de 2006.

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de bater de porta em porta atrás de qualquer doação: “mantimentos, dinheiro, qualquer coisa”.3

Após o almoço, é o momento da chamada de reis, ou seja, quando a Congada busca os reis e rainhas que fizeram promessa à Nossa Senhora das Mercês e os conduzem para dentro da Igreja do Rosário. A congada abre o caminho para a corte passar. Rei e rainha congo estão presentes nesse ritual que acontece ao longo de toda a tarde; ao som da sanfona e do tambor, os reis de promessa serão conduzidos para a igreja para pagarem suas promessas.

A corte, composta pelo rei e rainha congos e príncipes e princesas são escolhidos entre os membros da Sociedade. Em Piedade, esses cargos não são vitalícios. Pela hierarquia dos ternos o posto mais alto é ocupado pelo capitão, mas quem governa é a rainha.

A “chamada de reis” são as promessas pagas em dinheiro pelos príncipes e princesas de promessas, que a cada ano se renova entre os moradores locais. Desse modo, por motivo de saúde ou por qualquer motivo particular, qualquer morador pode fazer uma promessa para Nossa Senhora e essa será “paga” no dia da sua festa. O terno da Congada busca cada princesa e príncipe de promessa em sua respectiva casa e leva-os até a Igreja do Rleva-osário, para que lá aconteça o ritual do “pagamento da promessa”. O congadeiro Geraldo Eustáquio Teodoro, conhecido como Geraldo Tidu, narrou no momento da chamada de reis de 2012:

Geraldo: O pessoal veste de rei e rainha de promessa e no envelope doa uma espécie, um donativo para a Congada. Quanto mais tiver no envelope, mais notas musicais ganha. Um rei de promessa, R$100, ganhou três ou quatro músicas, agora se deu R$10, aí é panpan, porque é assim, quanto mais se dá, mais ganha música. E agora nós vamos levar o pessoal em casa, o pessoal de promessa e canta a música: “Senhor rei, ponha sua aimirim”. Esse dinheiro, aimirim é dinheiro, fica com o capitão. Tem três capitães, todos os três tem que ganhar.4

3 Entrevista concedida por Efigênia do Nascimento Silva em 03 de junho de 2013. 4 Entrevista concedida por Geraldo Eustáquio Teodoro em 01 de junho de 2013.

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Ao entardecer, após levar todos os reis, rainha, príncipes e princesas de volta para suas casas, o terno de congada participa da procissão em louvor à Nossa Senhora das Mercês e São Benedito. Após a procissão acontece a missa e no fim dessa, a coroação de Nossa Senhora das Mercês pelo terno de congada dentro da igreja matriz. Após esse ritual, os mesmos homens dançadores da congada voltam para a rua, porém, agora é a vez do Moçambique louvar Nossa Senhora do Rosário.

Ao som do tambor, com passos firmes e guerreiros os moçambiqueiros dançam e cantam ao redor da fogueira, no largo do Rosário. É o momento mais esperado da festa para a população que assiste às performances coreográficas do grupo e escutam os cantos puxados pelos capitães. Daquele momento até o fim da festa – domingo à noite, é o moçambique que comandará a cidade. Os mesmos rituais realizados pela congada no dia anterior são executados pelo Moçambique, porém, com a diferença das vestimentas, das músicas, dos passos e da fé.

Para Maurice Halbawachs, a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva e as lembranças são constituídas no espaço relacional grupal que podem ser também reconstruídas ou simuladas de acordo com a percepção de outros indivíduos e da representação da memória histórica, mas nunca a memória individual está isolada (HALBAWACHS, 2004). As memórias de todos os congadeiros e moçambiqueiros entrevistados foram construídas e reconstruídas ao longo do século XX e nunca existiram isoladas, mas sempre pertenceram a uma memória que iniciou-se no processo pós-emancipacionista e passou por inúmeras transformações, porém, essas memórias “prosseguiram seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível.”(POLLACK, 1989: 10).

Pollack considera que a memória é uma operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, que integra tentativas conscientes ou não de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividade: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, famílias etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos, para definir seu lugar, sua complementaridade. Pollack cita Henry Rousso e afirma que ao invés de usar a “memória coletiva” é adequado falar em memória enquadrada e em trabalho de enquadramento da memória. (POLLACK, 1989).

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A História Oral permite a formulação das perguntas, porém, ela não oferece as respostas e o testemunho oral representa o núcleo da investigação, nunca sua parte acessória (FERREIRA, 2011). Desse modo, na História Oral o objeto de estudo do historiador é recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes e a instância da memória passa, necessariamente, a nortear as reflexões históricas, acarretando em desdobramentos teóricos e metodológicos.

Em quase todas as narrativas contadas pelos congadeiros e moçambiqueiros, o tema sobre a identidade negra e o racismo aparece, de alguma forma. Dona Efigênia, destaca o quanto que, apesar do racismo e toda riqueza da cor branca, Nossa Senhora do Rosário escolheu os negros:

Efigênia: (...) os brancos e ricos tinham um pouco de racismo, tirou eles de lá com todo racismo e toda riqueza mesmo com a cor branca, eles não teve capacidade de tirar N. S. do Rosário da gruta, os negros, os pretos, bem pobres, pezinho bem rachado, foi lá e botou ela na cacunda e cantando ‘vamos simbora, sua casa é sua morada’ trouxe e botou ela ali e ela nunca mais saiu e tá até hoje.5

O ativismo negro dos congadeiros e moçambiqueiros está presente em suas narrativas, seus rituais, passos, danças e músicas, uma vez que reivindicam, por meio de suas performances, espaços de cidadania e lutam contra o racismo.

Antes de encerrar as entrevistas realizadas no ano de 2014, fiz as perguntas para todos os entrevistados sobre as discriminações raciais sofridas pela Congada e Moçambique – se elas existiam e, em caso positivo, como o grupo lidava com esse problema. Para o presidente Élcio:

Élcio: Sobre a consciência negra hoje melhorou muito, graças a Deus. As pessoas só tem elogio, eles já falam “Olha que bonito, gente, uma festa da raça negra bem organizada.” A gente melhorou muito, não tem mais discriminação não. Já tá assim quase de igual pra igual, mas ainda vai chegar lá ainda. Se Deus quiser. Vai...6

5 Entrevista concedida por Efigênia do Nascimento Silva em 03 de junho de 2013. 6 Entrevista concedida por Élcio Donizete de Oliveira em 2 de junho de 2014.

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Para a Francisca Braga, conhecida como Chiquinha, ex-presidente da Sociedade, o racismo:

Francisca: Aqui dentro de Piedade, Lívia, eu não sinto isso não. O povo adora. Já fica aqui mês de maio. Eles dão mais notícias da gente que tá trabalhando com a festa do que a gente. “Ah diz que a coroação vai ser na Igreja.” “Como que a coroação vai ser na Igreja?” “Você soube lá de fora, né?” (...) eu falo assim: “Crianças vocês tem que ficar felizes, porque é festa de negros, negros. Tem negro bonito, né?7

Diferente das narrativas de Élcio e Chiquinha, o jovem Luís Cláudio, neto do fundador sr. Waldemar e tia Nica, afirma que:

Luiz Cláudio: Então, desde quando eu comecei a acompanhar a congada, eu sempre escutei essa frase aqui “A festa de maio é a festa dos pretos e a festa da padroeira é a festa dos brancos”. Eu sempre via esse conflito. Achava muito estranho, porque por mais que eu viesse de cidade grande e presencio realmente o racismo lá no Rio (...) o lado negro e o lado branco de estarem fazendo sempre uma festa melhor do que a outra, né? Por um lado isso pode ser até benéfico, na parte que se diz vamos melhorar, mas ela acaba sendo na verdade, no final mesmo uma coisa triste, né? Todo mundo sabe que a Congada é uma homenagem do povo negro que no início só dançavam negros, mas também todo mundo sabe que brasileiro, brasileiro é uma miscigenação de raças. Aqui em Piedade já teve vezes de anos do negro não podia entrar nos bailes, tinha que ficar do lado de fora. Isso é puro preconceito.8

Por fim, as irmãs Maria Emerenciana, Adalgiza e Ana, filhas do fundador e as mais idosas entrevistadas disseram:

Lívia: E vocês acham que a congada já sofreu algum tipo de preconceito? Ana: Muitos, muitos.

Maria Emerenciana: Olha eu... eu não sei.

7 Entrevista concedida por Francisca de Assis Braga em 02 de junho de 2014. 8 Entrevista concedida por Luiz Claudio de Jesus Santos em 02 de junho de 2014.

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Ana: Muitos.

Adalgiza: Ah, mas hoje é bem melhor sim... Ana: Não...

Maria Emerenciana: Olha eu vou explicar direitinho. Eu não sei, porque ninguém nunca, nunca falou nada sobre isso, né? Antigamente quando chegava na festa assim do Rosário, muitos os fazendeiros, o pessoal, não vinha. Não dava assim é não fazia muita conta, entendeu? E então, eles faziam mais conta pra festa de Nossa Senhora da Piedade, que é dia, que é dia 15.

Lourdes: Setembro.

Maria Emerenciana: Então, acho que o preconceito deve ser isso, não sei. Só pode ser isso, não sei.

Lívia: E vocês (Adalgisa e Ana)? O que vocês acham?

Adalgiza: Eu acho muito boa hoje. Melhor do que era. Muito, muito, muito. As pessoas, né? Hoje tá bem melhor.

Maria Emerenciana: O pessoal de hoje são mais unidos, né? Adalgiza: Muito unido.

Maria Emerenciana: Eles são mais unido com a gente.

Adalgiza: A gente não tinha aquela amizade, aquela liberdade... Que tem os pretos com os brancos, tem que falar isso.

Ana: Os negros com os brancos, sim. Então isso que eu estou falando, o preconceito existia.

Maria Emerenciana: Existia e ainda existe muito. Adalgiza: Agora tá muito bom.

Maria Emerenciana: Ainda existe também muito. Sobre isso existe. Mas melhora pouquinha coisa. Eu acho, porque se faz uma festa assim, por exemplo, se tem uma festa entre o negro e o branco, então o negro faz o que pode, tá vendo que o branco foi lá e não fez nem a metade, quando chega na hora de ganhar, eles dá preferência pro branco, o negro fica do lado (...). Sobre esse negócio de preconceito, então eu estou falando preconceito existe. Muito assim devagarinho, mas existe sim, debaixo dos panos e muito.9

Três diferentes gerações estão presentes nessas narrativas. Élcio e Chiquinha têm a mesma faixa etária e pertencem à mesma geração congadeira. Apesar de afirmarem que não há discriminações raciais, os dois ponderam que “uma festa da raça negra bem

9 Entrevista concedida por Maria Emerenciana Silva, Adalgisa Lima e Lourdes Lima Neves dos Santos em 28 de maio de 2012.

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organizada. (...) Já tá assim quase de igual pra igual” e “Tem negro bonito, né?”. Luiz

Claudio é o mais jovem congadeiro entrevistado e as irmãs são as mais velhas, ambos consideram que o racismo e o preconceito existem, dentro e fora da festa.

Existe um hiato na percepção e na verbalização do racismo pelos congadeiros e moçambiqueiros de Piedade. Luiz Cláudio, da geração atual e as irmãs Emerenciana, Adalgiza e Lourdes, da primeira geração verbalizam de forma precisa as discriminações raciais sofridas. Ambos fazem parte das duas diferentes gerações congadeiras e moçambiqueiras, que de maneiras e estratégias distintas, afirmam a identidade negra no tempo presente.

As irmãs conviveram, ao longo do século XX, com todos os estigmas e preconceitos da herança escravista no país, incluindo as péssimas condições de trabalho e a falta de acesso a direitos. Luiz Cláudio acompanha as conquistas importantes do movimento negro, principalmente na primeira década do século XX, como as ações afirmativas no ensino e no funcionalismo público, sem desconsiderar o racismo ainda existente na sociedade. Para a geração mais jovem congadeira, a questão da cor é amplamente afirmada no grupo: ser negro e participar da Congada e Moçambique são pontos fortes nas falas dos membros e nos artigos vendidos na festa, assim como nas lembranças entregues na porta da Igreja, após a realização da missa. 10

Élcio e Chiquinha, da geração intermediária, tem a suposta postura “não racista”, contudo, eles mobilizam e tem suas estratégias para a afirmação da identidade negra congadeira e moçambiqueira, mesmo que de forma não verbalizada. A identidade negra, nas diferentes gerações, foi mobilizada e, principalmente, verbalizada de maneira distinta.

É assim que cada geração de congadeiros e moçambiqueiros recriam suas memórias e re-inventam a história, de acordo com as identidades que pretendem relacionar ao grupo no tempo presente. Tais discursos, também cantados e apresentados

10 Na lembrança de 2011, o texto escrito em papel fotográfico: “Hoje somos raízes, buscando nosso valor. Negro fazendo história, negro também é amor.”. Na camiseta vendida em 2006, os dizeres: “Fomos, somos e seremos sempre guerreiros. 80 anos de tradição, amor e raça”. Na camiseta vendida em 2008, um trecho de uma música: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na cidade onde eu nasci e poder me orgulhar e ter a consciência que o negro tem seu lugar”. O dinheiro arrecadado com a venda das camisas é destinado à Sociedade.

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na performance de suas danças, matizam as questões relacionadas às representações da cor construídas ao longo do século XX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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