A
ILUSTRAÇÃO DESVENDANDO A PRÁXIS EMC
HAPEUZINHOA
MARELOELEUSA JENDIROBA GUIMARÃES
R
ESUMO:
O presente trabalho tem o objetivo de apresentar a ilustração
como detentora de informações importantes sobre o momento social
em que foram produzidas obras literárias, enfocando a literatura
in-fanto-juvenil.
Analisando-se uma mesma obra, comparando-se edições e
i-lustrações de épocas diferentes, pode-se perceber que a ilustração
revela dados referentes ao momento de sua produção. Cada obra
acompanha a prática social de sua época, de sua cultura, de sua
orga-nização social, principalmente revelando o momento em que foi
pro-duzido o texto, seja ele visual ou verbal, o que faz da literatura um
documento histórico. Serão analisadas nesse trabalho duas edições da
história “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque de Hollanda,
edições essas que possuem o mesmo texto verbal, porém recheadas
de ilustrações que revelam o momento em que foram desenvolvidas
– uma em 1978, com ilustrações de Donatella Berlendis e a segunda,
de 1997, com lustrações de Ziraldo – revelando a prática social como
elemento de grande importância na literatura, influenciando o ato de
criação de textos, sejam eles verbais ou visuais.
Ver-se-á a liberdade de expressão clara e a carnavalização na
segunda obra, e o jogo de “falar sem dizer” na primeira obra, jogo
esse presente nos anos de ditadura militar no Brasil, ficando clara a
práxis nessas duas obras.
A Literatura Infantil vem sendo amplamente estudada e tem
ocupado um espaço que é relativamente recente no meio literário,
pois era tratada diferentemente do que é hoje, sendo muitas vezes
“confundida” com outro tipo de literatura ou feita para o
entendimen-to dos adulentendimen-tos, não das crianças.
Com a evolução dos tempos e da própria educação,
percebeu-se a necessidade de um cuidado maior com a literatura destinada a
jovens e crianças, mesmo porque eles passaram a ter uma
importân-cia vital na nossa sociedade, com o que diz respeito à sua formação,
sua personalidade e a todas as exigências para que uma criança ou
jovem se torne um adulto bem formado, bem instruído e,
principal-mente, com capacidade de enxergar o mundo que o cerca e mudá-lo,
se necessário.
Nesse universo da Literatura Infantil, encontram-se tipos
vari-ados de textos, mais antigos, mais modernos, mas, acima de tudo,
tratando o mundo infantil como ele realmente é, e fazendo com que a
criança ou o jovem tornem-se leitores desse seu mundo.
Temos então os contos de fadas e os contos maravilhosos, que
atravessaram o tempo, trazendo sempre sua mensagem indiscutível,
seu mundo particular, que leva a criança a uma introspecção que a
faça sentir-se no mundo das personagens tão comuns a ela e, assim,
tentar entender o que se passa à sua volta.
Com os contos, temos também as ilustrações que os
acompa-nham, ora apenas servindo como pano de fundo, ora contando a
his-tória por si só, solta com relação ao texto escrito, ora fazendo o papel
principal, sendo o pano de fundo o texto verbal.
Serão analisadas nesse trabalho duas edições da história
possuem o mesmo texto verbal, porém recheadas com ilustrações que
revelam o momento em que foram desenvolvidas, revelando a prática
social como elemento de grande importância na literatura e fazendo
dela um documento histórico, seja ela infantil ou para adultos,
influ-enciando no ato de criação de textos, sejam eles verbais ou visuais.
É extremamente interessante tratar também da produção de
textos não literários, uma vez que eles também contam uma história,
trazem em si influências sociais, políticas e culturais, além de
faze-rem parte de um texto ou sefaze-rem o próprio texto.
A produção artística é social, ou seja, reflete o momento, a
cultura, aspectos sociais e tudo isso constitui no autor fonte para sua
produção. Ao se desenvolverem estudos comparados, há que se
con-siderar a obra em seu aspecto social, tanto com relação à criação,
quanto a seu alcance, uma vez que o leitor também evolui, assim
como a sociedade e a própria humanidade, onde se vê inserido.
Por-tando, fica clara a dificuldade de um trabalho comparativo sem se
levar em conta aspectos sociais, históricos, sociológicos, etc.
Conforme Escarpit,
Social, o fato literário o é em primeiro lugar e principalmente em razão de seu ponto de chegada, a leitura, ou, para empregar uma linguagem mais geral, o consumo. Ele é também social, mas num sentido mais estreito e mais técnico, a nível da distribuição e da circulação das obras. Enfim, é social, mas de um modo infinita-mente delicado e discreto, a nível da produção das obras, domí-nio por definição secreto e individual.
(ESCARPIT, 1959)
É com base nessas considerações que se podem ver as obras
li-terárias como reveladoras de aspectos relevantes que necessitam
fazer parte de uma análise, seja ela qual for, uma vez que revelam
dados importantes ao leitor ou ao estudioso, que levarão ao
entendi-mento global da obra.
A partir desse entendimento, a comparação vai completar o
trabalho através do levantamento de analogias e/ou semelhanças
entre obras e autores, fazendo-se mostrar como influenciador,
influ-enciado, original ou não, e, acima de tudo, conhecer obras e autores
menos conhecidos, que apresentam seu valor tanto como grandes
nomes da literatura, porém colocados em um patamar menor, talvez
pelo excesso de brilho dos autores mais conhecidos ou estudados.
Portanto, a literatura comparada serve de apoio para vários
ti-pos de trabalhos e nos sugere atenção a vários pontos diferentes
den-tro da vida de um autor ou denden-tro de sua obra e, por isso, não deve
ter seu campo de trabalho limitado de forma estática, como
unica-mente francesa, ou norte-americana, ou outra escola, mas aproveitar
o que cada uma pode colaborar no ato da comparação.
Tratando-se de ilustrações, aqui se tem a definição do que trata
esse trabalho: Ferreira, em seu Novo dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa
:
Imagem ou figura de qualquer natureza com que se orna ou
elucida o texto de livros, folhetos e periódicos.
(FERREI-RA, 1983, p. 917)
Na história da literatura infantil, a ilustração pode ter o papel
de simples pano de fundo para o texto verbal ou fazer deste seu pano
de fundo, aparecendo como componente principal, em histórias que
crianças “lêem” através dos desenhos, enfim, compondo o
sincretis-mo do texto.
Ao trabalhar a obra Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque
de Hollanda, comparou-se o trabalho de ilustração de duas edições
diferentes, a primeira ilustrada por Donatella Berlendis , em 1978, e
outra ilustrada por Ziraldo, em 1997. As duas obras apresentam o
mesmo texto verbal e uma diferenciação quanto ao estilo de
apresen-tação das imagens, justificada pela época em que foram feitas, uma
sob o regime militar e outra, com liberdade de criação e de
expres-são.
Pode-se explicar na segunda obra os efeitos de carnavalização,
no momento em que, depois de um processo de censura e de um
militarismo evasivo e destruidor da criação artística no sentido de
tornar a criação subversiva, o artista se vê livre para criar, dar asas à
imaginação e passa a fazer com que o texto visual ultrapasse a
barrei-ra do texto verbal, invertendo a sintaxe da narbarrei-rativa. Há nessa obbarrei-ra
uma inversão do que já havia, se compararmos com a primeira obra,
principalmente no que se trata da figura do lobo, de sua
descaracteri-zação como malvado, amedrontador, assustador e sua relação com as
crianças, passando de personagem aterrorizante a um brinquedo
qualquer do qual a criança já está cansada.
Os trabalhos de Bakhtin sobre a carnavalização, o dialogismo, o romance polifônico e a transformação dos gêneros literários as-sentam-se numa visão ampla do dialogismo que abrange toda a linguagem e não apenas a criação literária. (...)
Quanto à visão carnavalesca do mundo, apresenta-a como uma percepção vasta e popular que liberta do medo e aproxima o mundo do homem e o homem do homem; opõe-se ao sério, ao monológico, ao oficial gerado pelo medo, à discriminação da so-ciedade em classes, ao dogmático, hostil às mudanças e com ten-dência à absolutização do estado de existência das coisas e do sis-tema social (BAKTIN, 1970, p. 214)
. (FÁVERO, 2003)
Enquanto no primeiro trabalho o texto verbal - também fruto
de um processo de criação que não pode revelar totalmente o
senti-mento do artista, mas que faz com que ele desenvolva uma maneira
de “falar sem dizer” – é que conta a história e a ilustração apenas o
acompanha; no segundo trabalho a ilustração conta sozinha a
histó-ria, podendo ser entendida pela criança que ainda não sabe ler,
cha-mando a atenção pelas cores e formas.
Portanto, na segunda obra, ativa-se a capacidade de
entendi-mento do texto por uma criança que ainda não lê as palavras, mas
que já é capaz de ler o mundo que a cerca.
Conforme Palo, sobre a criança:
Se lhe falta a completa capacidade abstrativa que a capacite para as complexas redes analítico-conceituais, sobra-lhe espaço para a vasta mente instintiva, pré-lógica, inclusiva, integral e instantâ-nea que só opera por semelhanças, correspondências entre for-mas, descobrindo vínculos de similitude entre elementos que a lógica racional condicionou a separar e a excluir. Correspondên-cias, sinestesias. Todos os sentidos incluídos.(...)
Por isso que toda arte, literária ou não, é desde sempre concreta. Exige um pensamento que vá às raízes da realidade e seja,
tam-bém ele, concreto. Nesse momento instantâneo de inclusão e de síntese atinge-se, por analogia, o conceito. Conceito figura, imagem, numa relação direta com a mente que o opera.
Tal como o conceito ancestral de medo associado à imagem do lobo, que se vê desestruturado por uma simples inversão da pró-pria palavra: lobo-bolo, em Chapeuzinho Amarelo, de Chico Bu-arque.
(PALO, 1985)
Portanto, se o texto verbal da obra analisada não pode ser
en-tendida em sua estrutura profunda pela criança, é através da
ilustra-ção de Ziraldo que ela passa a entendê-lo, conforme suas
possibili-dades associativas, o que torna o texto mais acessível e mais próximo
da realidade infantil.
A partir do mesmo texto verbal, escrito em 1978, temos, em
edições diferentes do livro Chapeuzinho Amarelo, ilustrações bem
distintas nos aspectos visuais, significativos, no que diz respeito a cor
e liberdade de expressão.
Segue-se o texto verbal para posterior análise.
“Era a Chapeuzinho Amarelo. / Amarela de medo. / Tinha medo de tudo, / aquelaChapeuzinho. / Já não ria./Em festa, não apareci-a. / Não subia escada/nem desciapareci-a. / Não estava resfriada/mas tos-sia. / Ouvia conto de fada/e estremecia. / Não brincava mais de nada, / nem de amarelinha. / Tinha medo de trovão./ Minhoca, pra ela, era cobra. / E nunca apanhava sol / porque tinha medo da sombra. / Não ia pra fora pra não se sujar. / Não tomava sopa pra não ensopar./Não tomava banho pra não descolar. / Não falava nada pra não engasar. / Não ficava em pé com medo de cair. / En-tão vivia parada, / deitada, mas sem dormir, / com medo de pesa-delo. / Era a Chapeuzino Amarelo. / E de todos os medos que ti-nha / o medo mais que medonho / era o medo do tal do LOBO. / Um LOBO que nunca se via, / que morava lá pra longe, / do ou-tro lado da montanha,/num buraco da Alemanha, / cheio de teia de aranha, / numa terra tão estranha,/que vai ver que o tal do
LOBO / nem existia. / Mesmo assim a Chapeuzinho / tinha cada vez mais medo / do medo do medo do medo / de um dia encon-trar um LOBO. / Um LOBO que não existia. / E Chapeuzinho Amarelo, / de tanto pensar no LOBO,/de tanto sonhar com LO-BO, / de tanto esperar o LOLO-BO, um dia topou com ele/ que era assim: / carão de LOBO, / olhão de LOBO, / jeitão de LOBO / e principalmente um bocão / tão grande que era capaz / de comer duas avós, / um caçador, rei, princesa, / sete panelas de arroz / e um chaéu de sobremesa. / Mas o engraçado é que, / assim que encontrou o LOBO, / a Chapeuzinho Amarelo / foi perdendo a-quele medo, / o medo do medo do medo / de um dia encontrar um LOBO./ Foi passando aquele medo / do medo que tinha do LO-BO./ Foi ficando só com um pouco / de medo daquele lobo. / De-pois acabou o medo / E ela ficou só com o lobo. / O lobo ficou chateado / de ver aquela menina / olhando pra cara dele, / só que sem o medo dele. / Ficou mesmo envergonhado, / triste, murcho e branco-azedo, / porque um lobo, tirado o medo, / é um arreme-do de lobo ./ É feito um lobo sem pêlo. / Lobo pelaarreme-do. / O lobo ficou chateado./ Ele gritou: sou um LOBO! / Mas a Chapeuzinho, nada. / E ele gritou: sou um LOBO! / Chapeuzinho deu risada./ E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!! / Chapeuzinho, já meio enjo-ada, / com vontade de brincar de outra coisa. / Ele então gritou bem forte / aquele seu nome de LOBO / umas vinte e cinco ve-zes, / que era pro medo ir voltando / e a menina saber / com quem não estava falando. / BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO- / BO- LO-LO-BO-LO-BO-LO- / LO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO- BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO... / Aí Chapeuzinho encheu e disse: / “Pára assim! Agora! Já! / Do jeito que você tá!” / E o lobo para-do assim / para-do jeito que o lobo estava / já não era mais um LO-BO. / Era um BO-LO. / Um bolo de lobo fofo, / tremendo que nem pudim, / com medo da Chapeuzim. / Com medo de ser co-mido / com vela e tudo, interim. / Chapeuzinho não comeu / a-quele bolo de lobo, / porque sempre preferiu / de chocolate. / Ali-ás, ela agora come de tudo, / menos sola de sapato. / Não tem mais medo de chuva / nem foge de carrapato. / Cai, levanta, se machuca, / vai à praia, entra no mato, / trepa em árvore, rouba fruta, / depois joga amarelinha / com o primo da vizinha / com a filha do jornaleiro, / com a sobrinha da madrinha / e o neto do sa-pateiro. / Mesmo quando está sozinha, / inventa uma brincadeira. / E transforma em companheiro / cada medo que ela tinha: / o
raio virou orrái, / barata é tabará, / a bruxa virou xabru / e o diabo é bodiá. / FIM / Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Ama-relo: o Gãodra, a Jacoru, o Barão-Tu, o Pão Bichôpa e todos os trosmons.”