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GRAMATIZAÇÃO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NO SÉCULO XXI: UMA LÍNGUA TRANS (NACIONAL)

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Anais do II Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 2, p. 169-178, 2013.

GRAMATIZAÇÃO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NO SÉCULO XXI:

UMA LÍNGUA TRANS (NACIONAL)

Vanessa Lacerda da Silva Rangel Doutorado/UFF Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vanise Medeiros

Considerações iniciais:

O cenário geopolítico mundial contemporâneo, em que se observam, ao longo do século XX, o estabelecimento de alianças entre os países e a criação de blocos econômicos, formou espaços geopolíticos transnacionais. Para a inserção do Brasil nessa conjuntura, tratados de integração política, econômica, cultural e educativa foram assinados pelo Estado. Nesse contexto globalizado, dentre as muitas preocupações que se colocam, dá-se uma atenção especial à valorização e promoção da língua, numa tentativa de se garantirem melhorias econômicas e sociais por meio do prestígio e do poder da língua nacional (MACHADO, 2010). Isso indicaria, portanto, que, além do Estado, o Mercado tem se colocado como uma forma de poder da sociedade contemporânea, interpelando-nos ideologicamente (PAYER, 2005): aos que obedecem às leis do Mercado, é garantido o sucesso, diretamente relacionado à visibilidade (DINIZ, 2010), o que justificaria as ações do governo para difundir o português para além das fronteiras. Dentro dessa perspectiva, muitas foram as ações do Estado brasileiro visando à internacionalização da língua: a criação do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (CELPE-Bras), do primeiro curso de Licenciatura em Português do Brasil como Segunda Língua, na Universidade de Brasília (UnB), da Sociedade Internacional Português Língua Estrangeira (SIPLE) e do Ministério das Relações Exteriores (MRE) (DINIZ, 2010), para citarmos apenas alguns exemplos. Tomando como base essas mudanças, Zoppi-Fontana (2009) destaca que vivemos um novo momento na história da constituição do saber metalinguístico no Brasil, em que o português é apresentado como uma língua transnacional.

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170 Nesse contexto, portanto, torna-se relevante refletir sobre a produção do saber

metalinguístico1 brasileiro no século XXI. Baseando-nos na História das Ideias Linguísticas

(HIL), de Auroux (2009) e Orlandi (2001), na sua relação com a Análise de Discurso, de Pêcheux (2009b) e Orlandi (1999), neste trabalho, tomaremos como materialidade os textos introdutórios de dois instrumentos linguísticos produzidos pelo linguista Mario Perini no século XXI, a Modern Portuguese: a reference grammar (2002) e a Gramática do Português Brasileiro (2010). Dentre as diferentes gramáticas produzidas nesse período2, a escolha desse linguista se deve ao fato de ele ter escrito duas obras que vão ao encontro das demandas da internacionalização do português: a primeira apresenta saberes em/sobre a língua falada e escrita no Brasil para não-brasileiros, enquanto a segunda busca legitimar o português brasileiro com base na língua falada no país.

Dentre as muitas perguntas surgidas ao se analisarem esses saberes, este trabalho tem como objetivo responder às seguintes questões: que língua é essa de que tratam as gramáticas produzidas no século XXI? Como a língua é significada nessas gramáticas? Quais os efeitos sobre a língua nessas gramáticas decorrentes dos leitores nelas inscritos?

1. Por que estudar as gramáticas do século XXI?

Ao longo da nossa caminhada na escola, a gramática sempre teve um lugar especial, por delimitar as marcas que caracterizariam uma determinada língua. Neste trabalho, no entanto, o interesse por esse saber ultrapassa o conhecimento de sistematizações que permitem tal domínio. Conforme a HIL, assume-se aqui que, para além de questões linguísticas, as ações políticas para regulação da língua no/do Brasil interferem diretamente na produção dos saberes metalinguísticos, influenciando, assim, a produção das gramáticas. Para compreendermos melhor como isso se dá, retomaremos algumas considerações de Sylvain Auroux, professor e pesquisador da Université Paris 7, que tem se debruçado, dentre outros assuntos, na história do saber sobre a língua e nas relações de línguas como a questão política. Em seu livro A revolução tecnológica da gramatização (AUROUX, 2009), ele define o

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Essa designação é apresentada por Auroux (2009), ao destacar que o saber linguístico é múltiplo, podendo ser epilinguístico, ou seja, um saber inconsciente que todo locutor possui de sua língua e da natureza da linguagem, e metalinguístico, isto é, um conhecimento representado, construído e manipulado por meio da metalinguagem. 2 Merecem ser destacadas algumas gramáticas publicadas no século XXI: CASTILHO, A. Nova gramática do

português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010 e BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro.

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171 processo de gramatização como a segunda revolução técnico-linguística, afetando a vida

social a longo prazo. Tal como as mudanças promovidas com a escrita, apresentada por esse pesquisador como a primeira revolução, os saberes metalinguísticos produzidos durante o processo de dominação europeia após o século XV serviram como parâmetro para as interações com as línguas das colônias. Nessa rede homogênea de comunicação centrada inicialmente na Europa, que servia de parâmetro para as interações com os povos dominados, a gramática se tornou uma técnica pedagógica de aprendizagem das línguas e um meio de descrevê-las, afetando radicalmente o falante.

Dessa forma, esse saber metalinguístico não é uma simples descrição da linguagem natural, mas um instrumento que prolonga a fala e dá acesso a um corpo de regras e de formas que influenciarão a competência do locutor. Assim, ao oferecer procedimentos gerais para engendrar/decompor enunciados, categorizar unidades, apresentar exemplos, descrever regras mais ou menos explícitas de construção de enunciados, a gramática mostra paradigmas sobre os quais se analisa a realidade de uma língua, criando-se, com isso, um movimento em que a mesma passa a ser reduzida a essas regras.

No Brasil, em especial, o processo de gramatização está intimamente ligado aos processos discursivos de constituição da língua nacional (FONTANA, 2008). Isso traz implicações para a relação do cidadão brasileiro com o Estado e com a própria língua, resultado de uma construção apresentada como homogênea, uniforme e universal.

Nessa perspectiva, os reflexos desse fenômeno precisam ser constantemente administrados, em especial, pelos professores de português, já que têm a imcubência de apresentar essas regras aos alunos, ratificando a ideia da homogeneidade da língua, que apaga as diferenças e produz o efeito de que há uma forma padrão, única, objeto de ensino dos colégios, cujo domínio vai além do simples conhecimento de uma das muitas variedades linguísticas observadas no Brasil.

Trazendo a discussão para os dias atuais, pautada nas intervenções do governo que visam à reformulação da ideia do que seja língua, Silva (2007) destaca as ações do Ministério da Educação (MEC), na última década do século XX, que influenciaram a produção de conhecimento linguístico e o processo de escolarização da língua. As leis que surgiram como resultado da intervenção do Conselho Nacional de Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais, os Parâmetros Curriculares Nacionais, os instrumentos de avaliação dos sistemas de ensino, por meio da Prova Brasil, do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), dentre

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172 outras medidas, representam o que Pêcheux delineou como acontecimento discursivo

(PÊCHEUX, 1990), isto é, demarcam o lugar do Estado como regulador do que deve ou não comparecer na educação e, mais especificamente, no ensino de língua.

Indo ao encontro das leis de Mercado (PAYER, 2005), observa-se ainda, dentre as muitas iniciativas do MEC, uma política para a internacionalização do português (ZOPPI-FONTANA, 2009), cujos resultados mais notórios são a criação do Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (CELPE-Bras), do Ministério das Relações Exteriores (MRE), para citarmos apenas alguns exemplos.

Dadas as condições de produção descritas acima, uma preocupação considerável com aquilo que está sendo apresentado como saber metalinguístico impulsionou a reformulação de diferentes gramáticas em circulação no século XXI, em virtude das mudanças estabelecidas pela vigência do Novo Acordo Ortográfico, estabelecido entre os países lusófonos, que se reuniram na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), em 1996. Mas não se observam apenas reformulações de gramáticas já produzidas: seguindo-se às leis do Mercado, novos trabalhos entram em cena no Brasil, voltados, inclusive, para aqueles que não falam português, a quem designaremos como “não-brasileiros”.

Na tentativa de observar essas questões, destacamos as gramáticas de Perini, em que algumas se voltam para o ensino em universidades brasileiras, e outras para a formação em Português para Estrangeiros (PLE); e focalizamos as duas do século XXI já apontadas.

2. As gramáticas de Perini:

Já no título dessas gramáticas, a tensão quanto ao que se deseja silenciar e apagar comparece na designação da língua, o que provoca alguns questionamentos: por que a determinação “brasileiro” é apagada na Modern Portuguese, enquanto na outra, não? Por que, em ambas as gramáticas, comparece a designação “português”, e não “língua”, por exemplo? Observemos o quadro a seguir:

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Modern Portuguese (2002) Gramática do Português Brasileiro (2010)

Público-alvo

Estrangeiros falantes de inglês)

Brasileiros

(professores, estudantes de Letras)

Objeto

Língua Portuguesa moderna, falada e escrita do Brasil > língua

culta > variedades usadas por pessoas com certo grau de

escolaridade

português brasileiro > língua falada no Brasil por mais de 187 milhões de pessoas > português falado > português falado do Brasil, ou PB > língua falada

padrão > a fala das populações urbanas relativamente escolarizadas

Apagamento variações sociais e regionais.

língua que escrevemos; comunidades indígenas e imigrantes; diferenças regionais e sociais; da língua

de pessoas com pouca escolaridade.

Tratamento de formas não-consagradas pela

tradição

“Os menino tudo tão doente” - recomenda-se não se usar essa

construção

“As menina tudo ficou gritando” - apaga-se esse comentário

Lugar da Linguística

Desculpa-se por precisar empregar alguns termos da

Linguística

Evoca-se a ciência para se autorizarem alguns dizeres:

“Eles gostava de camarão”

“estudos realizados mostraram que frases [desse tipo] ocorrem mesmo na fala de pessoas

escolarizadas”

Logo de início, pode-se perceber que essas gramáticas diferem de outras produzidas ao longo do século XX: elas dão um lugar de destaque à língua falada. A Modern Portuguese precisa tratar disso, pois deseja oferecer ao leitor ferramentas para o conhecimento da língua do Brasil. Nesse sentido, ao longo dos capítulos, são apresentados exemplos no português escrito e falado. Com isso, Perini deseja apresentar uma língua que permita ao estudante fluência, expressando-se com eficiência e compreendendo o que se escuta comumente no Brasil, especialmente por meio da imprensa e dos meios de comunicação, de modo geral. A Gramática do Português Brasileiro, por outro lado, quer oferecer aos professores e estudantes do curso de Letras ferramentas para se refletir sobre a existência de um português brasileiro, distinto do de Portugal, que não corresponde àquele apresentado pela tradição gramatical.

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Integrando um projeto da Editora Parábola3, essa gramática conta com os estudos científicos

de um linguista para legitimação de uma ideia há muito discutida, principalmente pela Sociolinguística, que parte de saberes epilinguísticos, a fim de possibilitar a reflexão, e toma como base o uso, permitindo, assim, a depreensão das regularidades da língua, ou seja, da gramática (BAGNO, 2011). Esta não teria necessariamente compromisso com a Norma Gramatical Brasileira (NGB), criada em 1959, ou com a tradição gramatical do Brasil, pois seria regida por regras da língua em uso. Dessa forma, quando iniciamos a leitura da Gramática do Português Brasileiro, será defendida a reformulação dos saberes metalinguísticos produzidos até então. Contudo, o que se vê é o legitimar da tradição:

“Vamos continuar tendo que estudar o português padrão, e vamos continuar sentindo aquela sensação de frio na barriga na hora de escrever um texto de mais responsabilidade. Mas, no que pese a relevância de cada uma, a variedade a que chamamos PB tem uma importância que o padrão não tem: o PB é conhecido e usado constantemente pela totalidade de brasileiros, ao passo que o padrão é privilégio de uma pequena minoria de pessoas mais escolarizadas”. (PERINI, 2010, p. 20).

Essa tensão está intimamente ligada ao modo de constituição da língua no Brasil, já que era preciso estar de algum modo filiada a Portugal. E isso pode ser observado nas designações da língua que comparecem nos textos de apresentação das gramáticas de Perini:

a) Modern Portuguese: Língua Portuguesa moderna, falada e escrita do Brasil > língua culta > variedades usadas por pessoas com certo grau de escolaridade ≠ variações sociais e regionais.

b) Gramática do Português Brasileiro: português brasileiro > língua falada no Brasil por mais de 187 milhões de pessoas > português falado > português falado do Brasil, ou PB > língua falada padrão > a fala das populações urbanas relativamente escolarizadas ≠ língua que escrevemos; comunidades indígenas e imigrantes; diferenças regionais e sociais; da língua de pessoas com pouca escolaridade.

Em princípio, nas duas obras tem-se a tensão entre as diferenças da língua do Brasil e de Portugal. Já na 2ª metade do século XIX, as gramáticas brasileiras se empenharam em

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175 buscar essa distinção (GUIMARÃES, 2003). Isso duraria até a década de 1930 e legitimaria

as singularidades da língua do Brasil, ao constituir um sujeito nacional, um cidadão cuja língua, que lhe era própria, ganhava visibilidade por meio da gramática, num processo de individualização (ORLANDI, 2002). Entretanto, criou-se um espaço de diferenciação com a língua de Portugal, “sem atentar contra a unidade com Portugal” (GUIMARÃES, 2001, p. 27). É isso que percebemos nos deslizamentos da designação da língua, já que, ao mesmo tempo em que se marca a diferença, ratifica-se a unidade com Portugal, ao comparecer a

designação “português”4.

Segundo Dias (1996), nos debates das décadas de 1930 e 1940 a respeito da designação da língua, em que se propunha a nomeação “língua brasileira”, havia uma preocupação de alguns parlamentares e intelectuais de que, ao designá-la desse modo, a língua seria remetida àquela falada por brasileiros que não dominavam a escrita. Isso seria um problema, já que os enunciados produzidos por eles não adquiriam visibilidade para as instituições por não existir uma produção cultural baseada na escrita. Foi assim que a decisão de se manter o nome “língua portuguesa” encontrou sustentação, muito embora silenciasse as particularidades brasileiras. Essa mesma tensão comparece nas gramáticas de Perini, conforme se pode ver no quadro, ao se apagarem as “variações regionais e sociais”, na Modern Portuguese, as diferenças de “classe social e região”, que são silenciadas após terem seu lugar reconhecido na Gramática do Português Brasileiro, que apaga, ainda, as línguas das “comunidades indígenas” e de “imigrantes”, das “populações de pouca escolaridade”,

reforçando-se a ideia da homogeneidade da língua5.

Quanto ao título das gramáticas, em particular, reitera-se a filiação com Portugal, ao mesmo tempo em que se traçam divisões no espaço de enunciação da língua (DINIZ, 2010): dentre as variedades do português, existe “um português moderno”, “o português brasileiro”. Atualizando-se a memória de um processo de colonização linguística portuguesa, chega-se ao século XXI afirmando-se haver unidade linguística entre o Brasil e Portugal (GUIMARÃES, 2001), o que é comprovado pelo Novo Acordo Ortográfico.

Além disso, dadas as condições de mercado (ZOPPI-FONTANA, 2009) e o lugar que a língua assume no cenário internacional, há uma disputa entre Brasil e Portugal, com relação

4 Essa filiação pode ser observada no modo como os linguistas brasileiros, em que se inclui o Perini, têm designado a língua falada no Brasil: Português brasileiro ou PB.

5 Essa tem sido uma tendência das gramáticas produzidas no século XXI. Apesar de reconhecerem a diversidade

linguística, de modo geral, eram apagam a existência ao afirmarem que irão tratar da língua falada por pessoas escolarizadas nos centros urbanos do país, ou seja, há uma outra homogeneização, pensando na fala brasileira.

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176 ao centro da lusofonia, graças à importância econômica brasileira (DINIZ, 2010). Isso

autoriza nomeações como “Modern Portuguese” para falar da língua do Brasil, já que esse deslizamento deixa claro a filiação a Portugal e destaca as demandas do século XXI, momento em que a economia brasileira ascende no contexto internacional.

É importante observar, ainda, que a criação da NGB “des-autoriza as variadas posições dos gramáticos que traziam para si a responsabilidade de um saber sobre a língua” (ORLANDI, 2002, p. 30). Entendida como um acontecimento discursivo (PÊCHEUX, 1999), a NGB desloca e desregula os implícitos do que está regularizado, fundando uma nova memória.

Além disso, com a institucionalização da Linguística nos cursos de Letras, os linguistas assumiram o lugar de autoria do saber sobre a língua, por possuírem o conhecimento científico. Isso implica uma mudança de posição política e intelectual para uma posição científica nos estudos de linguagem, deslocando a discussão entre o que é brasileiro ou lusitano para as teorias científicas (ORLANDI, 2002). E as tensões desse cisma doutrinário dos estudos linguísticos brasileiros, distinguindo filólogos (gramáticos) e linguistas (CAVALIERE, 2012), podem ser sentidas nas gramáticas de Perini. Logo de início, deve-se ao fato de ele ser um linguista a autorização para a defesa da existência do PB, diferenciando-se da língua aprediferenciando-sentada pela tradição. Na análidiferenciando-se feita para este trabalho, consideramos que Perini ocupa a posição gramático na Modern Portuguese; apesar de, no 1º parágrafo do texto de apresentação, ele dizer que se apoiará em “pesquisas linguísticas recentes”, ao longo da gramática, existem algumas orientações que se aproximam da tradição. Há uma recomendação, por exemplo, para não se usar a construção “Os menino tudo tão doente”, apresentada como uma forma corriqueira do português falado, o que contrariaria seu objetivo inicial, que seria descrever detalhadamente a língua, e não funcionar como um material didático prescrevendo o que deve ou não ser dito. Esse conselho é apagado na Gramática do Português Brasileiro, após o exemplo “As menina tudo ficou gritando”, onde a posição linguista é assumida para justificar a proposta da gramática. Além disso, Perini se desculpa por precisar empregar alguns termos da Linguística na Modern Portuguese, que serão explicados ao longo do texto (xxi).

Por outro lado, a ciência é evocada para se autorizarem alguns dizeres na Gramática do Português Brasileiro: Perini recorre aos “estudos realizados” para mostrar que frases do tipo “Eles gostava de camarão” “ocorrem mesmo na fala de pessoas escolarizadas” (p. 278).

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177 Além disso, na Gramática do Português Brasileiro, há uma apresentação justificando, dentre

outras questões, por que essa obra, denominada gramática, poderia se ocupar de questões que dizem respeito ao linguista.

Analisando o sumário dessas gramáticas, ainda, pode-se perceber essas diferenças de posição:

Sumário da Modern Portuguese Sumário da Gramática do Português

Brasileiro

O quadro acima mostra que a Modern Portuguese assume uma sistematização mais próxima da comumente apresentada pela tradição, o que reforçaria a ideia de que Perini assume a posição gramático para falar ao não-brasileiro. Diferentemente, a Gramática do Português Brasileiro mostra, já no sumário, que irá discutir questões que não comparecem normalmente nas gramáticas.

Mas, partindo dos exemplos apresentados neste trabalho, há uma questão que precisa ser investigada mais a fundo: estaríamos tratando de FDs distintas – a do gramático e a do linguista –, determinando, assim, o que pode e deve ser dito, ou o que está em jogo aqui é uma contra-identificação (PÊCHEUX, 1988) com a forma-sujeito da FD gramático? Essas são algumas das questões que indicam a relevância de estudos que busquem compreender a língua que está em jogo nessas gramáticas do século XXI.

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Considerações finais:

Compreender a conjuntura da contemporaneidade é uma demanda para um entendimento mais profundo do tempo em que vivemos, das questões políticas, econômicas e sociais em que vivemos. Mas não apenas isso: é refletir também na língua apresentada a brasileiros e estrangeiros a influência da ação do Estado, o lugar da tradição, o papel do linguista, a língua imaginária que se delineia a partir de todos esses fatores.

Referências

AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização, 2a ed, Campinas, São Paulo: Unicamp, 2009.

BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.

DINIZ, Leandro. Mercado de línguas. A instrumentalização brasileira do português como língua estrangeira. Campinas: Editora RG, 2010.

MACHADO, Tania. “O CELPE-Bras e outtas políticas linguísticas brasileiras pela promoção do português do Brasil”. In: Fólio – Revista de Letras Vitória da Conquista v. 2, n. 2 p. 63-81 jul./dez. 2010

PERINI, M. ModernPortuguese: a reference grammar. Yale University, 2002. ______. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.

______. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos, SP Campinas: Pontes, 1999. PAYER, M. O. “Sujeito e sociedade contemporânea. Sujeito, Mídia, Mercado.” Revista Rua, Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade da Unicamp, 11, mar. 2005, p. 9-25.

PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso. In:GADET, F. & HAK, T. (orgs). Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 1969/1997.

______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Orlandi. 4ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

ZOPPI-FONTANA, Mónica Graciela. (org.) O português do Brasil como língua transnacional. Campinas, Ed. RG, 2009.

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