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Crime e Violência: Aspectos Clínicos * José Luiz Meurer **

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Revista Latinoamericana de Psicoanálisis – Vol. 7 año 2006

Crime e Violência: Aspectos Clínicos*

José Luiz Meurer**

I. À maneira de introdução a estas considerações psicanalíticas sobre violência e crime, vale a pena lembrar trechos das cartas entre Albert Einstein e Sigmund Freud em 1932. Einstein escreveu a Freud apresentando uma indagação: como explicar que, nas guerras, uma minoria de pessoas, ávidas de lucros com a venda de armas, e líderes sedentos de mais poder político, encontra condições de dominar uma maioria da população, manipular a opinião pública e mobilizar os sentimentos do povo no sentido de incitar à guerra entre nações, que sempre trazem tantos sofrimentos, mortes e perdas materiais. E ele mesmo, Einstein, propõe uma explicação: “Somente uma resposta é possível. Porque o homem tem dentro de si um prazer no ódio e na destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, e emerge somente em circunstâncias anormais; mas é uma tarefa relativamente fácil colocá-la em movimento e incitá-la a que tenha a força de uma psicose coletiva”. Menciona também os “instintos agressivos” dos homens como força que mobiliza os conflitos internacionais e sociais em todos os tempos.

Em resposta à carta vinda de Einstein, escreve Freud sobre a dualidade instintual que ele acredita existir no homem: instinto de vida, representado por Eros, que busca preservar, unir, no sentido descrito já por Platão, e que abrange a sexualidade; e o instinto destrutivo ou agressivo, que busca destruir, separar, matar. Numa polaridade semelhante à que existe na Física no que concerne à atração e repulsão da matéria, assim na vida humana amor e ódio geralmente agem num estado de fusão ou amálgama, uma complexa composição de forças basicamente antagônicas que assim influencia os sentimentos, as motivações, idéias e ações dos homens. No processo civilizatório, diz Freud, é necessário que o homem encontre condições de ver atendida pelo menos uma parte de suas necessidades de amor, segurança, conforto material, e que possa, pela repressão adequada, pela “domesticação” de seus instintos e pela sublimação, canalizar suas demais energias agressivas e sexuais para o processo construtivo pacífico da sua individualidade e da coletividade, e assim contribuir para o aumento e usufruto dos bens culturais, através das instituições sociais, da arte e da ciência.

* Trabalho apresentado na mesa-redonda “Crime e Violência: Aspectos Clínicos”, Congresso Brasileiro de

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Como se pode ver, dois dos homens mais influentes do século XX abordaram, com seriedade e preocupação, este tema numa época em que já eram visíveis os sinais inquietantes de outra iminente conflagração entre nações, após os horrores da 1ª guerra Mundial. E realmente, poucos anos depois, materializaram-se esses temores quando se desencadeou de novo a ainda pior “psicose coletiva” da 2ª Guerra Mundial.

II. Na clínica psicanalítica podemos observar, com certa freqüência, o aparecimento de fantasias, desejos e atos de violência e destrutividade, em nossos pacientes e nas pessoas com quem convivem. Condutas violentas, potencialmente autodestrutivas ou mesmo atos criminosos, de maior ou menor magnitude, tendências à delinqüência, crimes em estado potencial, isto é, atos criminosos potenciais mantidos sob controle interno por precários mecanismos de contenção intrapsíquica, às vezes se exteriorizam em condutas destrutivas ou autodestrutivas. Não é raro observarmos que a presença de desejos e fantasias homicidas de natureza edípica contra objetos primordiais e representantes de objetos significativos condiciona o desencadeamento de atos destrutivos potencialmente suicidas, ou concorre para o surgimento de sintomas psicossomáticos ou mesmo emergências clínicas catastróficas. O desencadeamento, por exemplo, de uma doença letal, de uma intercorrência capaz de pôr em risco a vida, um infarto do miocárdio, ou um acidente vascular cerebral, esses são alguns dos quadros que vemos, com certa freqüência, como expressão de uma forma de autoagressão, provavelmente ligada a eventos nas relações interpessoais capazes de suscitar desejos e fantasias homicidas e suicidas.

Em tais situações, nos perguntamos como ajudar o paciente a entender e manejar seus impulsos destrutivos de maneira que possa colocá-los a serviço de Eros, da vida própria e da preservação de seus objetos. Essa é uma tarefa de grande complexidade e responsabilidade. E não podemos ignorar que o manejo de tais situações na clínica, com o paciente individual, tem repercussões futuras no paciente e também no meio social em que vive.

A atenta observação da transferência no tratamento analítico é certamente o recurso privilegiado de percepção, por parte do analista, das manifestações de impulsos tanáticos e eróticos do paciente. A transferência, e a contratransferência possivelmente, essa é a área em que se pode perceber e aquilatar a intensidade de impulsos e fantasias de caráter violento e delinqüente. Para melhor entender, interpretar e manejar tais

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situações na sessão de análise, convém que nos auxiliem as idéias de Freud, Klein e outros autores que escreveram sobre esse lado obscuro da mente humana.

III. Sigmund Freud, após ter estudado o caso Schreber (Freud, 1911) e ter escrito sobre a questão do narcisismo (Freud, 1914) nos deu uma noção mais clara do funcionamento e importância do ego, sua constituição através dos processos de identificação, nas neuroses e nas psicoses; examinou a questão da melancolia, a importância primordial da relação com o objeto internalizado. A partir do trabalho “Além do Princípio do Prazer” (Freud, 1920) expõe suas idéias sobre a dualidade instintual, constituída por instinto de vida (Eros, libido) e instinto de morte; este, capaz de agir internamente no indivíduo, ou voltado para o exterior, contra os objetos, sob a forma de destrutividade, por exemplo, nas relações interpessoais, e ainda sob forma de masoquismo moral, o superego sádico tiranizando o ego culpado e masoquista. Na formulação teórica nova, o conflito se estabelecia entre instâncias psíquicas, id, ego e superego. Em diversos trabalhos, Freud enfatizou a importância do conflito edípico na gênese da neurose e do sentimento de culpa, que tantas repercussões têm na clínica. Em “Criminosos por sentimento de culpa” (Freud, 1916), mostra que há um bom número de criminosos nos quais se verifica que a culpa antecede ao crime: premido pelo sentimento de culpa e ameaça interior inconsciente, por parte do superego, o indivíduo comete o crime para ser apanhado pela autoridade policial, a instância repressora externa, e assim ser punido pela lei dos homens, que afinal lhe parece menos dura psicologicamente do que a lei de talião que vigora no inconsciente.

Essas idéias de Freud são expostas com maior amplitude quando escreve sobre “Dostoievski e o Parricídio” (Freud, 1928). Nesse trabalho, procura lançar luzes sobre o escritor Dostoievski e sua obra. Na vida pessoal deste grande escritor, e em sua obra, em seus personagens atormentados, sombrios, portadores de sentimento de culpa, ressentimentos e humilhações, propensos ao crime ou à violência, Dostoievski nos dá uma visão principalmente da força dos sentimentos e impulsos violentos ligados ao complexo de Édipo, à culpa pelos desejos parricidas e incestuosos. Também no trabalho “O Mal-Estar na Civilização” (Freud, 1930) Freud mostra a importância do sentimento de insatisfação do homem civilizado diante das frustrações da vida instintual impostas pelas exigências das normas morais e culturais; mostra como o homem, em sua revolta contra a lei e a autoridade, se revela propenso à transgressão da lei, pelo menos

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condenáveis inconscientes. Em “Moisés e o Monoteísmo” (Freud, 1937), ressalta a importância fundamental, na vida psicológica e na gênese das instituições sociais, dos impulsos criminosos. Considera, de novo, o complexo de Édipo, com seus componentes incestuosos e parricidas, a situação primordial, a origem dos sentimentos de culpa inconsciente e das normas morais. A contenção da violência e da destrutividade externas, socialmente, se segue da internalização da instância repressora gerando o aparecimento do superego, com certo grau de coerção sobre o ego e adoecimento neurótico potencial.

Desde a mais remota antigüidade, as narrativas sobre os feitos dos homens sempre incluíram histórias de violência e crimes, atos de heroísmo, vilanias e crueldades, grandes conquistas e morticínios. Os mesmos temas sempre atraíram o interesse dos homens em todas as épocas, porque têm a ver com a essência do ser humano. “Dificilmente se pode atribuir ao acaso o fato de que três das obras-primas da literatura de todos os tempos – Édipo Rei, de Sófocles, Hamlet, de Shakespeare, e Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski – viessem a tratar do mesmo assunto, parricídio. Em todas as três, além disso, é posto às claras o motivo do crime, a rivalidade sexual por uma mulher” (Freud, 1928).

IV. Outras importantes contribuições para entendermos a questão da violência e da criminalidade, ou tendência criminal, nos vêm de autores que escreveram sobre a gênese e a dinâmica inconscientes de casos em tratamento, tais como vistos na prática psicanalítica e também na vida de relações interpessoais.

Melanie Klein (1927) certamente nos auxilia em muito com seu trabalho “Tendências Criminais em Crianças Normais”. Afirma que a análise de crianças consideradas normais, entre três e seis anos de idade, evidencia uma luta entre a parte cultivada (em processo de adaptação à vida cultural e às normas sociais) da personalidade e a parte primitiva (vida instintual, impulsos intensos agressivos e sexuais). Sob a ação do desenvolvimento edípico e experimentando principalmente impulsos sádico-orais e sádico-anais em relação à mãe e ao pai, a criança em análise, em seu brincar, nos seus sonhos e pesadelos, devaneios e fantasias, evidencia fortes desejos e tendência à prática de atos destrutivos, violentos, cruéis, vingativos, criminosos. Tais manifestações podem representar atos de canibalismo e incesto, homicídio e atos de crueldade; acompanham-se de intensas ansiedades, culpa, sentimentos de perseguição, atos de autopunição. Mecanismos de defesa como tentativas de reparação onipotente maníaca, splitting, negação, cisão são mobilizados e têm importantes conseqüências na estruturação da vida mental e no

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contato com a realidade ambiente. E em seu trabalho de 1928, “Fases iniciais do Complexo de Édipo, novamente Klein aborda estas questões e mostra que as vicissitudes da vida instintual da criança, suas identificações com objetos persecutórios, cruéis e ameaçadores têm conseqüências marcantes na vida psíquica e na conduta da criança (M. Klein, 1934). Tais idéias são tornadas mais claras e completas quando Melanie Klein (1945) escreve “O Complexo de Édipo à luz das ansiedades primitivas”. Suas idéias sobre a questão da identificação projetiva são fundamentais para se entender a gênese e motivação de atos de violência e crimes, por exemplo, a identificação projetiva de aspectos do self intolerável: estes são projetados em outrem, que então é maltratado, seviciado ou eventualmente eliminado.

Nessa linha de idéias, Meneghini (1962), estudando casos de criminosos submetidos a exames psiquiátrico-forenses, mostrou a presença, nesses indivíduos, de um conflito mental insuportável, a emergência de angústia depressiva e persecutória por uma perda ou ameaça de perda, regressão à posição esquizo-paranóide, sobrevindo a atuação homicida como mecanismo de externalização de ansiedades psicóticas que o ego não tem condições de manejar.

V. Ainda numa linha de entendimento semelhante, convém mencionar os estudos de outros autores, como Hebert Rosenfeld e Rosine J. Perelberg, que destacam aspectos da patologia narcísica e sua conexão com estados mentais primitivos, capazes de dar origem a atuações criminosas e violentas. Rosenfeld (1971), em “Uma abordagem clínica da teoria psicanalítica dos instintos de vida e de morte: uma investigação dos aspectos agressivos do narcisismo”, considera que em certos casos há uma fusão patológica dos impulsos libidinais e de impulsos agressivos que gera uma intensificação dos impulsos destrutivos. As frustrações inevitáveis na relação, predominantemente narcísica, com os objetos incrementam a hostilidade e a agressividade contra os mesmos; também ocorre uma idealização narcísica dos aspectos onipotentes destrutivos do self. Na relação analítica, essa parte do paciente não suporta, por exemplo, a frustração e a dependência em relação ao analista, e o narcisismo destrutivo se mantém numa organização defensiva que age como uma “gang” ou máfia, resistente ao tratamento, a qual tem por objetivo manter a idealização de si mesmo e a onipotência, inclusive mediante acting-outs violentos.

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conduta potencialmente ou efetivamente violenta e criminosa, bem como as razões de sua aparente ausência no tratamento. Pacientes com essa patologia podem ter tido, em etapas iniciais da vida, experiências de severa privação emocional e ambientes de negligência, abandono, separação, desespero. Tentativas de, subseqüentemente, agredir esses objetos, exteriorizando-os na realidade externa, podem materializar-se em atos de delinqüência, roubos, assassinatos ou tentativas de homicídio. Pacientes com essas vivências no início da vida podem manifestar na transferência esses impulsos agressivos, despertando no analista uma sensação de intenso temor de sofrer agressão física a qualquer momento; ou o paciente pode mostrar uma ausência de aspectos violentos no seu self, ao mesmo tempo que se mostra isolado, distante, defendendo-se de um contato afetivo com o objeto, o isolamento afetivo servindo como defesa contra impulsos tanáticos emergentes.

Autores que recentemente escreveram sobre estados mentais de pacientes com grande dificuldade de representação mental de certas experiências emocionais irrepresentáveis, envolvendo violências e acontecimentos traumáticos, igualmente nos ajudam a compreender essas questões. Em tais casos, compreende-se que certos conteúdos mentais, que não alcançaram elaboração suficiente no aparelho mental podem derivar para a ação direta sobre o mundo externo, muito freqüentemente em atos impulsivos, violentos e destrutivos, paradoxais e aparentemente inexplicáveis. Nesses casos, também se verifica, como nos mostrou Freud, que em situações dessa natureza o indivíduo regride, passando do princípio da realidade para o princípio do prazer: do ponto de vista da economia psíquica, funciona então a tendência a fugir da dor psíquica e a buscar o alívio através da ação violenta sobre o mundo externo.

Referências Bibliográficas

Freud, S (1911) Psycho-Analytic Notes on an Autobiographical Account of a Case of Paranoia ( Dementia Paranoides ). SE 12.

_______ (1914) On Narcissism: an Introduction. SE 14.

_______ (1916) Some Character Types met with in psycho-analytic work. SE 14. _______ (1920) Beyond the Pleasure Principle. SE 18.

_______ (1928) Dostoevski and Parricide. SE 21. _______ (1930) Civilization and its Discontents. SE 21. _______ (1933) Why War? SE 22.

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_______ (1937) Moses and Monotheism: Three Essays. SE 23.

Klein, M (1927) Criminal Tendencies in Normal Children. In The Writings of Melanie Klein, vol. I, The Hogarth Press, 1975.

_______ (1928) Early Stages of the Oedipus Conflict. In The Writings of Melanie Klein, vol. I, The Hogarth Press, 1975.

________ (1934) On Criminality. In The Writings of Melanie Klein. The Hogarth Press, 1975.

________ (1945) The Oedipus Complex in the light of early auxieties. In The Writings of Melanie Klein, The Hogarth Press, 1975.

Meneghini, LC (1962) “Atuação homicida como defesa contra ansiedades psicóticas”. Psiquiatria, vol.2. Porto Alegre.

Perelberg RJ (2004) Narcissistic Configurations: violence and its absence in treatment. Int. J. Psychoanal 85: 1065-79.

Rosenfeld, HA (1971) A clinical approach to the psychoanalytic theory of life and death instincts: an investigation into the aggressive aspects of narcissism. Int. J. Psychoanal, 52, 169-178.

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