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Transposição didática: a passagem de textos do ambiente virtual aos livros didáticos de espanhol

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Academic year: 2021

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Transposição didática: a passagem de textos do ambiente virtual

aos livros didáticos de espanhol

Mônica de Castro Guimarães (UERJ, mestrado/ Colégio Militar) Cristina Vergnano Junger (UERJ)

1. Introdução

O presente trabalho se insere em uma pesquisa mais ampla, concluída em 2006. Nosso objetivo é refletir sobre a problemática da inserção de textos oriundos de fontes diversas (especificamente da Internet) no livro didático (LD) de língua espanhola e as conseqüências desta inserção para o trabalho de leitura1 no idioma. Tomamos como referência para nosso estudo a realidade do ensino de língua espanhola num colégio público federal de Ensino Médio do Rio de Janeiro, onde as aulas são ministradas com ênfase na leitura e escrita. No contexto desse colégio, uma vez adotado um material didático (MD), este deve ser utilizado pelo professor, senão em sua totalidade, pelo menos em sua maior parte. Se por um lado o Colégio permite a livre escolha para a adoção de livros numa disciplina, independente de seus custos, uma vez adotado, seu uso passa a ser obrigatório para todos os seus docentes. O padrão de ensino prima pela uniformização.

A adoção e uso de um livro didático (LD) de maneira pouco flexível2 pode gerar obstáculos para o ensino, pois parece ser consenso que nenhum material didático é suficiente para o trabalho em aula ou extra-classe. Apesar disso, para muitos professores, os textos didáticos presentes nos LDs de língua estrangeira são, algumas vezes, o único material de leitura disponível. Isso se explica seja pela praticidade de estarem ao alcance do professor sem que haja a necessidade de buscar novas fontes, seja pela falta de tempo ou interesse em buscá-las, ou ainda pela dificuldade em encontrar outras fontes textuais na língua estrangeira.

Contudo, através do trabalho escolar utilizando o livro didático, observamos que a passagem dos textos de uso cotidiano (tenham ou não como fonte a Internet) ao LD acarreta, às vezes, um problema. Embora os textos incorporados ao material didático sejam de gêneros diversos, são apresentados de modo uniforme, sofrendo alterações em suas características lingüísticas e textuais3. A homogeneização sofrida pelos textos provoca uma perda de informações genéricas que é comprometedora para o processo de ensino-aprendizagem, pois o conhecimento genérico faz parte da construção do sentido textual4.

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Essas adaptações determinam, também, perdas de características lingüísticas e textuais a ponto de os transformarem em outros textos, que podem adquirir nova idéia central. Também percebemos que a transposição e/ou adaptação pode implicar em um afastamento de uma amostra real de língua5. Dessa forma, o conhecimento por parte do professor das conseqüências do fenômeno da passagem dos textos de outras fontes ao LD para a leitura contribui para um trabalho mais efetivo com o material didático junto ao alunado.

2. A noção de Transposição Didática

Acreditamos que o uso de textos didáticos de língua estrangeira dentro ou fora de sala de aula deve demandar, por parte do professor, algumas noções sobre como se dá o processo de passagem do texto de fontes cotidianas (sejam de Internet ou não) ao LD, assim como as conseqüências deste processo para o trabalho leitor. Tal processo de inclusão desses textos pode ser denominado Transposição Didática (TD), com base nas teorias de Yves Chevallard (1985). O autor parte do princípio de que os conhecimentos científicos, ao serem trabalhados no ambiente escolar, sofrem o processo de TD. Desse modo, o conhecimento final ensinado ao aluno não é o mesmo conhecimento original, chamado de erudito ou científico. O conhecimento original (científico) sofre certas “deformações” para que esteja apto a ser ensinado. Chevallard (1985) argumenta que o conhecimento que se ensina na escola, através dos conteúdos transmitidos, é uma seleção do conhecimento científico. Esta seleção não ocorre apenas por um simples recorte, por uma mera “simplificação”, mas também pela transformação do saber original.

Utilizamos a noção de TD segundo uma adaptação conceitual, ou seja, adaptamos o conceito emprestado da “didática da matemática”. Para Chevallard (1985), há a preocupação em verificar a passagem de “científico” a “não-científico”, na transposição de conceitos matemáticos ao ambiente escolar, à sala de aula. Em nosso estudo, a questão da TD não está no saber científico que passa a escolar (poderia ser o caso se o material levado à sala de aula fosse teórico, por exemplo, explicações sobre a formação da língua espanhola). A idéia a ser aproveitada é a de transformação em algo novo, a da mudança de objeto de uso social cotidiano para o uso social escolar, ou de finalidades múltiplas, segundo os contextos de enunciação, para a finalidade didática.

Pensando no ensino de LE, e especificamente na análise que conduzimos, sendo o texto analisado transposto ao LD com adaptações (como a perda de material informativo), temos como hipótese que tal transposição e/ou adaptação determina um afastamento de uma amostra de língua. O conhecimento deste afastamento seria

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necessário para favorecer a reconstrução de sentidos dos textos lidos, em ambientes escolares ou fora deles. No nosso caso, tal distanciamento está relacionado ao idioma espanhol em suas situações potenciais de uso. De um modo geral, há uma redução e simplificação dos materiais originais transpostos ao LD. Costuma-se distanciar o aluno de determinados conhecimentos/conteúdos lingüísticos, por considerá-lo incapaz de compreendê-los. A alteração de estruturas do gênero ou de conteúdos das mensagens também leva a novos caminhos de compreensão e interpretação textual.

3. Análise de um texto transposto

Para exemplificar tal fenômeno, trazemos à discussão efeitos da Transposição Didática sofrida pelo texto extraído da Internet “Historia del Ama de Casa”. Ao ser incorporado a um LD e receber novo título: “¿Vale la pena ser “ama de casa”?”, sofreu alterações diversas. Utilizamos critérios de análise de acordo com Van Dijk (1990), que aponta quatro operações locais básicas para esta retextualização: eliminação, acréscimo, substituição e reordenação do texto. Especificamente neste trabalho, abordamos o fenômeno da eliminação informacional.

Na transposição didática, foram retirados todos os trechos em que surgia o enunciador marcado, assim como todos os momentos em que o autor afirma de modo claro estar a favor da existência da “dona de casa” nos moldes tradicionais. Observando o trecho:

“Yo no sé hasta qué punto es necesario que las mujeres se ocupen hoy de la política o los trabajos extradomésticos para mejorar las cosas. Lo que si sé es que las cosas seguirán empeorando si cada año continúan desapareciendo en Occidente cientos de miles de amas de casa.”, temos os marcadores de 1a pessoa do singular “Yo no sé...”, “Lo que si sé...”. Estes asseguram que a opinião é de um enunciador explícito, pois há sua assinatura ao final do texto. Esta enunciação em 1a pessoa é de uma voz masculina, que propõe tratar de um assunto que diz respeito à mulher e parte do pressuposto de que é função feminina manter o trabalho doméstico, cuidar dos filhos e do lar. Esta é uma questão controversa, e, geralmente, este tipo de opinião vai contra a emancipação da mulher e seu direito de igualdade perante os homens.

Materiais didáticos de língua estrangeira muitas vezes parecem pressupor a incapacidade do aluno de refletir em LE, pelo tipo de propostas didáticas que apresentam. Esta atitude contribui para que seja perpetuada a idéia de que as aulas de língua estrangeira não são um momento adequado para que se desenvolva a capacidade de reflexão. Assim, percebemos que o conhecimento trabalhado na escola passa por uma seleção cultural de

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caráter ideológico e arbitrário. A TD analisada é um exemplo de manipulação para eliminar aspectos polêmicos do material didático, em desacordo com a visão social de hoje.

Mas, se um dos objetivos da escola é formar cidadãos capacitados a exercer sua cidadania (conhecedores de seus direitos e deveres), como as aula de língua estrangeira estariam inseridas neste contexto? Não acreditamos que sua função seja somente ensinar vocabulário e aspectos gramaticais da língua. Capacitar um indivíduo a se comunicar em uma língua estrangeira, conhecendo seus aspectos lingüísticos, textuais e culturais não implica ter que o afastar do pensamento crítico. Ao contrário, tal ensino é mais um momento para a apuração de tal criticidade, principalmente no ambiente escolar de crianças e jovens, seres ainda em formação identitária.

4. Conclusões

A TD seria responsabilidade constante de professores, didatas, empresas editoriais e das Instituições Educacionais, que devem preocupar-se com uma construção dos conhecimentos de forma a estes serem úteis em situações fora do ambiente escolar. Se a escola, professores, ou materiais didáticos privam o aluno de determinados saberes por os considerar não aptos ao aprendizado, não estarão preparando-o para reagir positivamente diante de situações de uso da língua estrangeira dentro ou fora do ambiente escolar. Também acreditamos que estas adaptações terminam por dificultar o ensino da LE, em vez de facilitá-lo. Isto porque, ao modificar e adaptar o material de leitura a ser usado em sala de aula, o autor do LD modifica também convenções genéricas importantes para a construção do sentido textual, assim como formas de uso padronizadas do idioma em determinados contextos sociais, comprometendo o valor didático do material.

Objetivamos discutir as conseqüências desta transposição e/ou adaptação e suposto afastamento da amostra real de língua para o ensino de leitura em LE. Na Transposição Didática de qualquer material de leitura em língua estrangeira, acreditamos que além dos problemas relacionados à mudança de objeto de uso social cotidiano para o uso social escolar, há aqueles relacionados ao processo leitor em si. A leitura do texto transposto é distinta daquela do texto fonte e os papéis que desempenham os alunos (sujeitos que reconstroem a leitura) são igualmente distintos daqueles do leitor pensado originalmente para o texto fonte. Acreditamos que diferentes versões de um texto constituem novos produtos com novos significados. Estes novos significados demandarão uma nova atitude interpretativa do sujeito leitor.

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afirmações que sustentam que o trabalho escolar de leitura em língua estrangeira deveria se pautar exclusivamente na leitura de textos considerados “autênticos”. A noção de autenticidade, como observamos, é relativa e complexa. Há aspectos positivos neste uso. Os textos de uso cotidiano, quando não modificados, podem exemplificar os diferentes gêneros existentes, o que pode não ser possível quando são adaptados. Podem também apresentar amostras reais de língua. Mas os textos didáticos também podem apresentar tais amostras. Acreditamos que o sucesso do trabalho leitor em sala de aula de LE não está relacionado ao fato de um texto ser considerado como “autêntico”, ou não. Estes textos podem ajudar a exemplificar as características formais de determinados gêneros, mas este aspecto não é garantia nem condição para um trabalho e leitura em LE produtivo. Não somos tampouco contrários ao uso de tais textos. Porém, acreditamos que outros fatores devem ser levados em consideração no momento de se pensar em um trabalho leitor proveitoso. Por exemplo, a consideração da nova situação enunciativa em que este texto se insere (a didática), da situação enunciativa original, as possíveis alterações que este texto sofreu ao ser introduzido em sala de aula, em especial aquelas relacionadas ao gênero.

Não estamos advogando a necessidade de o professor ter que buscar sempre as fontes originais para conduzir seu trabalho de formação de leitores. É importante destacar os seguintes aspectos: (a) seria inviável e contraproducente o professor fazer esse tipo de investigação para cada texto usado; (b) o importante é a clareza sobre o papel da transposição e sua existência, sobre a importância dos gêneros para o estabelecimento de sentidos e para o trabalho com a situação de enunciação (e a conseqüente descontextualização) durante o processo leitor escolar. Essas mudanças ocorrerão invariavelmente e precisam ser consideradas, mesmo sem tê-las mapeadas com exatidão; (c) a responsabilidade não pode recair sobre o professor, como se ele fosse incompetente – a formação/ formação continuada que este recebe é que precisa estabelecer tais pontes, oferecer essas questões e contribuir para desenvolver sua criticidade, permitir o conhecimento da TD, de suas implicações e de como lidar com ela em sala de aula.

Mesmo nosso estudo sendo voltado para a TD de textos em língua espanhola, acreditamos que nossas conclusões indicam o que, em geral, ocorre na transformação de textos virtuais para textos didáticos em qualquer língua. Os pontos analisados foram suficientes para atender aos objetivos deste trabalho, mas abrem um amplo leque que podemos explorar em investigações futuras. Citamos como exemplo a observação da TD

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ocorrida em textos de outras fontes, diversas da Internet, assim como um estudo mais aprofundado das atividades e metodologias dos LD e cremos que o conhecimento mais detalhado sobre a TD de textos de uso cotidiano a textos didáticos pode levar a reflexões que acarretem mudanças de atitude no trabalho escolar com a leitura.

Referências:

BAKHTIN, Mikhail, Estética da criação verbal. 2ed., São Paulo, Martins Fontes,1992. CHEVALLARD, Y. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Grenoble: La Pensée Sauvage, 1985.

MAINGUENEAU, Dominique. A leitura como enunciação, In: Pragmática para o discurso

literário, 1a ed., São Paulo, Martins Fontes, 1996

TAYLOR, David. Inauthentic Authenticity or Authentic Inauthenticity?, In: Teaching English

as a Second or Foreign Language (TESL – EJ ISSN 1072- 4303), vol. 1, no 2, Agosto, 1994. VAN DIJK, Teun A. La Noticia como Discurso: Compreensión, estructura y producción de

la información. Barcelona, Paidós Comunicacción, 1990

Notas:

1 O conceito de leitura neste trabalho baseia-se em Maingueneau (1996). O autor considera que há um afastamento entre a participação do enunciador e do co-enunciador (leitor) na leitura, pois um texto pode alcançar públicos indeterminados no tempo e no espaço. Este distanciamento é próprio da atividade de leitura de textos escritos. O que vai preencher este espaço é a construção do universo da obra pelo leitor através das indicações no texto. A leitura considerada como enunciação engloba, então, enunciador e co-enunciador, situados num tempo e num espaço, os quais, justamente por se tratar de um processo de escrita que não ocorre em presença, não são coincidentes e provocam esse fenômeno da descontextualização.

2 O professor possui alguma flexibilidade para o uso do livro didático, mas esta se restringe a saltar algumas atividades consideradas pouco produtivas, segundo a visão subjetiva de cada professor. 3

Alterações observadas: na forma genérica (desconfiguração das características do gênero), na apresentação formal original (mudanças no título, supressão de imagens, etc.) ou na sintaxe (introdução ou supressão de vocabulário, mudança na ordem das frases, etc.).

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A eleição de um gênero pelo locutor, isto é, a escolha de uma forma típica genérica, se determina pela especificidade da esfera discursiva, pelo tema ou situação de comunicação, pelos participantes, etc. Também cabe destacar que as características dos gêneros são determinadas segundo seu contexto sócio-histórico, variando entre as sociedades e os tempos.

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Estamos assumindo aqui este “real” como uma amostra que existe, entre muitas outras possíveis, em usos cotidianos de falantes nativos, em seus contextos sociais, sem manipulação para atender a objetivos didáticos, retirada de fontes que circulam na vida social dos usuários da língua em estudo (não como língua estrangeira) – jornal, internet, revistas, manuais, livros de receita etc.

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Anexo

TD do texto virtual encontrado em: www.arbil.org/(66)gari.htm

Referência deste artigo:

GUIMARÃES, Mônica de Castro. VERGNANO JUNGER, Cristina de Souza. Transposição didática: a passagem de textos do ambiente virtual aos livros didáticos de espanhol DAHER, Maria del Carmen. SANT'ANNA, Vera Lucia de A. (orgs). Anais do IV Congresso

Referências

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