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Revista – Brasil Indígena nº 02 (FUNAI – 2006)

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ENTREVISTA:SEVERIÁ IDIORIÊ

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI Ano III nº2 maio/junho 2006

ESPECIAL

Conferência Nacional

dos Povos Indígenas

ENSAIO

(2)

2

O segundo número da nossa revista Brasil Indígena traz como matéria central a Conferência Nacional dos Povos Indígenas realizada em Brasília, entre os dias 12 e 19 de abril deste ano. Chamemo-la de “Primeira Conferência”, na expectativa de que, no próximo ano, venha a haver uma segunda e, em seguida, uma terceira, até consolidarmos no nosso País a prática de conferências que virem assembléias permanentes dos povos indígenas. Assim, dentro de um tempo previsto de três ou quatro anos, poderemos ter um Parlamento Indígena verdadeiramente nacional e verdadeiramente democrático.

Essa Primeira Conferência foi um sucesso estrondoso. Mais de 800 indígenas representaram mais de 200 povos indígenas de todas as partes do Brasil. Esses representantes, jovens uns, experientes outros, vieram como delegados eleitos nas nove conferências regionais que antecederam a Nacional. Portanto, foi com a experiência e o esforço exercido na sua respectiva Conferência Regional que cada delegado indígena deu o melhor de si para produzir um fabuloso documento de análise de suas situações interétnicas, de críticas e de propostas para a formulação de uma nova política indigenista.

Daí é que o sucesso da Conferência Nacional não tenha sido surpresa. A satisfação de cada delegado indígena está estampada na documentação escrita e em vídeo feita em todos os grupos de trabalho e nas plenárias. Dessa Conferência Nacional despertaram novos talentos políticos e administrativos, novos gestores e intelectuais indígenas, e deles ouviremos e saberemos nos próximos anos. Resultado fi nal: a Conferência Nacional abriu uma nova página no indigenismo brasileiro, uma página de maior participação e protagonismo dos povos indígenas em seus destinos.

Carta do Presidente

Capa: Pintura corporal de índio Kayapó Foto: Ricardo Labastier

Este número traz também algumas reportagens

importantes, ricas em informação etnológica e histórica. Destaco a história dos índios Avá-Canoeiro; a retomada heróica dos Xavante de sua terra, chamada Marãiwatséde (mato espesso, grande) – na qual teve papel muito importante a ajuda da Funai, do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público Federal; o programa de construção de casas em aldeias indígenas, casas estas que agregam os valores culturais tradicionais com elementos da modernidade; o decreto presidencial que criou a Comissão Nacional de Política Indigenista; e a formação das lideranças Kayapó.

Leiam também, caros leitores, o artigo de Marina e Noel Villas Bôas, que tiveram uma rica experiência de relacionamento com a Funai e os povos indígenas; regojize-se com as belas fotos dos índios Guajá, feitas com muita sensibilidade por Christian Knepper, e aprenda com a entrevista da Severiá Idioriê, uma índia Karajá formada em Letras, casada com um cacique Xavante.

Quer mais? Espere pelo próximo número.

Mércio Pereira Gomes, antropólogo,

Presidente da Fundação Nacional do Índio – Funai

Belém-PA - Rua Presidente Vargas, 762 - Galeria Ed. da Assembléia

Legislativa Paraense, lj. 02, Centro - Telefax: (91) 3223.6248

Brasília-DF - Centro de Exposição e Vendas Artíndia - SEPS Q702/902

Ed. Lex - Térreo - Telefax: (61) 3226.4270

Cuiabá-MT - Rua Pedro Celestino, 301, Centro - Telefax: (65) 3623.1675 Goiânia-GO - Av. Leopoldo de Bulhões, Q.1 - Lote 1/5 - Setor Pedro

Ludovico - Telefone: (62) 3241.5762

Manaus-AM - Rua Guilherme Moreira - Praça Tenreiro Aranha,

Centro - Telefax (92) 3232.4890

Recife-PE - Rua João de Barros, 668 - Boa Vista - Telefone: (81) 3421.2144 Rio de Janeiro-RJ - Museu do Índio - Rua das Palmeiras, 55

Botafogo - Telefone: (21) 3286.8899

São Paulo-SP - Rua Augusta, 1.371 - Galeria Ouro Velho, lj. 116-117

Telefone: (11) 3283.2102

loja

artíndia

(3)

5 viagem pra Goiânia e fiquei num orfanato. Quando

o pai dela faleceu, eu pedi para ir morar com ela. Ela deixou de ser freira, casou-se, teve filhos. Então, eu fui criada não dentro de igreja, mas com a filosofia de pessoas católicas.

BI: Quais as maiores dificuldades que você enfrentou?

Severiá: Eu aprendi o português e perdi a minha

língua muito rápido. Segundo os lingüistas, isso não deveria ter acontecido porque eu tinha seis anos e já estava com a língua na cabeça. Não sei se foi por causa da ruptura... Pelo que me contam, quando eu cheguei na rodoviária, eu não queria descer do ônibus de jeito nenhum. A maior dificuldade foi a saudade dos meus pais, de ver que eu estava num mundo diferente do meu. Com o tempo, as coisas foram melhorando. Todos na minha escola sabiam que eu era índia e que eu ia voltar pra minha aldeia, mas a minha adolescência foi muito mais ligada aos ritos de passagem de vocês do que aos meus.

BI: Você disse que perdeu a língua muito rápido. Tenta

resgatar isso de alguma maneira?

Severiá: Nunca perdi a minha origem. Eu sei quem

eu sou. Toda vez que eu me olhava no espelho, sabia quem eu era. E mesmo quando não me olhava, todo o mundo me lembrava que eu era “a índia”. Quando fui pra universidade, entrei pensando em projetos que tivessem a ver com os povos indígenas. Em 1982, me envolvi num projeto da Universidade Federal de Goiás com a Universidade Católica, na área de educação para os Kraô [em Tocantins]. Foi lá que vi que eu estava muito branca. Um dia, estava um sol forte, todo o grupo tirou a roupa e pulou num laguinho. E eu fiquei lá parada, pensando: “Eu não vou tirar a roupa porque não conheço ninguém e depois vou cruzar com todos na universidade. De jeito nenhum!” (risos). Me dei conta de que eu tinha colocado na cabeça um padrão não-índio, o bonito era ser magrinha. Nessa época também descobri que existe o preconceito positivo e o negativo. Eu só tinha vivenciado o positivo, que era aquela coisa: “Nossa, como ela aprende rápido!”. Tudo era legalzinho porque eu era índia. Lá em Tocantins, as pessoas me olharam com raiva, com ódio. Não entendia por que; só depois percebi que existia uma resistência simplesmente pelo fato de eu ser índia. BI: Você voltou a uma aldeia Karajá? Como foi

esse reencontro?

Severiá: Em 1987, fui conhecer a Ilha do Bananal, onde

está concentrada a maior parte dos Karajá. Meu tio falou pra mim que, se eu quisesse continuar lá, teria que casar. Respondi que queria trabalhar na aldeia e não casar. Na época, eu tinha conhecido o Cipassé, que é nosso inimigo tradicional. Quando eu cheguei entre os “inimigos”, fui tratada como uma rainha. Fui muito bem recebida. E, quando fui pro Karajá, que é o meu povo, fiquei lá sozinha com as malas nas mãos. Aí eu pensei: “Opa, tem alguma coisa errada!”. Me senti mal. Afinal, mesmo que eu tivesse passado muito tempo fora, era uma parente que estava chegando na aldeia. BI: Como você conheceu o Cipassé?

Severiá: Na universidade, comecei a trabalhar nesses

projetos e, num belo dia, eu vi um índio lindíssimo, um Xavante alto, grande. Quando eu vi o Cipassé, ele estava amarrando uma pulseirinha xavante no pulso de uma menina americana. Aí, cheguei perto e pedi uma pra ele. Ele nem olhou pra mim e disse: “Acabou. Meu primo tem.” Eu fiquei tão decepcionada (risos). E era sempre assim: eu passava pelo Cipassé e ele nem me dava oi. Mas toda vez que eu o via, meu coração disparava, eu ficava suando. Um dia me ligaram pra dizer que eu precisava falar com uma pessoa que ia assumir a coordenação de um projeto novo. Essa pessoa era o Cipassé. Foi só então que a gente conversou e vimos que tínhamos muita coisa em comum. Ele foi lá em casa pra conhecer minha família e a gente começou a namorar. O problema era que ele tinha uma pretendente na aldeia. Não sei se vocês sabem, mas o sonho pros Xavante é muito forte. Eles têm sonhos de poder pelos quais sabem o que realmente é verdadeiro. E um tio dele sonhou que o Cipassé não ia se casar com a prometida. Aí esse tio reuniu todo o mundo e disse: “Olha, o Cipassé não vai se casar com a pessoa que está destinada a ele. Ele vai se casar com outra pessoa que vai ajudar muito o povo Xavante. Vocês devem apoiá-lo.” Foi assim que eu fui apresentada. Só que, entre uma coisa e outra, eu fui visitar [a Terra Indígena] Pimentel Barbosa e pensei comigo: “Eu não vou encarar essa.”

BI: Por quê?

Severiá: Porque Pimentel Barbosa me lembrava muito

a minha aldeia quando eu saí de lá, em 1969. E nós estávamos em 87. Imagine a responsabilidade, como eu poderia entrar num casamento e atrapalhar toda a dinâmica da comunidade? Você sentia – como sente até hoje – a essência do povo Xavante. Eu voltei pra cidade, conversei com o Cipassé e disse que achava que não

entrevista

SEVERIÁ IDIORIÊ

Ela saiu de sua aldeia aos seis anos de idade. Filha de Javaé com Karajá, foi se casar justo com um inimigo tradicional de seu povo. Mulher de Cipassé Xavante, mãe de Clara, ela se basta como Severiá Idioriê. Aos 44 anos de idade, já enfrentou a separação dolorosa da família, a discriminação velada das cidades, a dificuldade de conciliar sua origem com seu modo de vida e o preconceito, tanto dos Karajá como dos Xavante, em relação a seu casamento. Formada em Letras, com especialização em educação, Severiá trabalha em favor dos povos indígenas e faz uma reflexão sobre a situação atual do País. Mulher e indígena, num mundo comandado pelo machismo e pelo preconceito, tudo indicava que ela seria rejeitada em todos o lugares por onde passou.

Mas a história é outra.

Brasil Indígena: Onde você nasceu? Conte um pouco de

sua história.

Severiá: Eu nasci numa aldeia em São José dos

Bandeirantes, à beira do rio Araguaia. Antigamente o território do povo Karajá era da nascente do rio até o sul do Pará, em Xambioá. Hoje ele se concentra na Ilha do Bananal e em Xambioá. O mito de origem do povo Karajá é que a gente veio de um outro mundo que existia embaixo desse rio. Quando os meus pais faleceram, essa aldeia onde eu nasci deixou de existir e a

cidadezinha que existia ali tomou conta da área. BI: E quando você saiu da aldeia?

Severiá: Saí dessa região em 1969, quando eu tinha

de seis pra sete anos de idade. Minha mãe morreu primeiro, de sarampo, quando eu tinha mais ou menos nove anos, e meu pai morreu quando eu tinha 12. A gente não sabe até hoje como ele faleceu. O povo Karajá já tem mais de 200 anos de contato e, por isso, tem muito problema com alcoolismo. Ele era uma pessoa excelente, trabalhador, mas, quando bebia, saía fora do seu normal. Então, a gente não sabe ao certo, só chegou pra gente a notícia de que ele tinha falecido... Nessa época, eu já estava em Goiânia. BI: Você foi morar em Goiânia ainda criança.

Como foi essa decisão?

Severiá: Um belo dia, meu pai me chamou e me

deu um monte de conselhos que, na época, eu nem entendi muito. Na minha cabeça, a decisão de sair foi minha, mas a minha irmã diz que eu estava muito doente e tive de ir pra cidade. Lembro que, quando entrei no avião, um doce felpudinho que as missionárias recebiam da Alemanha escorria entre meus dedos. Eu saí com uma freira para Crixás, mas assim que nós chegamos lá, ela soube que o pai dela estava muito doente em Goiânia. Então, eu segui

força índia

Christiane Peres e Júlia Magalhães

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6 7

vem sendo ameaçado. Será que a gente vai conseguir resistir outros 500 anos?

BI: Você viveu muito tempo na cidade, esteve à frente

de vários projetos. Como é o seu cotidiano na aldeia?

Severiá: Bom, eu converso muito! (risos) Lá, alguns

não falam português, eu não falo xavante, então eu ficava muda por dias seguidos. Mas foi um tempo de prestar atenção nas coisas. Em todos os povos, o feminino e o masculino são complementares. Eu acabo transitando muito no mundo dos homens. Às vezes, eu lavo roupa junto com as mulheres, no grande rio. Mas meu cotidiano é muito mais ligado ao mundo masculino do que ao feminino. Agora, isso não quer dizer que a gente não tenha uma boa relação. Eu acho até que elas também ficam tentando me entender. O meu sonho daqui um tempo é entrar mesmo no universo dessas mulheres e aprender a fazer cestos, por exemplo. Coisas que a Clara, com nove anos de idade, já sabe fazer. Ela está conseguindo se conectar de uma maneira muito legal com esse universo feminino. Mas meu sogro me disse: “Olha, o seu conhecimento vai ajudar a gente em outras coisas. Você vai ser muito boa quando a gente pedir pra você escrever os documentos, quando você falar pro mundo o que a gente pensa.”

BI: Vocês fazem parte de um movimento de luta pelos

direitos indígenas. Incentivam isso entre os jovens também? Como é a organização de vocês?

Severiá: Apesar de o Cipassé ser mais jovem do

que eu, ele teve uma militância maior e eu aprendi muito com ele. O que eu mais gosto nele é essa questão do trabalho de base. Quando o Cipassé e a família dele começaram esse movimento, deram origem a uma das primeiras associações indígenas

do Brasil, a Associação dos Xavante de Pimentel Barbosa, fundada antes da Constituição de 88. Depois é que a Constituição garantiu o direito de os povos indígenas se organizarem. Pela filosofia do Apoena, que era avô do Cipassé, a formação do jovem era algo muito importante. Os jovens são, ao mesmo tempo, mensageiros e protetores. São os guerreiros. BI: Que balanço você faz da atuação da Funai junto

aos povos indígenas?

Severiá: A Funai tem um papel fundamental quando

garante os direitos dos povos indígenas. Ela tem que ser um órgão orientador e ver com mais cuidado as especificidades de cada etnia. Deve orientar, ajudar a coordenar e dar condições para o desenvolvimento dessas comunidades. Mas o trabalho da Funai está muito centrado em Brasília. Se isso é bom por um lado, por outro não é. Isso é uma dificuldade do Governo como um todo. O sistema que está posto – e a Funai faz parte desse sistema – é ruim. Porque tem o poder central, depois os departamentos e, até chegar lá na ponta, muita coisa se perde. O que precisa ser revisto são as relações que o Governo Federal estabelece com os povos indígenas.

BI: Você está falando da construção de políticas públicas?

Severiá: Sim. Essa questão precisa ser melhor

conduzida como um todo. A gente não quer nada diferente do que a maioria da população brasileira quer. Queremos saúde, educação, garantia de

segurança. A única coisa de que a gente precisa é que a Funai tenha pessoas que entendam que os indígenas têm suas diferenças. O País precisa de políticas públicas pro povo brasileiro. Esse é o ideal pelo qual a gente luta. Queremos um projeto que respeite todas as particularidades, um projeto de Brasil.

ia dar certo. Mas aí ele me procurou, disse que tinha pensado muito e que queria ficar comigo. A gente fez uma reunião na aldeia, que deu uma discussão muito feia e tal, mas seguimos em frente. Casamos no civil, no religioso, por causa da minha família adotiva, e no Xavante. Só faltou casar no Karajá.

BI: E como é a relação de sua filha, a Clara, com

os Xavante?

Severiá: Antes disso, tenho de dizer que eu também

consultei meus parentes sobre o casamento. Meu tio disse o seguinte: “Eu casei com uma índia do Xingu, Kamayurá.” Aí fui falar com outro tio, que me disse: “Eu acho muito bom casar com outro povo. Eu estou casado com uma pernambucana.” Pensei: “Nossa, a minha família é toda doida!” (risos). Já a minha irmã mais velha achou um absurdo. Então, essa coisa de ser aceita aconteceu dos dois lados. A relação da Clara com os avós é muito interessante porque a língua materna dela é o português, já que eu não falo karajá e não aprendi a falar xavante. Eu tenho um tipo físico Xavante, se eu falo a língua deles, viro Xavante e eu sei que eu sou Karajá. A gente morava na cidade, mas ia sempre pra aldeia. Um dia, quando a gente estava se despedindo pra voltar pra cidade, eu vejo a Clara encostar no banco de trás do carro e chorar. Aí eu disse pro Cipassé que estava na hora de a gente voltar pra aldeia. Quando nós voltamos, ela foi a que se adaptou mais rápido. Achei que fosse ser mais difícil pelo fato de ser filha única e ter sido criada na cidade. BI: Você é formada em Letras, com especialização

em Português e Inglês. Pensa em fazer uma pós-graduação?

Severiá: O preconceito que as comunidades indígenas

sofrem é muito grande, a questão da identidade, dos olhos do outro, do julgamento. Se você não for uma pessoa muito centrada, acaba se perdendo. E todo o

“Toda vez que eu me olhava

no espelho, sabia quem eu

era. E mesmo quando eu não

me olhava, todo o mundo me

lembrava que eu era ‘a índia’.”

mundo quer ser querido, não é? Quer ser respeitado. Quem fica muito tempo na cidade ou vira um não-índio ou mantém as raízes e sabe o peso disso. Existe preconceito mesmo. Quando a gente começou a trabalhar com projetos de meio ambiente e educação, começamos a pensar nessas diferenças. Eu me formei em 1986 e a coisa do mestrado e do doutorado não era tão comum. Comecei a pensar em fazer o mestrado nos últimos tempos, para falar sobre afirmação mesmo. Todos falam pela gente, os especialistas, os doutores etc. Porque eles são “os doutores”, as pessoas acreditam mais no que eles dizem do que, por exemplo, no que um indígena fala. Esse é um dos motivos pelos quais eu quero escrever a tese. Eu gostaria de fazer um mestrado que tratasse da questão socioambiental, a relação entre meio ambiente e comunidade. Às vezes, quando eu estou lá no rio, vendo as estrelas, aquele mundo perfeito, fico pensando que tudo isso está correndo muito perigo. Se a gente não fica antenado no que está acontecendo, a expansão agrícola vai atingir a nossa área. Há mais de 500 anos de contato que esse paraíso

DANIEL CABIXI

“Há mais de 500 anos de contato que esse paraíso vem sendo

(5)

sumário

Carta do Presidente

1

Mércio Pereira Gomes, antropólogo

Entrevista: Severiá Idioriê

2

A índia Karajá que vive entre os Xavante

Cultura: Avá-Canoeiro

8

Sobreviventes de um massacre, eles ensinam que a vida se transforma

Especial: Conferência dos Povos Indígenas

14

A voz e a vez dos índios brasileiros

Opinião: Marina e Noel Villas Bôas

23

O desafi o de colocar as reinvidicações em prática

Ensaio: Christian Knepper

24

A beleza ameaçada dos Awá-Guajá do Maranhão

Terra: Marãiwatséde

32

Após 40 anos de exílio, o povo Xavante recupera sua terra

Direitos: Participação Social

39

Decreto presidencial cria Comissão Nacional de Política Indigenista

Geral: Construção de Moradia

40

Projeto da Funai concilia tradição com elementos da modernidade

Educação: Ensino Superior

42

Jovens indígenas ingressam na universidade

Opinião: Olgair Gomes Garcia

45

Professora da PUC/SP fala de inclusão

Perfi l: Benhadjorore Kayapó

46

As lideranças tradicionais guardam a cultura

expediente

Presidente da República Ministro da Justiça Presidente da Funai Chefe de Gabinete Conselho Editorial Coordenador Editorial Editores Repórteres Colaboradores Fotógrafos Copidesque Projeto Gráfi co Diagramação e arte Tiragem Impressão Jornalista Responsável

Luiz Inácio Lula da Silva Márcio Thomaz Bastos Mércio Pereira Gomes

Roberto Aurélio Lustosa Costa

Publicação bimestral da Fundação Nacional do Índio – Funai/Coordenação Geral de Assuntos Externos (CGAE) em parceria com Via Pública – Instituto para o Desenvolvimento da Gestão Pública e das Organizações de Interesse Público Carmen Junqueira

Daniel Matenho Cabixi Dominique Gallois Guilherme Carrano Izanoel dos Santos Sodré João Pacheco de Oliveira José Carlos Meirelles Jurandir Siridiwê Xavante

Pierlângela Nascimento da Cunha Michel Blanco Maia e Souza Felipe Milanez

Júlia Magalhães Christiane Peres Danielle Santos Mário Moura Filho Christian Knepper Marina Villas Bôas Noel Villas Bôas Olgair Gomes Garcia Walter Sanches Ademir Rodrigues Anderson Schneider Felipe Barra Ricardo Labasier Anna Isabel Teresa Bilotta Marcelo Afl alo

Univers Design / Marcelo Afl alo e Cristiane M. Novo 10 mil exemplares

Ipsis Gráfi ca e Editora Júlia Magalhães

Fundação Nacional do Índio – Funai

Coordenação Geral de Assuntos Externos – CGAE SEPS QD. 702/902 Ed. Lex, 3º andar

CEP 70390-025 Telefone: 61 32269411

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11

cultura

Máila, o encantado, espírito capaz de criar e destruir o mundo dos Avá-Canoeiro. Para eles, o nome de Máila tambêm designa o homem branco. A figura mitológica confunde-se hoje com a ira de jagunços contratados para dar fim à vida dos índios que habitavam o cerrado ao norte de Goiás, num morro de terras ricas chamado Mata do Café. Para os sobreviventes de um dos mais violentos massacres já vistos no Brasil, matadores que traziam em punho armas de fogo eram também chamados pelo nome desse poderoso espírito indígena. Em 1968, um grupo de cerca de 150 pessoas foi vítima da brutalidade de homens que, enraivecidos, cobiçavam suas terras e abominavam sua existência. Da grande aldeia, plenamente constituída, restaram apenas quatro pessoas – um homem, duas mulheres e uma criança. “Meu papai e minha mamãe morreu. Máila matou”, conta Iawi, que na época, tinha apenas cinco anos de idade.

AVÁ-CANOEIRO

tempo rei

Júlia Magalhães

Fotos: Ademir Rodrigues

Regiãonorte de Goiás MunicípioMinaçu (GO)Área38 mil hectaresPopulação06 indivíduos

EtniaAvá-CanoeiroLínguada família tupi-guarani

Retrato de família: os seis índios de Goiás, pela lente do indigenista e fotógrafo Walter Sanches, na década de 1990

Na maloca dos índios, Matcha, a mais velha do grupo, quase nunca se levanta da rede. Depois que perdeu a vista, ela deixou de andar com Iawi pelas matas da Terra Indígena

Hoje, 40 anos depois, Iawi evita falar sobre seu passado triste. Presenciou o assassinato de todos os seus parentes. Fugiu com Matcha, Nakwatcha e o marido de Matcha para viver anos de angústia, escondendo-se em grutas e caçando durante a noite. “A grande tragédia dos Avá foi que, por causa dessa perseguição constante, indivíduos foram privados do convívio com sua sociedade. Mas, quando conheci esse grupo de Minaçu, tive uma grande surpresa. Eles transformaram um sentimento que para nós é insuportável em algo suportável. Estão sempre aprendendo, conhecendo... Estão em constante expansão.” É assim que Cristhian Teófilo da Silva, antropólogo da Universidade de Brasília (UnB), define essa pequena família, hoje habitante da Serra da Mesa, a leste do rio Tocantins.

As investidas contra os Avá-Canoeiro começaram já no início do século 19, com o avanço de fazendas, vilas e garimpos sobre as terras tradicionais dos índios. Diversos ataques foram fragmentando, aos poucos, um povo resistente. No fim dos anos 60, numa área que abrangia o norte de Goiás e parte da Ilha do Bananal, restaram apenas dois grupos da etnia, separados por quase 400 quilômetros de distância. Um permaneceu no estado de Tocantins e, atualmente, vive em uma aldeia na Terra Indígena Parque do Araguaia. O outro, de Iawi, Matcha e Nakwatcha, escondeu-se nas serras próximas à cidade de Cavalcante, em Goiás.

Durante quase 10 anos, esse segundo grupo assistiu ao fim do mundo. “Para os índios, esses homens brancos eram um bando de máilas enraivecidos”, explica Cristhian. Por serem os únicos sobreviventes de uma aldeia e alvo de uma caçada sem fim por parte dos fazendeiros da região, os índios viveram em cavernas. Isso não representava apenas uma ameaça à vida, mas algo mais assustador. “As grutas são a morada das onças que, por sua vez, simbolizam os antepassados dos índios. Eles têm muito medo desses espíritos”, diz o antropólogo. © Walter Sanches

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e Jatulika, este com 19 anos, são falantes e expansivos. Aproximam-se com coragem do novo, assim como Niwathima, de 16 anos.

Se, por um lado, transcendem a existência do próprio grupo, por outro, carregam as lembranças da tragédia que sofreram e a agonia de um futuro incerto. “Quando cheguei para trabalhar no Posto Indígena de Atração Avá-Canoeiro, encontrei-os comendo açúcar cristal em panelas de alumínio e bebendo óleo de soja em copos de vidro”, lembra Walter Sanches, indigenista da Funai que está entre os Avá desde 1990. Hoje, o cenário é outro. Mas em 1983, quando a Funai fez o primeiro contato com a família de Iawi, esses índios experimentavam o que havia de mais cruel e sórdido na cultura ocidental. Antes mesmo de se aproximarem dos indigenistas do Governo, os Avá de Minaçu tiveram uma desastrosa convivência com os operários que trabalhavam na construção da Usina Hidrelétrica Serra da Mesa, empreendimento da empresa Furnas Centrais Elétricas e o principal elo de ligação dos sistemas elétricos Norte e Sul.

Nos acampamentos da obra da usina, Matcha, Nakwatcha e Tuia foram vítimas de agressões atrozes. Iawi fumava cigarros “brancos” e tragava cachaça. Desabituado à bebida alcoólica, começou a depender daquela sensação estranha de torpor. As mulheres, no entanto, mostraram que faziam parte de um grupo tupi historicamente resistente a todo aquele impacto externo. Queriam outro mundo que não fosse aquele, queriam ver o grupo longe da violência e seguro de mais uma onda de fúria dos máilas.

Logo que os Avá-Canoeiro foram alcançados pelas frentes de contato da Funai, começaram a se

AVÁ-CANOEIRO

dois jovens trocaram de nome, ao passar da infância para a vida adulta – Trumak passou a se chamar Jatulika e Putdjawa hoje atende por Niwathima. São essas seis pessoas que, em meio a mais de 180 milhões de brasileiros, ensinam que a vida vai muito além de estatísticas, interesses ou qualquer cultura.

Estabeleceram uma relação de harmonia e afetividade. Trocam carinhos, são solidários uns com os outros e recebem os desconhecidos, que um dia lhes custou a dignidade, com os braços abertos. As mulheres, mais reservadas, falam muito pouco o português, principalmente Nakwatcha, a que mais resiste às infl uências da sociedade envolvente e luta para manter alguns costumes remanescentes dos Avá, como práticas curandeiras. Mesmo assim, não deixam de olhar no olho, pegar nas mãos do visitante, puxá-lo para bem perto do peito num abraço sincero. Já Iawi

Alegria de viver

Ao contrário do que se possa

imaginar, os sobreviventes do massacre da Mata do Café superam, a cada dia, uma história de perdas e ensinam que a vida se transforma. Se, por anos, viveram aterrorizados, hoje eles brincam, riem e fazem das pequenas coisas do cotidiano uma grande descoberta. Iawi revela alegria de viver. De calças

jeans surradas e botinas velhas, ele passa parte de

seu tempo a explorar a Terra Indígena Avá-Canoeiro, uma área de 38 mil hectares demarcada pela Funai. É ali que vive com suas três mulheres e dois fi lhos. Matcha e Nakwatcha, muito mais velhas que Iawi, são, respectivamente, sua primeira e segunda mulher. Tuia, a mais nova delas, nasceu nas grutas daqueles tempos terríveis e é fi lha do primeiro casamento de Matcha. Com Iawi, Tuia teve duas crianças, o menino Trumak e a menina Putdjawa. Há pouco mais de um ano, os

Nakwatcha é a que mais resiste aos impactos culturais. Na foto, ela prepara o milho colhido na roça Abaixo, detalhe do espantalho criado pelos índios para a horta do posto indígena da Funai

© Walter Sanches Irmãos inseparáveis:Jatulika e Niwathima

brincam, pescam, trabalham na roça e estudam juntos

(8)

14 15

Iawi mostra orgulhoso um álbum

de fotografias, onde guarda

lembranças de viagens que

fez pelo Brasil. Rio de Janeiro,

São Paulo, Brasília. Todos

esses lugares despertam nele

uma vontade de desvendar a

imensidão de diferenças.

distanciar de um destruidor processo de perda de identidade e auto-estima. “Eram cinco mil operários, com vilas, prostitutas, bebida, festas, tratores, bombas. Um cenário dantesco. Eles foram completamente desumanizados naquela situação”, conta Cristhian Teófilo. Os próprios índios sentiam necessidade de sair dali e contaram com o apoio da Funai para isso. “O que o Walter fez, em 1990, foi um trabalho de filtragem indigenista, de tirar todo aquele lixo cultural de perto dos índios”, acrescenta o professor da UnB. Foi a partir de então que a Funai conquistou um difícil acordo de impacto ambiental com Furnas, que garantiu condições mínimas para os índios e a demarcação da área.

João Mandioca

Embora a aproximação dos índios com pequenos agricultores, fazendeiros e depois com operários da hidrelétrica tenha colocado em risco a integridade do grupo, uma boa notícia começou a se espalhar na pequena Minaçu ainda no início dos anos 1980. Iawi, exausto de um isolamento profundo, começou a visitar a feira da cidade. Ainda não falava nem entendia o português, mas se comunicava por gestos. Os feirantes pensavam que ele queria comida e nem imaginavam que o que Iawi buscava ali era a reconciliação de seu passado com os máilas. Nas tentativas frustradas de diálogo, Iawi reconheceu apenas a palavra “mandioca”, de origem tupi-guarani.

Assim, a cada vez que alguém lhe dizia “mandioca”, ele a repetia diversas vezes, contente de encontrar algo em comum entre aqueles dois mundos. Aos poucos, começou a ficar conhecido na cidade como João Mandioca. “Logo que cheguei aqui, achava esse apelido um tanto pejorativo. Detestava ouvir “João Mandioca”. Até que um dia, uma jovem antropóloga, por quem eu tinha grande estima, desceu do carro e gritou para o Iawi ‘Fala, Mandioca!’. Foi então que eu percebi que não era bem assim”, lembra Walter Sanches.

Para Iawi, “mandioca” é como uma saudação. Ao invés de falar “oi”, ele grita “Mandioooca!”. E, às vezes, varia: “mandioquinha”, “mandiocão”, “madiocona”. De certa forma, conseguiu transformar o que poderia ser motivo de chacota em algo de extraordinário bom humor.

Em um abraço carinhoso, Iawi demonstra seu amor por Matcha. Toda vez que ela sai da aldeia, ele a leva nas costas e caminha pelo menos 2 km até o posto da Funai

ser quando crescer”. Já Iawi guarda no aparelho de som uma de suas pontes com o universo. Além de notícias e dos programas típicos das rádios de interior, ele também conserva num saco de estopa dezenas de fitas cassetes. “Ele tem uma sofisticação natural, gosta de ouvir boa música. Um dia, o [antropólogo] Marco Lazarin veio nos visitar na Terra Indígena e, durante uma caminhada, começamos a falar de cantores, compositores e estilos. Quando chegamos à aldeia, Iawi correu, abriu aquele saco cheio de poeira, procurou uma fita e colocou no som. Buscou, pacientemente, a música que queria mostrar. Aumentou o volume e disse: ‘Olha, olha! Bonito!’. Era Tempo Rei, de Gilberto Gil”, conta Walter Sanches. A letra de um dos maiores compositores da música popular brasileira fala de um tempo que leva a vida para o além, para um desconhecido que o homem não é capaz de controlar. Diz: Tudo permanecerá do jeito que tem sido / Transcorrendo / Transformando / Tempo e espaço navegando todos os sentidos.

Proteção de mãe: Tuia admira a filha Niwathima

Aprendizes do tempo

Jatulika e Niwathima começaram a aprender a ler e escrever em português. Uma maneira de se conectarem com o resto do mundo. Gostam, especialmente, de folhear revistas, ver imagens de cidades distantes, de praias, dunas, prédios. O pai, Iawi, mostra orgulhoso um álbum improvisado de fotografias, onde guarda lembranças de viagens que fez pelo Brasil. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília. Todos esses lugares despertam nele uma vontade de desvendar essa imensidão de diferenças. “A música, o sexo, a comida, os objetos. Esse mundo de coisas desempenha um papel de sociabilidade”, diz Cristhian Teófilo.

Os adolescentes vão a festas e comemorações em Minaçu. Nasceram em outra época, quando puderam extrair do espírito urbano aquilo que menos prejudicava suas raízes. Jatulika e Niwathima fizeram aulas de violão, por exemplo, e iam de carro até o pequeno centro duas vezes por semana. Gostam de ouvir música, divertem-se pensando “o que você vai

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A Conferência foi uma promessa do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Lideranças e organizações reivindicavam o encontro há anos, pois tinham a convicção de que seria fundamental para a consolidação de uma nova política indigenista. O presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, considera a Conferência o auge da participação política

dos índios nos planos e decisões que lhes dizem respeito, ao criar oportunidades para decidirem seu futuro. Para Mércio, trata-se da construção de um fórum democrático inédito. Por ocasião do evento, ele afi rmou: “Trabalhamos na formulação desta Conferência Nacional desde o fi m de 2003. Em dezembro de 2004, realizamos a primeira regional. Tudo faz parte de um processo, em que os próprios indígenas defi nem os temas de interesse e organizam os debates. A Funai aqui é apenas o órgão que

viabiliza o encontro. O trabalho é todo deles. Acredito que o movimento indígena saia fortalecido daqui.”

Mércio também vê a Conferência como o embrião para um Parlamento Indígena. A idéia de se

Pela primeira vez na história, o Governo Federal convidou os índios para debater temas que estão ligados a difi culdades para a garantia de seus direitos. Nesse sentido, as conferências são um importante instrumento para ampliar a participação social na formulação de políticas para a melhoria das condições de vida dos indígenas. Todos os delegados das

regionais e a própria coordenação da etapa nacional foram eleitos pelos índios, o que permitiu direito a voz e infl uência direta nas decisões do encontro.

especial

Traços, línguas, costumes diversos. Um grande tecido pluritétnico formado pela união de

indígenas de todos os cantos do País. Lado a lado, representantes de povos que nunca haviam se visto ou até grupos historicamente rivais, no maior encontro já realizado entre os povos originários do Brasil. Apesar das diferenças, compartilhavam um desejo: reivindicar o direito de serem ouvidos. Em Brasília, 800 líderes de 220 etnias elevaram suas vozes em escala e alcance jamais vistos, para debater as políticas públicas e a estrutura do Estado na implementação da política indigenista brasileira. A Conferência Nacional dos Povos Indígenas foi o resultado de 17 meses de articulação, desde os encontros regionais, que reuniram, juntos, mais de três mil participantes.

vozes em

ascensão

Christiane Peres e Júlia Magalhães Fotos: Ricardo Labastier

CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS Onde Brasília Quando 12 a 19 de abril de 2006 Participantes 800 líderes de 220 etnias brasileiras Temas

discutidos autonomia política, questões territoriais, educação, saúde e políticas públicas para índios urbanos

560 delegados indígenas participaram das votações de propostas para a formulação de uma nova política indigenista

criar um parlamento, inclusive, foi uma das propostas aprovadas pelas etapas regionais e o sexto item do documento fi nal da Conferência Nacional. Os índios esperam torná-lo a maior instância de consulta e deliberação a respeito de todas as questões que envolvem e afetam comunidades indígenas.

Primeiros debates

A realização das nove conferências regionais serviu de base para as discussões da etapa nacional. Temas como autonomia política, regularização fundiária, educação e saúde precisavam ser revistos e atualizados diante da atual situação vivida pelos indígenas. Mais de 1.300 propostas foram aprovadas nesses encontros. Casos recentes, como a desnutrição das crianças em Mato Grosso do Sul, o despejo de famílias em Nhanderu Marangatu e a difi culdade de retirar arrozeiros e posseiros da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, são algumas evidências da importância das discussões.

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18 19

da articulação que irá inserir o índio no debate político e incentivar sua representação nas esferas federais. “É preciso resgatar a luta do Juruna, o primeiro índio a chegar a deputado federal. Essa memória precisa servir de estímulo aos outros, pois mais índios têm que entrar no Congresso Nacional e lutar pelos seus direitos. Esse é um passo para fortalecer o movimento indígena e para que um dia se crie o Ministério dos Povos Indígenas”, diz. “Quando tudo estiver fortalecido, e não está muito longe este dia, a Funai será presidida por um índio, pois o índio tem que estar representado em todas

as esferas brasileiras, defendendo seus povos e buscando alternativas econômicas”, acrescenta o presidente do órgão.

Um enorme número de demandas para os povos indígenas surgiu na Conferência como forma de consolidação de sua luta e contestação das políticas indigenistas atuais. A Conferência Nacional em Brasília tinha o objetivo de reunir a diversidade de propostas e conciliar duas formas de organização política: a cultura tradicional das etnias em suas aldeias e a estrutura política do Estado brasileiro. Entre os destaques, estava a questão da tutela

do Estado, prevista legalmente no Estatuto do Índio. “É preciso saber até onde vai a proteção ao índio. Se ela é igual para todos ou só para os índios que vivem nas aldeias”, diz um dos organizadores da Conferência, Caboclinho Potiguara.

O conceito de tutela não foi negado. O desejo dos participantes, aprovado em votação, era que o termo passasse a “proteção especial”. Desde a Constituição de 1988, o significado da tutela vem amadurecendo e ganhando força. Com a ratificação da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Estado brasileiro comprometeu-se a garantir autonomia e autodeterminação dos povos. Desde então, os índios puderam se organizar

e participar mais efetivamente das discussões.

Ministério Indígena

Das nove etapas

regionais, seis propuseram a mudança da estrutura governamental responsável pela política indigenista. Os delegados pediram a formação de um Ministério dos Povos Indígenas, capaz de centralizar as ações em educação, saúde, questão fundiária, cultura e desenvolvimento sustentável. Tudo isso com

orçamento próprio e chefiado por um titular indígena. Tal proposta não foi aprovada na Conferência Nacional. O primeiro item do texto final mostra que a discussão será retomada no próximo encontro. Por enquanto, conforme o documento, os delegados decidiram pelo fortalecimento da Funai, acreditando que “não é o momento para criar outra estrutura, que não contará com o apoio necessário para seu funcionamento”. “Se nós criarmos um ministério agora, ficaremos só no cabelo, pois não temos pernas e braços. Não pode acontecer isso. Esse é um sonho. Precisamos fortalecer agora para criar depois. Hoje não temos um índio no Congresso, nem na Presidência da Funai, nada disso. Precisamos começar por aí”, afirma o líder Kayapó paraense Ákjboro.

Defensor de uma maior participação indígena na política brasileira, Mércio Gomes espera que a Conferência tenha sido o ponto de partida para o amadurecimento dos debates e o desenvolvimento

CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS

Detalhe de camiseta usada pelos delegados durante a Conferência (acima) O líder indígena Cipassé Xavante participa atento das discussões na plenária (abaixo)

Fotos: Isaac Amorim / ACS /MJ

Momento importante: o índio Kayapó Ákjboro entrega o documento final com 382 propostas ao presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes

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principais

propostas

O documento final aprovado pelos 560 delegados da Conferência Nacional reúne 382 propostas para a formulação de uma nova política indigenista. Confira os principais itens:

1

Autonomia Política

A votação para a proposta de criar o Ministério dos Povos Indígenas foi adiada para a próxima conferência. Os delegados entenderam que agora é preciso fortalecer a Funai.

Criação do Parlamento dos Povos Indigenas, com participação efetiva de todas as etnias do Brasil.

Será discutida a eleboração do Estatuto dos Povos Indigenas, que deverá contemplar, entre outras coisas, o termo tutela como “proteção especial”.

2

Território

Revisão e adequação do Decreto 1.775/1996, com o objetivo de facilitar e acelerar o processo de

regularização de terras indígenas.

Ibama e Funai devem fiscalizar permanentemente as áreas indígenas, além de promoverem a formação de índios como agentes fiscais e engenheiros ambientais e florestais.

3

Educação

Criar e implementar um sistema de ensino federal de Educação Escolar Indígena.

A Funai deve acompanhar e supervisionar todas as ações e projetos relacionados à área de educação indígena.

4

Saúde

Garantir que o atendimento à saúde volte a ser responsabilidade da Funai.

A Funai, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), deve realizar o Censo Indígena a cada dois anos.

CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS

TERRA

por compromisso

e agilidade

Dos cinco temas debatidos durante a Conferência Nacional, a questão fundiária foi a que ganhou maior destaque. Cento e quarenta e sete propostas foram aprovadas, pedindo mudanças legislativas e maior agilidade no processo de regularização das terras indígenas. Um exemplo crítico é o caso de Nhanderu Marangatu (MS), que, já homologada, sofreu uma reintegração de posse obtida na Justiça pelos fazendeiros da região.

A líder Guarani Kaiwá Maria Regina de Souza lamenta a interferência da Justiça no caso e levanta a bandeira da questão fundiária. “A gente podia estar discutindo saúde e educação, mas sem terra a gente não tem isso. Terra é o principal de tudo. A terra que já está homologada tem de ser respeitada e o que aconteceu foi muito triste. Os fazendeiros foram lá e eles têm dinheiro pra comprar tudo”, critica.

Para evitar situações como essa, as lideranças pediram maior articulação entre os órgãos

governamentais e federais. Além disso, ressaltaram a importância de revisar e atualizar o decreto 1.775/1996, que hoje estabelece os passos do processo de regularização de terras indígenas. Com isso, os delegados querem garantir que os prazos sejam cumpridos e os procedimentos administrativos, acelerados.

A Conferência também decidiu que são necessárias medidas emergenciais, como interditar áreas de índios sem contato e retirar ocupantes não-índios das terras já identificadas. É o atual desafio das etnias Makuxi, Taulipang, Wapixana e Ingarikó, que vivem na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em

Roraima. “A gente está passando por um problema muito grande. Mesmo nas áreas demarcadas ou homologadas, nossos direitos são desrespeitados pelos posseiros, que destroem a nossa terra. Precisamos que haja a retirada deles”, pede a vice-coordenadora da Organização de Mulheres Indígenas de Roraima, a Makuxi Luciana Lima.

Nesse caso, desde abril, a Funai e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) atuam em conjunto para retirar os invasores de Raposa Serra do Sol. Mais de 20 indenizações já foram pagas pela Funai e as famílias foram reassentadas pelo Incra em lotes de 100, 250 ou 500 hectares.

Para assegurar agilidade do processo de

regularização fundiária, os delegados aprovaram um item que reivindica a participação direta e efetiva dos índios na criação e na implementação de um Conselho Nacional de Política Fundiária Indígena.

O Ministério da Justiça e o Ministério de Minas e Energia concluíram o anteprojeto de lei sobre mineração em terras indígenas. Desde 2004, uma comissão interministerial discute alternativas legais para a exploração de recursos minerais nessas áreas. Apesar de não ter sido oficialmente apresentado aos representantes das mais de 220 etnias do Brasil, diversos líderes indígenas já tiveram acesso ao anteprojeto de lei. Mas os delegados da Conferência Nacional decidiram adiar a discussão sobre mineração para o próximo encontro, sem previsão de data.

Para algumas comunidades, no entanto, há a preocupação de se regularizar urgentemente a exploração de minérios. É o caso da Terra Indígena Roosevelt, onde, em 2004, garimpeiros morreram em conflito com índios Cinta Larga, em razão da exploração ilegal de diamantes. Em abril deste ano, mais dois casos de homicídio foram registrados na área.

O anteprojeto institui um regime especial para atividades relacionadas à mineração em terras indígenas e baseia-se, entre outras coisas, em seis pontos importantes:

as concessões anteriores à promulgação desta Lei serão anuladas;

as comunidades indígenas afetadas serão consultadas, podendo autorizar ou não as atividades;

as comunidades poderão participar do procedimento licitatório, por meio de cooperativas ou associações;

laudos do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e da Funai avaliarão os impactos ambientais e socioculturais das atividades dentro das áreas indígenas, para conceder ou não autorizações a qualquer iniciativa;

os índios terão direito à participação de 3% do faturamento bruto da exploração, dos quais metade irá para a comunidade afetada e a outra metade para o Fundo de Compartilhamento de Receitas sobre a Mineração em Terras Indígenas, que será instituído para atender a diversos povos indígenas;

a comunidade afetada terá direito a uma renda pela ocupação e instalação de empresas dentro da terra indígena.

projeto em discussão

Foto: Anderson Schneider

Conheça todas as propostas e o documento final da Conferência no sítio www.conferenciaindigena.com.br

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22 CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS 23

Mais que bom atendimento à saúde, os índios querem profissionais que entendam a diversidade dos povos

O cacique Aritana Yawalapití viajou do Parque do Xingu (MT) até Brasília, a fim de defender uma educação diferenciada para as crianças indígenas. Representando as 15 etnias do Parque, Aritana tenta manter o objetivo dessas comunidades: preservar a cultura, tal como idealizaram os irmãos Villas Bôas. Isso passa pela educação nas aldeias. Os dados do Censo Escolar 2005 mostram que existem 2.324 escolas funcionando em terras indígenas, com 164 mil estudantes, mais da metade deles nas séries iniciais do Ensino Fundamental. No entanto, a quantidade de escolas não garante a qualidade da educação.

“Tem de melhorar. Precisamos da cultura do índio e também aprender o português. Aprender primeiro nossa cultura, língua e tradições, depois vemos o resto”, afirma Aritana. A reivindicação deu o tom das propostas apresentadas sobre o tema. O documento final detalha diretrizes para currículos escolares, formação de profissionais indígenas e produção de material didático.

Trata-se de uma preocupação das lideranças com o respeito às tradições indígenas. Apesar de a Constituição Federal garantir, no papel, um ensino bilíngüe, na prática, muitas vezes não funciona dessa forma. As escolas levam para dentro das aldeias um sistema que não corresponde à realidade dos índios e acabam por impor um processo de

aprendizagem que os distancia de suas tradições. “Durante a Conferência, nós aprovamos uma proposta para a criação do Sistema Federal de Educação Escolar Indígena”, diz a mestre em Educação Francisca Novantino Paresi. Chiquinha, como é conhecida, era membro do Conselho Nacional de Educação, mas foi substituída por outro indígena este ano. Na Conferência, houve uma mobilização para que ela retomasse sua cadeira no Conselho.

EDUCAÇÃO

aprender sem

perder as raízes

De olho no futuro, a criança indígena observa o debate sobre educação, na Conferência

SAÚDE

em busca de soluções

Dados mostram que existem 2.324 escolas em terras indígenas. No

entanto, a quantidade não garante a qualidade da educação.

Contatados há menos de 20 anos, os Matis, etnia do extremo oeste da Amazônia, vivem ainda hoje a fase inicial de problemas pós-contato com a sociedade envolvente. Nômades, foram obrigados a se organizar em comunidades. A falta de estrutura e saneamento trouxe doenças antes desconhecidas para esse povo: a malária e a hepatite.

Escolhido para representar na Conferência cerca de 200 indígenas da etnia, o cacique Txamã Matis sentiu dificuldade para acompanhar a complexidade dos debates dos outros povos. “Ainda não entendo bem como essas discussões vão melhorar a vida dos Matis. As doenças estão acabando com meu povo e não foram lá para resolver. A gente busca uma melhora para nossa situação. As discussões aqui estão acima do que a gente precisa”, diz, por intermédio de um tradutor índio da língua pano.

No Vale do Javari, onde moram os Matis e outras três etnias, a mortalidade infantil é o dobro da encontrada nas demais áreas indígenas pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). No ano passado, o índice mostrou que, a cada mil nascidas, morreram 103 crianças.

Na busca por soluções, a Conferência Nacional dos Povos Indígenas dedicou parte de seu trabalho para sugerir mudanças na atenção à saúde. Uma das propostas apresentadas no documento final é que a saúde indígena volte a ser responsabilidade da Funai — desde 1992, o atendimento médico aos índios está sob controle da Funasa. “A gente está aqui para mudar isso. Os recursos precisam ser divididos igualmente entre as comunidades e regiões”, diz o delegado Darcy Duarth Comapa, da etnia Marubo (AM).

Mais do que devolver à Funai a atenção à saúde, os índios enfatizam a necessidade de os profissionais dessa área serem capacitados para lidar com a diversidade dos povos indígenas. Em março, a Funasa promoveu a 4a Conferência Nacional de Saúde Indígena, em que lideranças e representantes da sociedade civil e do Governo debateram 543 propostas para melhorar a política pública de saúde. Mas os índios ainda não perceberam resultados concretos a partir desse encontro.

No Vale do Javari, a mortalidade

infantil é o dobro da encontrada

nas demais áreas indígenas.

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O Documento Final da 1ª Conferência Nacional dos Povos Indígenas representa uma conquista histórica para os índios. Com mais de 300 propostas aprovadas, os povos indígenas mostram à sociedade brasileira o rumo que devemos tomar na elaboração de uma política indigenista que atenda à justa participação que esses povos têm na formação de nossa sociedade. Existe, no entanto, uma questão que não parece muito clara: como será posta em prática a “Constituição” elaborada na Conferência?

O fortalecimento da Funai, como foi levantado nas propostas 18 a 24, pode sem dúvida ser uma alternativa. Mas será mesmo viável? Como exemplo, vale lembrar que o Parque Indígena do Xingu, marco na política indigenista brasileira, foi criado em 1961, após uma campanha de quase dez anos. Ora, é evidente que não se pretende esperar tanto tempo entre a elaboração do Documento Final e a concretização das propostas aprovadas, tal como ocorreu na ocasião da elaboração do anteprojeto do Parque e sua criação. Poderia ter sido votada a criação de uma estrutura eficiente, não meramente de consulta, que viabilizasse o cumprimento das decisões dos povos indígenas.

Os Villas Bôas, no final da década de 1960, entendiam que o primeiro passo no sentido de melhorar as condições de vida dos índios, de defendê-los, seria livrar a Funai de qualquer pressão política. Ela deveria, portanto, estar subordinada diretamente à Presidência da República.

A Funai, como se sabe, foi criada em 1967 para substituir o Serviço de Proteção aos Índios, SPI, que não tinha mais condições de funcionar como órgão de proteção às populações indígenas. Substituiu. Aliás, substituiu tão bem que começou a seguir os passos do antigo SPI, reservando para si, inclusive, o mesmo destino. Assim, a Funai, desde sua criação até hoje, devido à política indigenista nacional não fixada, atua melhor ou pior conforme seja melhor ou pior seu presidente. Observa-se que os índios têm experimentado um período de intensa atuação positiva da Fundação na atual gestão; entretanto, cedo ou tarde estará novamente sujeita a interferências do Ministério ao qual é ligada.

desafio à prática

Marina Villas Bôas e Noel Villas Bôas

OPINIÃO

CONFERÊNCIA DOS POVOS INDÍGENAS

Dos 560 delegados da Conferência, apenas 50 eram mulheres. Não dava 10% dos participantes. Apesar do número pequeno, sua representatividade era grande. Caciques, curandeiras, mulheres engajadas na luta pela melhoria da saúde e da educação. Suas preocupações são aparentemente mais simples que as dos homens – tradicionais representantes indígenas em busca de autonomia política –, mas nem por isso menos importantes.

Até hoje as indígenas precisam superar os obstáculos do preconceito masculino para poder participar ativamente das discussões que vão influenciar suas vidas. Essa foi uma das dificuldades encontradas pelas delegadas na Conferência. “Ser delegado e ser delegada é muito diferente. É desigual, somos minoria, mas não é por isso que a gente vai desanimar. Esse é mais um motivo para que a gente se organize e se estruture. Só assim vamos lutar em pé de igualdade com os homens”, defende Maria Helena Paresi, a primeira mulher indígena a se tornar chefe de posto da Funai.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, algumas mulheres indígenas começaram a se inserir nos debates e buscaram legitimar-se também como lideranças com direito a serem ouvidas e respeitadas. Quase 20 anos depois, a Conferência Nacional simboliza a conquista desse espaço, embora alguns povos ainda se neguem a reconhecer a participação feminina. “Lugar de mulher não é aqui na Conferência. Isso não é coisa de mulher”, diz, brincando, o Kayapó Ákjboro, ao ser indagado sobre a falta de mulheres de sua etnia entre os delegados.

Aos olhos das feministas, a afirmação pode parecer ultrapassada, o cúmulo do machismo, mas existe uma explicação. A maior parte dos povos não aceita, por exemplo, que a mulher exerça o papel de cacique ou outro tipo de comando dentro de sua aldeia. É uma questão cultural. Não faz parte da tradição indígena. Às mulheres sempre foi reservado o trabalho de educar, cuidar da maloca e dos filhos. Entretanto, muitas indígenas enfrentam os costumes para, no futuro, poderem ter direitos similares aos dos homens.

Engajada desde os 14 anos em movimentos indígenas, até mesmo feministas, a Xukuru Kariri Graciliana Selestino Wakanã defende o respeito às

culturas indígenas. “Muitas vezes ouvi dizer dos meus próprios parentes: ‘Olha, lá vem a feminista’, só porque sempre participei e lutei pelos direitos das mulheres. Mas eu sei que tenho de respeitar a cultura do meu povo porque, mesmo querendo meus direitos, a gente sabe que tem papéis

fundamentais que só competem ao homem dentro da cultura indígena. Então, eu jamais vou me meter e incentivar algo que vá de encontro aos valores e tradições das culturas”, diz. “Mas uma liderança política é diferente. Pode incluir as mulheres, pois temos um papel essencial dentro disso. A mulher tem uma visão mais geral. Ela se preocupa com a coletividade”, acrescenta.

Prova disso é que as reivindicações mais freqüentes delas se encontram nas áreas mais básicas para a manutenção dos povos: saúde, educação e questão fundiária. “As mulheres têm um papel muito importante porque nós nos preocupamos com o futuro dos nossos povos, das nossas famílias. Nós nos preocupamos com saúde e educação, e com território, pois percebemos que sem a terra não há saúde, sem saúde não há educação. Então, essas são questões muito fortes, sendo que uma depende da outra. A nossa participação representa a preocupação com a perpetuação da nossa gente e a sustentabilidade dos nossos filhos no futuro”, explica a delegada Terena Janete Lili Azambuja, da Aldeia Bananal (MS).

PARTICIPAÇÃO FEMININA

novas guerreiras

Retomando as questões iniciais, fortalecimento da Funai e colocação em prática das propostas da Conferência, entendemos que os povos indígenas perderam a oportunidade de mudar o provável e lamentável destino da Funai, ao votarem contra a criação do Ministério dos Povos Indígenas. A decisão de adiar para uma próxima conferência esse debate, a nosso ver, é mais uma chance que deixaram passar. Ao contrário do que se propaga, o Ministério não extinguiria a Funai, vindo a substituí-la, não. O Ministério traria para si esse órgão fortalecido, já que cumpriria as propostas da Conferência, a educação e a prestação de serviços médico-sanitários da também claudicante Funasa.

O Ministério dos Povos Indígenas deve ser entendido como instrumento de consolidação da política indigenista nacional, autônomo, livre de ingerências e meio eficaz de concretização das propostas da CNPI. Mas, por enquanto, resta esperar para ver como o Governo Federal receberá o Documento Final da Conferência.

Viúva de Orlando Villas Bôas, atuou no Xingu como enfermeira por 16 anos.

Filho de Orlando e Marina Villas Bôas, advogado e filósofo.

Os Villas Bôas, no final da

década de 1960, entendiam que

o primeiro passo para melhorar

as condições de vida dos índios

seria livrar a Funai de qualquer

pressão política.

Durante a Conferência, algumas mulheres reuniram-se para debater o papel delas na política indigenista

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ensaio

Um olhar carregado de sentimento, como o do menino que observa, por trás das flechas, um grupo que chega cantando na aldeia. A beleza dos Awá-Guajá através das lentes de Christian Knepper é um manifesto apaixonado pela proteção desse povo, cuja cultura é cada vez mais ameaçada pelo avanço da sociedade envolvente. Paixão que se reflete na sinceridade de imagens captadas no cotidiano da aldeia. Como a silhueta de um pequeno caçador que aponta o arco em direção ao céu para derrubar uma preguiça, escondida na mira do arqueiro.

Christian, alemão radicado há 15 anos no Maranhão, esteve por diversas vezes, entre os anos 2002 e 2003, nas aldeias Awá e Juriti, na Terra Indígena Awá. Desde que teve seu primeiro contato com o grupo, impressionou-o a harmonia com que vivem e interagem com a natureza. Confeccionam habilmente os objetos de que necessitam em seu dia-a-dia. Usam a boca para deixar as flechas afiadas. Criam, com carinho, os filhotes dos animais caçados, que mais tarde se transformam em amigos e brinquedos das crianças. “Mas é triste escutar o barulho ensurdecedor de um trem da Estrada de Ferro Carajás, enquanto

dançam para a Lua”, comenta o fotógrafo, ao lembrar o momento em que retratou o ritual “viagem para o céu” (ohó iwa-beh), cerimônia praticada durante o período da estiagem nas noites de Lua cheia. Nessa cerimônia, os homens são adornados pelas mulheres com penas de aves, como na foto desta página.

Os Guajá, que se autodenominam Awá, termo que significa “homem”, “pessoa” ou “gente”, tiveram os primeiros contatos na década de 1970. Não muito longe de onde foram tiradas as fotos deste ensaio, um subgrupo de Awá vive ainda mais ameaçado: cerca de 30 indivíduos perambulam pela Terra Indígena Araribóia, na floresta, ainda sem contato permanente com a sociedade ao redor. De uma forma geral, os Awá, um dos últimos povos caçadores e coletores do Brasil, enfrentam problemas com doenças introduzidas pelos não-índios, e vivem em áreas em constante perigo de invasões. Um futuro incerto.

CHRISTIAN KNEPPER

beleza ameaçada

Felipe Milanez

Mirando o céu, 2002, aldeia Awá. “O menino subiu no telhado de sua casa para derrubar um bicho preguiça que havia fugido para uma árvore, depois de uma caçada”, conta Christian

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28 29

Em um dia chuvoso, na aldeia Awá, em 2002, menino descansa em rede de tucum

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30 CHRISTIAN KNEPPER 31

Aldeia Juriti, 2003. Adultos consertam arcos e flechas em volta de fogueira Crianças brincam no rio num final de tarde em 2003, na aldeia Awá

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32 33

Aldeia Juriti, 2003. “Esse menino era muito tímido e não parava de me olhar enquanto eu fotografava. Ficava escondido. Nessa hora, veio um grupo cantando, que chamou sua atenção, e ele olhou para eles.” Ao lado, mãe cata piolho em criança na aldeia Awá, em 2003

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terra

O nome faz referência à vegetação. Mata perigosa, mata desconhecida, mata misteriosa, mata alta. Diferente da mata baixa do cerrado, rala, que deixa ver longe para caçar, para fl echar, para cercar em emboscada e matar. Marãiwatséde. Passaram quatro décadas sem ver essa fl oresta. Nesse tempo, mato só o do cerrado. No fi nal da tarde de 16 de agosto, há exatos 40 anos, eles embarcaram em um avião. O ano era 1966. Eles não sabiam o que era um avião. Velhos, crianças, mulheres, guerreiros. Uma aldeia inteira. Vestiram roupa pela primeira vez – “presente” imposto pelo padre que acabara de chegar. Apertava, roçava a pele, manchava de urucum, arrancava a fi ta que prendia o cabelo e sufocava o pescoço. Eram altos, fortes, esguios. As roupas não os deixavam respirar direito. A respiração era ofegante. Tinham medo. Não sabiam para onde estavam sendo levados. Nem por que o sorriso do fazendeiro Ariosto da Riva, que parecia ser amigo, estava tão fi rme em seu rosto branco. Finalmente, ele iria se livrar dos “temíveis Xavante”. Deixaram tudo para trás, cestos, mandioca, e entraram no avião. No máximo, pensavam que iriam voltar para a aldeia ao lado, Bo’u, de onde tinham sido recém-expulsos.

retorno à

mata misteriosa

Felipe Milanez

Fotos: Anderson Schneider

Região nordeste de Mato Grosso Municípios São Félix do Araguaia e Alto Boa Vista Área 165 mil hectares População 615 ( + 100 ainda fora da área) Etnia Xavante Língua xavante, tronco macro-jê

MARÃIWATSÉDE

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São Marcos”, recorda. “Mas só fiquei sabendo um mês depois. Os padres não queriam me falar”. Após a morte do pai, Damião ainda ficou dez anos sem ver a mãe, enquanto era aluno na Missão. Eram seis irmãos. Três morreram. Quando se reencontraram, ela dizia ao filho: “O espírito do seu pai está lá em Marãiwatséde. Quero morrer dentro da terra de Marãiwatséde.” Sua vontade era chegar viva. Dona Brígida, seu nome cristão, talvez com mais de 90 anos, praticamente não fala mais e não se levanta de sua cadeira de rodas. Conseguiu voltar, acompanhada do filho. “Ela veio junto com a gente, resistiu, lutou, ficou acampada para entrar ao lado dos guerreiros. Era o sonho dela voltar. Desde que chegou, nunca quis ir para o hospital. Não quer mais sair.”

A traumática decisão da retirada foi tomada num ambiente político que os Xavante ainda não conheciam, em salas de reuniões de São Paulo e Brasília. Vieram os recursos. Aviões da FAB. Um audacioso piloto de nome Comandante Rolim Adolfo Amaro. Um respeitado Xavante, Mário Juruna, de São Marcos. Padre Mário Panziera, diretor da Missão, com uma fala fluente em A’uwê e trouxas de roupas para cobrir as “vergonhas”. Alguns indigenistas. Os novos donos das terras. Tudo para persuadir os Xavante a embarcar, sem dizer a eles para onde estavam sendo levados. É uma história muito mal contada, que Carolina, 45 anos, mulher de Rufino Ruwa’wé, irmão de Damião, tenta recuperar. Recém-formada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), seu objeto de estudo foi a cronologia da espoliação e a retomada da área. “Quero dar a nossa versão sobre o que aconteceu, responder aos antropólogos”, diz.

Exílio em terra emprestada

“Pensavam que Xavante era tudo igual”, analisa Carolina. Esse foi um

dos principais erros históricos em relação a seu povo. Apesar de pertencerem à mesma etnia, os subgrupos Xavante possuem regras sociais muito específicas. “Somos muito diferentes uns dos outros. Xavante não é tudo igual, isso é mentira de ‘branco’”, afirma. Sem levar isso em conta, forçaram a transferência do grupo para São Marcos. O período seguinte à epidemia foi uma longa diáspora. Obrigados a peregrinar por cinco terras indígenas, exilados em território Xavante. Viveram quatro décadas em “terras emprestadas”, segundo expressão cunhada pela socióloga Xavante. Primeiro se refugiaram na T.I. Couto Magalhães. Diferentemente da influência salesiana, ali a organização religiosa que dominava era protestante. Pensavam que teriam mais chances. “Depois de alguns anos, começou a haver muita briga. Nosso povo estava ameaçado e teve que ir buscar ajuda em Parabubure. Era terra emprestada, e também não deu certo por muito tempo. Dez anos depois, tivemos que mudar para a T.I. Areões”, explica Carolina. Ficaram nela até 1985, quando novamente o convívio se tornou insustentável. Sem outra alternativa, o grupo conseguiu asilo na T.I. Pimentel Barbosa, onde construíram a aldeia Água Boa. Foi a última mudança. Não havia outro lugar para irem. Faltava caça, o que acabava com seus sonhos. Passavam fome. Rivalidades e guerras marcaram esse período e Apertados, ouviram o “barulho grande”, que fazia

voar. Os ouvidos doíam muito, não se escutavam. Medo. Choro. Do alto, a mata alta foi ficando pequena, pequenina, bem pequenininha. No ar, viram de perto o que pareciam ser flocos de algodão gigantes. Não sabiam que de perto o céu era assim. Muito algodão que daria para fazer muito, mas muito cordão para suas gravatinhas tradicionais (dañorebzu’a). Até distraía um pouco a tensão. Três horas no ar. 400 km ao sul. Deu sono, enjôo, apreensão. Quando aterrisaram, a mata já era baixa, quente, cerrado. Não era a mesma, que só voltariam a ver – quem teve a chance de sobreviver – há dois anos. Em agosto de 2004.

A expulsão dos Xavante de Marãiwatséde é uma ferida aberta na história do indigenismo nacional, que começa a cicatrizar com o recente retorno desse povo a sua terra. Expansão para o oeste, rodovia Belém–Brasília, Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia). Eles estavam no meio do caminho. Estima-se que a transferência forçada de sua terra tradicional para a Missão Salesiana de São Marcos, para onde foi levado o grupo de Marãiwatséde, tenha matado, só nas duas primeiras semanas, cerca de 160 dos 233 que embarcaram nos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Sem anticorpos, foram massacrados por uma

MARÃIWATSÉDE

epidemia de sarampo. Feitiço, dizem os índios. Corpos e mais corpos eram carregados pelas próprias famílias, em tratores, em carrinhos de mão, nas costas, e empilhados em valas comuns. Noite e dia. A mortandade imediata foi apenas a primeira etapa de sucessivos sofrimentos. “Ninguém nos ajudou, ninguém nos deu apoio, nos largaram para morrer durante todos esses anos”, reflete o cacique Damião Paradzané, o atual líder do grupo. Depois de muita luta, conseguiram voltar. Com um espírito forte, enfrentaram sarampo, Igreja, dinheiro, bala e até mesmo flecha de parentes Xavante que tentaram matá-los. Ao longo de 40 anos, permaneceram unidos. Uma cultura forte. Uma identidade guerreira. A’uwê uptabi, como se chamam. “Povo verdadeiro”.

“Meu pai morreu!”

Damião tinha oito anos, quando foi colocado dentro do avião. Era pequeno, mas se lembra bem de cada momento. Seu pai, o grande chefe Caetano Ru’waê, não queria ir de jeito nenhum. Não acreditava no que diziam os waradzu, “brancos”. Queria ficar, morrer em Marãiwatséde, se fosse preciso. De guerra ele não tinha medo. Enfrentaria quem fosse. Sabia que, se saísse, poderia nunca mais voltar. Tinha sonhado com isso. E nunca mais voltou. “Meu pai morreu dois dias depois que a gente chegou em

A expulsão dos Xavante

de Marãiwatséde é uma

ferida aberta na história do

indigenismo nacional.

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O cacique Damião na plantação de arroz: em um ano e meio vão colher a segunda safra

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