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Utopias realizadas : Da New Lanark de Robert Owen à Vista Alegre de Pinto Basto

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Academic year: 2021

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Olga Maria de Azevedo Almeida

Utopias realizadas

Da New Lanark de Robert Owen à Vista Alegre de Pinto Basto

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Ao meu Lima Reis, que foi o meu verdadeiro porto de abrigo, e aos meus filhos, pela relação de cumplicidade nos momentos bons e menos bons, dedico este trabalho.

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Eu acho que, para toda a gente, o que é necessário haver num país são os três S: S número um, sustento; S número dois, saber; S número três, saúde. Só a seguir ao sustento é que vem o saber. E perguntar às pessoas «o que querem aprender?», e eu digo isto para grandes e para pequenos. (…) O mundo acaba sempre por fazer o que sonharam os poetas.

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Resumo

No contexto do século XIX, na sequência da Revolução Francesa e em plena Revolução Industrial, New Lanark afirmou-se como a maior fábrica da Grã-Bretanha, palco das experiências sociais que Robert Owen viria a descrever, em termos teóricos em A New View of Society. Robert Owen, gestor de sucesso, tentou obsessivamente convencer os políticos e poderosos do seu tempo da eficácia das suas teorias para a resolução dos terríveis problemas sociais que assolavam a Europa.

Em Portugal, a burguesia, mais do que uma revolução industrial, queria “ter sangue azul” e assim se adiavam o progresso e desenvolvimento económicos. O liberalismo, adaptado à realidade portuguesa, permitiu que José Ferreira Pinto Basto ampliasse o seu património imobiliário, se tornasse um homem verdadeiramente rico e persistentemente transformasse uma quinta numa povoação, fundando a primeira fábrica de porcelanas do país.

Este trabalho não tratará dos aspectos técnicos do fabrico da porcelana ou do seu papel no desenvolvimento do país, visando antes cotejar New Lanark e a Vista Alegre tendo em consideração seus traços comuns, isto é, a organização espacial das comunidades fundadas e as obras sociais realizadas.

Será dado particular destaque aos aspectos tocantes ao tipo de relações estabelecidas entre patrões e operários, à educação e à religião nestas duas utopias paternalistas realizadas.

Palavras-chave: utopia realizada, utopia paternalista, New Lanark, Vista Alegre, socialismo utópico, José Ferreira Pinto Basto, Robert Owen, educação, religião, liberalismo; revolução industrial

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Abstract

In the 19th century, after the French Revolution and in the midst of the Industrial Revolution, New Lanark appears as one of the major factories of Great Britain, and Robert Owen transformed it into a model where he experimented his theories which were later published in A New View of Society. Robert Owen, a successful manager, will obsessively convince the politicians and the powerful of his time about the efficiency of his theories in the resolution of the terrible social problems that devastated Europe.

In Portugal, the bourgeoisie wanted royal blood more than an industrial revolution, and, thus, progress and development were delayed. Liberalism, adapted to the Portuguese reality, allowed José Ferreira Pinto Basto to enlarge his real estate and become a truly rich man, who persisted in transforming a farm into a village through the foundation of the first porcelain factory in the country.

This dissertation will not look at the technical aspects of the porcelain factory nor its role in the development of the country. On the contrary, it will compare New Lanark and Vista Alegre taking into consideration their common traits either through the spacial organization or the social work done.

Special attention will be given to aspects related to the type of relationship established between employers and employees, to education and to religion.

Having considered that New Lanark and Vista Alegre are achieved utopias, I shall also analyse its paternalistic character.

Keywords: achieved utopia, paternalism, New Lanark, Vista Alegre, utopian socialism, José Ferreira Pinto Basto, Robert Owen, education, religion, liberalism, industrial revolution

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Résumé

Dans le contexte du 19e siècle, à partir de la Révolution Française et en pleine Révolution Industrielle, New Lanark apparaît comme la meilleure usine de la Grande-Bretagne, planche des expériences sociales que Robert Owen viendra à décrire, en théorie, à A New View of Society. Robert Owen, gérant du succès, a essayé obstinément de convaincre les politiciens et les influents de son temps de l' efficacité de ses théories pour la résolution des terribles problèmes sociaux de l' Europe.

Au Portugal, la bourgeoisie, plus qu'une révolution industrielle, voulait « garder le sang bleu» et ainsi ajourner le progrès et le développement économiques. Le libéralisme, adapté à la réalité portugaise, a permis à José Ferreira Pinto Basto d’amplifier son patrimoine immobilier et de devenir un homme véritablement riche qui réussit à force de persévérance à transformer une ferme dans un petit village, fondant ainsi la première usine de porcelaines du pays.

Ce travail ne traitera pas des aspects techniques de la fabrication de la porcelaine ou de son rôle dans le développement du pays; il s'agit plutôt de comparer les points communs entre New Lanark et Vista Alegre c’est-à-dire l'organisation spatiale des communautés fondées et les travaux sociaux réalisés.

Nous accorderons une attention particulière aux aspects qui concernent le type de relations établies entre patrons et ouvriers, à l'éducation et à la religion dans ces deux utopies paternalistes réalisées.

Mots-clés: Utopies réalisées, utopies paternalistes, New Lanark, Vista Alegre, socialisme utopique, José Ferreira Pinto Basto, Robert Owen, éducation, religion, libéralisme, révolution industrielle

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Agradecimentos

Confesso que nunca tinha encarado os agradecimentos como coisa realmente séria. Mas dois anos de árduo trabalho ensinaram-me que, mesmo este pequeno estudo não me teria sido possível realizar, no período em que me propus cumpri-lo, não fora a colaboração, ajuda e compreensão de muitas pessoas que comigo se cruzaram.

A primeira pessoa de quem me lembro é a Professora Doutora Fátima Vieira, que, para além de ter acreditado na validade do meu projecto, sempre me incentivou a ir cada vez mais longe. Para além da disponibilidade, não posso esquecer o profissionalismo e rigor que sempre imprimiu aos comentários e à orientação do meu trabalho. Para ela vão os meus agradecimentos mais especiais.

Na Vista Alegre agradeço à Dr.ª Filipa Quatorze, conservadora do Museu da Vista Alegre, que me disponibilizou informação e alguma bibliografia; ao Senhor João Santiago por ter perdido tantas horas comigo, testemunhando as características peculiares desta comunidade. Obrigada pelo entusiasmo com que dirigiu aquela visita de estudo que pela primeira vez fiz a essa fábrica e que tanto interesse me suscitou.

Na escola onde trabalho, não posso esquecer todos os colegas que generosamente trocaram horas de reuniões ou que comigo permutaram aulas para que eu pudesse dar resposta à minha nova condição de estudante - trabalhadora. Aos mais chegados, obrigada por justificarem as minhas faltas aos jantares de convívio, sem desistirem de me incluir na lista de pessoas a desencaminhar. Aos meus alunos CEF, agradeço por, embora sem terem compreendido a utilidade desta dissertação, me terem abraçado num dia em que percebi ter perdido parte substancial de um trabalho a apresentar num seminário. A todos os restantes alunos que me desculparam algumas impaciências, que certamente não mereciam e a que não estavam habituados, o meu reconhecimento também. Agradeço à minha coordenadora, Ana Vilaça, por aceitar, sem reclamar, os relatórios quase sempre no limite do prazo. À Paula Sinde, não só por ter ajustado os horários permitindo-me frequentar o curso de mestrado, mas, sobretudo, por sempre ter acreditado nos meus projectos, um muito obrigada.

Aos meus amigos em geral, e em particular à Aldora, aos Landrús, à Olga, à Salette e ao Zé Rego (meu fotógrafo de serviço), agradeço a paciência, e, especialmente, a sua disponibilidade.

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Ao meu querido amigo João Antunes, cuja presença guardo na minha alma, por se ter lembrado da visita de estudo à Vista Alegre… sei que gostaria de ler o que escrevi.

Na Faculdade de Letras, muito obrigada a todos os professores, colegas e à Helena por me fazerem sentir bem-vinda no regresso a uma casa de onde me ausentara havia muito tempo. Não posso, no entanto, deixar de referir, com um carinho especial, o grupo das “cotas”: a Clara, a Paula, a Sara e a Teresa (a ordem é alfabética) – sem vocês tinha sido possível, mas não era a mesma coisa!

Por último, agradeço à minha família, que sempre esteve na minha retaguarda. Ao meu pai por me ter feito voltar aos meus tempos de estudante e de filha, à minha mãe, para quem nada é impossível, e que sempre se desdobrou para que as minhas ausências não se notassem. Ao Tozé, ao João e ao Pedro pela terna paciência.

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Sumário

Nota de Abertura Introdução

Parte 1 – New Lanark 1.1 Inglaterra no século XIX

1.2 Robert Owen – breves notas biográficas

1.3 Influências políticas e filosóficas no pensamento de Robert Owen 1.4 New Lanark de Dale

1.5 New Lanark de Owen – uma utopia realizada 1.5 Owen o propagandista

1.6 Owen e a educação 1.7 Owen e a religião

1.8 Owen o teorizador – Owenites 1.9 Owen e o socialismo utópico Parte 2 – Vista Alegre

2.1 Portugal no século XIX

2.2 José Ferreira Pinto Basto - breves notas biográficas

2.3 Precursores do socialismo utópico em Portugal: a voz de Francisco Solano Constâncio 2.4 Vista Alegre – fundação de uma fábrica

2.5 Vista Alegre – uma utopia realizada 2.6 A educação na Vista Alegre

2.7 A Igreja e a religião na Vista Alegre

Conclusão Apêndices Anexos

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Nota de Abertura

Há coisas de que não me lembro se esqueci. E há coisas de que não sei se me lembro….

Adalberto Dias de Carvalho

Lembro-me…

… de, nos meus tempos de escola, uma professora de história ter falado dos socialistas utópicos, de como Robert Owen tinha posto em prática as sua ideias na sua fábrica e de como tinha melhorado consideravelmente as condições de vida dos trabalhadores. Lembro-me de que o facto de serem utópicos não ficou muito claro, já que, para mim, utópico significava irrealizável e Robert Owen tinha afinal concretizado as suas ideias. Mas as vicissitudes da idade encarregaram-se de apenas registar este facto.

Recordo-me da visita de estudo à Vista Alegre, para a qual fui convidada, como professora, e me pareceu algo sem interesse especial. Que poderia eu encontrar numa fábrica que não fossem fastidiosas máquinas e gente que todos os dias fazem a mesma coisa? Mas fui! E como tantas coisas na vida que nos acontecem por acaso, afinal a Vista Alegre não era bem apenas uma fábrica sem interesse e, tal como Robert Owen, impressionou-me.

Muitos, mesmo muitos anos mais tarde, enquanto a escola me desiludia e inevitavelmente não realizava os sonhos que sempre almejei, voltei à Faculdade de Letras procurando não sei bem o quê.

Lembro-me dos Seminários de Estudos Culturais e o facto de a Professora Fátima Vieira falar de Robert Owen, de New Lanark, de New Harmony…E lembro-me de me ter lembrado da Vista Alegre….

E seja o que for que ainda me espere como destino e experiência, há-de incluir alguma caminhada e alguma subida de montanhas: na sua vivência, afinal, uma pessoa apenas se repete a si própria.

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Introdução

A utopia é, sem dúvida, uma forma de reflexão sobre o presente, revelando o que existe de errado nesse tempo e nesse espaço. Por outro lado, sugere soluções para se alcançar, não o paraíso, mas, e dado que me debruçarei sobre o século XIX, uma sociedade onde prevaleça sobretudo uma maior justiça social.

A utopia conduz-nos sempre para espaços que, de algum modo, são melhores do que aqueles em que vivemos; daí que a reinvenção de espaços físicos e sociais seja fundamental para a realização de uma utopia.

Yona Friedman defende na sua obra Utopies Réalisable (2000) que, para uma utopia ser realizável, depende sempre da utilização de uma estratégia viável para concretizar uma mudança social, adaptando ou transformando espaços. O espaço, neste contexto, pressupõe relações culturais e políticas, tornando-se, por conseguinte, importante identificar o conceito de espaço que adoptarei. Assim, parece-me ajustada a definição de Soja contida na seguinte afirmação: “The generative source for a materialist interpretation of spatiality is the recognition that spatiality is socially produced and, like society itself, exists in both substantial forms (concrete spatialities) and as a set of relations between individuals and groups, an ‘embodiment’ and medium of social life itself” (Soja 120).

Na consideração de utopias realizáveis adoptarei, como ferramenta conceptual, a teoria de Yona Friedman desenvolvida na obra supracitada.

Segundo Friedman, para que uma utopia seja realizável há que ponderar os seguintes axiomas:

a. a utopia nasce de uma insatisfação colectiva;

b. as utopias supõem a existência de uma técnica ou de uma conduta aplicável para que seja eliminada a causa da insatisfação, (utopia positiva);

c. a solução tem a aprovação de um grupo (consentimento);

A diferença entre uma utopia literária e uma utopia realizável reside no facto de a primeira não passar da criação literária de um indivíduo, e não uma obra lentamente aperfeiçoada por um conjunto de indivíduos envolvidos no mesmo objectivo. A utopia realizável necessita de um certo período de tempo, a que chamarei desfasamento, já que nenhuma situação insatisfatória desaparece rapidamente, sendo também por esta razão que jamais uma utopia poderá ser construção de uma só pessoa. Daí a importância da referência aos pensamentos económicos e filosóficos que precederam os homens que

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pensaram as utopias em análise. Deve existir um certo desfasamento a separar os três estados descritos pelos axiomas (insatisfação, invenção de uma técnica aplicável e o estado do consentimento). A análise da New Lanark e da Vista Alegre enquanto utopias que considero realizadas, será sempre baseada nestas premissas.

Dentro deste quadro, há que distinguir duas situações relativamente ao posicionamento daquele que opera na concepção da utopia:

– o autor, aquele que opera (indivíduo ou colectividade), concebendo a utopia, faz parte da colectividade insatisfeita. Todos os elementos são igualmente responsáveis pelas decisões e de igual forma assumem as consequências. Estamos então perante uma utopia não paternalista.

– o autor, aquele que opera (individuo ou colectividade), concebendo uma utopia não faz parte da colectividade insatisfeita que, devendo consentir na aplicação técnica (ou mudança de conduta) proposta pelo autor, não se assume como responsável pelas decisões, embora assuma as consequências. O autor assume-se como alguém que sabe melhor o que é bom para a colectividade. Neste caso estamos perante uma utopia paternalista.

Assim, New Lanark e Vista Alegre, as comunidades fabris que me proponho estudar, são utopias paternalistas, na medida em que um indivíduo ou grupo, benevolente e exterior, tentaram impor uma via escolhida por eles para a colectividade que consideraram infeliz. Não se deve confundir ou atribuir qualquer significado negativo a estas utopias, considerando-as abusivas, já que, como foi referido, o consentimento é fundamental. Sem estes dois axiomas – o da insatisfação e o do consentimento –, não há utopia realizada, uma vez que é desta forma que se define a colectividade para a qual a utopia foi pensada. Nos casos em estudo, quem concebe a técnica a aplicar pertence a um grupo de indivíduos que é uma elite. Estas utopias paternalistas socorrem-se de uma espécie de “propaganda” que conduzirá ao consentimento dos persuadidos. Os indivíduos criadores de utopias paternalistas sabem melhor (ou pensam saber) o que é bom ou não para os outros.

O autor do plano utópico tem de ter o dom da persuasão, de modo a conseguir a adesão daqueles que desempenharão um papel na realização da utopia. Esta persuasão só se pode verificar se o grupo for relativamente restrito, uma vez que, em grandes grupos, a comunicação directa1 se torna impossível. Por este motivo, Friedman

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Friedman desenvolve este aspecto das utopias irrealizáveis no capítulo III de Utopies Réalisables. Este investigador considera que a crença em utopias únicas e superiores é específica do Ocidente e uma

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considera a impossibilidade de realizar utopias universais. Embora a história da humanidade esteja repleta de utopias que se prendem com os grandes valores humanos, como a paz mundial ou a justiça social, estas são irrealizáveis pela impossibilidade de se estabelecer regras de conduta válidas para toda a humanidade (53-5).

Os utopistas Robert Owen e José Ferreira Pinto Basto imaginaram como certos aspectos do espaço social do seu tempo poderiam ser transformados e New Lanark e a Vista Alegre foram a realização dessas utopias. Segundo a teoria de Friedman, estes teriam sido modelos paternalistas. Mas teria sido possível a criação de uma utopia não paternalista e, por isso, mais igualitária, no século XIX, em pé de igualdade com os mais desfavorecidos? Teremos verdadeiramente ideia do que seria ser-se realmente pobre, ou, como se dizia na época, desvalido? Os relatos que temos de situações de grande sofrimento ou injustiça humana são quase sempre feitos por outrem e, por conseguinte, são sempre subjectivos. É sempre o ponto de vista de uma pessoa que pode ser solidário, ou até descomprometido, mas, na verdade, trata-se sempre de alguém a quem falta a qualidade de pertença. É sempre uma relação de alteridade baseada na desigualdade, ainda que possa ser de compaixão.

Tentarei, ao longo do meu trabalho, demonstrar que New Lanark e a Vista Alegre foram utopias realizadas e que José Ferreira Pinto Basto, ao contrário do que é defendido por alguns autores, terá sido mais influenciado pelo modelo experimentado em New Lanark e preconizado por Robert Owen do que pelas teorias de Saint-Simon.

herança da cultura grega e do cristianismo. Há uma crença que incita à conquista para salvar os outros, ainda que por vezes contra a sua vontade. Há uma incapacidade do Ocidente de compreender a impossibilidade da comunicação global. Embora não faltem os meios de comunicação, o que falha é a inadaptação biológica do ser humano que torna impossível essa comunicação global. Há uma incapacidade estrutural do ser humano em coordenar um excesso de informação. Um exemplo prático para demonstrar esta teoria é o facto de ser relativamente fácil resolver problemas ao nível de um bairro que se haviam revelado de impossível solução ao nível macro (68-9).

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Parte 1 New Lanark

1.1 A expansão da Europa e a Inglaterra no século XIX

No século XVIII, os Europeus tinham alcançado uma situação de domínio e expansão mundial. Esta expansão foi acompanhada de grande crescimento populacional e um desenvolvimento tecnológico sem precedentes, confirmando a superioridade tecnológica da Europa.

Embora o século XVIII tenha sido marcado pelo pensamento de grandes nomes da filosofia europeia, o Iluminismo afirmou-se como o movimento que congregou as diferentes visões no que concerne à crítica social, ao cepticismo religioso e às reformas políticas. Peter Gay ilustrou este movimento intelectual da seguinte forma:

[f]rom Edinburgh to Naples, Paris to Berlin, Boston to Philadelphia, the philosophers made up a clamorous chorus, and there were some discordant voices among them, but what is striking is their general harmony, not their occasional discord. The men of the Enlightenment united on a vastly ambitious program, a program of secularism, humanity, cosmopolitanism, and freedom, above all, freedom of speech, freedom of trade, freedom to realize one’s talents, freedom of aesthetic response, freedom, in a word, of moral man to make his own way in the world. (cit. Rostow & Kennedy 14)

Em 1784, Kant afirmou que, finalmente, o homem tinha emergido e imposto a sua tutela sobre o mundo, afirmando-se como um ser responsável, alguém que, como ele disse, sapere aude -“soube ser audaz”. Assim, o ser humano passou a assumir os riscos da descoberta e o direito de criticar, aceitando as consequências e a solidão da emancipação.

Com a Revolução Francesa de 1789 e a introdução das ideias liberais por toda a Europa, a classe média foi transformando o poder económico em poder político. Os regimes constitucionais emergiam. A soberania nacional no Ocidente deixaria gradualmente de se basear na Lei Natural, que reflectia a ordem divina, para se basear na doutrina perigosa e nacional da vontade popular. Como refere John Bowle, o Papa

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deixava de ser o guardião espiritual do ocidente para ser apenas “mais um outro poder no caleidoscópio da política europeia” (18 – minha tradução).

Os ingleses consideravam-se uma excepção face a outros povos da Europa, uma vez que não se submetiam a governos tiranos e a liberdade fazia parte da sua cultura sem necessidade de ser conquistada. A imprensa, nomeadamente os periódicos britânicos, desempenharam um papel fulcral na construção deste aspecto da identidade britânica, mas também na divulgação de obras literárias e ideias políticas. Os precursores dos periódicos britânicos remontam às últimas décadas do século XVII e começaram por se dedicar quase exclusivamente à crítica literária. No início do século XIX, surgem os quarterlies, que se dedicavam também ao debate dos grandes temas da actualidade política, vindo o seu sucesso a derivar do seu alinhamento partidário, tornando-se verdadeiros formadores da opinião pública. O combate ideológico passaria a acontecer sobretudo através dos periódicos (Silva 76-80). A este propósito, refere Walter Graham, em English Literary Periodicals:

[i]n any study of politics and the English press, certain marked tendencies are observed. In the first place, those who wished to oppose the King or attack the government had a ready weapon. In spite of licensing acts and stamp taxes, they used it. And with all their severe repressions and punishments, Kings and Kings Ministers early learned that the only effective weapon for fighting the press was the press itself. So fire was fought with fire. So also for two centuries Tories and Conservatives were in a manner, on the defensive. […] Thus it was in a world long accustomed to political warfare, with attacks and counter-attacks carried on in every form of newspaper and periodical that the two most pretentious organs of this kind, the Edinburgh and Quarterly Reviews appeared in the first decade of the nineteenth century. (cit. Silva 81)

Na sociedade pré-industrial, o horizonte do “grande agricultor” estava confinado à sua vila e ao mercado da sua cidade. Na Inglaterra do século XIX, tudo se transformava a um ritmo acelerado. Com a aplicação da ciência e das tecnologias no desenvolvimento económico e no processo de industrialização, os velhos problemas pareciam solucionáveis, imperando o positivismo.

O meio, que tinha prevalecido quase inalterado durante milénios, alterava-se a um ritmo vertiginoso. Uma sociedade pobre, limitada e provinciana, entrou em ruptura, e embora o século XIX tenha trazido consigo mudanças, instabilidade e conflito, trouxe

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também conhecimento e desenvolvimento sem precedentes, que levaram ao controlo do meio pelo ser humano. Este foi talvez o feito mais original do Ocidente e, especialmente, da Inglaterra.

Para alguns historiadores, a essência da Revolução Industrial não residiu na transformação espectacular das indústrias do carvão, do ferro ou dos têxteis, ou mesmo na aplicação da energia do vapor, mas sim na “substituição das regulamentações medievais que anteriormente controlavam a produção e a distribuição da riqueza pela livre concorrência” (Briggs 195).

Para compreender a Revolução Industrial na Inglaterra, será necessário ter-se em consideração as intrincadas relações comerciais inglesas: a existência de um grande número de intermediários comerciais; a existência de inúmeras indústrias rurais antes do desenvolvimento das fábricas; as aptidões e os conhecimentos de muitos ingleses na área da mecânica; o uso da energia hídrica antes do aparecimento da máquina a vapor; o aumento da população; a procura crescente de produtos que podiam ser mais baratos através de novos processos de fabrico; as forças, animal e humana, que começaram a ser substituídas ou complementadas pelas máquinas.

No final do século XVIII, havia a consciência de que a história progrediria rapidamente no grande desenvolvimento capitalista que permitiria à Inglaterra a criação de um tipo de sociedade que viria a incorporar o símbolo da modernidade.

A grande alavanca da mudança foi a invenção que permitiu atingir grandes aumentos da produção. Mais de metade do progresso técnico foi realizado entre 1780 e 1860. Apesar do interesse suscitado pela ciência e do papel que esta desempenhou em todo o processo de desenvolvimento, quanto mais não fosse na criação de um espírito curioso e inspirador baseado no princípio de que nada era impossível ao ser humano, este progresso dependeu mais do esforço empírico do que da ciência. É desta dinâmica social resultante de um crescimento económico, que deu origem ao surgimento de uma classe de empreendedores, que emergiu a revolução industrial (Woodward 17-9). Era necessário ter-se capital e estar-se disposto a correr riscos, e, foram por isso poucos os pobres que enriqueceram, tendo a mobilidade social pertencido sobretudo à burguesia.

Apareceu uma nova classe, o proletariado, que incorporava um enorme grupo de trabalhadores fabris, em grande parte subcontratados, temporários assemelhando-se muitas vezes a “tribos errantes” de trabalhadores migrantes (Briggs 198). A maioria desta nova população vinha maioritariamente da Irlanda. O seu baixo nível de vida tornou-se um problema social sério. Mais de dois terços dos dois mil pedintes de

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Londres eram irlandeses (Woodward 2-3). Muitos britânicos, críticos do processo de industrialização, sentiam-se perturbados com a situação da maioria do povo, que vivia em péssimas condições. Havia quem comparasse as crianças que trabalhavam nas fábricas com os escravos negros. Apesar da riqueza aumentar, o estado de pobreza proliferava escandalosamente, sendo que muitos trabalhadores viviam com apenas dois pence por dia. Os salários diminuíram durante as guerras napoleónicas (1815-1820), os preços tornaram-se inconstantes, persistia uma alta taxa de desemprego e, só no final do século XIX, com a diminuição dos preços e reformas politicas, os pobres começaram a ter alguns benefícios sociais e económicos resultantes do processo de industrialização (Thomson 134-5).

Muitos percepcionavam a revolução industrial de uma forma crítica. John Ruskin afirmava que a Inglaterra corria o risco de vir a ter “tantas chaminés quantos os mastros nas docas de Liverpool…, sem prados, árvores ou jardins; nem só um hectare de solo inglês estará livre de um veio de um motor.” Acerca de Manchester, escreve Tocqueville: “Deste esgoto sujo escorre o adubo que fertiliza o mundo inteiro. De um esgoto escorre ouro puro. É aqui que a humanidade atinge o seu maior, e mais abrutalhado, desenvolvimento” (cit. Briggs 201).

Porém, nem todas as comunidades eram assim tão negativas e terríveis. Nem todas as aldeias e vilas industriais tinham perdido a sua identidade. Em algumas floresceu até um certo paternalismo industrial que atraiu operários, cuja adaptação a este novo estilo de vida se tornou mais fácil. Seria este o caso de New Lanark, que será analisado neste trabalho.

Um dos aspectos mais importantes nas alterações vividas neste século XIX foi provocado pela crescente urbanização e aumento da população. No primeiro censo contavam-se quinze cidades com mais de 20.000 habitantes. O crescimento da população não parou e, em 1820, Manchester, Sheffield, Birmingham e Leeds registavam taxas de crescimento de cerca de 40%. A esperança média de vida era mais elevada em Londres que em Paris ou na Prússia (Woodward 1-2).

Apesar das diferenças que distinguiam as diversas cidades, havia características comuns a todas, tais como as habitações dos trabalhadores, alinhadas em longas fiadas de casas do mesmo tipo, construídas em tijolo vermelho. Os problemas de saúde pública eram também basicamente os mesmos, más condições de habitação e populações brutalizadas pela ignorância e pelo excessivo consumo de álcool, tornavam a manutenção da ordem uma tarefa difícil na maioria das cidades (Thomson 12).

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É certo que a imagem dada por inúmeros historiadores e escritores da época, mostrando uma Inglaterra deplorável, quer do ponto de vista paisagístico, quer do ponto de vista de grande miséria social de uma parte significativa do povo, deve ser relativizada, não por uma questão de indiferença perante as más condições de vida da maioria da população, mas sobretudo pela ausência de comparação com a sua situação em tempos antecedentes.

Não é difícil preferir uma imagem mais rural, pura e até inocente, lamentando a substituição do agricultor e do artífice por grandes cidades com fábricas e máquinas. Não podemos, no entanto, esquecer as condições em que vivia a maioria dos ingleses na passagem do período feudal para a era moderna. Essa realidade é-nos retratada por Thomas More, e é sem dúvida o pano de fundo histórico que ele critica na sua Utopia. De qualquer modo, não seria difícil imaginar alimentar cerca de catorze milhões de pessoas, em 1821 (o dobro da população existente um século antes), mesmo a um nível miserável, sem a introdução de maquinaria que permitiu aumentar a produção. Este aumento da população, sentido desde a segunda metade do século XVIII, deveu-se não só ao facto de as pessoas casarem mais cedo, mas sobretudo à evolução e melhoramento das condições de vida causados pelos avanços nas ciências médicas e farmacêuticas, assim como o facto de agora as populações terem acesso a mais e melhores produtos. A título de exemplo, refira-se as roupas de algodão baratas e os melhoramentos das condições sanitárias nas grandes cidades (Trevelyan 449).

A Revolução Industrial trouxe também melhoramentos às vias de comunicação que existiam desde a época romana. Desde o início do reinado de Jorge III que foi construída uma rede de canais que permitia ligar as cidades, trazendo-lhes os benefícios de que Londres gozava pela sua localização marítima. Mais tarde os caminhos-de-ferro2 vieram substituir estes canais.

Em 1819, e apesar da industrialização, a maioria das populações ainda se mantinha ligada à produção agrícola, seguida da construção civil e prestação de serviços domésticos.

A verdadeira mudança deu-se com a aplicação do carvão na transformação do ferro. Com a indústria do ferro e a invenção e fabrico de maquinaria, nasceu uma nova

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A primeira locomotiva a vapor usando trilhos, foi construída pelo inglês Richard Trevithick em 1804. O passo maior para o desenvolvimento da locomotiva foi dado por George Stephenson. Este Inglês, mecânico nas minas de Killingworth, construiu a sua primeira locomotiva, a Bluchen, em 1814. A Bluchen destinava-se ao transporte dos materiais da mina e conseguiu transportar trinta toneladas à velocidade de seis km por hora. Em 1825 foi inaugurada a primeira linha férrea Stockton and Darlington Railway.

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classe – a dos mecânicos, no conceito moderno da palavra. Se estas mudanças trouxeram poucos progressos ao trabalho quase desumano das mulheres e crianças da época, criaram, por outro lado, uma nova classe de engenheiros e técnicos que eram bem pagos e respeitados. A este respeito afirmou G. M. Trevelyan:

[t]here was nothing bourgeois about the origins of the man who invented the locomotive, after having taught himself to read at the age of seventeen. The motto of the coming age was “self-help”, or individual opportunity, and its benefits were not entirely monopolized by the middle class. It was from the “Mechanics Institutes” that the adult education of the new age took a start. (451)

Os fluxos migratórios verificados desde 1760 traziam “[m]an-power for the new industrial world, ‘bowing their heads for bread’, but glad to escape from rural England, Scotland, Wales, and Ireland, where only starvation awaited them” (idem 453).

A riqueza aumentava sobremaneira nas cidades e no campo mas, apesar dos aparentes melhoramentos nas condições de vida, a diferença entre ricos e pobres era cada vez maior.

O século XIX, por outro lado, não só trouxe vigor democrático ao Parlamento, Municípios, Igreja, Escola e Serviços Civis, como foi também o período das uniões sindicais, reformas eleitorais, cooperativas, comissões e comités com fins filantrópicos e do socialismo utópico (Thomson 20-1). Estes movimentos, claramente de origem britânica, distinguiram-se dos movimentos mais revolucionários e, por vezes, mais violentos da restante Europa, que lutava para pôr fim aos regimes absolutistas e implementar regimes liberais.

A igreja anglicana continuou a ser a igreja do regime, sendo os bispos oriundos de famílias aristocráticas, a estrutura religiosa do país acompanhava e acentuava a estrutura política. A Igreja, na Inglaterra, encontrava-se assim associada ao poder local das classes dirigentes, perdendo o contacto com as classes populares. Esta religião não fornecia qualquer apoio ou conforto aos trabalhadores e camponeses perturbados pelos sentimentos de injustiça e instabilidade gerados pela miséria. Surgem assim as respostas das seitas dissidentes ou não-conformistas, que, apesar de tudo, se mostravam também

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impotentes no apoio às massas populares. Seriam os metodistas3, que, falando para as massas, se tornariam numa igreja que hoje conta com milhões de fiéis.

A influência do metodismo no povo inglês foi imensa. Tal como os primeiros puritanos, também os metodistas condenavam a atitude de tolerância desregrada da época e defendiam a tradição de manter o domingo inglês. Os pastores hierarquicamente mais baixos da igreja anglicana, influenciados por esse movimento, passaram a dirigir-se aos dirigir-seus fiéis imitando o estilo de Wesley. À dirigir-semelhança do metodismo, outras dirigir-seitas religiosas organizaram-se em igrejas que se tornavam cada vez mais emocionais. Desta forma, as diferentes correntes do cristianismo iam ocupando os mais pobres, que se sentiam menos tentados pelas doutrinas revolucionárias do Continente. Em Inglaterra, a classe média respeitava a Bíblia, enquanto os intelectuais, poetas e filósofos se deixavam influenciar pelos ideais jacobinos da revolução francesa e pela filosofia de Rousseau (Maurois 252).

Ao nível das alterações políticas, as guerras napoleónicas afastavam as grandes reformas. A classe média, embora arredada do poder político, mantinha-se ocupada, aumentando o seu poder financeiro sem realmente desafiar o poder político. Apesar do proletariado, motivado pela situação miserável em que vivia, ser frequentemente agitado pelos radicais Cobbet e Hunt, ainda era possível mantê-los relativamente controlados pela classe média.

Adam Smith, Ricardo, Godwin e Malthus dominavam o cenário das teorias económicas na Inglaterra, gerando enormes influências no panorama europeu. Foi nessa Inglaterra que Robert Owen surgiu com ideias que viriam a ser apelidadas de socialismo utópico, proporcionando o mote a Karl Marx e Engels nos seus estudos fundadores de uma nova visão sobre um mundo marcado por novas relações de trabalho.

O século XIX produziu cerca de três vezes mais utopias literárias do que todos os séculos anteriores juntos. Segundo Lyman Sargent, foram publicadas cerca de cento e

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Em 1726, em Oxford, é fundado o “Holy Club” por John Wesley, filho de um pastor anglicano, e alguns amigos, que jejuavam, rezavam, visitavam os pobres, pregavam ao ar livre e confessavam uns aos outros os seus pecados. Foi-lhes dado o nome de metodistas. John Wesley considerava ter sido chamado a cumprir uma missão mais vasta: converter ao cristianismo o mundo invadido pela indiferença. Partiu com o irmão para as colónias na América, onde não teve muito sucesso pelo aparente ardor que punha na conversão de jovens mulheres, tendo regressado a Inglaterra, onde começou uma vida de pregador, juntamente com o seu amigo Whitefield. Juntos pregaram em bairros operários e nos campos. Rapidamente se espalhou a influência dos seus sermões. Homens e mulheres desmaiavam parecendo entrar em transe face às suas palavras. A igreja anglicana recusava-se a reconhecer os seus méritos, bem como a ordenar os pregadores seus adeptos. Já no fim da vida, Wesley foi obrigado a conformar-se com a situação, ordenando ele próprio os seus sacerdotes fundando assim o metodismo, que em 1810 já contava com cerca de duzentos e trinta mil membros (Maurois 251).

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sessenta utopias entre 1800 e 1887, sendo que nas mesmas as principais preocupações se prendiam com a constituição de um sistema económico mais igualitário, com movimentos comunitários e com as questões do papel da mulher na sociedade (3).

1.2 Robert Owen: Breves notas biográficas

Robert Owen, figura proeminente dos primórdios do socialismo britânico, nasceu em Newtown, País de Gales, a 14 de Maio de 1771. Teve sete irmãos, havendo, porém, apenas referências ao irmão mais velho, com quem Robert Owen terá colaborado no período inicial da sua vida.

Nessa altura, Newtown era uma pequena cidade rural com alguma actividade comercial e, de acordo com as memórias de Owen, “a neat, clean, beautifully situated village, rather than a town, not containing more than one thousand inhabitants, with ordinary trades, but no manufactures except a very few flannel looms” (Donnachie 2000: 3). Foi talvez este local, ainda muito rural, que influenciou Owen no gosto pela natureza. Para alguém que passou a maior parte da sua vida em meios urbanos, tais como Manchester, Glasgow e Londres, são evidentes as memórias da sua infância no amor pela natureza e pelo campo. Quando, mais tarde, reflectiu sobre os efeitos do meio na formação do carácter, foi visível a importância que conferiu ao estudo da natureza e da geografia na educação das crianças.

Começou a frequentar a escola aos quatro ou cinco anos e foi certamente um excelente aluno, já que, com a idade de sete anos, se tinha tornado assistente do seu professor. Lia compulsivamente obras literárias e sobre temas históricos, assim como biografias. A sua origem e vivência no País de Gales, além de o terem tornado bilingue, foram certamente relevantes para a sua atitude de simpatia e tolerância para com os “Highlanders”4, que tiveram um efeito significativo no perfil demográfico de New Lanark (Nicolson & Donnachie 23).

As obras que, no entender de Ian Donnachie, mais influenciaram Owen terão sido The Pilgrim´s Progress e Robinson Crusoe. Esta última, terá, na verdade, sido marcante para a formação do seu carácter e das suas futuras convicções, tendo em conta as suas mensagens religiosas, económicas e ambientalistas. Ao longo da sua vida e,

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O artigo “The New Lanark Highlanders: Migration, Community, and Language 1785- c. 1850” de Margaret Nicolson e Ian Donnachie trata com pormenor este aspecto das migrações desta comunidade e da importância que tiveram em New Lanark .

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sobretudo, nas reformas que levou a cabo em New Lanark, Owen identificou-se com o herói no sucesso da construção meticulosa e paulatina da réplica do mundo físico e moral em que tinha vivido. Muitos anos depois, New Lanark tornar-se-á a sua “ilha”, onde, à semelhança do seu herói, tudo usará para construir o modelo de sucesso a que se propunha (2000: 8).

Robert Owen frequentou uma escola de dança e música, onde aprendeu a dançar e a tocar clarinete. Parece que a dança, bem como o convívio com o sexo oposto que esta lhe proporcionava, lhe dava particular prazer, pelo que, possivelmente, teriam sido estas memórias que estiveram na base da importância que dava a essas actividades extracurriculares na educação das crianças de New Lanark, tendo mesmo introduzido aulas de canto e dança.

O pai de Robert Owen era um homem de algum prestígio na aldeia sendo que, para além de responsabilidades religiosas, cabia-lhe também a tarefa de distribuir o correio. Esta última actividade, sobretudo, permitiu ao jovem Owen lidar com dinheiro, preencher documentos, separar correspondência, atender pessoas de estratos sociais superiores e desenvolver aptidões que certamente o tornariam mais preparado para enfrentar a vida em Londres, para onde partiu com a idade de dez ou onze anos.

A partir desse momento da sua vida, Owen tornou-se independente, provando ser capaz de subsistir por si só. Conseguiu emprego, graças a esforços feitos pelo seu pai, numa loja de tecidos da cidade, contando também com o apoio do seu irmão mais velho, William, já casado e instalado em Londres. Posteriores dificuldades nessa loja tê-lo-ão levado para Stamford, uma pequena mas rica e próspera cidade em Lincolnshire, para trabalhar numa loja de tecidos.

Foi nessa loja, que pertencia a James McGuffog, que a geria com extremo rigor e organização, que Owen aprendeu a trabalhar metódica e eficazmente. Sendo uma das mais prestigiadas lojas da cidade, tornara-se uma espécie de ponto de encontro da nobreza local. Aí, Owen teve a oportunidade de se familiarizar com pessoas com quem mais tarde se relacionaria. Por outro lado, aprendeu técnicas de gestão eficazes, bem como formas de ganhar e investir dinheiro. Aprendeu ainda que uma das estratégias comerciais residia na capacidade de fazer os produtos valerem pelo seu preço, mais do que pela qualidade5. McGuffog exigia disciplina e método no trabalho, mas foi

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“[a]rt of turning a profit, a sense of debasing nature of selling and its frequent reliance upon dissimulation, and a feel for cloth”(Claeys viii).

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extremamente protector e generoso, proporcionando a Robert Owen tempo livre, que ele aproveitava para ler.

Nesse período, Owen era ainda um jovem religioso e Donnachie acredita que poderá ter sido nesta altura que ele começou a debater-se com dúvidas relativamente à validade das escolhas religiosas (28). McGuffog era presbiteriano e a sua mulher era anglicana. Porém, este facto não parecia afectar o casal, que se dividia pelas duas igrejas e respectivos cerimoniais. Owen acompanhava-os habitualmente nas obrigações religiosas, sendo possível que, apesar de ser ainda muito jovem, se tenha começado a aperceber do seu carácter dogmático. Sobre o assunto, Claeys escreve: “Owen at ten concluded that all existing theologies were erroneous. Notwithstanding, for several years he continued to seek ‘the true religion’, which would inspire genuine kindness and charity, […]. But he also came to believe that religious preferences resulted from upbringing” (vii).

Revelando desde cedo um espírito crítico e interventivo, Owen resolveu escrever uma carta a William Pitt6, que se tornaria, anos mais tarde, primeiro-ministro, chamando a atenção para o desrespeito pelo Sabbath e pelo seu sentido religioso por parte dos comerciantes que mantinham lojas abertas. Dias depois, uma notícia no jornal referia que o Parlamento se tinha debruçado sobre o assunto e que aprovara Recomendações quanto ao respeito a acautelar pelo Sabbath. Certamente teria sido uma feliz coincidência que não deixou, no entanto, de impressionar o jovem Owen, bem como os McGuffog.

Aos catorze ou quinze anos, regressou a Londres, onde passou algum tempo com o irmão e a cunhada. Arranjou emprego numa loja, onde experimentou uma realidade completamente oposta à anterior. Os clientes pertenciam a uma classe social baixa e o ritmo de trabalho era frenético: trabalhava das oito da manhã às nove ou dez da noite. Os produtos ficavam numa tal confusão que, muitas vezes, tinham de ficar até às duas da madrugada a organizar a loja e o armazém. Ali, Owen aprendeu um outro aspecto a considerar no negócio, a rapidez, ao mesmo tempo que sofria na pele os exageros do descomedimento de horas de trabalho tão frequentes na época.

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William Pitt foi um herói das Guerras Napoleónicas e tornou-se um acérrimo opositor aos ideais da Revolução Francesa e aos movimentos radicais que apoiavam o jacobinismo e as reformas politicas. Defendia a igreja de Inglaterra, a continuidade e o tradicionalismo nos métodos governativos. Morreu em 1806 (Thomson 21-3).

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Em 1788, partiu para Manchester. Com apenas dezassete anos, deparou-se com uma cidade altamente industrializada e com cerca de cinquenta mil habitantes. Gregory Claeys, na sua Introdução à obra de Robert Owen, A New View of Society and Other Writings, considera o período por ele vivido em Manchester vital para a construção do seu pensamento. Foi nessa cidade que se apercebeu das implicações nas alterações das formas de produção devido ao desenvolvimento tecnológico. Constatou que haveria uma rápida expansão da produção, um aumento da densidade populacional urbana e o aumento das doenças e morte prematura das massas trabalhadoras (viii).

Por volta de 1790, Owen constituiu sociedade com o seu amigo Jones, num negócio ligado ao fabrico de máquinas para a indústria têxtil, tendo começado o seu percurso como empresário de sucesso, já que este negócio iria permitir-lhe ter uma vida razoável e emancipada. O seu êxito abriu-lhe horizontes e deu-lhe sobretudo audácia e auto-confiança para conquistar um lugar ao sol no mundo dos negócios.

Drinkwater, um industrial verdadeiramente relevante e poderoso em Manchester, decidiu abrir uma nova fábrica e Owen teve conhecimento do facto através de um anúncio no Manchester Herald:

Superintendency of a factory wanted

A Person to superintend and conduct an extensive Mule Factory, To whom any salary will be allowed proportionate to Merit.

No one need apply, whose character, in regard to Morals, as well as Capacity and Steadiness, is not in every way respectable.

For particulars apply to Mr. Drinkwater, at his Warehouse in Manchester, on Tuesday, Thursdays or Saturdays from eleven to two o´clock.

De acordo ainda com o que é referido por Donnachie (2000:43), Owen, apesar de muito jovem, terá conseguido o lugar, impressionando Drinkwater pelo arrojo de ter pedido um salário muito superior a qualquer dos seus concorrentes e sobretudo pelo facto de não consumir bebidas alcoólicas. O álcool era um problema social grave que, naturalmente, afectava o normal funcionamento das fábricas, originando constantemente situações de desordem que desagradavam especialmente a Owen. O álcool seria sempre o inimigo número um em New Lanark, sendo o alcoolismo um dos primeiros comportamentos a combater no seio dos operários.

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Owen deparou-se com a difícil tarefa de dirigir cerca de quinhentos trabalhadores sem qualquer guia ou ajuda. Sentiu-se como Robinson Crusoe, perdido na sua ilha, “no one to give me assistance” (cit. Donnachie 2000: 44). Tinha chegado o tempo exacto para pôr em prática tudo o que tinha aprendido com McGuffog. Owen alcançou uma grande eficácia nesta unidade fabril, conseguindo produção em quantidade e qualidade. Embora se tenha preocupado desde o início em promover condições de higiene nas instalações fabris e em controlar o consumo de álcool entre os trabalhadores, estes eram obrigados a trabalhar das seis da manhã até às oito da noite, uma hora a mais do que na maioria das fábricas de Manchester.

Parece também claro, pela leitura dos estudos de Donnachie, que a preocupação com as condições de higiene e segurança nas instalações fabris havia partido de Drinkwater, que dera instruções claras nesse sentido aos engenheiros responsáveis pelas instalações. A este propósito, reflectiu o próprio Drinkwater: “[t]he object of keeping the factory sweet and wholesome is a matter which I cannot help considering of the utmost importance, whether as regards decency, convenience or humanity” (cit. Donnachie 2000: 46).

O trabalho e o sucesso de Owen, como gestor, terão sido reconhecidos por Drinkwater, que o convidou a reorganizar a sua outra fábrica em Northwich, trabalho que, sem dúvida, constituiu um valor acrescentado que Owen levou consigo para a sua futura experiência em New Lanark.

Durante esse período, em 1793, viveu-se em Inglaterra uma crise financeira grave, que afectou as exportações têxteis. Ao mesmo tempo, de França, chegavam notícias de graves motins revolucionários. Tudo isto preocupava Owen, cujas ideias políticas na época estavam ainda em consonância com o status quo. Mesmo numa fase mais avançada da sua carreira, em que propunha grandes reformas sociais, Owen sempre temeu as revoltas populares e as desordens causadas pelo descontentamento social. Este seria, de resto, o aspecto imutável no pensamento político de Owen e que, no futuro, faria dele uma figura ambígua na história do socialismo britânico, pondo-o à margem dos ideais que ele partilhou e esquecendo mesmo o inegável contributo que deu para a construção do socialismo utópico (Miliband 245). Na verdade, como Ralph Miliband afirma: “Owen was a social revolutionary and his doctrine, far from postulating reforms within the existing order, was set in the context of its complete subversion” (233). Na época que seguiu as guerras napoleónicas, Owen, mais do que ninguém, estava consciente dos danos sociais causados pelas mudanças que

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rapidamente ocorriam por toda a Grã-Bretanha industrializada, mas, simultaneamente, estava convicto dos benefícios causados pelas novas tecnologias. Considerava que problemas sociais exigiam respostas sociais. Desta forma eram as condições de vida dos trabalhadores que deviam ser mudadas e não as instituições políticas (Thomson 44).

Em Dezembro de 1792 , Owen assinou uma declaração publicada por um grupo de protestantes de Manchester, na qual os signatários afirmavam estar “steadily and affectionately attached to the British Constitution, consisting the Kings, Lords, and Commons… fully confident that a Constitution, thus formed, will not fail to redress every real grievance, and effect every necessary improvements” (Donnachie 2000: 50). Tornou-se, então, clara a demarcação de Owen das ideias republicanas vindas de França, bem como o seu apoio às instituições britânicas, descrente como era da eficácia das reformas políticas. Esta seria também uma convicção que defenderia até ao fim da sua vida. Além do mais, não tendo nunca perdido a fé na boa vontade dos detentores do poder, escreveu, num artigo para a Millenniel Gazette, em Maio de 1856: “[i]t has always been my impression – and after much experience with all classes the impression is confirmed, that it will be much easier to reform the world through Governments, properly supported by the people, than by any other means” (cit. Miliband 95).

Em 1794 ou 1795, Owen deixou de trabalhar para Drinkwater, não restando dúvidas de que os lucros das suas fábricas aumentaram muito graças às suas competências superintendentes e gestoras. Não deixa também de ser verdade que foi deste modo que Owen se tornou conhecido, sendo aceite pelas elites sociais de Manchester. Foi também nessa altura que se tornou sócio de uma grande empresa em Manchester, a “Chorlton Twist Company”. Foi na qualidade de representante dessa empresa que teve oportunidade de visitar New Lanark e de conhecer Caroline Dale, filha mais velha de David Dale, com quem virá a casar, chegando assim à gestão da unidade industrial mais famosa da época.

1.3 Influências políticas e filosóficas no pensamento de Owen

Como já se referiu, os cerca de doze anos que passou em Manchester foram determinantes para o percurso de Owen, na definição das suas convicções políticas e na sua mundivisão. Foi nessa cidade que entrou definitivamente em contacto com as elites intelectuais e começou verdadeiramente a sua carreira enquanto figura pública. Em 1793, Owen participou, pela primeira vez, numa reunião da “Manchester Literary and

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Philosophical Society”. Nesta associação, Owen tomou contacto com figuras proeminentes do Iluminismo britânico, tais como Thomas Barnes, Thomas Henry, John Ferriar, John Dalton e Percival, figura central deste grupo.

Segundo Donnachie, é provável que o primeiro contacto que Owen teve com Percival7 tenha sido numa das inspecções que este efectuou às instalações fabris de Drinkwater. Quanto a Thomas Barnes, para além de pertencer ao “Board of Health” e à “House of Recovery”, afirmou-se também enquanto reformador da educação, tendo estado envolvido na fundação do “College of Arts and Science”. John Ferriar, formado em Medicina, desempenhou um papel fundamental nos estudos que relacionavam directamente a propagação de doenças com as condições sociais e com a falta de condições de higiene e segurança nas instalações fabris (2000: 60).

Nessa prestigiada associação, onde os intelectuais se reuniam regularmente, Owen teve a oportunidade de melhorar a sua educação, ampliando conhecimentos em áreas tão diversas como a filosofia, a política e a saúde pública, discutindo questões sociais relacionadas com o crescente problema dos pobres nas áreas urbanas. Foi sobretudo nesse espaço de grande estímulo intelectual que Owen começou a falar em público, tendo aí dado início à sua carreira política.

De todos, foi talvez Percival quem melhor o aceitou no grupo, mostrando apreço pela sua pessoa e convidando-o frequentemente para sua casa, mesmo quando recebia personalidades estrangeiras com quem mantinha contacto. Assim, Owen foi-se familiarizando com as elites a que, mais tarde, na sua fase propagandista, irá recorrer para expor as suas ideias.

Owen conseguiu, desta forma, somar contactos e aprendizagens que lhe virão a ser preciosas, quer nas futuras funções de gestor de New Lanark, quer nas suas concepções de soluções para os problemas sociais coevos.

Num dos debates dedicados à religião, moral e descobertas científicas, Owen teve a possibilidade de conhecer Coleridge, discípulo de William Godwin8 (que se virá

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Percival estudou medicina em Edimburgo, onde conviveu com figuras notáveis do Iluminismo como Hume e Robertson. Interessou-se pelas condições sociais dos trabalhadores nas zonas industriais. Em 1773 publicou Observations on the State of the Population in Manchester, no qual tratou com especial cuidado o elevado índice de mortalidade infantil nos meios fabris. Em 1796 participou na fundação do “Manchester Board of Health”, do qual Owen também viria a fazer parte.

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William Godwin (1756-1836) nasceu no seio de uma família não-conformista, tendo sido ministro dessa religião durante algum tempo. Os seus trabalhos literários e científicos foram influenciados pela educação religiosa no que se refere à lógica e ao método. Profundamente influenciado pela Revolução Francesa e pelas ideias de Rousseau, foi um acérrimo defensor das causas de igualdade e liberdade. Em 1789 publicou An Enquiry concerning Political Justice. Este livro provocou grande agitação pela forma como Godwin atacava a organização social da época. Reclamava a necessidade de reformas políticas e sociais

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a relacionar também com Owen mais tarde) e de, com este, debater as suas ideias. Mais tarde, Coleridge virá a ler uma cópia de A New View of Society, confessando-se bastante impressionado com as ideias de Owen.

No período que passou em Londres para se dedicar à propaganda das suas ideias, Owen conviveu com Godwin. A partir da sua filosofia, Owen construiu e sistematizou a sua doutrina, sobretudo no respeitante ao princípio de que o ser humano não era responsável pelas suas acções, uma vez que o seu comportamento era determinado pelo meio. Godwin foi, sem dúvida, o filósofo que mais influenciou Robert Owen, sendo que a sua visão sobre a religião também viria a ser profundamente influenciada por aquele.

1.4 New Lanark de Dale

New Lanark, o “laboratório” onde Robert Owen pretendia testar as ideias que estariam na base da sua visão de um “novo mundo moral”, foi fundada por David Dale. Talvez mereça a pena retroceder um pouco no tempo para se perceber que o papel reformista de Robert Owen terá tido como precursor o seu sogro, que se evidenciou pelo seu papel humanitário no tratamento dado aos seus trabalhadores e aos pobres, em geral. David Dale era um homem de negócios e banqueiro bem-sucedido, tendo feito de New Lanark uma das maiores e mais conhecidas unidades fabris do mundo. No artigo “A New Moral World? International Dimensions of Owenism 1815-1830”, Donnachie refere David Dale como o “dono paternalista de uma comunidade que atraía as atenções nacionais e internacionais, sobretudo pelo tratamento dado às crianças e indigentes” (2009: 185 – minha tradução).

David Dale foi considerado o responsável pela transformação desta cidade no centro mais importante da revolução industrial na Escócia. A sua fortuna e as suas convicções religiosas fizeram dele um apoiante de diversas causas humanitárias, sendo as suas atitudes filantrópicas reconhecidas na época. Das suas acções, destacam-se a muito radicais, acentuando a necessidade de estas se realizarem de uma forma pacífica. Na sua opinião, as revoluções provocavam males incalculáveis, destruíam as liberdades públicas e quase sempre falhavam os seus propósitos. Foi um feroz opositor das teorias de Malthus contra as quais escreveu An Inquiry Concerning Population , em 1820. Esta obra foi traduzida para o francês por Francisco Solano Constâncio no ano seguinte ao da sua publicação. Desta forma tornou-se conhecida na Europa, já que o francês era uma espécie de língua franca. As suas propostas políticas influenciaram Samuel Coleridge e Robert Southey, entre outros, na planificação da Pantisocracy, uma comunidade utópica romântica a ser criada nos Estados Unidos. Infuenciou os poetas William Wordsworth, Coleridge, Shelley e Lord Byron. Publicou ainda dois romances The Adventures of Caleb Williams (1794), St. Leon (1799) e A History of the Commonwealth (Amzalak 4-8, Trahair 157-8).

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participação activa em associações de caridade em Glasgow que se encontrava, à época, verdadeiramente inundada por ondas sucessivas de imigração, criando sérios problemas de pobreza extrema. Tornou-se igualmente o impulsionador do hospital da cidade, tendo providenciado assistência médica aos seus trabalhadores de New Lanark. Acresce mencionar que apoiou John Howard na reforma prisional.

Paradoxalmente, dado que a sua fortuna se baseara na manufactura do algodão, apoiou o movimento antiesclavagista protagonizado por Wilberforce9.

Dale acolheu inúmeros imigrantes das “Scottish Highlands”, que, com eles, haviam levado a língua e a cultura galesas. Dadas as dificuldades que estes trabalhadores tinham em se adaptar ao trabalho em recintos fechados, era necessário recorrer à contratação de centenas de crianças órfãs ou institucionalizadas para os trabalhos fabris.

Neste período, inúmeras pessoas embarcavam para os Estados Unidos em barcos onde mal tinham espaço para sobreviver à viagem. Muitos desses barcos afundavam por excesso de carga, morrendo numerosos emigrantes, sobretudo crianças. Dale, profundamente chocado com a situação, e porque necessitava de mão-de-obra para a sua fábrica, associou-se à “Society for Preventing Emigration to Foreign Parts”, promovendo a sua fábrica na região das “Highlands” e oferecendo trabalho a essas famílias na sua fábrica (Nicolson &Donnachie 23).

O número de crianças empregadas na sua fábrica ascendia a quinhentas, recrutadas, na sua maioria, em instituições e orfanatos de Edimburgo e Glasgow, suscitando a curiosidade e interesse de muitos visitantes. A este propósito, Charles Hatchet, um notável cientista, escrevia no seguimento de uma visita a New Lanark, em 1796:

We went to see the Cotton Mills belonging to Mr. Dale […] these consist of four immense buildings of six stories in which machines worked by water wheel and attended principally by children, cotton is carded and spun into yarn. In these works above 400 children are employed. (cit. Donnachie & Hewitt 47)

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O tráfico de escravos constituiu um dos comércios mais rentáveis do comércio britânico com a América, estando intimamente ligado à manufactura do algodão. Mais de metade dos escravos levados para a América havia sido transportada em barcos ingleses. No século XVIII Horace Walpole tinha-se manifestado contra este negócio alegando razões morais, mas foi sobretudo Wilberforce quem, no início do século XIX, reforçou esta luta, tendo conseguido a abolição da escravatura em 1807. A libertação de todos os escravos do Império Britânico só ocorreu em 1830, ano em que morreu Wilberforce.

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A este respeito, comentará, alguns anos mais tarde, Robert Owen, apesar de crítico relativamente a muitas políticas seguidas pelo sogro anteriormente à sua gestão: “[t]hese children were to be fed, clothed, and educated well […] the benevolent patron spared no expense to give comfort to the poor children. The rooms provided for them were spacious, always clean, and well ventilated; the food was abundant, and of the best quality” (Owen 24-5).

A New Lanark de Dale despertou o interesse, e mesmo admiração, de um grande número de Europeus ligados à política e ao Iluminismo.

1. 5 New Lanark de Owen – uma utopia realizada

Owen foi para New Lanark em Janeiro de 1800, depois de ter casado com Caroline Dale (filha de David Dale), e com a convicção de que se poderia moldar o comportamento dos trabalhadores, eliminando-lhes os vícios através da disciplina, de uma supervisão severa e uma gestão baseada em princípios de justiça e bondade.

A abordagem que fez a New Lanark não foi socialista; de resto, a palavra só foi usada, pela primeira vez, em 1820. Nessa altura, Owen não defendia a partilha do lucro, nem pretendia eliminar a competição, que mais tarde virá a considerar uma das causas do desemprego.

Um dos primeiros problemas que Owen identificou prendia-se com o comportamento dos operários, constantemente alcoolizados e frequentemente envolvidos em rixas e actos de roubo. As ruas e as casas estavam sujas e em mau estado de conservação. Este foi o quadro apresentado por Owen no seu Third Essay identificando os problemas que haviam subsistido ao filantropismo de David Dale (Owen 37-40). Essa realidade, aliada à vontade de solucionar a situação problemática dos operários britânicos e conjugando-a com os interesses de gestor que visava o lucro, viria a dar origem a uma utopia paternalista. Owen propôs-se erradicar o vício sem recorrer ao castigo ou a argumentos de carácter religioso, promovendo, em vez disso, um ambiente razoável de trabalho e de vida dos seus habitantes. Todavia, na realidade, foi sobretudo através de regras rigorosas que, embora relutantemente, os habitantes se viam obrigados a cumprir, que Owen inicialmente conseguiu as suas reformas. As casas tinham de ser limpas uma vez por semana e pintadas uma vez por ano. As ruas deviam ser mantidas limpas, sendo proibido atirar lixo, água suja ou deixar o gado e os cães soltos. Durante o Inverno, não era permitido andar na rua a partir das 22.30h sem

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autorização do responsável. Quem não autorizasse a inspecção regular das casas ou não cumprisse estas regras era banido para a parte insalubre da vila. Quem fosse apanhado alcoolizado em público, pagava uma multa. No entanto, era vendido whisky na mercearia local, que também era gerida pela administração da fábrica. Com todas estas medidas, pouco tempo depois, o ambiente passou a ser de ordem e disciplina.

Como recompensa, as classes trabalhadoras podiam gozar de conforto, tendo acesso a actividades desportivas e a distracções sadias e racionais. Ao mesmo tempo, ligavam-se afectivamente àqueles de quem dependiam, cumprindo de bom grado as tarefas. Estabeleciam-se, deste modo, laços de natureza humana que os faziam cumprir com mais empenho as tarefas que lhes competiam em prol do bem da colectividade/ comunidade. Havia uma atitude paternalista e patriarcal por parte de Robert Owen na gestão de New Lanark. O proprietário assegurava directa e pessoalmente o bem-estar dos seus trabalhadores e estes dedicavam-se-lhe de uma forma agradecida. Owen conhecia os problemas que afectavam os trabalhadores, encontrou uma solução e tinha assim o consentimento da colectividade para a sua utopia.

Porém, apesar destes ideais filantrópicos, Owen pretendia também alcançar elevadas margens de lucro: empregava crianças com dez anos de idade (embora teoricamente propusesse doze anos como idade mínima para se poder ser contratado) e a maior parte dos seus operários trabalhava as habituais catorze horas por dia, até 1816, altura em que o horário foi reduzido para doze horas e Owen propunha dez horas diárias nos seus escritos.

Na verdade, o segredo para o sucesso, do ponto de vista da rentabilidade económica do projecto, residiu sobretudo na disciplina e na organização e gestão paternalista. O desempenho dos operários era regularmente avaliado e publicitado através dos “silent monitors”10 e dos “book of character”, a partir dos quais se pretendia estimular a produtividade dos trabalhadores. É de salientar que, nesta fase do seu percurso, Owen aceitava ainda a competitividade que virá a considerar nefasta anos mais tarde (Clayes ix).

A assistência médica continuou a ser providenciada e foi estabelecido um fundo de doença para o qual os operários contribuíam com um sexto do seu vencimento. Os trabalhadores com dificuldades podiam ainda recorrer a uma espécie de crédito por

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Um sistema similar tinha já sido utilizado nas escolas pelo conhecido pedagogo Joseph Lancaster. Outras unidades fabris terão também utilizado este sistema. A grande inovação de Owen residia na possibilidade que os trabalhadores tinham de recorrer junto de si das decisões dos respectivos supervisores.

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conta do salário seguinte. Foram construídas cozinhas e refeitórios públicos que providenciavam não só a possibilidade de uma melhor alimentação, como também aumentavam as condições de higiene, evitando a proliferação de doenças infecciosas responsáveis por baixas na produção e aumento da mortalidade.

Estes esforços não resultavam da mera generosidade da parte de Owen. Na verdade, a educação era paga com os lucros do armazém, apesar de os preços serem cerca de 25% mais baixos do que noutros lugares.

Para além de acalmar e controlar a sua força de trabalho, estas medidas reflectiam já uma vontade de experimentar aquilo a que, em 1812, Owen viria a chamar “Formation of Character”, tentando criar um ser humano delicado, activo e educado. Esta força de trabalho seria moldada através da criação de um ambiente favorável.Owen não se cansava de afirmar:“[t]he character of man is, without a single exception, always formed for him” (Owen 43).

No decurso do ano de 1812, Owen começou a desentender-se com os seus sócios, que não concordavam com as suas reformas, sobretudo no que dizia respeito à educação. Começou então a empreender esforços para encontrar quem os pudesse substituir e, em 1813, munido do primeiro Essays on the Formation of Character, redigido em 1812 e publicado em 1813, conseguiu formar com sucesso uma sociedade com quatro dos principais membros da “Society of Friends”: John Walker, Joseph Fox, Joseph Foster e o mais proeminente elemento do grupo, William Allen11. Este, mais tarde, viria a desencantar-se com Owen, sobretudo no que se refere às suas controversas posições relativamente à religião. A este grupo juntar-se-ia ainda Jeremy Bentham12,

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William Allen (1770-1843) foi um químico proveniente de uma família rica “Quaker”. Envolveu-se nas questões da abolição da escravatura e na educação dos pobres. Foi muito influenciado pelo filósofo escocês James Mill. Publicou Philantropist, a Repository of Hints and Suggestions Calculated to Promote the Comfort and Happiness of Man (1811-1819). Depois das guerras Napoleónicas, viajou pela Europa e conheceu importantes personalidades. Trabalhou no sentido de divulgar o método de ensino de Lancaster em França. Em Julho de 1824 fundou uma colónia em Lindfield, que se destinava a aliviar o sofrimento dos pobres. Em 1838 publicou Analysis of Human Nature e mais tarde a sua autobiografia Life of William Allen. (Trahair 9)

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Jeremy Bentham, 1748-1832, publicou em 1776 A Fragment on Government, que lhe permitiu fazer amizade com Lord Shelburne, em cuja casa conheceu inúmeras celebridades. Em 1785 visitou a Rússia, onde o seu irmão mais novo organizou uma colónia-modelo na Ucrânia para o príncipe Potemkin. Viajou também através do Báltico. Em 1789 publicou Introduction to the Principles of Morals and Legislation, e em 1891 escreveu Panopticon or the Inspection House, onde apresenta as suas ideias extraordinárias para uma prisão-modelo. Em 1791 publicou Essay on Political Tactics,um excelente estudo dos métodos de governo inglês que ele sugeria que fossem utilizados pelos revolucionários franceses. Embora os franceses não tenham aceitado os seus conselhos, atribuíram-lhe o título honorário de cidadão francês. Alguns dos seus livros, traduzidos para o francês, circularam pela Europa. Os governos portugueses, russo e suíço solicitaram a Bentham sugestões de códigos legais, tendo ele tentado providenciar um modelo de Código Constitucional. Com o passar do tempo, as suas visões políticas foram-se tornando radicais. Em 1808 conheceu James Mill, que o influenciou favoravelmente no apoio a um governo

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que viria a tornar-se também sócio de Owen. Este processo completou-se em Janeiro de 1814. Owen regressou triunfantemente a New Lanark, onde foi recebido com toda a pompa e circunstância por parte dos seus trabalhadores. Uma descrição desta recepção é publicada no Glasgow Herald, de 10 de Janeiro de 1814, do qual se destaca o seguinte excerto:

[t]here were Great rejoicings here yesterday on account of Mr. Owen´s return, after his purchase of New Lanark. The Society of Free Masons at this place, with colours flying and a band of music, accompanied by almost the whole of the inhabitants, met Mr. Owen, immediately before his entrance into the burgh of Lanark, and hailed him with the loudest acclamations of joy; his people took the horses from his carriage and, a flag being placed in front, drew him and his friends along, amid the plaudits of the surrounding multitudes, until they reached Braxfield, […] On being set down at his own house, Mr. Owen, in a very appropriate speech, expressed his acknowledgements to his people for warmth of their attachment, […] Mr. Owen is so justly beloved by all the inhabitants employed at New Lanark, and by people of all ranks in the neighbourhood, that a general happiness has been felt since the news arrived of his continuing a proprietor of the mills. (cit. Donnachie 2000 :108)

Esta data marcou o início de uma nova era em New Lanark. Owen foi recebido em apoteose pelos trabalhadores, provando ter ganho o seu consentimento na construção desta utopia. A partir desse momento, estaria em posição de aplicar algumas das suas ideias que viriam mais tarde a ser conhecidas como “ Owenism”.

1. 6 Owen, o propagandista

No Inverno de 1812, Owen foi para Londres, onde começou a fazer propaganda das suas ideias. Conhecia muitos comerciantes importantes, bem como Membros do Parlamento. A inteligência com que gerira New Lanark, bem como os seus pontos de vista, eram do conhecimento de muitos políticos, nomeadamente de Lorde Liverpool, que liderava a administração Tory. Liverpool não era partidário de grandes reformas parlamentares. Há, contudo, provas de que Owen teve contactos com Liverpool em 1810 (quando este era apenas Secretário da Guerra). Nesse encontro, Owen terá já feito democrático. Apesar de levar uma vida calma e ficar nervoso em acontecimentos sociais, frequentava as festas das elites sociais e era conhecido por se vestir de uma forma excêntrica. Um contemporâneo seu escreveu: “It is impossible to conceive a physiognomy more strongly marked with ingeniousness and philanthropy” (Bowle 53-4).

Referências

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