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Autonomia e movimento operário em Cornelius Castoriadis

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Academic year: 2021

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Departamento de Filosofia

AUTONOMIA E MOVIMENTO OPERÁRIO EM

CORNELIUS CASTORIADIS

Autor: Alfran Marcos Borges Marques

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luís Rizzo Dela-Sávia

Natal - RN

dezembro- 2015

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ALFRAN MARCOS BORGES MARQUES

AUTONOMIA E MOVIMENTO OPERÁRIO EM CORNELIUS CASTORIADIS

Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luís Rizzo Dela-Sávia.

Natal - RN

dezembro – 2015

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“Um homem se humilha Se castram seu sonho Seu sonho é sua vida E vida é trabalho E sem o seu trabalho Um homem não tem honra E sem a sua honra Se morre, se mata”. (Gonzaguinha, Um Homem Também Chora).

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RESUMO

MARQUES, Alfran Marcos Borges. Autonomia e movimento operário em Cornelius Castoriadis. 2015. 45 folhas. Monografia de bacharelado (Departamento de Filosofia) – UFRN, Natal, 2015.

A pesquisa consiste em apresentar as noções conceituais e argumentos mais importantes para Cornelius Castoriadis que permitam elucidar o papel da ação política operária na busca pela autonomia coletiva e individual. A partir da delimitação histórico-conceitual da reflexão filosófica sobre o desenvolvimento do movimento operário, demonstram-se as principais críticas de Castoriadis dirigidas ao gerenciamento científico da produção, às tendências burocráticas da sociedade contemporânea e à alienação promovida pela ideologia capitalista. Para tanto, é essencial compreender as categorias usadas em todo o seu percurso filosófico: luta implícita, luta explícita, organização operária e contradição fundamental do capitalismo. A relação entre movimento operário e projeto de autonomia torna-se de máxima importância para Castoriadis, o que exige repensar a participação política a partir de uma perspectiva substancial, ou seja, por meio da radicalização profunda da própria noção de democracia. Em suma, o presente estudo procura analisar a autonomia operária em Castoriadis reconstruindo o percurso histórico que o levou do marxismo às noções de autonomia e imaginário social radical e, em seguida, como essa teoria social defende a conquista do autogoverno coletivo e popular. Este debate propõe elucidar os fenômenos que encarnam a heteronomia e a administração burocrática da sociedade: o marxismo ortodoxo e o capitalismo. Diante das sombras deixadas pelo declínio da teoria socialista e da alienação cada vez mais brutal do capitalismo, pensar a autonomia de forma radical é o único modo de viabilizar a ação consciente, lúcida e criativa. Somente assim a auto-instituição da sociedade apresentar-se-ia explicitamente aos olhos dos indivíduos tornando-os portadores da responsabilidade de edificar a organização coletiva. Esta capacidade de julgar as significações e a instituição social em sua totalidade implica um tipo inédito de ser social e histórico.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 6

1 A LUTA IMPLÍCITA DO MOVIMENTO OPERÁRIO ... 8

2 A LUTA EXPLÍCITA DO MOVIMENTO OPERÁRIO ... 24

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 40

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6 INTRODUÇÃO

Durante o período que compreende o início da década de 1950 até o ano de 1980, Cornelius Castoriadis elabora uma série de textos voltados para o debate acerca das reivindicações e formas de luta empreendidas por trabalhadores e militantes revolucionários. A principal tese defendida por Castoriadis consiste na estreita comunicabilidade das reivindicações imediatas oriundas da contradição fundamental do capitalismo nas fábricas e a ação política voltada para a derrocada definitiva do sistema de exploração. Isto porque, ao contrário do que prega a ortodoxia marxista, não há separação entre o econômico e o político, ou, dito em termos filosóficos, entre o imediato e o universal-histórico. Se estes domínios da realidade são tomados separadamente e absolutamente, a luta implícita e a luta explícita do proletariado perdem seu sentido ao inviabilizar qualquer perspectiva de uma teoria e de um fazer revolucionário que congregue dois vértices do mesmo fenômeno.

Com o intuito de compreender a totalidade da consciência de classe na época atual e responder às questões “O que é a classe operária?” e “No que consiste a originalidade do seu projeto de autonomia?”, pretende-se neste trabalho monográfico analisar uma parte da obra de Castoriadis diretamente relacionada com a organização dos militantes e com o significado da história do movimento operário para a transformação da sociedade. Para tanto, destaca-se a interpretação do filósofo grego sobre o conjunto de fatos e eventos que caracterizam os dois séculos do projeto de autonomia socialista. Tenciona-se elucidar a recente história da civilização ocidental diante da crise da sociedade de classes que gera a reivindicação pelos produtores da expansão da autonomia em todos os níveis sociais. Para Castoriadis o esclarecimento deste projeto de transformação radical decorre, articula-se e formula-se historicamente no e através do movimento operário em seus diversos momentos, desde a resistência quase silenciosa à disciplina imposta pelos gerentes, até a construção de organizações políticas desafiadoras da hegemonia societária capitalista.

Na primeira parte da presente pesquisa abordam-se os principais elementos da contradição fundamental do capitalismo a partir da experiência concreta dos operários nas fábricas. Com isto se pretende chegar ao fundo do problema central das sociedades burocráticas que é a divisão entre dirigentes e executantes. Com base na constatação da luta implícita na sociedade de classes, o operariado inicia sua rebelião ao exigir melhorias nos salários e nas condições de trabalho.

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Na segunda parte deste estudo é exposta a maneira como o proletariado amplia suas reivindicações ao ponto de desafiar frontalmente a instituição social capitalista, principalmente no momento em que forma organizações políticas de abrangência regional e global. Neste esforço de disputar abertamente o controle das significações sociais centrais com os dirigentes, o projeto de autonomia socialista toma forma com a elaboração de programa contendo as linhas gerais de ação para a conquista das metas provisórias e da queda definitiva da sociedade de classes. Também se alerta para o perigo do movimento operário manter os princípios burocráticos ao não compreender com clareza o conteúdo positivo do socialismo presente na luta cotidiana e nos grandes momentos históricos de consolidação do projeto de autonomia socialista.

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1 A LUTA IMPLÍCITA DO MOVIMENTO OPERÁRIO

O início da publicação da revista Socialismo ou Barbárie, cujo principal editor foi Castoriadis, data de março-abril de 1949 e ocorre no momento de ascensão do antagonismo entre o bloco soviético e o bloco americano-europeu que reconfigurou a luta de classes por todo o globo. O movimento socialista também se encontrava fortemente dividido. Por um lado, o stalinismo tentava impor a hegemonia da sua doutrinação oferecendo o poder econômico e político à camada burocrática, enquanto que, na maioria dos países europeus não alinhados à Rússia, a degenerescência e a mistificação reformistas devastavam a militância socialista. Na Europa, alinhada inteiramente aos ditames do capitalismo, o trabalhador “vê os partidos ditos ‘socialistas’ participarem de governos burgueses, exercerem ativamente a repressão de greves ou de movimentos dos povos das colônias, serem campeões da defesa da pátria capitalista, e até esquecerem a referência a um regime socialista.” (CASTORIADIS, 1979). No plano teórico, ocorre o abandono das abordagens históricas e um fechamento na microanálise de fenômenos interpretados como indicativos do “fim da filosofia” e da crítica social.

Para confrontar o império da burocracia encarnada na organização capitalista e na ideia de hierarquização dos quadros do Partido, os operários abandonaram gradativamente as tradicionais formas de luta na esperança de retomar o projeto de autonomia por outras vias mais eficientes e democráticas. Neste sentido, para repensar a crise da organização socialista, emerge a necessidade de um novo esforço intelectual capaz de analisar com profundidade a experiência do movimento operário, particularmente a partir de 1917. “Era claro que aos nossos olhos que o objetivo prático mais importante era a reconstrução da teoria revolucionária; que, antes de nos ‘precipitarmos’ numa ação qualquer, era urgente clarificar nossas ideias e permitir – por isso mesmo – fazê-lo.” (CASTORIADIS, 1985, p.80). Na realização desta tarefa, tão relevante quanto elucidar as causas e conseqüências da ação explícita do proletariado nos sindicatos, partidos, greves gerais e grandes momentos revolucionários, também constitui matéria intelectual da máxima importância descrever os vários aspectos da luta entre dirigentes e executantes dentro da organização capitalista. “Essa ação e essa organização cotidianas, às quais é preciso reconhecer doravante a importância capital que lhes é própria, serão por nós englobadas no termo ‘luta implícita’. Implícita à existência do proletariado, à própria condição de proletário.” (CASTORIADIS, 1985, p.138).

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Este conflito é expresso de duas formas fundamentais: como luta dos trabalhadores contra a alienação e como ausência, isto é, apatia, passividade, fuga e isolamento das pessoas.

Antes mesmo de adentrar nos sindicatos e partidos, os operários carregam os elementos embrionários de uma nova forma de organização social, de um novo comportamento e de uma nova mentalidade humana em sua luta cotidiana no interior da empresa capitalista (CASTORIADIS, 1985, p.139). “Há uma luta informal permanente dos trabalhadores contra a exploração; e há também uma luta política explícita contra a organização atual da sociedade, que o proletariado quase sempre travou.” (CASTORIADIS, 1985, p.213). O caráter alienado e não-criativo de sua atividade produtiva mantém o trabalhador em constante questionamento sobre as perspectivas da sua atividade laborativa. A classe operária está constantemente assombrada por um sentimento de frustração e medo de que esteja condenada a permanecer vítima da atração e repulsão do capital. A preocupação dos intelectuais com programas econômicos de "pleno emprego" e alto padrão de vida parece insignificante em face da realidade opressiva da vida dos trabalhadores. Trata-se da reação imediata diante da contradição fundamental do capitalismo experimentada desde o processo produtivo que, enraizado nos valores liberais oriundos do iluminismo, fingi cumprir o projeto moderno de libertação, mas submete os homens e mulheres a uma crescente alienação do fruto do esforço coletivo. “Em vez de liberar as potencialidades humanas de autonomia, autogestão e criatividade, essa ordem exclui as pessoas da direção de seus próprios negócios, submete os seres humanos à dominação de racionalidades instrumentais e os mantêm presos numa ‘gaiola de ferro’.” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.76).

Mas o arcabouço teórico da burocracia, principalmente os “intelectuais de esquerda”, portadores de um conhecimento superficial da exploração e da luta contra a sociedade de classes, separa radicalmente a experiência coletiva (direta, espontânea e informal do ambiente de trabalho) da unidade dos militantes para além das fronteiras das fábricas e países. “Assim, uma classe não pode existir na sociedade sem manifestar em algum grau uma consciência de si mesma como um grupo com problemas, interesses e expectativas comuns – muito embora esta manifestação possa por longos períodos ser frágil, confusa e suscetível de manipulação.” (BRAVERMAN, 1987, p.36).

A concentração da produção enseja necessariamente o aparecimento, dentro das empresas, de uma classe responsável por gerir a totalidade de conjuntos econômicos imensos, o que leva à extensão quantitativa e à mudança qualitativa do aparelho burocrático dentro e

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fora do universo da fábrica. O volume de negócios modernos, com a instalação de todo o aparato técnico e financeiro correspondente, impulsiona o aumento da centralização capitalista e subdivisão racional em todos os setores da produção, mais especificamente no microcosmo da fábrica (MILLS, 1957, p.111). A gestão científica do trabalho surge num período de extrema e rápida acumulação do capital, num momento em que a grande indústria capitalista se desenvolve com base na produção de valores em escala cada vez maior a partir da aplicação sistemática da ciência à produção. A implantação do capitalismo monopolista exigiu o crescimento das empresas e, consequentemente, aumentou seus órgãos administrativos. Surge daí uma intensificação da burocratização que subdivide também a direção em dois grupos: os que se ocupam das decisões dos negócios em escala geral e os que se ocupam do gerenciamento da produção (MILLS, 1957, p.116). “No outro polo da sociedade, o movimento operário degenera, burocratizando-se; e burocratiza-se ao se integrar na ordem estabelecida, só podendo integrar-se nela se burocratizando.” (CASTORIADIS, 1985, p.231).

Neste ínterim, a emergência da burocracia corresponde à atual fase da concentração do capital da mesma forma que a burguesia representava a fase precedente. “Por intermédio do crescimento da instituição capitalista nuclear: a própria empresa se materializa num novo tipo de organização burocrata-hierárquica; gradualmente, a burocracia tecnogerencial torna-se o meio por excelência de empurrar o projeto capitalista.” (CASTORIADIS, p.20, 1992). No entanto, em nenhum sentido é possível dizer que essa nova classe cresceu no seio da sociedade anterior, nem que surgiu a partir de um inédito modo de produção. “É verdade também que, de qualquer modo, o sistema capitalista não teria podido continuar a funcionar – e, sobretudo, não teria podido assumir sua forma burocrática moderna – se a estrutura hierárquica não somente fosse aceita, mas também ‘valorizada’ e ‘interiorizada’.” (CASTORIADIS, 1985, p.257).

Disto resulta o triunfo de uma representação imaginária da sociedade enquanto sistema de pirâmides hierárquicas no qual resta a única forma de identificação social, já que todas as demais determinações, todos os outros pontos de enraizamento pessoal vão sendo esvaziados de conteúdo. “Numa sociedade onde não existem coletividades vivas verdadeiras, onde tudo se uniformiza através da mídia de massas e da corrida do consumo, o sistema pode oferecer apenas, para mascarar o vazio da vida, a ridícula futilidade de um lugar na pirâmide hierárquica” (CASTORIADIS, 1985, p.258). Mesmo assim, “o indivíduo se vê confrontado

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em todas as ocasiões com organizações que parecem muito remotas; sente desamparo diante dos quadros de direção.” (MILLS, 1957, p.150).

Um dos principais eixos de análise do pensamento de Castoriadis na época em que contribuía para o Socialismo ou Barbárie refere-se à ascensão da burocracia enquanto nova classe social hegemônica. O crescimento do fenômeno econômico e político da burocracia expressa o domínio das tendências mais profundas da produção capitalista moderna que se resume na concentração das forças produtivas, aparecimento nas grandes empresas de enormes aparelhos burocráticos de direção, fusão dos monopólios do Estado e conseqüente regulamentação estatal da economia. Na segunda metade do século XX, o gerenciamento da produção e da organização social avança cada vez mais rumo à heteronomia com o recrudescimento da polarização entre dirigentes e executantes. “A divisão das sociedades contemporâneas – ocidentais ou orientais – em classes já não mais corresponde à divisão entre proprietários e não-proprietários, mas àquela, muito mais profunda e mais difícil de eliminar, entre dirigentes e executantes no processo de produção.” (CASTORIADIS, 1985, p.81). Este diagnóstico permite Castoriadis (1985, p.81) redefinir o sentido da luta de classes na intenção de enfrentar as novas questões que se descortinavam para o movimento operário a partir de sua luta cotidiana: “O socialismo é a supressão da divisão da sociedade em dirigentes e executantes, o que significa ao mesmo tempo gestão operária em todos os níveis – da fábrica, da economia e da sociedade – e poder dos organismos de massas – sovietes, comitês de fábrica ou conselhos.”

Quando os partidos ou sindicatos formam organizações separadas dos militantes, reduzindo estes a um papel passivo e tentando dominá-los, reproduzem a profunda divisão entre dirigentes e dirigidos em seu próprio seio porque não compreendem com clareza o verdadeiro conteúdo do socialismo. “Nem é preciso dizer que o socialismo é ‘impossível sem’ a ação autônoma do proletariado; ele é senão essa própria ação autônoma. Autônoma: dirigindo a si mesma, consciente de si mesma, de seus objetivos e de seus meios.” (CASTORIADIS, 1985, p.82). A exigência da autonomia impele o proletariado para a consciência da necessidade de emancipação, erigindo os valores, objetivos e estratégias para conquistar seus objetivos imediatos e outros mais abrangentes. “Precisamos falar concretamente da sociedade socialista, mostrar as possibilidades imensas que ela ofereceria ao florescimento da vida dos homens, discutir em termos precisos sobre sua organização, seus problemas, suas dificuldades.” (CASTORIADIS, 1985, p.84). Portanto, os principais

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elementos para a reflexão das metas e caminhos a serem traçados são fornecidos pela práxis dos homens e mulheres engajados diretamente nas suas atividades produtivas que criam um conflito permanente em todos os estágios e em todos os setores da vida social decorrente da crise da sociedade de exploração. “Estas contradições demonstram a necessidade de fundamentar a luta da classe trabalhadora e a reconstrução da sociedade a partir da oposição fundamental dos trabalhadores ao processo de produção capitalista.” (SINGER; BOGGS, 1972, p.5).

Para Castoriadis não há crítica e nem mesmo análise possível do capitalismo fora de uma perspectiva socialista. O conteúdo positivo do socialismo deriva da história real vivida pela classe que tende a realizá-lo, apoiando-se numa deliberação que expressa a atitude politicamente revolucionária. Os elementos socialistas constantemente produzidos pelo proletariado devem ser extrapolados e generalizados num projeto total de reconfiguração dos meios de produção que permita a administração direta dos produtores e resolva a contradição entre direção e execução. Deste modo, a teoria é obrigada a partir das estruturas lógicas e epistemológicas da cultura atual, que não são de modo algum formas neutras, independentes do seu conteúdo, mas que expressam de modo antagônico e contraditório os comportamentos e atitude gerados pelas relações sociais do capitalismo. “Somente retornando em cada oportunidade à fonte, confrontando os resultados da teoria com o conteúdo real da vida e da história do proletariado, é que podemos revolucionar nossos métodos mesmos de pensar e construir mediante sucessivos abalos a teoria socialista.” (CASTORIADIS, 1985, p.97).

A experiência do proletariado não o leva de modo automático, imediato e direto para os problemas gerais, mas existe uma ligação orgânica do fazer da classe trabalhadora na empresa e na sua vida cotidiana com as questões relacionadas à instituição geral da sociedade (CASTORIADIS, 1985, p.218). “quanto a nós dizemos: a luta do proletariado contra a exploração leva-o a colocar o problema da transformação das relações sociais. Até mesmo o fato de colocar esse problema e, ainda mais, o de lhe dar resposta foi o objeto de uma luta secular.” (CASTORIADIS, 1985, p.220). Esta totalidade da experiência é, ao mesmo tempo, criada e constantemente destruída pelo funcionamento do capitalismo que a fragmenta e mistifica ao defender uma separação estagnada entre a realidade imediata e a instituição global da sociedade. “É aflitivo ter de lembrar a marxistas que a concepção socialista consiste precisamente em recusar o dilema – tipicamente burguês – entre cooperação espontânea e aparelhos de direção.” (CASTORIADIS, 1985, p.225). A partir da visão do marxismo

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ortodoxo, a revolução contra o capitalismo foi concebida cada vez mais como uma questão de eliminar os excessos do mecanismo capitalista, melhorando as condições de trabalho ao acrescentar à organização fabril uma estrutura formal de controle do trabalhador, o que substituiria os mecanismos capitalistas de acumulação e distribuição pelo planejamento socialista sem a contestação necessária da técnica em si. “Os marxistas, impressionados talvez, e até aterrados pela imensa produtividade do processo de trabalho, adaptaram-se à maneira de ver a fábrica moderna como uma inevitável, mas aperfeiçoável forma de organização do trabalho.” (BRAVERMAN, 1987, p.21).

Por isto, a tentativa de racionalização capitalista das relações de produção revela-se, no final das contas, incompatível com o objetivo fundamental da atividade produtiva ao fazer do homem mais uma peça subordinada passivamente à lógica da cadeia produtiva. Tal contradição aparece desde o início no elemento mais simples da relação entre capital e operariado, a hora de trabalho. “O conteúdo da hora de trabalho tem significações diretamente contrárias para o capital e para o operário; para aquele, essa significação é o rendimento máximo, enquanto para esse é o rendimento correspondente ao esforço que ele considera justo.” (CASTORIADIS, 1985, p.112). Deste modo, o empregador faz um acordo de remunerar com um preço fixo o assalariado que, em contrapartida, aceita alienar um período fixo do seu tempo em benefício do empregador. Mas este jamais pode ter certeza de obter o máximo do que pode ser adquirido nesse tempo que o assalariado lhe deve. Para ganhar a adesão do operariado com a finalidade de conseguir sua dedicação completa ao crescimento do ritmo produtivo, apela-se para o uso da ciência com o intuito de redefinir a concepção de trabalho e assim convencer os operários de que o acordo é justo, sem arbitrariedade ou despotismo, uma vez que na base da organização científica do trabalho encontra-se a justificativa da obrigação e do controle na definição do plano de tarefas e de execução.

Na dominação pretendida pelas diretorias existe a ambição de descobrir outras bases para a mobilização dos assalariados e para a utilização de seu tempo. “Em outras palavras, os gerentes modernos estariam à procura de um novo acordo, baseado em relações de confiança. Sendo o objetivo perseguido o de que o assalariado procure, por si só, ser o mais eficaz, o mais rentável possível.” (LINHART, 2007, p.105). Além disto, as lógicas organizacionais e tecnológicas têm como objetivo colocar o assalariado em situação de homogeneização de suas práticas, de suas linguagens e de suas filosofias profissionais, sempre com o intuito de descobrir o mínimo de gestos com o máximo de eficácia e controle por parte da gerência.

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“Hoje, condições naturais e técnicas estão em constante transformação, a fim de acelerar a produção. Mas, para o operário, o trabalho perdeu todo o interesse além do simples ganha-pão. Portanto, ele resiste inelutavelmente a essa aceleração.” (CASTORIADIS, 1985, p.101). Não existe solução aparente dentro dos referencias do capitalismo para esse conflito, nem mesmo o apelo à racionalização é eficaz na defesa da planificação da produção. “Na medida em a produção não é completamente automatizada, tais tempos se ligam sempre, em última instância, a ‘tempos humanos’, ou seja, aos rendimentos obtidos onde o trabalho vivo continua a intervir.” (CASTORIADIS, 1985, p.101). Portanto, os capitalistas estão interessados unicamente na acumulação ininterrupta enquanto os trabalhadores desejam condições em que exerçam plenamente a autogestão, conseqüentemente, enquanto durar o sistema de classes, a fábrica torna-se um campo de disputa pela monopolização do conhecimento tecnológico e controle das decisões.

Uma das armas dos dirigentes para fragilizar a autonomia operária são os métodos de organização científica que pretendem fornecer base objetiva para a construção do “único bom método” descoberto mediante a decomposição de cada operação numa sucessão de movimentos cuja duração seria medida entre os diversos tipos de gestos realizados por diversos operários. “O fracasso da racionalização ‘científica’ obriga constantemente o capitalismo a voltar ao empirismo da coerção pura e simples e, por isso mesmo, a agravar o conflito inerente a seu modo de produção, a aumentar a sua anarquia, a multiplicar seu desperdício.” (CASTORIADIS, 1985, p.103). Em outro nível de análise, o gerenciamento capitalista caracteriza-se por sua tendência a identificar as forças produtivas com os meios materiais de produção, negando, assim, que a principal força produtiva seja constituída pelos próprios produtores. Conseqüentemente, a gestão da fábrica atribui um papel privilegiado não à capacidade criativa dos trabalhadores, mas à acumulação de novos meios de produção e aos conhecimentos técnicos.

Os pressupostos deste tipo de divisão do trabalho não respeitam as capacidades psíquicas do trabalhador porque viola o que é mais humano no processo, a ideia de que o trabalho realizado é produto de uma relação que envolve concepção e execução. “Torna-se, portanto, fundamental para o capitalista que o controle sobre o processo de trabalho passe das mãos do trabalhador para as suas próprias. Esta transição apresenta-se na história como a alienação dos processos de produção do trabalhador; para o capitalista, apresenta-se como o problema da gerência.” (BRAVERMAN, 1987, p.59).

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A concepção teórica dos métodos de organização científica do trabalho pressupõe condições ideais afastadas da realidade concreta dos operários, em outras palavras, eliminam-se completamente os fatores particulares que freqüentemente alteram o curso da produção. A Teoria Geral da Administração é mistificadora na medida em que traz consigo a ambigüidade básica do processo ideológico que consiste em vincular-se às determinações sociais reais enquanto técnica de mediação do trabalho ao mesmo tempo em que se afasta dessas determinações reais. Desta maneira, a gerência científica significa o empenho no sentido de aplicar os métodos da ciência aos problemas complexos e crescentes do controle do trabalho nas empresas capitalistas. Ela parte unicamente do ponto de vista do dirigente, portanto, não procura descobrir e confrontar a causa do conflito de classes, mas a aceita como um dado inexorável (BRAVERMAN, 1987, p.83).

O melhoramento do rendimento do trabalhador na produção é organizado de acordo com os princípios tayloristas, enquanto os departamentos de pessoal ocupam-se com a seleção, manipulação, pacificação e ajustamento da mão-de-obra para adaptá-la ao processo de trabalho assim organizado. O taylorismo domina o mundo da produção; os que praticam as ‘relações humanas’ e a ‘psicologia industrial’ são as turmas de manutenção da maquinaria humana. (BRAVERMAN, 1987, p.84).

Pelo exposto até este momento, concluem-se alguns princípios básicos da gerência capitalista (BRAVERMAN, 1987): O primeiro princípio da administração científica consiste na dissociação do processo de trabalho das especialidades dos trabalhadores que preconiza a subjugação do conhecimento dos operários diante das políticas gerenciais; O segundo princípio diz que a “ciência do trabalho” nunca deve ser desenvolvida pelo trabalhador, mas sempre pela gerência, em outras palavras, trata-se do princípio da separação de concepção e execução. Tanto a fim de assegurar o controle pela gerência como baratear o custo da mão-de-obra, concepção e execução tornam-se separadas para que os trabalhadores orientem-se por instruções simplificadas de raciocínios técnicos; O terceiro princípio da administração científica tem como elemento essencial o pré-planejamento e o pré-cálculo de todos os detalhes do processo de trabalho que já não existiria na imaginação do trabalhador. Em síntese, é a utilização do monopólio do conhecimento para controlar cada fase do processo de trabalho e seu modo de execução. “Era para garantir que, à medida que os ofícios declinassem, o trabalhador mergulhasse ao nível da força de trabalho geral e indiferenciado, adaptável a uma vasta gama de tarefas elementares, e à medida que a ciência progredisse, estivesse concentrada nas mãos da gerência.” (BRAVERMAN, 1987, p.109).

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No entanto, no que pese toda a tentativa de mensurar e condicionar os gestos do trabalhador, a experiência mostra que cada operário individualmente utiliza alternativamente várias maneiras de realizar a mesma tarefa, até mesmo para quebrar a monotonia do trabalho (CASTORIADIS, 1985, p.105). “O que aparece à organização científica do trabalho como um gesto absurdo implicando desperdício de tempo tem sua lógica na constituição psicossomática pessoal do operário em questão, constituição que o leva a seguir seu próprio ‘bom método’.” (CASTORIADIS, 1985, p.104). O fracasso dos métodos de organização científica do trabalho é o resultado da resistência dos operários ao controle pretensamente racional dos gestos necessários para o incremento da produção. Para estabelecer as normas da fábrica os dirigentes criam uma minoria que absorve todas as suas regras de gerenciamento, no entanto, sem relação com as condições reais de produção. Objetiva-se um duplo resultado: criar no seio do proletariado uma camada privilegiada, ao mesmo tempo sustentáculo direto dos exploradores e dissolutores da solidariedade operária, principalmente no terreno da resistência ao rendimento; e utilizar as normas estabelecidas pela minoria para comprimir os tempos concedidos à maioria dos operários produtivos (CASTORIADIS, 1985, p.109). A imposição da norma dos dirigentes não garante a resolução dos conflitos porque o operário, pressionado por limites de difícil cumprimento, tende a diminuir a qualidade do seu trabalho, ou seja, o controle da qualidade das peças fabricadas torna-se fonte de novos conflitos. Em geral, o planejamento realizado pelos dirigentes aumenta forçosamente o rendimento o que provoca também um desgaste excessivo do equipamento, pois o plano de execução muitas vezes desconhece a particularidade do funcionamento da maquinaria ao abstrair condições ideais de operação.

Algumas ações dos operários evidenciam a rede de resistência às medidas de controle adotadas pela empresa capitalista. Uma delas diz respeito às cronometragens para estabelecer o tempo padrão dos processos a partir do trabalhador mais rápido. Quando os responsáveis por essas medições vão realizá-las os operários buscam manter uma cadência mais lenta do que o solicitado. Tal exemplo demonstra que as pequenas vitórias conseguidas por meio de táticas cotidianas raramente mudam a essência das dificuldades advindas do modelo de organização do trabalho, mas, além de propiciar um prazer em alterar as regras impostas, as táticas de enfrentamento cotidiano têm sido suficientemente eficazes para obrigar a empresa a modificar determinados aspectos centrais no modelo de produção. “Além do estereótipo do ‘operário fordista’, o que se pode chamar de face oculta da oficina: as modalidades de auxílio

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mútuo nos postos de trabalho e a distância que se toma em relação às instruções do departamento de métodos, os macetes de trabalho e as técnicas para preservar os ‘segredos’, em especial para se proteger do olhar dos cronometristas.” (BEAUD; PIALOUX, 2009, p.27). Também é objetivo dos dirigentes apropriarem-se do aspecto intelectual do trabalho operário, do saber e da habilidade requeridos pela manipulação da máquina, provocando a expropriação dos operários em relação ao domínio do processo de trabalho e uma maior dependência à organização capitalista do trabalho.

O gerenciamento da produção que parte da ideia da existência do operário individual consiste em outra abstração capitalista que tenta a todo o custo transformar os produtores em indivíduos atomizados sem nenhum vínculo orgânico. Para se expandir o capitalismo destrói os agrupamentos sociais preexistentes para dissolver qualquer traço de experiência coletiva que una os operários, transformando-os numa massa anônima. É um modo de organização da produção economicamente eficaz, talvez, mas humanamente muito custoso, na medida em que gera uma tensão permanente: entre quem manda e o subcontratado, entre chefe e operário e, por fim, entre os próprios operários, sobre os quais recai uma parte das contradições não resolvidas (BEAUD; PIALOUX, 2009, p.295). Com base na concepção simplista de homo economicus a administração capitalista desconhece a tensão entre a personalidade do indivíduo e a estrutura da organização ao defender a tese segundo a qual o trabalhador deve ficar restrito ao seu papel na estrutura organizacional parcelada. “Constantemente, o capitalismo na fábrica tenta reduzi-los a moléculas mecânicas e econômicas, isolá-los, fazê-los gravitar em torno do mecanismo total, postulando que eles obedecem apenas a essa lei de Newton do universo capitalista, ou seja, a motivação econômica.” (CASTORIADIS, 1985, p.114). Com isto, individualiza-se a relação entre os assalariados e os dirigentes ao fomenta uma relação do tipo cooperativo com cada um dos operários. O objetivo é lidar com os assalariados como pessoas em sua individualidade, e não como membros de coletivos com contornos e valores incontroláveis, para que assim se integrem sem resistência aos objetivos da empresa. Mas esta tentativa de individualização entra em franca contradição com a realidade da produção coletivizada e socializada porque os proletários agrupados numa empresa só podem viver e coexistir socializando-se novamente a partir das novas condições criadas pela situação capitalista na qual estão inseridos. “É porque a sua situação na produção cria entre eles uma comunidade de interesses, de atitudes e de objetivos que se opõem

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irremediavelmente aos da direção que os operários se associam espontaneamente, no nível mais elementar, para resistir, se defender, lutar.” (CASTORIADIS, 1985, p.117).

Muitas escolas da teoria da administração surgiram para justificar essa tentativa de subordinação e isolamento dos operários, sempre com o apelo à racionalidade do processo produtivo. “Para Elton Mayo a cooperação dos operários reside na aceitação das diretrizes da administração, representando um escamoteamento das situações de conflito industrial. Nesse sentido, ele continua a linha clássica taylorista, sendo que este acentuava o papel da concentração direta, enquanto aquele a substitui pela manipulação” (TRAGTENBERT, 1971, p.19). “A partir de uma vertente mais próxima da psicologia aplicada, a Escola das Relações Humanas aparece como uma ideologia manipulatória, pois na realidade concreta o operário deseja a melhora do salário no lugar de símbolos baratos de prestígio” (LINHART, 2007). Logo, estas transformações que visam modernizar a produção desencadeiam reações de autodefesa contra a burocracia aplicada no nível mais imediato da produção. “Mais do que cooperar lealmente e confiar em seus superiores, cada um trata de se tornar indispensável, insubstituível, tornando seu trabalho ainda mais opaco, ainda mais inacessível.” (LINHART, 2007, p.113).

Portanto, apresenta-se uma dupla estrutura dentro da empresa capitalista, por um lado, a organização formal representada nos organogramas, cujas linhas são seguidas pelos dirigentes para distribuir o trabalho, transmitir ordens e imputar responsabilidades. Por outro lado, em oposição a essa organização formal, existe a organização informal posta em prática pelos indivíduos e grupos segundo a necessidade da luta contra a exploração. A organização formal, portanto, coincide com a camada dirigente assim como a organização informal não é uma excrescência que aparece nos vazios da organização formal. Ela tende a representar um outro modo de funcionamento da empresa centrado sobre a situação real dos executantes (CASTORIADIS, 1985, p.120). “Essa recusa de colocar efetivamente os problemas da empresa numa perspectiva de classes faz com que ela caia na abstração teórica, ao mesmo tempo em que ‘soluções práticas’ cujo utopismo repousa precisamente na supressão imaginária da realidade de classes.” (CASTORIADIS, 1985, p.121). Tal postura também foi reproduzida do outro lado da cortina de ferro: “As normas de gestão das empresas soviéticas baseiam-se, de forma crescente, na dos países capitalistas ‘avançados’, e numerosos managers soviéticos vão se graduar em escolas de administração de empresa (as business schools) dos Estados Unidos e do Japão.” (BETTELHEIM, 1979, p.50).

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Para o aparelho de direção a solidariedade entre os operários não é vista enquanto coletividade que resulta do processo social no qual cada parte está em interdependência, mas como uma simples coleção de partes decomponível e reintegrada de acordo unicamente com a posição ideológica dos dirigentes. “Todos os atos produtivos devem, em teoria, ser duplicados idealmente e a priori no seio do aparelho burocrático; tudo o que implica uma decisão deve ser efetuado previamente – ou de imediato –, fora da própria operação produtiva.” (CASTORIADIS, 1985, p.123). Sempre se mostrou frustrada a tentativa do capitalismo de programar uma rígida separação entre a direção e a execução ao organizar o trabalho independentemente dos operários, o que é absurdo do ponto de vista da própria eficácia da produção. Isto porque a supressão das faculdades e capacidades de autodireção compromete o êxito da fabricação. Materiais fabricados nas melhores condições possíveis sempre apresentam especificidades imprevistas durante a produção. Isto é conseqüência do avanço ininterrupto das capacidades técnicas dos homens que supõe o emprego de faculdades cada vez mais desenvolvidas do indivíduo, ou seja, absolutamente incompatíveis com o papel de puro e simples executante. “Para o executante, a atitude ideal é tomar a iniciativa verdadeiramente eficiente, e fingir que segue em tudo a diretiva oficial, o que nem sempre é fácil. A fábrica chega assim, em certas ocasiões, a constituir um duplo mundo, onde as pessoas fingem fazer uma coisa enquanto na verdade fazem outra.” (CASTORIADIS, 1985, p.128). Por isto, cabe aos operários a penosa tarefa de adaptar os planos da direção para a realidade concreta através da criatividade que, paradoxalmente, a direção procura suprimir ou esconder os méritos. “No próprio olhar dirigente, está incorporada, por construção, a negação da realidade própria do objeto que ele pretende ver. E não pode ser de outro modo. Pois o reconhecimento dessa realidade própria implicaria que o dirigente nega a si mesmo enquanto dirigente.” (CASTORIADIS, 1985, p.130).

Ao contrário do prega a doutrina da organização científica do trabalho, segundo a qual basta os operários se conformarem estritamente às prescrições tecnológicas e às ordens para que as operações de trabalho se desenvolvam de maneira conveniente, o conhecimento e a experiência não formalizados provenientes da prática e do aprendizado do operariado são indispensáveis para atenuar os imprevistos e as disfunções inerentes a qualquer atividade produtiva. Por isso, o sistema capitalista não pode dar vazão livre e ilimitada a sua tendência fundamental para a exploração total. Primeiro de tudo, esta tendência rapidamente entra em conflito com um dos objetivos da própria produção, pois o cumprimento do objetivo

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capitalista (a exploração ilimitada da força de trabalho) se choca com outra de igual importância (o aumento da produtividade do trabalho). Do ponto de vista estritamente econômico, o trabalhador é mais do que uma máquina, ele produz para o capitalista mais do que ele custa. Além disso, no curso de seu trabalho, apresenta a criatividade, a capacidade de produzir mercadorias em quantidades cada vez maiores e com melhoria de qualidade. Quando o capitalista trata o trabalhador como mero insumo, logo aprende, custosamente, que nenhum procedimento técnico de gerenciamento pode substituir o inestimável valor da criatividade humana. Esta é a contradição fundamental no sistema moderno de exploração. Também é a razão histórica para o seu fracasso e para a sua incapacidade de estabilização (CASTORIADIS, 1949b).

Na realidade, os gerentes conhecem a existência dos procedimentos inventados e utilizados cotidianamente pelos operários e é por essa criatividade que se baseia o bom funcionamento do sistema. “Em suma, uma parte da eficácia da organização reside nessa atividade oculta, que contradiz a racionalidade autoproclamada do taylorismo. E também, graças a essa atividade oculta, foram atingidos índices prodigiosos de produtividade durante os anos de grande crescimento econômico.” (LINHART, 2007, p.71). Na vida real, o capitalismo é obrigado a confiar na capacidade de auto-organização das pessoas, reconhecer a importância da criatividade individual e coletiva dos produtores. Sem fazer uso destas habilidades o sistema não poderia sobreviver por um dia (CASTORIADIS, 1979). Mas toda a organização "oficial" da moderna sociedade ignora estes aspectos e pretende suprimir essas habilidades ao máximo. Ao combater imprevistos os operários contribuem para adaptar as ordens da direção ao plano concreto, mas também demonstram a irracionalidade e ineficácia da organização capitalista. “Constroem para si espaços de liberdade (de fazer coisas diferentes do que decretam as instruções), constituem para si margens de manobra que lhes permitam encontrar uma identidade distinta do operário intercambiável, previsto nos princípios da organização científica do trabalho.” (LINHART, 2007, p.74). Por conseguinte, os esquemas teóricos dos dirigentes não podem considerar uma porção de microfatores invisíveis para os departamentos de estudos e que só podem ser encarados pela habilidade, competência e iniciativa dos executantes. Isso demonstra que não somente os operários não gostam de obedecer às regras impostas pela direção, mas que são impedidos de fazê-lo na medida em que são interessados no sucesso da fábrica para que esteja em condições de lhes pagar o salário (GUILLERM; BOURDET, 1976, p.168).

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Portanto, a contradição fundamental do capitalismo encontra-se na esfera da produção e do trabalho. Esta alienação aponta o esforço do capitalismo em reduzir os trabalhadores ao papel de meros executantes e da incapacidade deste sistema para funcionar caso alcance este objetivo. Em suma, o capitalismo afirma simultaneamente a participação e a exclusão dos trabalhadores no processo de produção, estendendo a mesma relação contraditória aos demais aspectos da esfera social e política. Neste sentido, o capitalismo é a primeira sociedade na história que é organizada de tal forma que ele contém uma contradição interna intransponível.

Reflexo deste fenômeno é a estrutura atual da organização científica da produção que postula a existência de uma previsão perfeita do processo completamente acessível imediatamente apenas à direção. “Os ‘chefes’ técnicos são tão supérfluos quanto os contramestres na produção; não são grandes engenheiros insubstituíveis, mas burocratas que dirigem e ‘organizam’ (ou seja, desorganizam) o trabalho da massa de técnicos assalariados.” (CASTORIADIS, 1985, p.152) Disto resulta que os produtores são privados, em teoria, da possibilidade de realizar a readaptação permanente do plano à realidade, uma vez que, tal adaptação já faz parte a priori da previsão oferecida pela direção. “É preciso que o ponto de vista ‘universal’ do funcionamento da empresa prevaleça sobre os pontos de vista ‘particulares’ dos operários e de seus grupos. Portanto, finalmente, é preciso que uma camada particular de dirigentes se encarregue de impor à totalidade dos produtores esse ponto de vista ‘universal’.” (CASTORIADIS, 1985, p.134). Logo, o conflito é inevitável, pois os imperativos oriundos da tentativa de universalização dos valores da direção assumem para cada grupo de operários a forma de uma lei exterior que é imposta arbitrariamente. Por outro lado, são os operários, mesmo quando estão forçosamente divididos em grupos, que detém o conhecimento da totalidade efetiva. “A direção se esforça para pensar na realidade efetiva da produção. Os produtores são essa própria realidade efetiva. Tomados em sua totalidade, abarcam a totalidade dos aspectos da atividade da empresa: de fato, eles são essa totalidade.” (CASTORIADIS, 1985, p.135).

Desta maneira, o operário deve, primeiramente, inventar sua maneira de fazer e ter em conta imprevisíveis variações da matéria-prima e das situações de produção. A prova da necessidade de aplicação dessa criatividade incessante é demonstrada pela chamada “greve de zelo”, quando se bloqueia o funcionamento de um serviço sem parar de trabalhar, apenas aplicando estritamente o regulamento em vigor. Ao mesmo tempo, o operário deve ainda inventar todas as formas de astúcia para fazer crer à direção que aplica as diretivas impostas.

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“As deformações da sociedade industrial, nos países desenvolvidos, burocraticamente heterogeridos, em regime de capitalismo privado ou de capitalismo de Estado, se explicam por uma ‘contradição fundamental: o operário só pode obedecer às diretrizes dos chefes desobedecendo-lhes.” (GUILLERM; BOURDET, 1976, p.169). Portanto, a crise do capitalismo resulta do fato de que a classe dominante sobrevive pela criatividade de todos os homens, a qual, no entanto, tenta negar ou até mesmo impedir. As tendências atuais em direção ao alargamento das tarefas (job enlargement) e a aceitação de “equipes autônomas de trabalho” são tentativas da classe dirigente de controlar a espontaneidade criadora do operariado ao mesmo tempo em que conservam as estruturas hierárquicas e autoritárias não somente na empresa mas na sociedade como um todo. Conforme aponta Antônio Ozaí da Silva (2015):

A origem da instituição disciplinar remonta às necessidades de controle da força de trabalho e, simultaneamente, das exigências técnicas administrativas produzidas pelo avanço da racionalidade moderna marcadas pela delimitação e enquadramento do tempo e da forma como o operário deve ser utilizado, assim como, o domínio dos processos, gestos, atitudes e comportamentos, métodos estes ainda mais intensificados com a adoção irrestrita do taylorismo.

Revela-se que a organização capitalista é profundamente contraditória ao pretender lidar apenas com o operário individual quando na verdade a produção é realizada pela coletividade dos operários. A direção pretende reduzir o operário a tarefas limitadas e determinadas, mas é obrigada a se apoiar nas capacidades criativas que o operariado desenvolve ao mesmo tempo em função e em oposição ao modo produtivo. Assim, a organização capitalista do trabalho apóia-se na definição das normas de trabalho contra as quais os operários lutam constantemente. Além disto, o trabalhador adquire rapidamente a consciência de que, sob o capitalismo, é obrigado a produzir cada vez mais e receber cada vez menos. Na medida em que o trabalhador se dá conta de que o propósito de sua vida não é simplesmente ser uma fonte de lucro para a sua entidade patronal, torna-se consciente por si mesmo da exploração e começa a reagir contra as contradições das relações de produção.

Para se defender contra a exploração operário é obrigado a reivindicar o direito de determinar por si mesmo seu ritmo de trabalho. “Mas, enquanto durar a organização capitalista, a luta renascerá sempre de suas cinzas; e será conduzida, ao mesmo tempo por sua própria dinâmica e pela dinâmica objetiva da sociedade capitalista, a se estender e se aprofundar. E é o sentido dessa luta que se trata de trazer à luz.” (CASTORIADIS, 1985,

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p.139). O operariado tenta contornar os métodos burocráticos e as ordens de cima, toma nota de todos os defeitos na utilização da força de trabalho que resultam da utilização indevida de recursos técnicos ou de administração insatisfatória, tenta, em vão, levar adiante uma luta contra a burocracia (SINGER; BOGGS, 1972).

Embora a luta implícita do operariado permaneça oculta, pois não implica organização além da fábrica, nem programa formulado, nem ação explícita, seu conteúdo se encontra na atividade das massas nas ocasiões de crise revolucionária contra o capitalismo (CASTORIADIS, 1985, p.155).Enquanto faz isso, a luta dos trabalhadores tende a tornar-se uma luta pela abolição total de todas as formas de hierarquia. Torna-se uma luta contra as próprias condições de exploração que se encontram na apropriação total e exclusiva dos meios de produção, do poder do Estado, e da própria cultura pela classe exploradora. Obviamente esta luta pela abolição da exploração não é peculiar à classe trabalhadora, existe em todas as classes exploradas anteriores. Dois aspectos dessa luta, no entanto, demonstram a singularidade presente na luta da classe operária contra a exploração. Em primeiro lugar, esta luta tem lugar em condições que lhe permitam alcançar os fins a que se propôs para si. Hoje, o desenvolvimento extremo da riqueza social e das forças produtivas, resultado da civilização industrial, faz com que seja perfeitamente possível construir uma sociedade na qual os antagonismos econômicos estariam ausentes. Em segundo lugar, a classe trabalhadora moderna encontra-se colocada em condições que lhe permitem realizar esta luta e alcançar uma conclusão bem sucedida (CASTORIADIS, 1949b).

Para que as contradições fundamentais experimentadas no capitalismo sejam superadas é necessário que o proletariado passe a determinar os rumos da economia, tanto ao nível da gestão geral da indústria, como também, ao nível da gestão de cada empresa particular. Estes são apenas dois aspectos do mesmo fenômeno. Para tanto o proletariado deve abolir imediatamente, juntamente com a propriedade privada dos meios de produção, a gestão da produção como uma função específica realizada permanentemente por um determinado estrato social, ou seja, o fim dos gerentes da produção e da máquina burocrática que dominam a vida política e econômica das sociedades contemporâneas. Cabe dar forma concreta a essa idéia geral, fornecendo detalhes mais precisos sobre o conteúdo positivo da autonomia e modificando o programa para a conquista do poder político e econômico do proletariado. Alterações semelhantes são necessárias em relação aos problemas da classe trabalhadora de como organizar e lutar sob o sistema capitalista.

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2 A LUTA EXPLÍCITA DO MOVIMENTO OPERÁRIO

O enfraquecimento do sindicalismo e a diminuição do nível de crítica incidente sobre a empresa capitalista são fortes manifestações das dificuldades enfrentadas pela crítica social para conter as perdas sentidas pelo proletariado na transição do século XX para o século XXI. No entanto, as transformações do mundo do trabalho não deixaram de provocar queixas ou indignação, mesmo que as organizações nas quais recaía tradicionalmente a tarefa de denunciar as contradições da lógica capitalista fossem amplamente desqualificadas (CASTORIADIS, 1985). Incapazes de defender as reivindicações dos trabalhadores sobre as relações de produção, a organização do trabalho e as condições de vida da classe operária, visto que, estas demandas tomadas em conjunto equivalem a um desafio frontal ao poder capitalista na fábrica e cujo resultado possível é a autogestão da produção, a burocracia sindical utiliza os trabalhadores apenas como meio para forçar o seu próprio caminho para a participação na autoridade administrativa que controla a produção, para tanto, tenta apaziguá-los na ilusão da satisfação de suas reivindicações salariais (CASTORIADIS, 1956). Seguindo a tendência das significações sociais centrais da instituição capitalista, a partir de um determinado estágio de seu desenvolvimento, o movimento sindical também se torna burocratizado. Sua grande funcionalidade modifica-se para garantir a manutenção das reivindicações do proletariado dentro dos limites impostos pelo sistema de exploração.

Por outro lado, as dificuldades enfrentadas pelos sindicatos e pelos partidos políticos em ganhar a confiança de ampla parcela da sociedade também devem ser relacionadas com a falta de modelos de análise e de esforço intelectual lúcido acerca das contradições inerentes ao funcionamento do capitalismo, conseqüência direta da decomposição dos esquemas teóricos tradicionalmente admitidos. Os dispositivos de representação que contribuíam para dar corpo às classes e para conferir-lhes existência objetivada tendem a desfazer-se em decorrência da fluidez das significações sociais promovida pela flexibilização do capital. “Isto tudo para confluir no predomínio da burocracia não só como classe dominante, mas também como resultado da burocratização contínua e renovada de todas as organizações sindicais, políticas e culturais” (CASTORIADIS, 1987, p.92).

Porém, de acordo com Castoriadis (1987), a “ausência" do proletariado tem aí um duplo significado: Por um lado, representa uma vitória momentânea para o capitalismo ao conseguir que o movimento de burocratização impulsione os trabalhadores para longe da ação

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coletiva. Por outro lado, o proletariado passa atualmente por uma nova fase na história da luta de classes que conduz a uma crítica muito mais profunda e geral da forma societária capitalista que jamais foi possível no passado. “E isto leva à renovação, dentro do proletariado, do projeto socialista em um nível mais audacioso nunca antes experimentado ao penetrar nas mais diversas esferas da sociedade” (CASTORIADIS,1988, p.229).

É por isso que a principal tarefa do movimento operário atual consiste em se manter fiel à sua história e, ao mesmo tempo, impulsionar o curso das mudanças sociais, trata-se de reatar os laços entre as gerações de militantes, estreitar as relações nos universos sociais próximos do mundo operário e tirar lições das outras formas de luta que se desenvolvem longe das oficinas (BEAUD; PIALOUX, 2009, p.300).

A intensificação da luta implícita cotidiana dos operários contra a miséria e exploração do capitalismo necessariamente coloca o advento de uma nova organização da sociedade e fornece as respostas positivas para o problema da instituição socialista. “A experiência do capitalismo burocrático permite-nos perceber claramente o que o socialismo não é e o que não pode ser. Um olhar mais atento para os levantes do proletariado do passado e para as suas lutas cotidianas nos permite dizer que o socialismo poderia e deveria ser.” (CASTORIADIS, 1979, p.104). Deste modo, a rebelião é a primeira experiência de totalidade que a consciência proletária tem acesso, exemplificada nas várias erupções revolucionárias que foram possíveis graças ao surgimento de organismos de luta contra a classe dominante (A Comuna de Paris de 1871, os sovietes de 1905 e 1917, os comitês de fábrica na Rússia em 1917-1918, os conselhos de fábrica na Alemanha em 1919-1920, as milícias antifascistas na Espanha em 1936, os conselhos operários na Hungria em 1956), revelando novas formas de organização dos homens e mulheres a partir de princípios radicalmente opostos aos da sociedade burguesa.

Tais momentos históricos demonstram a possibilidade de uma organização social centralizada que, longe de expropriar politicamente a população em benefício de seus “representantes”, submete estes ao controle permanente de seus mandantes e realiza a democracia, pela primeira vez na história moderna, na escala da sociedade como um todo (CASTORIADIS, 1985, p.155).

Compreende-se que a consciência de classe voltada para a construção do socialismo não se manifesta apenas na oposição cotidiana à empresa capitalista ou nos momentos revolucionários, o proletariado também luta contra a sociedade de classes de modo explícito ao constituir organizações políticas para disputar o comando da sociedade atual. “Pois ela manifesta, no proletariado, ao mesmo tempo a necessidade e a capacidade de colocar o

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problema da sociedade como tal, não simplesmente quando de uma explosão revolucionária, mas de modo sistemático e permanente.” (CASTORIADIS, 1985, p.156).

A luta explícita revelada pelas organizações coletivas do movimento operário propicia pontos de apoio exteriores às particularidades das fábricas, fornece locais de encontro para a elaboração de convicções diferentes das oferecidas pela classe dirigente, discute abertamente os métodos de trabalho, socializa os meios de resistência para exigir reivindicações mais gerais, etc. E nada disso brotou do solo ou foi dado por Deus – nem muito menos outorgado pelo capitalismo, mas é resultado de muitos séculos de luta, pago com montanhas de cadáveres e oceanos de sangue. (CASTORIADIS, 1987, p.95).

No entanto, a degenerescência das organizações operárias permitiu a continuidade da relação social fundamental do capitalismo moderno, a divisão entre direção e execução reproduzida dentro do próprio movimento operário sob duas formas (CASTORIADIS, 1985, p.159): adoção de um modelo burguês de organização para dar conta da multiplicação de tarefas dentro do movimento; atribuição dos papéis de direção aos representantes da organização e de execução ao restante da classe operária. “Chegou-se assim a uma completa negação do que é a própria essência do movimento socialista: a ideia da autonomia do proletariado. Essa evolução, ao mesmo tempo, encontrava o seu equivalente numa evolução correspondente da ideologia e da teoria revolucionárias.” (CASTORIADIS, 1985, p.160).

Este fenômeno é subsidiado pela edificação da ideologia que permite a determinação dos objetivos imediatos e últimos do proletariado pela teoria revelada aos técnicos da revolução, os únicos capazes de aplicar a teoria às circunstâncias concretas (CASTORIADIS, 1985, p.162). “E essa ‘necessidade’ de uma categoria social específica que gere o trabalho dos outros na produção, assim como a atividade dos outros na política e na sociedade; de uma direção separada das empresas e de um Partido que domina o Estado” (CASTORIADIS, 1985, p.246). “Consequentemente, o socialismo aparece privado de todo seu conteúdo humano, torna-se simples transformação objetiva e externa, modificação de certos dispositivos econômicos” (CASTORIADIS, 1985, p.163). Tanto para o marxismo tradicional quanto para o socialismo reformista, os problemas a serem resolvidos pela luta de classes seriam apenas a distribuição do produto social, o estatuto da propriedade e a organização geral da economia através da nacionalização. “A política revolucionária tendia, ao mesmo tempo, a ser transformada numa técnica. O engenheiro aplica a ciência do físico em condições dadas, tendo em vista certos objetivos; o político revolucionário aplica, em condições dadas, as

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conclusões da teoria científica da revolução.” (CASTORIADIS, 1985, p.162). Permanece oculto o verdadeiro significado do socialismo que se trata da inversão radical das relações entre os homens e as mulheres, principalmente nas esferas produtivas e políticas, que corroa a distinção entre direção e execução.

Através da persistência dos modos de pensamento da sociedade de classes no movimento operário, que não consegue libertar-se imediatamente das significações sociais da sociedade contra a qual insurge, a burocracia consolida-se por meio da degenerescência da teoria revolucionária, do programa, da atividade militante, da função dos representantes e da estrutura das organizações. “Também é certo que as tendências que favorecem o nascimento e desenvolvimento da burocracia operária são as tendências dominantes do capitalismo moderno, que se torna cada vez mais um capitalismo burocrático.” (CASTORIADIS, 1985, p.169). Desta maneira, a degenerescência significa que a organização tende a se separar da classe operária porque esta aceita que se instaure uma relação nos moldes do capitalismo entre os militantes e a grande massa de trabalhadores nos setores produtivos. Portanto, não se trata de um fenômeno específico das organizações socialistas, mas a expressão da sobrevivência da burocracia no proletariado enquanto referencial ideológico de estruturação social.

Do mesmo modo, a pretensão do Partido em monopolizar as decisões por se tratar do único porta-voz da verdade teórica encontra eco na convicção, reforçada cotidianamente no capitalismo, de que as questões gerais são reservadas aos especialistas e que a experiência direta da produção não é importante. “O proletariado não é nem uma entidade totalmente irresponsável, nem o sujeito absoluto da história; e os que não vêem em sua evolução nada mais do que o problema da degenerescência das organizações querem, paradoxalmente, transformá-la nas duas coisas ao mesmo tempo” (CASTORIADIS, 1985, p.170). Esta situação concreta do proletariado obriga-o a empreender e recomeçar sempre uma luta contra a sociedade capitalista, sempre apresentando objetivos, princípios, normas, modos de organização que se opõe radicalmente à sociedade estabelecida, questionamentos estes situados nos limites fornecidos pelo capitalismo até a efetiva imposição dos valores socialistas nas significações sociais centrais. “Sempre haverá – enquanto durar o capitalismo – ‘condições objetivas’ que tornam essa degenerescência possível; isso não que dizer que ela seja fatal. Os homens fazem sua própria história.” (CASTORIADIS, 1985, p.171).

Assim, os eventos do final do século XX confirmam que o proletariado percebe as organizações burocráticas como instituições exteriores, não acredita mais que os partidos ou

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os sindicatos possam mudar fundamentalmente sua situação. “Podem ‘apoiá-los’, votando neles enquanto mal menor; podem utilizá-los – esse ainda é frequentemente o caso, no que se refere aos sindicatos – como se utiliza um advogado ou o corpo de bombeiros. Mas raramente se mobilizam por eles ou sob seu apelo; jamais participam dos mesmos.” (CASTORIADIS, 1985, p.173). Caso emblemático são os partidos reformistas que contam cada vez menos com uma militância ativa e funcionam através de profissionais remunerados, de pequenos burgueses e dos intelectuais de esquerda. “Para os trabalhadores, os partidos e sindicatos pertencem à ordem estabelecida, por isso, as lutas operárias eclodem fora destas organizações burocráticas e, algumas vezes, contra elas” (CASTORIADIS, 1985, p.173).

De acordo com Castoriadis (1960-1961), tais partidos permanecem como engrenagens de integração dos trabalhadores na sociedade capitalista para que o proletariado aceite o sistema de exploração. Portanto, a sociedade de classes comporta, dentro de sua própria estrutura, um mecanismo que permite, nos limites do sistema, alguma garantia dos interesses econômicos da classe dominada, eventualmente contrários aos interesses da classe dominante, mas compatíveis com a manutenção da perpetuação do domínio capitalista. As vitórias trabalhistas mostram que o sistema realmente pode acomodar-se muito bem a certas reformas e até mesmo utilizá-las para seu próprio lucro, desde que perpetuem a separação da sociedade entre dirigentes e executantes.

Também contribui para este afastamento dos mecanismos tradicionais de luta a concepção teórica revolucionária lastreada na ideia de ciência da sociedade e da revolução, elaborada por especialistas e introduzida no proletariado pelo Partido, sistema de ideias que entra em contradição direta com o objetivo de uma revolução socialista enquanto atividade autônoma das massas. “Não há ‘demonstração’ do colapso inelutável da sociedade de exploração; e, menos ainda, existe ‘verdade’ sobre o socialismo que possa ser estabelecida mediante uma elaboração teórica, fora do conteúdo concreto criado pela atividade histórica e cotidiana do proletariado.” (CASTORIADIS, 1985, p.177).

Este problema da relação entre a ação do proletariado e sua consciência nunca foi esclarecido suficientemente no marxismo tradicional. Castoriadis (1960-1961) aponta que Lukács tenta resolver o problema em História e Consciência de Classe, mas apenas obscurece ainda mais as contradições dentro da concepção clássica. No ensaio principal do livro, a consciência proletária somente é revelada com a eclosão da ação totalmente voltada para a revolução. De acordo com esta linha de pensamento, o significado concreto da resistência

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cotidiana operária pouco pode informar acerca do conteúdo do socialismo. Isto porque o autoconhecimento somente se revela à classe operária no momento da ação revolucionária conduzida pelos militantes profissionais.

Este é um tipo de idealismo, ou melhor, espiritualismo absoluto, que postula a razão fora de alcance do seu agente. Como conseqüência, a consciência operária é totalmente reificada e aperfeiçoa-se seguindo puramente as condições históricas objetivas e, pelo fato de não conhecer a si mesma, não é um autêntico sujeito histórico (CASTORIADIS,1988, p.262).

Castoriadis demonstra (1960-1961), contra esta ideia de determinação absoluta da criação social-histórica, que a evolução do capitalismo é a história da constituição e desenvolvimento de duas classes de pessoas em luta. Neste embate, cada classe social age limitando o campo de domínio da outra. É no decurso desta luta que os adversários são levados a criar armas, meios, formas de organização, esquemas teóricos, e inventar novas respostas para a sua situação, bem como, as metas provisórias. Tais respostas e objetivos não são de forma alguma predeterminadas, as suas conseqüências, sejam intencionais ou não, modificam o quadro geral desta luta em cada etapa.

Para constituir e desenvolver seus objetivos a classe capitalista deve consolidar o domínio sobre a produção, o que significa "racionalização" em uma escala cada vez mais ampla (CASTORIADIS, 1960-1961). Para acumular meios de transformar trabalho em capital e para adequar a mentalidade das pessoas a esta finalidade, programa-se um brutal sistema de controle e mistificação nas fábricas e na sociedade como um todo. E racionalizar significa escravizar trabalho em consonância ao ritmo das máquinas e dos ditames daqueles que gerenciam a produção. O proletariado, assim, vê-se constituído como uma classe objetiva e atacada por todos os lados pelo capitalismo. Neste ínterim, o operariado, logo que é constituído, encontra-se lutando contra o capitalismo, fazendo-se, no curso de sua história, classe, no sentido pleno do termo, como uma classe para si, negação da atual sociedade e afirmação do advento de um mundo não alienado.

Desde o momento em que surge na história o proletariado luta contra capitalismo em todos os níveis que afetam a existência social. Porém, esta luta ocorre mais claramente sobre os níveis de produção, da economia e da política, quando o proletariado opõe-se contra a racionalização da produção capitalista, primeiramente contra as próprias máquinas, depois contra o crescente ritmo de trabalho. Também se rebela contra a falta de planejamento da

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