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Violência na linguagem e gestos de tradução: sobre a questão da identidade em Arundhati Roy

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Academic year: 2021

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Revista Brasileira de Tradutores

Nº. 17, Ano 2008

Daniel do Nascimento e Silva University of California, Berkeley

dnsfortal@yahoo.com.br

VIOLÊNCIA NA LINGUAGEM E GESTOS DE

TRADUÇÃO: SOBRE A QUESTÃO DA

IDENTIDADE EM ARUNDHATI ROY

RESUMO

Este trabalho investiga os ‘gestos de escrita’ e ‘gestos de tradução’, respectivamente, na obra The God of Small Things, de Arundhati Roy, e na sua tradução para o português brasileiro, O Deus das pequenas coisas, realizada por José Rubens Siqueira. A noção de gesto de escrever e de traduzir coloca em evidência a corporeidade do sujeito que escreve e traduz e, nesse sentido, entende que o ca-ráter intervencionista, resistente e agentivo da escrita e da tradu-ção é ancorado nas atividades corpóreas em que os sujeitos dão significado ético e subjetivo às práticas simbólicas. A presente ela-boração enxerga o corpo como lócus fundamental para a resistên-cia à violênresistên-cia na linguagem. Gestos de escrita e de tradução se articulam e reiteram no tecido da linguagem e podem acrescentar, certamente, importantes inferências aos estudos sobre as identida-des.

Palavras-Chave: Gestos de escrita, gestos de tradução, violência, Arun-dhati Roy, José Rubens Siqueira.

ABSTRACT

This paper undertakes an analysis of the ‘gestures of writing’ and ‘gestures of translation’, respectively, in Arundhati Roy’s The God of Small Things and in its translation into Brazilian Portuguese, O Deus das pequenas coisas, rendered by José Rubens Siqueira. The notion of gesture of writing and gesture of translating highlights the embodiment of the subject who writes and translates, and in this sense claims that the intervention, resistance and agency of writing and translation rely on the embodied practices in which subjects confer ethical and subjective meanings to symbolic prac-tices. The approach set forth in this paper takes the body to be the fundamental locus of resistance to linguistic violence. Gestures of writing and gestures of translation intertwine and iterate in the fabric of language, thereby offering important inferences to studies on identities.

Keywords: Gestures of writing, gestures of translation, violence, Arund-hati Roy, José Rubens Siqueira.

Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato

Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, São Paulo CEP. 13.278-181

rc.ipade@unianhanguera.edu.br Coordenação

Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original

Recebido em: 30/05/2008 Avaliado em: 19/07/2008

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1.

INTRODUÇÃO

Segundo Austin (1962), a chave para a resolução de muitos problemas filosóficos está na observação da linguagem comum, aquela que usamos no dia-a-dia. Esta é, na ver-dade, a grande diferença entre a proposta metodológica da filosofia da linguagem or-dinária e propostas tradicionais em filosofia, que se apóiam em uma metafísica orien-tada para um conhecimento que se situa para além do saber comum de pessoas co-muns, aquelas de carne e osso com as quais nos deparamos rotineiramente. A proposta de Austin, teórico britânico que não negava o viés empirista da tradição intelectual de seu país, apresenta ainda desdobramentos que põem em xeque crenças muito mais poderosas, como a de que o conhecimento e o sentido, por exemplo, existem indepen-dentemente do trabalho do sujeito. O que se apresenta em Austin é uma concepção de que sujeito e objeto (de fala) não são desvinculados (OTTONI, 1998). Linguagem, nos termos de Austin, não é independente do sujeito e, portanto, não pode ser analisada separadamente do (trabalho do) sujeito. Trata-se de uma visão de linguagem e sujeito que, em vez de ancorar-se em pressupostos transcendentais, busca em nossas experi-ências concretas de falantes, situados em certa comunidade e envolvidos por valores, o mecanismo de análise de problemas filosóficos de longo alcance.

Em sua teorização sobre o ato de fala, o filósofo britânico insiste na dimensão performativa da linguagem. Isso pode ser percebido, por exemplo, na quebra da dis-tinção entre enunciados constativos e performativos. O constativo seria nada mais do que um performativo mascarado. Dito de outro modo, a linguagem, ao invés de des-crever o real, é elemento crucial em sua constituição.

A apropriação aqui do dizer de Austin (e, como veremos a seguir, do dizer de Derrida) significa levar adiante a formulação de que a identidade se constrói performa-tivamente no interior dos atos de fala que tematizam a sua (pré-)existência (PINTO, 2007; SILVA, 2008). Identidade, nesse sentido, não é uma categoria descritiva da expe-riência. Tomemos como exemplo o sujeito que sofre um ‘ataque’ pela palavra do ou-tro1. Ao escutar ou ler uma expressão lingüística ofensiva, o sujeito não só é

posiciona-do numa condição vulnerável ou experimenta uma “perda de contexto” (BUTLER, 1997, p. 4), mas também adquire, com o preço da culpa ou da dor, certa identidade.

1 Freud, em seus estudos sobre histeria (1957[1985]), já apontava que as palavras podem ferir, machucar, paralisar, e

delineia a motivação corpórea dos atos de simbolização em que os sujeitos sentem no corpo a agressão simbólica. Se-gundo Freud, o sujeito, ao correlacionar uma ofensa a uma “punhalada no coração” ou a um ‘tapa na face’, “não está tomando liberdades com as palavras, mas simplesmente revivendo, mais uma vez, as sensações que motivaram o uso dessas expressões” (p. 181, tradução minha).

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gundo Butler (1997), o ato violento de interpelação é também um ato de constituição: a autora usa a conhecida cena da interpelação descrita por Althusser, segundo a qual o transeunte, ao retornar ao chamado “Ei, você aí” proferido pelo guarda, transforma-se naquele que foi abordado no momento da enunciação. Trata-se, segundo a autora, do exercício do potencial violento da linguagem, um processo que afeta o sujeito durante toda sua experiência com a linguagem2. A questão não é, portanto, pensar que o sujeito

que é submetido à violência na linguagem tenha uma identidade a priori, no caso, ante-rior ao gesto violento de escrita, ou ao gesto violento de tradução. Ao contrário, se le-vamos em consideração a teoria dos atos de fala radicalmente, podemos aventar que é no ato de sua enunciação que essa identidade é constituída. Esse argumento encontra ancoragem em trabalhos que, no âmbito da filosofia e da pragmática lingüística, têm entendido o conceito de performatividade como o mecanismo que permite e obriga o sujeito a se constituir como tal (DERRIDA, 1991; BUTLER, 1993, 1997; FELMAN, 1980; PINTO, 2007).

Nesse sentido, proponho no presente trabalho delinear a cena da tradução da obra The god of small things, de Arundhati Roy, tendo em vista o ‘gesto’ de escrita que se instaura diante da violência na linguagem, e o ‘gesto’ de sua tradução, pelo tradutor brasileiro, José Rubens Siqueira. Pretendo demonstrar que, em meio à violência na lin-guagem e à resistência a essa violência, há construção de identidades.

De início, ressalto que, diante do estado atual das pesquisas sobre a identida-de em ciências humanas e diante das fronteiras tênues e das rápidas transformações do mundo em que vivemos, não se pode afirmar, em sã consciência, que identidade seja algo fixo e uniforme. A concepção pós-moderna de sujeito - contrapondo-se ao cogito cartesiano, i.e., à confiança na razão e no pensamento como garantias da existência - tematiza um indivíduo fragmentado, cujas escolhas não se dão à revelia de motivações inconscientes e ideológicas. Identidade, por conseguinte, será concebida aqui como construto proteiforme e fragmentado, constituído e negociado perfomativamente no desdobrar temporal e dialógico da ação do sujeito.

2.

SUJEITOS TRADUZIDOS

Diz o escritor pós-colonial Salman Rushdie que o sujeito pós-colonial, tendo sido transportado pelo mundo, numa condição de migração e deriva que prescinde da

2 A respeito dessa cadeia temporal, afirma Butler (1997, p. 4): “O insulto [...] assume sua proporção específica no tempo.

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reza de uma etnia e de uma origem, é, já de partida, um “sujeito traduzido” (1991, p. 17). Trata-se de alguém que é híbrido e que fala uma língua que não é sua. Embora a língua não lhe pertença, sua condição de estrangeiro na língua dissemina uma nova condição: o sujeito traduzido convive com o sentimento, aparentemente incongruente, de se sentir melhor na língua do outro do que em sua própria língua. Além disso, essa língua também pode constituir o lugar da resistência à violência do colonizador.

A posição de Rushdie quanto à condição trans-lingüística do sujeito pós-colonial é, de certo modo, a contraparte da teorização sobre monolingüismo em Derri-da (1998). Se para Rushdie o sujeito que atravessa línguas pode ancorar, com uma certa segurança, suas práticas lingüísticas na língua do outro, o sujeito monolingüe, apesar de habitar uma só língua, não possui essa língua. Diz Derrida: “ela nunca será minha, essa língua, a única à qual eu fui destinado a falar, na medida em que a fala é possível para mim na vida e na morte; veja, essa língua nunca será minha. E, para falar a ver-dade, nunca foi.” (1998, p. 2, tradução minha). Nesse sentido, podemos apontar que o domínio de uma língua, de um idioma, de um dialeto não é garantido pela natividade dos sujeitos, mas, sobretudo, pela tarefa política de aderir a uma pratica cultural situa-da (RAJAGOPALAN, 1997; WITTGENSTEIN, 1953). O dizer de Rushdie sobre a apro-priação da língua do outro e o de Derrida sobre a ausência de garantias do monolin-güismo revelam que a relação do sujeito com construtos culturais como uma língua, um dialeto, ou mesmo uma comunidade ou uma nação, não se assenta na posse de a-tributos imanentes, mas na reivindicação e na invenção cotidiana das práticas cultu-rais3. Como afirma Derrida, “[é] a cada instante de escrita ou leitura, a cada momento

da experiência poética que a decisão deve chegar contra o panorama do indecidível. É sempre uma decisão política - e sempre uma decisão envolvendo o lado político das coisas” (1998, p. 62, tradução e ênfase minhas).

É justamente então no interior da linguagem, seja ela manifestada na língua do ‘outro’ ou na ‘própria’ língua, que o sujeito encontra possibilidades de agência. Mais precisamente, o lugar para a ação do sujeito (subalterno) se situa nas “arestas va-cilantes da legitimidade na fala [...], nas limitações da linguagem”, como defende Bu-tler (1997, p. 41). A autora argumenta que a linguagem violenta que nos constitui, insultan-do-nos desde o princípio, também oferece possibilidades de agência. As palavras que nos ferem

3 Hobsbawn (1997) e Anderson (2006) argumentam, respectivamente, que tradições e estados nacionais são construtos

inventados no projeto da modernidade, algo que se gestou entre os séculos XVIII e XIX. A aparência “natural” que es-ses construtos ostentam é, na verdade, resultado de um processo de naturalização. Bauman e Briggs (2003) discutem o papel das práticas lingüísticas na construção dessa visão determinista e natural.

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excedem sua própria marca e seu tempo, e o excesso causado por sua violência está aí a ofere-cer possibilidades de ressignificação. Eis um exofere-certo de sua elaboração:

a linguagem constitui o sujeito em parte através do impedimento [foreclosure], um tipo de censura não oficial ou restrição lingüística primária que constitui a possi-bilidade de agência na fala. O tipo de enunciação [speaking] que se assenta na borda do indizível promete expor as arestas vacilantes da legitimidade na fala. Como uma marca adicional do limite à soberania, esta visão sugere que agência é derivada de limitações na linguagem, e essa limitação não é totalmente negativa em suas implicações. (BUTLER, 1997, p. 41, tradução minha).

Nesse sentido, a obra The God of Small Things, da escritora indiana Arundhati Roy, traduzida para o português brasileiro por José Rubens Siqueira, sob o título de O Deus das pequenas coisas, pode ser entendida como um texto que desvela a ação ética de sujeitos que constroem, performativamente, sua ambiência na língua do outro. O ro-mance, ambientado em Kerala, Índia, pela apropriação e uso peculiar do inglês (e, em se tratando da tradução brasileira, pela apropriação e uso peculiar do português, como veremos a seguir) é tomado aqui como epítome da idéia de que a política de identida-des acontece na língua e não além dela. Mais especificamente, essa política pode acon-tecer na escrita e na tradução.

Vejamos um exemplo inicial. Os pequenos Estha e Rahel, por exemplo, apren-dem a ler em inglês para além do modo convencional, isto é, lêem também de trás para a frente, o que horroriza a missionária australiana Miss Mittem. A missionária, aliás, tinha a impressão de que em Kerala se falava keralês, o que, para Estha, “era uma Im-pressão Altamente Burra”.

3.

GESTOS DE ESCRITA E DE TRADUÇÃO

O uso de ‘gestos de escrita’ e ‘gestos de tradução’, no presente trabalho, remete à visão de linguagem “radicalmente pragmática e não imanentista” (MARTINS, 2005, p. 317) de Wittgenstein. A crítica que Wittgenstein faz à sublimação dos conceitos em filosofia pode ser entendida como uma crítica à exclusão do corpo nos estudos da linguagem. A metáfora da sublimação de um conceito funciona como a sublimação da água: um con-ceito migra da concretude do corpo para o estado etéreo do espírito. Diz Wittgenstein: “Onde nossa linguagem sugere um corpo e não há nenhum: lá, nos apraz dizer, está um espírito” (WITTGENSTEIN, 1953, §36). A noção de que escrever e traduzir são ges-tos vai de encontro à visão sublimada que a tradição metafísica legou. Acompanhemos o seguinte argumento de Wittgenstein numa passagem em que o filósofo discute que a linguagem não representa essências:

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Podemos dizer que as palavras “bem”, “oh”, e também “talvez” são expressões de sensação, de sentimento. Mas eu não chamo o sentimento de sentido de uma pa-lavra. [...] [E]u poderia trocar a sensação que supostamente a palavra expressa pela entonação ou gestos com os quais ela é usada. Eu poderia dizer: em muitos casos entender uma palavra envolve ser capaz de usá-la em certas ocasiões num tom de voz especial. Você pode dizer que certas palavras são apenas os pregado-res com os quais suspendemos as entonações. Mas em vez da entonação e dos gestos co-ocorrentes, posso, para meus fins pessoais, tratar a palavra em si como um gesto.” (WITTGENSTEIN, 1974, §30, tradução minha).

Numa visada radicalmente pragmática, Wittgenstein argumenta no excerto acima que elementos aparentemente acessórios como a entonação ou o gesto que “a-companham” a forma lingüística podem funcionar como uma palavra. Se mudamos as lentes por meio das quais olhamos para a linguagem, um gesto pode ser concebido como satisfazendo mais do que uma função “paralingüística”. “Posso tratar a palavra em si como um gesto”, afirma textualmente Wittgenstein - em outras palavras, numa atitude não sublimada, posso entender a linguagem como atividade eminentemente corpórea.

Gesto de tradução é um conceito que, ao colocar em evidência a corporeidade do sujeito que significa, reconhece o caráter interventor e, nesse sentido, agentivo de quem traduz. Tomemos um exemplo de tradução como resistência (ou como agência) discutido por Venuti (2008). A obra Predatory Globalization: A Critique, escrita por Ri-chard Falk e publicada em 1999 foi traduzida para o espanhol por Herminia Bevia e Antonio Resines. Venuti argumenta que a escolha mesma de traduzir uma obra como esta, mesmo que por razões sobretudo financeiras, participa do caráter interventor da tradução. Diz Venuti: “embora o motivo primário de Bevia e Resines tenha sido subsis-tência e não política, a sua tradução envolve uma escolha intrigante, que acarreta im-plicações geopolíticas” (2008, p. 29). Os tradutores endossaram um gesto nitidamente ideológico na tradução do termo rogue states, que vem sido empregado no contexto do governo Bush para justificar agressões ao Iraque. Rogue, que teria como equivalente em português palavras como ‘desonesto’, ‘perigoso’, ‘enganador’ foi vertido para o espa-nhol, no contexto dessa tradução, como díscolo [desobediente]. Venuti oferece um e-xemplo em que Falk cita o livro Rogue States and Nuclear Outlaws, de Michael Klare e publicado em 1995:

Michael Klare has persuasively argued that US non-ploriferation efforts in recent years have been mainly directed against the so-called rogue states, a shifting clas-sification currently consisting of Iraq, Iran, Libya, Syria, and North Korea. (FALK, 1999, apud VENUTI, 2008, p. 29).

A tradução em espanhol apresenta a seguinte reescritura:

Michael Klare ha argumentado de manera persuasiva que los esfuerzos em favor de la no proliferación de Estados Unidos durante los últimos años han estado principalmente dirigidos contra los considerados Estados díscolos, una mutable

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classificación que hoy engloba a Irak, Irán, Siria y Corea del Norte (FALK, 2002, apud VENUTI, 2008 p. 29).

Venuti comenta que os tradutores aderiram fortemente ao léxico e à sintaxe do texto de partida, exceto pelo uso de ‘estados desobedientes’. Dentre as alternativas disponíveis no espanhol, estaria gamberro [libertino, causador de problemas], que, se-gundo os tradutores, “conota uma vileza de caráter que não está presente em ‘díscolo’” (apud VENUTI, 2008, p. 29). Segundo o autor, a escolha dos tradutores tem significados políticos altamente marcados na medida em que destoa do discurso propagandista de Bush e do então presidente espanhol José Maria Aznar (partidário de Bush) e também de usos endossados por outros tradutores, como Juan Gabriel Lopez Guix, que prefe-riu, no contexto de outras traduções da expressão rogue states, o termo estados delincuen-tes (ibid, p. 30). Estados díscolos afasta-se do caráter ilegal e criminoso que a política Bu-sh vem imprimindo aos rogue states. Essa escolha tradutória é, no âmbito da presente discussão, um bom exemplo para um gesto de tradução: uma atividade em que o/a tradutor/a, num ato eminentemente corpóreo e político, age no texto de chegada.

‘Gestos de escrita’ e ‘gestos de tradução’ são, portanto, expressões que põem em evidência que o corpo se faz presente e age nas atividades de escrever e traduzir. Se o corpo “tirou férias” em grande parte da empreitada filosófica tradicional, desde a ci-são entre corpo e mente por Platão, passando pela célebre formulação de uma mente independente do corpo do cogito cartesiano, o fato é que abordagens que consideram o papel da cultura e da sociedade na capacidade de conhecer e significar, conforme a vi-são wittgensteiniana brevemente exposta acima, têm colocado em xeque essa negação do corpo.

O ato de fala é também um ato corporal (FELMAN, 1980; BUTLER, 1997). E-xiste um corpo falante cuja marca se faz presente na enunciação do ato de fala. E a própria noção de ‘violência’ na linguagem - postular que uma palavra pode ferir, ma-chucar, violentar - pressupõe um corpo que sofreu uma violência ‘física’ em algum momento de sua história. E é, em última instância, essa violência física que é retomada como memória e como possibilidade mesma de uma “violência discursiva” (Silva, em preparação).

Considerando que a concepção de linguagem em que me apoio considera o corpo na escrita e na tradução, afasto-me, portanto, da idéia de que estamos tratando de um sistema autônomo com módulos específicos, conjunto de princípios universais parametrizáveis num ambiente específico, ou, ainda, de uma manifestação monológica

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de um sujeito consciente e senhor de si. A linguagem sofre as contingências do corpo, e o sujeito de que estamos tratando tem corpo, um corpo falante (FELMAN, 1980).

Além disso, esse corpo falante responde. Porque, afinal, como formularam au-tores como Bakhtin (1981) e Derrida (1998), a linguagem é resposta. A linguagem é, co-mo diz Derrida (1991), iterável (do latim, ‘iter’ [de novo], e do sânscrito ‘itera’, [para o outro]). Resposta, portanto. Por seu potencial performativo, o uso da linguagem pode ser entendido como uma promessa: uma ação dialógica que instaura limites de passa-do e futuro. Toda fala, conforme Derrida (1998), é animada “por uma estrutura de promessa ou desejo” (p. 21, tradução minha).

Vejamos, então, como funcionam esses gestos eminentemente corpóreos e po-líticos em O Deus das pequenas coisas. Existe uma lei violenta que perpassa toda a obra. Trata-se das leis do amor. As personagens estão constantemente submetidas a essas leis - e estão constantemente se impondo a elas. Observem-se os dois excertos abaixo:

Love Laws. That lay down who should be loved. And how. And how much. (ROY, 1997, p. 328).

Leis do Amor. Que determinam quem pode ser amado. E como. E quanto. (ROY, 1998, p. 326).

Ammu tucked her naughty daughter in and switched off the light. Her good-night kiss left no spit on Rahel’s cheek and Rahel could tell that she wasn’t really angry.

‘You’re not angry, Ammu.’ In a happy whisper. A little more her mother loved her.

‘No.’ Ammu kissed her again. ‘Good night, sweetheart. Godbless.’ ‘Good night, Ammu. Send Estha soon.’

And as Ammu walked away she heard her daughter whisper, ‘Ammu!’ ‘What is it?’

‘We be of one blood, ye and I.’ (ROY, 1997, p. 311-312, grifos no original).

Ammu cobriu a filha malcriada e apagou a luz. Seu beijo de boa-noite não dei-xou saliva na bochecha de Rahel e Rahel sabia que ela não estava brava de verdade.

‘Você não está brava, Ammu.’ Num cochicho contente. Um pouco mais sua mãe a amava.

‘Não.’ Ammu beijou-a de novo. ‘Boa-noite, meu bem. Deusabençoe.’ ‘Boa noite, Ammu. Mande Estha logo.’

E enquanto Ammu estava se afastando, ouviu a filha sussurrar. ‘Ammu!’ ‘O que foi?’

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A pequena Rahel está, na verdade, respondendo àquela lei. Escritora e tradu-tor estão aí, nesses gestos, respondendo. A narrativa pós-colonial é uma resposta à vio-lência, à opressão e à condição exótica (CORTÉS, 1997) advindas das ações violentas do colonizador.

A própria escrita pós-colonial é, nos termos de Rajagopalan (2005), o efeito bumerangue da imposição colonial da língua da “civilização”. A versatilidade, o hibri-dismo, a subversão da língua na língua do colonizador podem ser vistas como uma arma do colonizado. Ou seja, como uma resposta à violência do colonizador.

Os gestos de escrita acontecem também no campo lexical e morfológico. A-rundhati Roy cria um sufixo para a repetição da ação ‘devolver’, des-devolver. Aqui, escritora e tradutor estão agindo no “núcleo duro” da língua, isto é, em sua morfologia. São os gestos encontrando as brechas do sistema e promovendo a ação (ética) do sujei-to. Eis o excerto:

After Sophie Mol’ funeral, when Estha was Returned, their father sent him to a boy’s school in Calcutta. (…) Now that he’d been re-Returned, Estha walked all over Ayemenen. (ROY, 1997, p. 11-13, negrito acrescido).

Depois do funeral de Sophie Mol, quando Estha foi Devolvido, o pai deles o mandou para uma escola de meninos em Calcutá. [...] Agora que tinha sido des-Devolvido, Estha caminhava por toda Ayemenem. (ROY, 1998, p. 22-24, negrito acrescido).

A violência do sistema de leis e da tradição é ubíqua na história. O Grande Deus, o Destino (com “D” maiúsculo), as Grandes Metanarrativas se fazem presentes em toda a narrativa. E são justamente os pequenos fatos, as pequenas coisas que sub-vertem o Grande Rumo que a História quer determinar. A presença do Destino, da grande força que age contra as personagens, pode ser evidenciada no seguinte excerto, momento em que Velutha e Ammu vivem seu amor proibido no rio:

Had he known that he was about to enter a tunnel whose only egress was his own annihilation, would he have turned away?

Perhaps. Perhaps not. Who can tell? (Roy, 1997:315)

Se soubesse que estava para entrar num túnel cuja única saída era a sua aniqui-lação, será que teria ido embora?

Talvez. Talvez não.

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Velutha, depois da cena de amor, é morto criminosamente. O único crime que cometera foi amar Ammu, uma mulher de uma casta superior à sua. Mas o “efeito bu-merangue” pode ser sentido no fim do excerto abaixo:

“Keep your ticket carefully”, Ammu’s mouth Said. Ammu’s trying-not-to-cry-mouth. “They’ll come and check."

Estha nodded down at Ammu’s face tilted up to the train window. At Rahel, small and smudged with station dirt. All three of them bonded by the certain, separate knowledge that they had loved a man to death.

That wasn’t in the papers.

(ROY, 1997, p. 307, grifo no original).

“Guarde a passagem com cuidado”, disse a boca de Ammu. A boca-de-Ammu-tentando-não-chorar. “Eles vão pedir para conferir.”

Estha fez que sim com a cabeça para o rosto de Ammu voltado para a janela do trem. Para Rahel, pequena manchada com a sujeira da estação. Os três ligados por certezas independentes de que tinham amado um homem até a morte. Isso não saiu nos jornais.

(ROY, 1998, p. 322, grifo no original).

Os pronomes “that/isso”, grifados pela autora e pelo tradutor, encapsulam toda a ironia contra a Grande Metanarrativa. Os jornais foram capazes de noticiar o crime contra Velutha, mas não o amor que Ammu e os gêmeos sentiram por aquele homem. Porque o amor sentido faz parte da história das pequenas coisas, e não das grandes, como quer a Grande História.

A versatilidade dos gêmeos pode ser percebida a partir da seguinte cena, que trata de sua aquisição de leitura. Miss Mittem, missionária australiana, foi contratada por sua avó para ensiná-los a ler. Ela deu aos dois um livro de crianças, As aventuras de Susie Esquilo:

[...] they were deeply offended. First they read it forwards. Miss Mitten, who belonged to a sect of Born-Again Christians, said that she was a Little Disap-pointed in them when they read it aloud to her, backwards.

“ehT serutnevdA fo eisuS lerriuqS

enO gnirps gninrom seisuS lerriuqS ekow pu.”

They showed Miss Mittem how it was possible to read both Malayalam and Madam I’m Adam backwards as well as forwards. She wasn't amused and it turned out that she didn’t even know what Malayalam was.

(ROY, 1997, p. 57-58, grifos no original).

[...] eles ficaram profundamente ofendidos. Primeiro, eles leram de começo a fim. Miss Mittem, que pertencia a uma seita de renascimento cristão, disse que ficou um Pouco Decepcionada quando os dois leram o livro em voz alta para ela, de trás para a frente.

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“sA sarutneva ed eisuS oliuqsE. arE amu aleb ãhnam ed arevamirp odnauq eisuS oli-uqsE uodroca.”

Eles mostraram a miss Mittem que dava para ler malayalam e Madam I’m Adam [Madame, eu sou Adão] tanto de frente para trás como de trás para a frente. Ela não achou engraçado e acabou revelando que nem sabia o que era malaya-lam.

Podemos perceber aí que, diante da imposição e limitação do colonizador, o sujeito oprimido age. E o gesto é, justamente, lingüístico: as crianças subvertem a lín-gua do colonizador lendo inclusive de trás para a frente. Veja-se o desfecho da cena:

Miss Mittem complained to Baby Kochamma about Estha’s rudeness, and about their reading backwards. She told Baby Kochamma that she had seen Sa-tan in their eyes. nataS ni rieht seye.

They were made to write – In future we will not read backwards. In future we will not read backwards. A hundred times. Forwards.

A few months later Miss Mitten was killed by a milk van in Holbart, across the road from a cricket oval. To the twins there was hidden justice in the fact that the milk van had been reversing.

(p. 58, grifos no original).

Miss Mittem reclamou com Baby Kochamma da grosseria de Estha e de sua lei-tura invertida. Disse a Baby Kochamma que tinha visto Satã nos olhos dele. ã-taS son sohlo eled.

Eles tiveram de escrever Não vamos mais ler de trás para a frente. Não vamos mais ler de trás para a frente. Cem vezes. De frente para trás.

Uns meses depois, miss Mittem foi morta por um furgão de entrega de leite em Hobart, em frente a uma quadra de críquete. Para os gêmeos havia uma certa justiça oculta no fato de o furgão de entrega de leite estar dando marcha a ré. (p. 69, grifos no original).

O humor em questão pode ser entendido justamente como um traço da políti-ca de resistência presente na obra. Os pequenos Estha e Rahel, sujeitos pós-coloniais por excelência, fazem uso das arestas vacilantes da fala e ali instauram sua agentivida-de. A economia da ressignificação da língua do colonizador na escrita de Arundhati Roy pode e deve ser encarada como uma das formas disponíveis ao sujeito de abraçar eticamente os construtos culturais que lhes foram deixados, uma herança que inclui a nação e a língua.

4.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em entrevista ao Website India50, Arundhaty Roy afirma o seguinte sobre seu processo de escrita:

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Quando escrevo, nunca reescrevo uma sentença porque, pessoalmente, meu pen-samento e minha escrita são uma coisa só. É como respirar. Nunca respiro nova-mente o mesmo ar... Montar os ossos da história tomou tempo, mas nunca foi do-loroso. Tudo que eu tenho - meu intelecto, minha experiência, meus sentimentos - foi usado. Se alguém não gostar, é como se me dissessem “não gosto da sua vesí-cula”. Não posso fazer nada quanto a isso4.

Interessa-me aqui comentar dois pontos. Um deles é que a autora, ao explicar como acontece seu ato de escrever, ancora-se em elementos eminentemente corpóreos (ato de respirar, de montar ossos, de não sentir dor). Sua escrita não parece ser uma a-tividade mental desencarnada, mas um processo corporal, conforme nossa discussão sobre a realidade corpórea dos atos de fala, atos ao mesmo tempo lingüísticos e corpo-rais. O outro ponto é a sua ênfase na totalidade da experiência, algo que se atualiza no ato de escrever. Segundo Roy, trata-se de uma totalidade ao mesmo tempo cognitiva, corpórea e afetiva que se textualiza no gesto de escrever.

Creio ter demonstrado como, através dos gestos de escrita ou gestos de tradu-ção, os sujeitos podem resistir à violência na linguagem. O mesmo corpo que sofre o endereçamento violento do outro pode se transformar na motivação e na ancoragem para a escrita que resiste e que desvela agência por meio do humor, da subversão da língua, de usos novos e não autorizados da linguagem. Defendo que observar os gestos de quem escreve ou traduz - e delineá-los - pode consistir numa empreitada profícua. O troco do oprimido pode ser dado de várias maneiras. Vale a pena investigar a mão de quem, escrevendo ou traduzindo, dá esse troco.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Imagined communities. 3. ed. London: Verso, 2006.

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Referências

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