André Evangelista Marques
Paisagem e povoamento:
da representação documental à materialidade do espaço no
território da diocese de Braga (séculos IX-XI).
Ensaio metodológico
Dissertação de Doutoramento em História apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sob a orientação
do Professor Doutor Luís Carlos Amaral e a coorientação do
Professor Doutor José Ángel García de Cortázar.
Porto
2012
2
Investigação apoiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia:
3
«Houvera um começo e haveria um fim, mas com ele
abolir-se-iam o espaço e o tempo, que existabolir-se-iam unicamente em função
dele e só por ele estavam ligados. Kuckuck disse que o espaço
não era senão a ordem ou as relações das coisas materiais entre
elas. Sem objectos para o ocupar não haveria nem espaço nem
tempo porque o tempo não era outra coisa senão uma hierarquia
de incidentes (facilitada pela presença dos corpos), o produto do
movimento de causa e efeito, cujo decorrer dava ao tempo uma
direcção sem a qual ele não existiria. Ora a abolição do espaço e
do tempo era precisamente a definição do nada» (Thomas
MANN – As Confissões de Félix Krull, Cavalheiro de
Indústria. Trad. de Domingos Monteiro. Lisboa: Relógio
5
Sumário
Índice de mapas ... 7
Índice de figuras ... 9
Siglas e abreviaturas ... 10
Agradecimentos: breve memória de uma investigação ... 14
Introdução: a montagem de um estudo de caso demonstrativo ... 21
1. Itinerário: da representação documental à materialidade do espaço ... 23
2. Programa: a concretização de uma proposta metodológica num estudo de caso ... 27
3. Coordenadas: a demarcação do tempo e do espaço à luz da realidade documental 31
3.1. Periodização: séculos IX-XI ... 31
3.2. Delimitação espacial: o território da diocese de Braga ... 35
4. Pressupostos histórico-geográficos: a imagem arquetípica da paisagem e do
povoamento minhotos... 63
5. Enquadramento historiográfico: o estudo da Alta Idade Média em Portugal ... 73
Parte I – Uma proposta de análise do espaço altimedieval a partir de fontes
escritas ... 85
1. Problemática: paisagem, povoamento e sociedade ... 87
1.1. A construção do binómio espaço-sociedade no quadro da história rural
medieval ... 87
1.2. O estudo do povoamento como “fóssil-director” ... 107
1.3. A (re)emergência da paisagem, entre o ambiente e a representação . 186
2. Objecto: o espaço documentado, uma abstracção entre a base material, a
organização social e a representação discursiva ... 211
2.1. A interacção espaço-sociedade: bases materais da organização social
do espaço ... 214
2.2. A representação documental de um espaço socialmente definido:
construir um objecto historiográfico... 225
3. Metodologia: para uma proposografia do espaço ... 245
3.1. A “organização social do espaço” como quadro metodológico de
referência ... 247
3.2. A estruturação de uma base de dados ... 256
6
4. Fontes: a centralidade da documentação diplomática num conspecto mais amplo
... 303
4.1. Fontes textuais ... 304
4.2. Fontes toponímicas ... 315
4.3. Fontes materiais ... 325
4.4. Fontes cartográficas e fotografia área ... 328
Parte II – A representação documental do espaço bracarense altimedieval
... 331
1. Os três filtros ... 333
1.1. Corpus: génese e transmissão dos documentos ... 344
1.2. Escrituração: um discurso construído entre partes “livres” e
“formulares” ... 359
1.3. Terminologia: a mediação entre a realidade material e a representação
documental ... 366
2. O léxico espacial ... 375
0. Introdução ... 375
1. Unidades de articulação social do espaço ... 386
2. Unidades de organização social do espaço ... 406
3. Unidades eclesiásticas ... 443
4. Unidades de paisagem ... 455
5. Formas de propriedade ... 540
Conclusão ... 557
Fontes e Bibliografia ... 569
Apêndices ... 625
Apêndice I: Corpus dos documentos analisados ... 627
Apêndice I.A: Transcrições anotadas de alguns documentos ... 627
Apêndice II: Corpus das unidades espaciais identificadas ... 681
Apêndice II.A: Notas de identificação toponímica ... 681
Apêndice III – Cartografia complementar ... 693
7
Índice de mapas
Mapa 1 – Povoamento do território da diocese de Braga (séculos IX-XI) ... 41
Mapa 2 – Distribuição das unidades espaciais identificadas na documentação
diplomática analisada ... 53
Mapa 3 – Actuais freguesias onde foi possível identificar unidades espaciais
documentadas nos cartulários analisados (LF e LMD) ... 56
Mapa 4 – Distribuição das unidades espaciais documentadas em cada um dos
cartulários analisados (LF e LMD) ... 57
Mapa 5 – Unidades de organização social do espaço: unidades de povoamento
... 406
Mapa 6 – Unidades de organização social do espaço: unidades de residência e/ou
exploração ... 434
Mapa 7 – Unidades eclesiásticas ... 443
Mapa 8 – Unidades de paisagem naturais: relevo ... 456
Mapa 9 – Unidades de paisagem naturais: águas ... 464
Mapa 10 – Unidades de paisagem naturais: inculto ... 476
Mapa 11 – Unidades de paisagem produtivas: cereal ... 487
Mapa 12 – Unidades de paisagem produtivas: vinho, fruta e horta ... 491
Mapa 13 – Unidades de paisagem produtivas (outras): espaços de cultivo ... 501
Mapa 14 – Unidades de paisagem produtivas (outras): espaços aquíferos ... 503
Mapa 15 – Unidades de paisagem: transformação ... 510
Mapa 16 – Unidades de paisagem residenciais ... 515
Mapa 17 – Unidades de paisagem fortificadas ... 522
Mapa 18 – Unidades de paisagem: vias e outras estruturas de comunicação ... 529
Mapa 19 – Formas de propriedade ... 540
Mapa 20 – Lugares centrais ... 693
Mapa 21 – Unidades de paisagem naturais (relevo) e unidades de paisagem
fortificadas ... 694
Mapa 22 – Unidades de paisagem fortificadas, vias e outras estruturas de
comunicação ... 695
Mapa 23 – Unidades de organização social do espaço: de povoamento e
residenciais e/ou de exploração ... 696
8
Mapa 24 – Unidades de organização social do espaço (povoamento) e unidades
eclesiásticas ... 697
Mapa 25 – Unidades de paisagem produtivas (cereal, vinha, fruta, horta e outras)
e elementos de delimitação ... 698
Mapa 26 – Actuais freguesias onde foi possível identificar unidades espaciais
documentadas no corpus analisado ... 699
9
Índice de figuras
Figura 1 – Instantâneo do formulário Documentos ... 258
Figura 2 – Instantâneo do formulário Elementos ... 260
Figura 3 – Instantâneo do formulário Unidades ... 271
10
Siglas e abreviaturas
Fontes e obras de referência
1BDP=COSTA, 2000: COSTA, Avelino de Jesus da (2000) – O Bispo D. Pedro e a
Organização da Arquidiocese de Braga. Vol. II: “Censuais e Documentos”
2BL: SÃO TOMÁS, Fr. Leão de (1644-1651) – Benedictina Lusitana
BLAISE: BLAISE, Albert (1986) – Lexicon Latinitatis Medii Aevi praesertim ad res
ecclesiasticas investigandi pertinens
BLAISE – Dict.: BLAISE, Albert (1975) – Dictionaire latin-français des auteurs du
Moyen Âge
CCSP: Censual do Cabido da Sé do Porto. Ed. de João Grave
CDFI: Colección Diplomática de Fernando I (1037-1065). Ed. de Pilar Blanco Lozano
CDMCG: RAMOS, Cláudia M. N. T. da Silva (1991) – O mosteiro e a colegiada de
Guimarães (ca. 950-1250). Volume II: “Colecção Documental”
CDMSSJ: LIRA, Sérgio (2002) – O Mosteiro de S. Simão ds Junqueira. Volume II:
“Colecção Documental”
Censual: Censual de Entre-Lima-e-Ave [1085-1089/91] (v. BDP: 7-231)
CMC: Cartulario do Mosteiro de Crasto. Ed. de Alfredo Pimenta
DC: Portugaliae Monumenta Historica, Diplomata et Chartae
DCP: COSTA, Américo (1929-1949) – Diccionario Chorografico de Portugal
Continental e Insular…
DEPA: FLORIANO, António C. (1949-1951) – Diplomática española del periodo
astur…
DHP: Dicionário de História de Portugal. Dir. de Joel Serrão
DP: Documentos Medievais Portugueses, Documentos Particulares. Volume III….;
Volume IV….
DPE: Dicionário Porto Editora
DR: Documentos Medievais Portugueses, Documentos Régios. Volume I: Documentos
dos Condes Portucalenses e de D. Afonso Henriques (A.D. 1095-1185)
DU CANGE: DU CANGE, Charles du Fresne (sieur) et alii (1883-1887) – Glossarium
Mediae et Infimae Latinitatis
CDAf.V: FERNÁNDEZ DEL POZO, José María (1984) – «Alfonso V rey de León.
Estudio histórico-documental»
CDAf.VI: GAMBRA, Andrés (1998) – Alfonso VI. Cancillería, Curia e Imperio. Vol.
II: Colección Diplomática
DMLBS: LATHAM, R. E.; HOWLETT, D. T. (dir.) (1975-...) – Dictionnary of
Medieval Latin from British Sources
EMP: BARROCA, Mário Jorge – Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422). Vol. II:
“Corpus Epigráfico Medieval Português”
1 Para a citação completa das obras aqui arroladas, v. infra Fontes e Bibliografia. O sistema de citação
utilizado pode levantar dúvidas, no caso das obras que editam documentos, já que o número que se segue à sigla pode dizer respeito nuns casos ao número de um documento aí editado e noutros ao número de uma ou mais páginas da obra. A sinalética utilizada é contudo distinta: no caso dos documentos, a citação recorre à vírgula para separar a sigla do número do documento (ex.: BDP, 1); ao passo que quando se alude a uma ou mais páginas, a sigla é seguida de dois pontos (ex.: BDP: 1).
2
Utiliza-se a sigla BDP para referência a documentos aqui publicados e a citação abreviada (COSTA, 2000) para a referência a páginas deste segundo volume da obra.
11
HOUAISS: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles (2002) – Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa
GMLC: BASSOLS DE CLIMENT, Mariano; BASTARDAS, Joan (dir.) (1960-...) –
Glossarium Mediae Latinitatis Cataloniae…
Inq.: Portugaliae Monumenta Historica, Inquisitiones
LC: Portugaliae Monumenta Historica, Leges et Consuetudines
LF: Liber fidei sanctae bracarensis ecclesiae. Ed. de Avelino de Jesus da Costa
LHP: MENÉNDEZ PIDAL, Ramón; LAPESA, Rafael (2003) – Léxico hispánico
primitivo
LIMAL: ARNALDI, Francesco; SMIRAGLIA, Pasquale (dir.) (2001) – Latinitatis
Italicae Medii Aevi Lexicon (saec. V ex. - saec. XI in.)
LLMARL: PÉREZ, Maurilio (dir.) (2010) – Lexicon Latinitatis Medii Aevi Regni
Legionis (s. VIII-1230) Imperfectum
LP: Livro Preto da Sé de Coimbra. Ed. de M. A. Rodrigues; A. de J. da Costa
NIERMEYER: NIERMEYER, J. F.; VAN DE KIEFTE, C. (2002) – Mediae Latinitatis
Lexicon Minus
PP: ERDMANN, Carl (1927) – Papsturkunden in Portugal
SS: Portugaliae Monumenta Historica, Scriptores
TF: Tumbo de Fiães. Transcripción. Ed. de Xesús Ferro Couselo
Tumbo A: Tumbo A de la Catedral de Santiago. Ed. de Manuel Lucas Álvarez
VITERBO: VITERBO, Frei Joaquim de Santa Rosa (1993) – Elucidário das palavras,
termos e frases…
3VVM: Valdevez Medieval. Documentos. I. 950-1299
Revistas
AEM: Anuario de Estudios Medievales
ALMA: Archivum Latinitatis Medii Aevi (Bulletin Du Cange)
AHDE: Anuario de Historia del Derecho Espanñol
BCCMP: Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto
BEC: Bibliothéque de l’école des chartes
CCM: Cahiers de Civilisation Médiévale
EHR: English Historical Review
EME: Early Medieval Europe
HR: Historical Research
HJ: Historical Journal
JEH: Journal of Ecclesiastical History
MEFR/M: Mélanges de l’École française de Rome. Moyen-Âge
RPH: Revista Portuguesa de História
SH-HM: Studia Historica – Historia Medieval
Cartografia
CP: Carta de Portugal (1:100.000 – Instituto Geográfico e cadastral), fl. …
CM: Carta Militar de Portugal (1:25.000 – Instituto Geográfico do Exército), fl. …
3
A informação proveniente dos comentários e verbetes originais redigidos por M. Fiúza para a edição crítica da obra vai devidamente assinalada: VITERBO [Fiúza]. Note-se, contudo, que foram apenas publicados os comentários e verbetes relativos ao primeiro volume (letra A); os do segundo (letras B-Z), que se optou por separar do texto da autoria de Viterbo, deveriam ter constituído um volume autónomo que nunca chegou a ser editado.
12
Editoras e instituições
ADB: Arquivo Distrital de Braga
CISAM: Centro Italiano di Studi sull’Alto Medioevo
CSIC: Consejo Superior de Investigaciones Científicas
CUP: Cambridge University Press
CV: Casa de Velázquez
EFR: École française de Rome
FCG: Fundação Calouste Gulbenkian
FCSH/UNL: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa
FCT: Fundação para a Ciência e a Tecnologia
FLUL: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
FLUC: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
FLUP: Faculdade de Letras da Universidade do Porto
INCM: Imprensa Nacional - Casa da Moeda
INE: Instituto Nacional de Estatística
INIC: Instituto Nacional de Investigação Científica
OUP: Oxford University Press
PUF: Presses Universitaires de France
PUM: Presses Universitaires du Mirail
PUR: Presses Universitaires de Rennes
UP: Universidade do Porto
Abreviaturas
a. – antes de
aa. – anteriores
a.f. – antiga freguesia
a.l. – antigo lugar
a.v. – antiga villa
c. – circa
c. – concelho
cap. – capítulo
cit. – citado(a)
col. – coluna
colab. – colaboração
coord.(s) – coordenador(es)
corr. – corrigido(a)
d. – depois de
doc(s). – documento(s)
ed.(s) – edição/editor(es)
ed. ut. – edição utilizada
el. – elemento
f(s). – freguesia(s)
fasc. – fascículo
fr. – fração
Fr. – frater
l(s). – lugar(es)
m. – metro(s)
p. – porção/porções
publ. – publicado(a)
13
reed. – reeditado(a)
ref(s). – referência(s)
reimpr. – reimpressão
s.d. – sem data
s.f. – sem freguesia
s.l. – sem lugar
ss. – seguintes
t. – tomo
trad. – tradução
s.u. – sub uerbo
un(s). – unidade(s)
v. – vide
vs. – versus
14
Agradecimentos: breve memória de uma investigação
Para lá da necessária lista de nomes e de dívidas para com eles contraídas,
parece-me importante situar os agradecimentos que lhes são devidos numa breve
memória dos principais marcos que definiram o percurso desta dissertação. Reflete-se
normalmente muito pouco (e escreve-se ainda menos) sobre as circunstâncias do
trabalho académico. Invocar as condições institucionais que sustentaram a investigação
e a teia de relações científicas que em torno dela se foi urdindo não justifica as muitas
limitações do resultado final, que devem ser atribuídas às limitações do autor, mas ajuda
a compreendê-lo.
Em primeiro lugar, cumpre registar o apoio da Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, mediante a concessão de uma bolsa de doutoramento que me permitiu uma
dedicação exclusiva a este trabalho durante quatro dos cinco anos que levei a
completá-lo. Não teria sido possível sequer pensar uma investigação deste tipo sem essa condição.
Por outro lado, a bolsa que me foi concedida permitiu frequentes deslocações ao
estrangeiro e uma estadia prolongada em Cambridge, para pesquisas bibliográficas. A
indigência das bibliotecas universitárias portuguesas na área das Ciências Sociais e
Humanas, em virtude de um financiamento cronicamente deficiente e da ausência de
políticas de aquisição concertadas entre as várias instituições, não deixa alternativa aos
investigadores.
Ainda no domínio institucional, devo à Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, ao Departamento de História (agora também de Estudos Políticos e
Internacionais) e em particular ao grupo dos Professores de História Medieval, um
acolhimento muito cordial desde há exatamente nove anos, quando me inscrevi no
Curso Integrado de Estudos Pós-Graduados em História Medieval e do Renascimento,
entretanto extinto. Esta tese assistiu à implementação da reforma que instituiu o atual
Curso de Terceiro Ciclo/Doutoramento em História, para o qual fui obrigado a transitar,
sem que isso tenha implicado qualquer alteração ao plano de uma tese que foi pensada
num tempo pré-Bolonha, o que devo também à compreensão dos membros da comissão
diretiva do curso, os Professores Amélia Polónia, Conceição Meireles e Luís Miguel
Duarte.
15
A ciência faz-se certamente de condições institucionais. Mas no princípio estão
sempre os projetos pessoais (que não necessariamente individuais) de trabalho. Na
ausência de dinâmicas coletivas capazes de gerar grupos coesos e estruturados no estudo
de áreas temáticas, cronologias ou regiões específicas – o que me parece ser a grande
debilidade da investigação em História Medieval no nosso país –, este trabalho teve a
imensa sorte de encontrar um orientador capaz de lhe dar a espessura que normalmente
só aqueles grupos de investigação criam. Ao Professor Luís Carlos Amaral devo, desde
que com ele comecei a trabalhar há já mais de dez anos, um duplo compromisso. Em
primeiro lugar, com a minha formação como historiador, bem para lá dos estritos limites
da tese. Por maior que seja a acelaração imposta pela reforma de Bolonha, é importante
não esquecer que as dissertações são instrumentos de formação, e não fins em si
mesmas. E que um historiador da paisagem e do povoamento altimedievais é, antes
disso, um medievalista e, antes ainda, um historiador. O Professor Luís Amaral nunca
deixou de mo mostrar, desde logo pelo seu exemplo. Em segundo lugar, devo-lhe o
compromisso com a integração do meu trabalho numa escola historiográfica plenamente
estruturada, criada pelo Professor José Ángel García de Cortázar: a alusão recorrente ao
longo deste trabalho à “organização social do espaço” corresponde à assunção dos
pressupostos teóricos e metodológicos dessa escola, e sobretudo à tentativa de pensar a
realidade aqui em análise com recurso a um quadro conceptual já testado, capaz de
promover a comparabilidade no contexto mais alargado do quadrante Norte da
Península Ibérica. Para lá deste duplo compromisso de fundo, devo ao Professor Luís
Amaral uma disponibilidade incondicional para atender às minhas solicitações. E a
capacidade de encontrar o difícil equilíbrio entre a margem de liberdade que deve ser
dada a qualquer investigação que aspire a ser mais do que reprodução e a direção firme
que um orientando estruturalmente disperso exige (sobretudo na etapa final). Não teria
sido capaz de fazer o caminho sem aquela liberdade, nem de o terminar sem esta
direção.
Por iniciativa do Professor Luís Amaral, a integração deste trabalho na referida
escola traduziu-se na coorientação do Professor José Ángel García de Cortázar, que teve
a generosidade de aceitar um orientando com poucas provas dadas. A minha dispersão,
na raiz do sucessivo incumprimento dos prazos intermédios que foram sendo marcados,
dificultou-lhe consideravelmente o acompanhamento do trabalho e impediu-me de
aproveitar plenamente os seus ensinamentos. Ainda assim, o Professor García de
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Cortázar manifestou sempre uma disponibilidade inteira para discutir os sucessivos
esboços de programa que lhe fui apresentando, ajudando-me de forma decisiva, em três
momentos-chave do percurso, a perceber o caminho a seguir. Um caminho que, como
ficará claro no decurso das páginas que se seguem, foi em boa parte decalcado do
notável edifício teórico que construiu para o estudo da “organização social do espaço”,
reconhecido muito para lá das estritas coordenadas ibéricas e altimedievais para as quais
foi concebido. A simpatia com que o Professor García de Cortázar recebeu os capítulos
que finalmente lhe apresentei em catadupa, mostraram-me, para lá de tudo o mais, o
sentido que a generosidade faz, também no trabalho académico.
Num plano diferente (e mais distante) do da orientação formal, esta dissertação
beneficiou enormemente do conselho de quatro grandes medievalistas que tiveram a
simpatia de discutir comigo, em diversas fases da investigação, vários dos problemas
que me iam ocupando. Em primeiro lugar, devo à Professora Wendy Davies sucessivas
conversas sobre o plano da tese e sobre os principais temas a que ela me ia conduzindo,
sintomaticamente coincidentes com alguns dos temas que a preocupam: a organização
da paisagem, o funcionamento das comunidades locais (esses small worlds, que tão bem
estudou), a relação dessas comunidades com a terra, o crescimento agrário, a imagem
que as fontes constroem de tudo isto... Não por acaso, o caminho que percorri ao longo
destes anos foi também um caminho de aproximação aos seus temas e à sua forma de os
abordar. À Professora Iria Gonçalves devo conversas particularmente vivas e sugestivas
sobre a idiossincrasia da paisagem minhota medieval, que um longo e aturado trabalho
com as Inquirições ducentistas e com os sumarentos tombos tardo-medievais lhe
permitiu conhecer como ninguém. A imensa generosidade e a delicadeza que
distinguem a Professora Iria Gonçalves fizeram destas conversas um verdadeiro prazer.
Ao Professor José Mattoso, a quem todos devemos o essencial da nossa visão sobre o
período aqui em análise no território portucalense, devo também a discussão sempre
profunda e muito franca de várias questões, sobretudo as que decorrem da clivagem
entre a realidade histórica propriamente dita e a mera realidade documental, o que em
muito contribuiu para a elaboração (ainda muito elementar) dessas questões de que fui
capaz. Finalmente, este trabalho deve muito ao Doutor Peter Linehan. Embora o estudo
do espaço fique bastante aquém do thrill experimentado pelo biógrafo de um Gonzalo
Pérez Gudiel, e lhe provoque o mais absoluto tédio, a agudeza (wit será mesmo a
palavra certa) e a enorme imaginação que são as suas converteram as conversas que
17
fomos tendo ao longo dos últimos anos em momentos privilegiados de aprendizagem do
que pode ser a subtileza (mas também a eficácia) da análise histórica e um sentido
estético do discurso que a sua obra tão bem ilustra.
As deslocações ao estrangeiro a que me referi, e pelas quais passou em boa parte
a abertura de perspetivas que nenhum trabalho científico pode dispensar, giraram em
torno de três pólos, onde encontrei pessoas e instituições que me possibilitaram essa
abertura. As estadias mais prolongadas tiveram lugar em Cambridge, onde passei
sucessivos períodos estivais ao longo dos últimos seis anos e todo o ano letivo de
2010-2011. Deve-se ao Doutor Peter Linehan o convite feito em 2006 a um grupo de alunos
da Universidade do Porto para aí passarmos umas semanas. E desde então devo-lhe a
absoluta generosidade com que sempre acedeu receber-me no St. John’s College.
Embora não tenha nunca estado formalmente ligado ao colégio, foram-me concedidas
todas as facilidades, o que implica um agradecimento institucional ao Master e aos
Fellows. Ao mesmo tempo, o Doutor Peter Linehan franqueou-me as portas da
incomparável Biblioteca da Universidade de Cambridge, a cujos responsáveis devo
também agradecer. Durante aquele período mais longo, fiquei alojado numa residência
destinada a estudantes estrangeiros, a Link House, a cujos trustees agradeço. Mas fico
sobretudo a dever a Lil e Mel Robson, os wardens da casa, uma calorosa hospitalidade
que tornou mais agradável um ano por natureza muito solitário. Para lá da necessidade
imperiosa de consultar bibliografia de que não dispunha em Portugal, esta estadia
prolongada em Cambridge foi ditada pela urgência de acelerar e recentrar uma tese que,
durante os três primeiros anos, se deixara tentar pelos muitos caminhos abertos pela
investigação. Teve o seu quê de retiro, a exigir um ritmo de trabalho a que o ambiente
de Cambridge é particularmente propício, mas com potenciais riscos para o trabalhador.
Que eu tenha saído quase ileso deve-se em boa parte às (poucas mas saborosas)
incursões londrinas de fim de semana, a casa da Ana e do Ricardo, que sabem bem o
que é o trabalho académico, mas sabem ainda melhor o que é a família. E que me
ajudaram com a pequena logística da mudança para (e da vida em) Inglaterra. À Beatriz
e ao Diogo (como à Matilde) explicarei um dia como foi importante vê-los crescer
enquanto o meu trabalho parecia não sair do sítio.
Em segundo lugar, esta tese levou-me por algumas vezes a Santander, para
reuniões com o Professor José Ángel García de Cortázar. Aqui pude também encontrar
uma biblioteca notável, os pólos da Biblioteca da Universidade da Cantábria situados no
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Edificio Interfacultativo e na Faculdade de Direito, a cujos responsáveis agradeço as
facilidades que me foram concedidas. Parece-me ser este um excelente exemplo de
como é possível, numa academia de dimensão semelhante (senão menor) à de muitas
universidades portuguesas, dispor de um fundo bibliográfico absolutamente consistente
e atualizado, ao menos no que à História Medieval diz respeito. Consequência,
naturalmente, de uma política clara de aquisição, definida pelos próprios professores da
área, em articulação com os bibliotecários, que julgo ser aquilo que falta na maior parte
das bibliotecas universitárias portuguesas. Não bastam as sugestões de aquisição. É
preciso definir políticas que permitam, face a orçamentos cada vez mais limitados,
eleger o que é prioritário (ou não) comprar, em função dos principais interesses de
investigação de cada departamento. De volta aos agradecimentos, em Santander
encontrei o generoso acolhimento não só do Professor García de Cortázar mas também
dos Professores Esther Peña Bocos (cuja hospitalidade durante a minha primeira
incursão santanderina não esqueço) e Jesús Ángel Solórzano Telechea, bem como da
Leticia Agúndez San Miguel, do Gonçalo Graça e do Javier Añíbarro Rodríguez.
Mais breves mas igualmente importantes foram as deslocações que fiz a Madrid,
onde fui recebido no Centro de Ciencias Humanas y Sociales do CSIC pela Doutora
Isabel Alfonso Antón, a quem devo a possibilidade de trabalhar na extraordinária
Biblioteca Tomás Navarro Tomás, a cujos responsáveis agradeço as facilidades
concedidas. Devo-lhe ainda o acolhimento informal na equipa do projeto PRJ, sobre
processos judiciais e mecanismos de resolução de disputas na Península Ibérica (e agora
no Ocidente altimedieval), que estimulou o meu trabalho de inventariação da
documentação anterior a 1101 conservada em arquivos portugueses. Se esta empresa me
desviou de alguma forma da tese, também redimensionou inegavelmente a minha
reflexão sobre a realidade documental. Devo ainda aos Doutores José Miguel Andrade
Cernadas e Julio Escalona Monge, membros da referida equipa, o interesse que
manifestaram pelo meu trabalho e o generoso envio de material bibliográfico que num
determinado momento lhes pedi.
Embora esta dissertação seja produto de um trabalho individual, a investigação
que lhe subjaz contou com duas colaborações essenciais, em domínios que me estavam
(e continuam) vedados, mas que se revelaram essenciais na configuração da proposta
metodológica aqui apresentada. Em primeiro lugar, contei com a ajuda do Professor
Gabriel David (da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto) na criação da
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base de dados que operacionalizou o questionário desenhado para o estudo
prosopográfico do espaço. No momento em que escrevo estas páginas, a versão
utilizada é já a trigésima, o que dá bem a ideia da enorme massa de trabalho que a
criação e sucessivo aperfeiçoamento da base de dados implicaram. Desprovida de
qualquer enquadramento institucional, esta colaboração decorreu pura e simplesmente
da amizade. O que torna a minha dívida impagável. Não esqueço ainda o acolhimento
da família David, e muito particularmente da Helena, em tantas sessões de trabalho em
sua casa. Em segundo lugar, contei com a colaboração do Dr. Miguel Nogueira
(responsável pela Oficina do Mapa da FLUP), na elaboração da cartografia que integra
este trabalho. Como cartógrafo experiente e competente, não se limitou a produzir
mapas, mas ajudou-me verdadeiramente a pensar o problema da integração dos dados
documentais num SIG, o que constitui um dos objetivos e potencialidades centrais da
metodologia aqui apresentada. Não esqueço também a enorme simpatia com que
respondeu aos prazos apertados que os meus atrasos acabaram por impor-lhe.
Falei já muito de bibliotecas. Mas falta ainda referir as condições excecionais de
trabalho de que beneficiei na Biblioteca Central da FLUP, fruto da enorme competência
de um conjunto de funcionários que sabem que a Biblioteca é um lugar importante.
Agradeço a todos, na pessoa do Dr. João Leite, mas permito-me destacar os nomes da
Dr.ª Isabel Pereira Leite e de Amélia Melo, Clara Oliveira, Laura Gil, Márcia Freitas,
Marlene Borges, Rafaela Barbosa, Jorge Lopes e Miguel Simões que, com uma atenção
inexcedível, tornaram o meu trabalho mais fácil e agradável. Durante os últimos anos,
os Departamentos da FLUP e as respetivas bibliotecas sofreram alterações consideráveis
de funcionamento. No entanto, continuei sempre a contar com a prestável colaboração
das sucessivas secretárias do Departamento de História: Dr.
asIdalina Azeredo, Susana
Cunha e Ana Gonzalez, e da Dr.ª Sandra Carneiro no Departamento de Ciências e
Técnicas do Património, a quem agradeço toda a simpatia. Depois, encontrei na FLUP
um conjunto de outros funcionários, competentes e dedicados, que me ajudaram de
muitíssimas maneiras, e de forma persistente, ao longo destes já muitos anos de Letras.
Penso nos nomes da Sr.ª D.ª Maria José Ferreira, das Dr.
asAlexandra Melo, Carla
Amaral, Paula Oliveira, Raquel Matos e Raquel Sampaio, da Liliana Carvalho e do
Nuno Santos. E esqueço outros certamente.
Por último, não poderia deixar de referir os nomes de um conjunto amplo de
professores e colegas a quem devo coisas muito diferentes – indicações bibliográficas,
20
fotocópias, informações várias, conselhos sobre problemas específicos, conversas
diletantes, palavras de incentivo –, todas elas importantes. Na Universidade do Porto,
devo-as aos Professores Amélia Polónia, Inês Amorim, Lúcia Rosas, Maria Cristina
Cunha, Paula Pinto Costa, José Ramiro Pimenta, Luís Miguel Duarte e Mário Barroca.
E muito especialmente à Professora Helena Osswald, que acompanhou todo o percurso
com a atenção e o cuidado que lhe são tão próprios, e ao Professor João Garcia, que se
dispôs a ouvir falar longamente desta investigação e a discutir, com a sua invulgar
capacidade de crítica, diversos problemas que ela ia levantando. Noutras universidades,
devo-as aos Professores Hermínia Vilar, Maria João Branco, Maria José Azevedo
Santos, Maria de Lurdes Rosa, Susana Pedro, Arnaldo Melo, Hermenegildo Fernandes,
Saul António Gomes, Stéphane Boissellier e Xaime Varela Sieiro. Finalmente, devo-as
a um grupo de amigos medievalistas que trilharam, ao longo dos últimos anos, um
percurso semelhante e sempre atento ao meu: Joana Sequeira, Marta Castelo Branco,
André Vitória, António Castro Henriques, Flávio Miranda, Mário Farelo, Rodrigo
Dominguez e todos os membros do Grupo Informal de História Medieval da U. Porto
(GIHM). Porque mais próximos, os percursos da Filipa Roldão e da Maria João Oliveira
e Silva foram ainda mais atentos ao meu. À Patrícia Costa (que não é medievalista, mas
modernista) devo uma vigilância ímpar ao andamento da tese.
Saio assim do terreno da ciência para entrar num domínio que já não cabe nesta
“memória de uma investigação”, por dizer respeito ao trabalhador mais do que ao
trabalho, mas que em todo o caso sustentou o caminho feito por ambos. Aos amigos e à
família devo o maior estímulo para avançar (e acabar!). Aos Pais, à Inês e à Elvira, que
mais de perto acompanharam esse caminho, devo ainda o terem-no tornado possível, dia
a dia.
21
Introdução: a montagem de um estudo de caso
demonstrativo
23
1. Itinerário: da representação documental à materialidade do
espaço
O itinerário que este trabalho procurará percorrer, da representação documental à
materialidade do espaço, implica um claro reajustamento face ao percurso que o projeto
inicial se propunha trilhar. Concebida inicialmente como mais um estudo de base
regional sobre a organização social do espaço, neste caso no Entre-Douro-e-Minho entre
os séculos IX e XII, rapidamente a investigação se restringiu à análise dos ritmos e
configurações espaciais do povoamento minhoto e dos modelos de organização da
paisagem, para numa última fase se centrar especificamente na caracterização
morfológica das diversas unidades espaciais que serviram essa organização, entendidas
como bases materiais da organização social do espaço. Prescindiu-se assim do estudo
sistemático do processo de povoamento, que assume neste trabalho um papel
secundário, de pano de fundo, ainda que não tenha sido completamente excluído, desde
logo do título. Até porque o processo de povoamento é sempre indissociável da
(re)configuração morfológica dos diversos setores da paisagem no decurso desse mesmo
processo.
Importa desde já notar que esta dissertação foi concebida, ab initio, como a
segunda peça de um programa de investigação que vinha de trás e deveria prolongar-se
para além dela. O trabalho que agora apresentamos sucede a um primeiro ensaio
metodológico bem delimitado, porque restrito à análise de uma unidade específica de
organização social do espaço (o casal), que procurava, a um mesmo tempo: (i)
desenvolver (nos planos semântico e morfológico) e aplicar (a um espaço-tempo
concreto: o Entre-Douro-e-Lima dos séculos X a XII) uma metodologia de análise desse
tipo de unidades rurais de exploração e/ou residência; e (ii) estudar uma unidade de base
familiar que assumiu, logo no século XII, um papel central na ordenação da paisagem e
do povoamento rurais do Entre-Douro-e-Minho, constituindo-se assim como um dos
caminhos privilegiados para a sondagem à organização social do espaço minhoto que
esse primeiro ensaio procurava levar a cabo
4.
Ora, se a presente dissertação se propunha, de acordo com o plano inicial,
desenvolver esse estudo global da organização social do espaço minhoto, rapidamente o
4 MARQUES, 2008 – O casal…: 21-32, 257-64. Editado em 2008, este livro constitui a versão revista e
só pontualmente modificada da dissertação de mestrado em História Medieval que apresentámos à FLUP em dezembro de 2006.
24
curso da investigação se encarregou de demonstrar que havia um conjunto de problemas
prévios (propedêuticos mesmo) que importava estudar de forma aprofundada, sob pena
de a construção do edifício assentar em fundações demasiado frágeis. Não pareceu
possível avançar para o estudo dos processos de apropriação, organização e articulação
do território minhoto até ao século XII sem antes atentar em duas questões principais,
que vieram a corporizar o objeto do trabalho: (i) os modelos discursivos de base e as
circunstâncias conjunturais de transmissão que moldaram a representação documental
do espaço no conjunto de fontes escritas conservado até aos nossos dias (um corpus que
estava – e continua, em boa parte – por estudar
5); e (ii) a morfologia propriamente dita
do espaço organizado (paisagem) e articulado (território), analisada dentro dos
constrangimentos impostos pelo registo escrito ao estudo das diversas unidades
espaciais cuja tipologia os redatores distinguiram nos seus textos através do recurso a
diferentes termos classificatórios. Neste sentido, a necessidade de aprofundar o
inquérito nos planos semântico e morfológico, que ficara já bem patente naquele
primeiro trabalho sobre o casal, redimensionou-se neste segundo. E obrigou a recentrar
a análise num conjunto de problemas que se desenrolam no referido arco: da
representação documental à materialidade do espaço.
A história da investigação desempenhou assim um papel crucial na definição do
sentido a seguir. Esta será uma característica comum a muitas dissertações, mas atingiu
aqui proporções desmesuradas, transformando aquilo que no plano inicial não passaria
de um mero capítulo introdutório no essencial do trabalho. Projetada inicialmente como
um estudo sobre a organização social do espaço, a investigação avançou mais para
montante do que para jusante do ponto de partida. Reconhecer esta quase inversão de
sentido não significa, contudo, negar o peso do plano inicial no trabalho que agora se
apresenta. Há nele como que uma marca genética, que não deixou nunca de orientar os
fins últimos da investigação e que estará, por isso, subjacente às páginas que se seguem.
De uma certa forma, o programa deste trabalho define-se ainda pelos objetivos que o
orientaram de início e que, embora não tenha chegado a atingir, também nunca
abandonou por completo. Não por uma qualquer hesitação em prescindir de objetivos
uma vez assumidos, mas porque o objeto desta dissertação foi definido tendo em vista
5 Sobre as muitas limitações que se levantam, ainda hoje, ao mero inventário – e que dizer da análise
diplomática propriamente dita? – do conjunto dos diplomas altimedievais conservados nos arquivos portugueses (sob a forma de originais ou cópias dos mais diversos tipos), v. MARQUES, s.d. – «Para um inventário…».
25
esse objeto maior que é o processo global de organização social do território, neste caso
bracarense, até ao século XII.
Aliás, sem negar a especificidade temática e metodológica que há de
necessariamente distinguir qualquer investigação, parece-nos fundamental manter como
imperativo, num tempo em que também a investigação histórica se confronta com tantas
desconstruções, a necessidade de ativar um dos três componentes do “capital” do
historiador (na expressão de J. Á. García de Cortázar): o “conceito”, que permite
integrar cada investigação particular numa visão global e articulada, e por isso pensável,
da realidade histórica, dotada de um potencial explicativo imprescindível à
compreensão do tema em análise
6. Este pressuposto de base implica uma conceção
totalizante dos processos históricos, capaz de articular os diversos “níveis históricos” na
interpretação dos fenómenos e na formulação de quadros explicativos globais
7. Uma
conceção que, por tradição historiográfica e pela própria natureza desse tipo de
investigações, é particularmente visível nos estudos de base regional
8.
Neste sentido, impõe-se distinguir, e reivindicar desde já, um duplo horizonte de
preocupações no qual cabem um objeto global e um outro imediato, decomposto do
6
GARCÍA DE CORTÁZAR, 2007 – «La historiografía de tema…»: 68-69: «La posea o no el respetivo historiador, con frecuencia, falta en sus obras una visión global de la materia histórica que se fundamente en una «concepción de la realidad y, por ello, de la materia histórica, como estructurada y cientificamente pensable» (…).
«En estas circunstancias, de las que los altomedievalistas han sabido alejarse en mayor medida que los bajomedievalistas, lo lógico y habitual es acceptar sin la necesaria reflexión los modelos que, en forma de préstamos adquiridos a historiografías com más tradición que la nuestra, permitan servir de esqueleto a nuestras propias investigaciones».
7 A mesma conceção foi defendida por J. Mattoso, de quem tomámos a expressão “níveis históricos”, no
prefácio a uma sua coletânea de artigos editada em 1983 e em vários dos trabalhos anteriores aí compilados (MATTOSO, 2002 – Portugal Medieval…: 8). No mesmo sentido vão algumas das observações de H. Martin num texto de 1987, em que procurava antecipar um quadro de tendências que viriam a dominar a historiografia no futuro, face à multiplicação do número e tipo de fontes disponíveis para o historiador (MARTIN, 1987 – «La pénurie documentaire...»: 30). Mais recentemente, também P. IRADIEL, 2003 – «Medievalismo histórico…»: 21, sublinhou a necessidade de uma «historia general globalizante», face à excessiva fragmentação da historiografia medieval espanhola das últimas décadas. No medievalismo português mais recente, um bom exemplo desta abordagem totalizante, feita do cruzamento entre os problemas da organização social do território, das estruturas eclesiásticas e das redes de poder social e político, é a tese de doutoramento de L. C. AMARAL, 2007 – Formação e desenvolvimento…
8 Desde logo nas várias thèses d’État regionais francesas, sobretudo a partir dos anos 1970, a que nos
referiremos (v. infra Parte I, §1.1.): «On conviendra sans peine que c’est dans l’histoire régionale que se trouvent le plus aisément réunies les conditions pratiques d’une histoire totale. C’est en tout cas à quelques grands études régionales que nous devons en rapporter les premiers modèles accomplis. Il est cependent clair que le recours au concept de structure globalisante permet de dépasser une équation qui la réduirait à n’être qu’une forme intelligente d’histoire régionale» (TOUBERT, 1998 – «Tout est document»: 86-87); no mesmo sentido, v. BAKER, 2003 – Geography and History…: 158, embora o autor recolha a opinião de um outro geógrafo inglês, J. D. Marshall, que recusa quer a possibilidade de se atingir uma história total quer a própria existência de regiões como realidades objetivas (ibidem, p. 192).
26
primeiro por razões essencialmente metodológicas. Com efeito, dedicar este trabalho ao
estudo do itinerário que vai da representação documental do espaço à sua materialidade
não poderia nunca implicar o abandono desse objeto global: o processo de povoamento,
entendido no sentido amplo de complexo englobante das conjunturas e formas de
apropriação, organização e articulação do território, as quais vieram a definir o processo
histórico de construção social do espaço na região e cronologia em estudo. É certo que
não se encontrará nas páginas que se seguem uma análise direta deste tipo de
problemas. Mas em momento algum eles foram perdidos de vista e, mais do que isso, o
objetivo maior deste trabalho é o de preparar o caminho, tornando-o mais seguro, para o
estudo daquele processo histórico. Assim se justificam as sucessivas camadas de sentido
contidas no título: (i) o objeto global (Paisagem e povoamento), (ii) o objeto imediato
(da representação à materialidade do espaço), (iii) as coordenadas da investigação (no
território da diocese de Braga (séculos IX-XI)) e (iv) a função exploratória e
27
2. Programa: a concretização de uma proposta metodológica num
estudo de caso
Assumir uma função exploratória e instrumental implica esclarecer, desde já,
que esta é uma dissertação empenhada não tanto em esgotar um tema no plano
empírico, dentro de coordenadas temporais e espaciais precisas (os modelos de
organização da paisagem e do povoamento altimedievais minhotos), mas sobretudo em
propor uma metodologia de análise do espaço (mais concretamente, dos diversos tipos
de unidades que o estruturam no discurso documental), concebida especificamente a
partir de fontes escritas altimedievais. Uma metodologia historiográfica, portanto, por
oposição a metodologias outras, de base arqueológica (tanto ligadas à escavação
estratigráfica como à prospeção), geográfica, paleoambiental, etc. A generalidade destas
metodologias, e desde logo as que se aproximam mais das ciências naturais, assenta
num instrumental técnico complexo (quando não mesmo tecnologicamente sofisticado)
e bem definido. E nisto contrastam com o impressionismo e o sincretismo dos métodos
que tradicionalmente guiam os historiadores do espaço na leitura das fontes escritas
altimedievais: uma leitura que não passa, muitas vezes, disso mesmo, sem sequer
atingir grande complexidade no plano estritamente hermenêutico. Percebe-se deste
modo a necessidade de avançar na conceção de metodologias especificamente
desenhadas para o estudo deste tema, cronologia e realidade documental específicos,
por maioria de razão no medievalismo hispânico
9.
O programa desta dissertação distingue-se, assim, por um duplo objetivo
instrumental (porque condição prévia imprescindível ao estudo do tema escolhido),
verdadeiramente interdependente: (i) apresentar uma proposta metodológica para o
estudo da morfologia das diversas unidades espaciais referidas na documentação escrita
altimedieval; e (ii), como primeiro passo dessa metodologia e condição prévia para esse
estudo, desenvolver um caminho aplicado (a um corpus documental concreto) de
reflexão sobre as possibilidades das fontes escritas para o conhecimento da
materialidade do espaço, conducente à reivindicação heurística da relevância, mas
9
P. IRADIEL, 2003 – «Medievalismo histórico…»: 30, notou já como na historiografia espanhola «no se hace historiografía ni se escribe de metodología»; e no mesmo sentido se pronunciou J. Á. GARCÍA DE CORTÁZAR, 2007 – «La historiografia de tema…»: 82: «Sin duda, una cierta falta de confianza en el empleo adecuado del fator «capital» (teoría, métodos, técnicas) se halla en la base de una actitud con larga tradición en el investigación histórica española». O panorama na historiografia portuguesa é ainda mais desolador.
28
também das limitações, deste tipo de fontes para o estudo do tema; o que tem
implicações epistemológicas no debate sobre os espaços de cruzamento/rutura entre a
história e a arqueologia.
Estes dois objetivos estão na origem das duas partes da dissertação: a primeira
dedicada à justificação teórica e apresentação da metodologia proposta e a segunda aos
problemas que a representação documental levanta ao conhecimento da materialidade
do espaço. Porque tão importante quanto resolver um problema é saber como resolvê-lo,
não nos pareceu excessivo dedicar uma parte muito significativa da dissertação a
considerações de natureza metodológica e à crítica (no sentido mais amplo) das fontes
utilizadas, com particular destaque para a análise detalhada do léxico utilizado nesse
corpus para classificar morfologicamente as unidades espaciais referidas, o que constitui
afinal a etapa primeira e imprescindível da metodologia proposta. Entramos assim no
estudo de caso propriamente dito, através do qual se procura demonstrar a operatividade
da proposta metodológica apresentada na primeira parte e calibrada, nas suas
potencialidades e limitações, face a um corpus documental concreto, ao longo da
segunda parte
10.
Formular uma proposta de análise, que se pretende inovadora e operativa na
abertura de pistas de investigação até aqui menos trilhadas, não pode restringir-se à
apresentação de uma metodologia em sentido estrito (um conjunto articulado de
ferramentas analíticas), mas obriga a um trabalho prévio de elaboração teórica que há de
necessariamente preceder essa apresentação, definindo o campo a que uma tal
metodologia pode ser aplicada e os limites dessa aplicação (Parte I). O que implica
explicitar um conjunto de definições inerentes à problemática historiográfica que
enquadra a conceção dessa metodologia (§1) e à natureza do seu objeto, com vista a
uma clara definição do seu exato campo de aplicação: a representação documental do
espaço, neste caso (§2). Só depois terá sentido a apresentação da metodologia
propriamente dita, cujas semelhanças operativas (mas não substantivas, como é
evidente) com o método prosopográfico nos levaram a adotar a designação de
“prosopografia do espaço” (§3); bem como o quadro mais alargado de fontes que deve
ter em conta uma metodologia desenhada para a análise da documentação diplomática
10
Como notou A. R. H. Baker, a propósito da geografia histórica, um estudo de caso não deve ser meramente ilustrativo de uma qualquer “grande narrativa” ou modelo historiográfico, mas tem interesse em si mesmo. Aliás, a grande contribuição dos estudos locais e regionais (“place histories”, na expressão do autor) para a teoria é a demonstração da variedade espacial que caracteriza a mudança geográfica, como a histórica (BAKER, 2003 – Geography and History…: 220).
29
mas inequivocamente preocupada em contribuir para o quadro interdisciplinar que o
estudo do espaço exige (§4). Percebe-se assim que a formulação de uma tal proposta
atinja uma dimensão suficiente para ocupar uma parte autónoma do trabalho
11.
Do mesmo modo, cremos que se justifica também dedicar toda uma parte do
trabalho à crítica das fontes e ao estudo da terminologia (Parte II). A reivindicação da
importância da documentação escrita na análise da paisagem e do povoamento e a
proposta de uma metodologia específica que sustente essa análise obrigam ao estudo tão
aprofundado quanto possível da realidade documental. Como em qualquer trabalho de
história, e por maioria de razão num trabalho que pretende ressaltar as possibilidades (e
limitações) oferecidas pelos textos para o estudo da realidade material, é indispensável
conhecer, e delimitar bem, a dimensão representacional desses textos, atendendo aos
contextos que ditam a sua génese e às circunstâncias que rodeiam a sua utilização (e
frequente reativação) enquanto textos úteis que são
12. Só assim poderemos avaliar os
limites que se colocam à capacidade desses textos para representarem uma realidade
(material) que os transcende. A consciência destes limites, que certamente se colocam, é
a melhor forma de superar a encruzilhada a que conduziu o pensamento pós-modernista
mais radical, ao pretender que os textos só poderiam falar de si mesmos
13.
Percebe-se então que, antes de passarmos à análise propriamente dita de um
qualquer problema relacionado com a materialidade do espaço, seja necessário
considerar três aspetos que funcionam como poderosos filtros da informação que este
tipo de fontes pode fornecer sobre a morfologia das diversas unidades de organização
do espaço (§1): (i) as circunstâncias que ditaram a génese e transmissão do corpus
documental disponível (§1.1.), (ii) as tipologias e o discurso diplomáticos que marcam a
11 Só deste modo nos pareceu possível tentar superar uma das limitações maiores do medievalismo
hispânico (espanhol e, ainda mais, português), que J. Á. García de Cortázar resumiu em termos tão claros como duros, ao terminar um balanço da produção historiográfica do seu país entre 1968 e 1998: «La calidad de los trabajos es buena en los mejores pero se resiente en un número demasiado abundante de investigaciones que, faltas de aliento conceptual, son meramente repetitivas, y todavía son frecuentes los estudios exclusivamente descriptivos» (GARCÍA DE CORTÁZAR, 1999 – «Glosa de un balance…»: 824).
12 É particularmente feliz, neste sentido, a expressão “actes de la pratique” (jurídica), utilizada pela
diplomática francesa.
13 Ao comentar uma linha de trabalho recente na historiografia inglesa sobre o Domesday Book (1086),
segundo a qual «Domesday can tell us little that is reliable about population or farming», C. Dyer observa: «Such an attitude can undermine the whole science of agrarian history as it has been practised. The answer is surely to learn from the new historical approach to treat sources with more sensitivity, and recognize that the documents that we use are cultural artefacts, but to stick to our conviction that we are tackling important questions, and that the sources can tell us about the objetive world of the past, and not just about the perceptions of the writers of the texts» (DYER, 2007 – «Recent work…»: 25).
30
escrituração da realidade espacial (§1.2.) e (iii) o léxico que suporta a representação
documental do espaço propriamente dita, mediante a utilização, por parte dos redatores,
de uma terminologia específica para designarem as múltiplas unidades espaciais a que
se referiam (§1.3.). Na impossibilidade de estudar em detalhe estes três aspetos, que
facilmente dariam origem a outras tantas dissertações, em todo o caso muito diversas
desta, optámos por aludir brevemente a alguns dos problemas que cada um levanta ao
estudo do espaço com base em fontes escritas, para nos concentrarmos na análise
exaustiva do léxico espacial que foi possível identificar na documentação analisada. O
desenvolvimento dado a este último apartado justifica-se pelo papel de intermediação
assumido pelas palavras entre os conceitos e a realidade material que eles procuram
representar. Afirma-se assim a centralidade da terminologia no arco que definimos
como itinerário do trabalho: da representação documental à materialidade do espaço.
A opção de incluir neste apartado não apenas o quadro geral de significados
atribuíveis a cada termo mas também a representação cartográfica das distribuições
cronológica e espacial da sua ocorrência no corpus estudado, bem como uma breve
caracterização morfológica de cada tipo de unidade a partir dos dados recolhidos
especificamente neste acervo, transformam-no em mais (e menos, ao mesmo tempo) do
que um apartado de índole lexicográfica. O conjunto de verbetes relativos aos diversos
termos que compõem o corpus lexical estudado corresponde, de facto, ao primeiro
estádio, ainda embrionário, de tratamento da informação recolhida sobre os respetivos
tipos de unidades utilizando a metodologia de inspiração prosopográfica que este
trabalho propõe. Na impossibilidade de um tratamento sistemático do imenso corpo de
dados recolhidos, que, no limite, conduziria a um conjunto de extensos trabalhos
monográficos semelhantes ao que dedicámos ao casal
14, este apartado aparece assim
como um ensaio exploratório das potencialidades da metodologia proposta.
14 MARQUES, 2008 – O casal…. Note-se, apesar de tudo, que só uma percentagem reduzida das
unidades espaciais que compõem esse corpus lexical apresenta uma complexidade morfológica e uma abundância informativa (o mesmo é dizer: frequência de menções documentais) comparável à do casal.
31
3. Coordenadas: a demarcação do tempo e do espaço à luz da
realidade documental
A definição de um caso implica sempre a marcação tão precisa quanto possível
de coordenadas temporais, espaciais e documentais. O que não significa a obrigação de
considerar estas três realidades de forma independente e num mesmo plano de
importância. Pelo contrário, e sem qualquer pretensão de reduzir a realidade histórica à
estrita realidade documental, a verdade é que tanto o facto de a proposta metodológica
aqui apresentada ter sido desenhada especificamente em função deste tipo de fontes,
como a consciência das muitas limitações impostas por um corpus documental que as
circunstâncias de produção e de transmissão fizeram estruturalmente descontínuo (no
que respeita à cobertura cronológica, espacial e de conteúdo), fazem da realidade
documental a coordenada mais importante no momento de definir os limites da amostra,
capaz mesmo de influenciar a marcação do tempo e espaço em estudo.
3.1. Periodização: séculos IX-XI
Se a entendermos como um reflexo da evolução global da sociedade, a realidade
documental pode, de facto, constituir o critério fundamental na definição da
periodização de um qualquer trabalho histórico. As conjunturas da produção
documental funcionam, desde logo, como um primeiro indicador da evolução social de
fundo, e em particular das estruturas de poder que estão na origem dessa produção.
Mantêm, por isso, uma relação que não é estritamente instrumental, antes substantiva,
com a realidade em estudo. E servem assim para definir não apenas os termos a quo e
ad quem de um trabalho mas inclusivamente uma periodização interna ao intervalo
global definido
15. No nosso caso, a relativa estabilidade da documentação utilizada, que
15 São precisamente as características formais das fontes estudadas (e, em particular, a presença ou
ausência de narratividade) que definem a periodização interna adoptada por D. Barthélemy no seu importante estudo sobre o Vendomôis (BARTHÉLEMY, 1993 – La société…: 19). De resto, este princípio fora já aplicado, por exemplo, na tese de doutoramento de F. López Alsina sobre Santiago de Compostela, cuja periodização (séculos IX a XI) corresponde ao primeiro de «tres tractos cronológicos» definidos pelo autor na história da cidade, que «son, a nuestro juicio, los marcos temporales más adecuados para el análisis histórico, toda vez que cada una de las etapas queda plenamente individualizada, no sólamente por el volumen y la tipología de los materiales documentales disponibles, sino también por la naturaleza de los problemas interpretativos y metodológicos que plantea su manejo. Igualmente, en cada una de esas tres etapas se operan dentro de la ciudad y en su entorno unos cambios económicos, sociales y políticos tan profundos, que el conjunto de las relaciones que se establece entre núcleo urbano y la sociedad que lo engloba alteran sustancialmente el papel, el valor y el significado específico de la ciudad misma» (LÓPEZ ALSINA, 1988 – La Ciudad de Santiago…: 14).
32
não muda substancialmente, nas suas características diplomáticas, ao longo do período
em análise, esvazia de sentido a definição de uma periodização interna, mas nem por
isso diminui a importância da realidade documental na definição das balizas
cronológicas da análise
16.
A escolha destas balizas tem certamente algo de arbitrária. O ponto de partida –
o último terço do século IX – justifica-se imediatamente, pela inexistência de
documentação diplomática anterior relativa ao território em estudo; decorre, portanto,
de uma mera circunstância, inerente ao processo de transmissão documental: o diploma
mais antigo que se conservou data de [873-910]
17. Embora a coincidência entre a
cronologia dos primeiros documentos conservados para esta região e a da sua integração
na esfera de influência da monarquia asturiana, por via do Repovoamento oficial, nos
deva fazer reconhecer que a sociedade autóctone deveria recorrer muito escassamente
ao escrito como instrumento de mediação das relações sociopolíticas e económicas, ao
contrário do que acontecia com os colonizadores vindos do Norte (como do Sul) da
Península. Há portanto um défice de produção que antecede a filtragem feita
posteriormente pela transmissão documental. Já o ponto de chegada – o final do século
XI – decorre de uma circunstância que só com alguma bondade poderíamos classificar
de metodológica: a impossibilidade de analisar, no tempo de que dispusemos para esta
investigação, a abundante documentação posterior a 1100 relativa ao território
bracarense.
Note-se, contudo, que a arbitrariedade do intervalo assim definido (c. 875-1100)
é menor do que poderá parecer à primeira vista. A própria história factual vem em apoio
desta periodização, se atentarmos na evolução das estruturas superiores de poder,
responsáveis pela articulação do território portucalense. O último terço do século IX
marca precisamente o início do processo de integração do actual NO português na
esfera de influência da monarquia asturiana, na sequência do Repovoamento iniciado
em 868 com a presúria do Porto. E o final do século XI, com a concessão do condado
portucalense a D. Henrique e D.ª Teresa (em 1095-1096, mais precisamente), marca a
16 Como escreve C. Reglero de la Fuente, a abrir um dos volumes a que deu origem a sua dissertação de
doutoramento sobre os Montes de Torozos, «las coordenadas temporales son difíciles de estabelecer por la lentitud de los cambios en estos campos [poblamiento, economia y organización], por lo que son las fuentes escritas, de momento las más importantes entre las disponibles, las que van a marcar los puntos de partida y llegada» (REGLERO DE LA FUENTE, 1994 – Espacio y Poder…: 9).
17 Embora a maior parte dos autores que se debruçaram sobre a data deste documento o considere não
anterior a 880, não nos parece haver razões suficientes para excluir liminarmente o intervalo [873-910] proposto por T. S. Soares (v. Apêndice I, doc. 4, observações sobre a data no campo Obs.).