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Academic year: 2021

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O que é Direito

Alternativo?

2a Edição, revisada e atualizada

HABITUS EDITORA Fone (48) 223.3363

E-mail: habitus@habituseditora.com.br

Apresentação

Os interesses dominantes em qualquer sociedade fabricam mecanismos que os preservam. Uma das formas adotadas é a que se conhece por instituição. Dentre elas, talvez a que tenha conseguido mais "sacralidade" seja a do Direito — o Direito e as estruturas de sua realização. Uma das características das instituições é a de obter de seus operadores uma colaboração ideologicamente envolvida. Um operador do Direito crê que nas suas lides busca-se e se oferece Justiça, esta mesma que garante que o mundo seja como ele é.

O movimento Direito Alternativo não é algo muito definível. Ele aglomera desde messiânicos deslumbrados até sofisticados críticos da sociedade. Mas se não é possível enquadrá-lo em conceito, não se lhe pode negar um inestimável valor. Seus adeptos, no Brasil, avisaram a 11

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todos, inclusive aos comportados componentes do mundo jurídico, que o Direito não é neutro, mas, pelo contrário, está comprometido com um determinado tipo de sociedade.

A ferocidade típica dos críticos do Direito Alternativo não é dirigida aos seus erros, que são muitos. É uma agressividade inconformada com o seu maior acerto: o mundo jurídico foi questionado, e a partir de suas entranhas. A sociedade ouviu falar e falou sobre uma instituição protegida pelo silêncio. O Direito e seus aparatos foram todos trazidos para as páginas mundanas dos jornais, discutidos como coisa comum, dessas tantas das quais alguns se servem para manter "modos" de produzir misérias, muitas sob a custódia de declarações jurídicas.

Este livro, sem fazer apologias, discute os significados e as razões de uma atitude alternativa a uma maneira conformada de lidar com as leis. Em última instância, explica o grito de independência dado por alguns diante de um sistema que se reproduz com o comprometimento dos juristas.

Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC e professor na Unisul

O QUE É DIREITO ALTERNATIVO?

Introdução

O Direito Alternativo, ou Movimento do Direito Alternativo, é um movimento de juristas, ou seja, de um grupo de pessoas com certos objetivos comuns que se organizaram, no Brasil, para produzir uma nova forma de ver e praticar o Direito, a partir do ano de 1990. De início eram apenas juízes de Direito, hoje são também advogados, promotores de Justiça, professores, estudantes, procuradores e, enfim, todos os profissionais vinculados à Ciência Jurídica.

Para se compreender o significado de Direito Alternativo, entendo necessário, como medida propedêutica, dizer exatamente o que "não" é Direito Alternativo. Isso torna-se imprescindível devido a uma estereotipagem efetuada sobre o movimento, pois, de forma dogmatizada, alguns críticos alegam ser uma corrente do Direito contra a lei, que defende a liberdade total

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do julgador, o que significaria um tremendo voluntarismo jurídico com capacidade de permitir a quebra do Estado de Direito e, pior, a possibilidade de se levar o Direito e, consequentemente, a própria sociedade, a uma prática fascista. Uma espécie de retorno ao go-verno dos homens sobre o gogo-verno sob leis. Não obstante inexistir: a) qualquer escrito alternativo defendendo estas ideias; e b) qualquer jurista alternativo apregoando a formação de uma sociedade anômica, com magistrados livres para julgarem de acordo com sua própria vontade, criou-se esse preconceito sobre o movimento a ponto de ensurdecer os juristas tradicionais que, simplesmente, repetem essas acusações sem qualquer fundamento teórico ou prático, de maneira totalmente dogmática e, pior, inverídica.

De uma forma introdutória pelo avesso, afirmo que o Direito Alternativo não é um movimento contra a lei, não defende a livre interpretação do juiz e, deveras importante, não despreza a teoria do Direito.

Por criticar o positivismo jurídico, alguns alternativos — e quase todos os seus críticos— confundem sua proposta, colocando-a como sendo contrária à estrutura legal vigente, fundada na existência de um sistema oficial e hierárquico de leis, para regular as relações sociais. Nesse ponto, tornam-se importantes os ensinamentos do pensador italiano Norberto Bobbio (O Positivismo

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Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Ícone, 1995, 239 p. Coleção Elementos de Direito). Ele distingue três aspectos, independentes entre si, do positivismo jurídico, quais sejam: a) o método, para o estudo do Direito; b) a teoria do Direito; e c) a ideologia do Direito.

A meu ver, as críticas do Direito Alternativo são direcionadas: 1) à teoria juspositiva, pois descreve a realidade de forma falsa; e 2) à ideologia juspositiva, pois interfere na realidade criando valores úteis às classes mais favorecidas em detrimento da grande maioria da população. Trata-se de uma critica fundada em um juízo axiológico, de valor. Quanto ao método, por ser o científico, é aceitável se não trabalhado dogmaticamente. O magistrado Amilton Buena de Carvalho, talvez o maior responsável pelo surgimento do Direito Alternativo Brasileiro, não deixa dúvidas sobre a necessidade de leis para resguardar a vida 'em sociedade, ao afirmar de maneira expressa: "A lei escrita é conquista da humanidade e não se vislumbra possibilidade de vida em sociedade sem normas (sejam elas escritas ou não)" (Direito Alternativo na Jurisprudência. São Paulo: Edi-tora Acadêmica, 1993, p. 8.)

Creio que alguns exemplos históricos concretos poderão aclarar, em definitivo, a polêmica. Até época bem recente, na África do Sul, perdurava o regime conhecido mundialmente por

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Apartheid. O mesmo era edificado sob um sistema legal e hierárquico, devidamente emanado do parlamento, produzido em conformidade com o sistema legal vigente, Havia leis, formalmente perfeitas, que proibiam, por ilustração, um ser humano branco de sentar em um banco de praça junto a outro ser humano negro. Tal regime político jurídico era combatido com vigor, dentro daquele país, pela grande maioria da população, com base em um direito popular, não oficial, mas essencialmente legítimo, e também por todas as nações ocidentais democráticas, sob as determinações da Organização das Nações Unidas - ONU, por afrontar os princípios gerais e universais do sistema democrático e do Direito moderno.

Nesse caso concreto, não se pode acusar os juristas sul-africanos, assim como os juristas da ONU e dos países ocidentais antiapartheid, de serem contra a lei, de defenderem o voluntarismo dos magistrados, devido ao fato de combaterem o regime legal e segregacionista daquele país, mantido por um sistema oficial de normas jurídicas. Isso porque ninguém combatia a existência, em si, de um sistema legal na África do Sul. Da mesma forma, não se defendia a liberdade total dos juízes de direito daquele país. Aliás, eles judiciavam em perfeita sintonia com o sistema racista. A resistência interna e a indignação mundial eram contra o conteúdo daquele 16

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sistema de normas e contra a interpretação a ele dada pelos magistrados brancos, pois acarretavam terríveis consequências sociais, inaceitáveis no mundo atual. Para não ficar no passado, posso ilustrar com outra situação, ainda em vigor. Nos países islâmicos, como resultado de uma interpretação (oficializada) feita do Alcorão, as mulheres estão submetidas a uma ordem legal (formalmente Perfeita) terrível. A palavra de um homem sempre prevalece contra a palavra de uma mulher.

Assim, basta um marido levar suas suspeitas de adultério a um tribunal, para sua esposa correr o risco de ser condenada à morte. O mesmo vale para um pai, que denuncia a filha solteira de manter relações sexuais. Os críticos desses sistemas jurídicos não são contra a lei em si, não apregoam a anomia, mas combatem a determinada estrutura jurídica, sua interpretação e aplicação.

Com o Direito Alternativo brasileiro ocorre uma similaridade. Não se está a lutar contra a existência de um sistema de normas escritas no Brasil, e não se defende a ausência de limites aos julgadores. Labuta-se contra o conteúdo de algumas leis, contra a falta de aplicação de outras e contra a interpretação reacionária efetuada pela grande maioria dos juristas brasileiros, em especial pelos juízes de Direito, desembargadores e ministros, aos textos legais. Isto porque esta realidade leva o arcabouço jurídico do Estado a ser-

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vir pequenas classes sociais, em detrimento de todo o provo, com suas raras exceções.

Vejamos outros dois exemplos claros. Todos os países civilizados e democráticos ocidentais indignam-se (talvez sem o mesmo fervor exercido contra o Apartheid) contra a concentração de renda e a concentração da propriedade da terra existentes no Brasil, e seus corolários: miséria, fome, mortalidade infantil, violência, criminalidade, etc.. No âmbito interno também há resistência. Esta triste e brutal realidade é permitida e protegida pelo arcabouço jurídico oficial brasileiro, sendo perfeitamente legal sob os aspectos formal e sistêmico. Lutar contra ela não significa buscar a destruição da estrutura legal ou do sistema jurídico do Brasil, mas a tentativa de modificação do seu conteúdo e interpretação, para alterar suas consequências sociais. Repete-se a liça outrora efetuada contra a escravatura (um sistema legal estatal) em nosso país. Isso é a essência do Direito Alternativo. Com o escopo de explicar o significado de Direito Alternativo, inicio com um breve repasse histórico. 18

Um pouco de história

Para uma ampla compreensão sobre o Direito Alternativo, é necessário começar com o golpe de Estado, levado a cabo no Brasil no ano de 1964. Com o assalto dos militares ao poder e à administração do país, a sociedade ficou submetida à violência, e uma de suas graves consequências foi o total tolhimento de qualquer reivindicação por "direitos", tanto individuais como coletivos. O cidadão brasileiro, nesse período, Perdeu, ou, pelo menos, teve diminuída sua capacidade de ir em juízo, exercitar seus direitos subjetivos, para pleitear direitos objetivos relacionados com sua condição social, econômica e laborai. Na mesma medida, todo tipo de associação, quando não proibida, encontrava sérios pro-blemas para se organizar, e isso não permitia pleitear direitos coletivamente, como ocorre hoje

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em dia, por exemplo, com o Movimento dos Sem-Terra, dos aposentados, dos sem-teto, das centrais sindicais, etc. O Poder Judiciário, não obstante ter sofrido algumas restrições pelas legislações de exceção, foi o menos atingido e o que menos reagiu às violências praticadas pelos golpistas. Suas atividades, durante todo esse período, foram normais. O Direito Positivo, a prática forense em geral e um número significante de juristas mantiveram suas funções sem grandes modificações, apesar da ditadura. Os magistrados, ressalvadas poucas exceções, não foram atingidos pela pródiga atividade legiferante dos militares; ao contrário, muitos se sentiram mais poderosos e mais "autoridades". Tanto é verdade que, por volta de 1975, em um Congresso Nacional dos Magistrados, o então juiz de Direito João Baptista Herkenhoff, hoje companheiro alternativo, em sessão plenária, propôs uma moção pedindo tão-só a volta do Estado de Direito (não incluiu a palavra Democrático) e foi derrotado de forma esmagadora, recebendo apoio apenas de três ou quatro congressistas. Os juízes, desembargadores e ministros presentes não quiseram a volta do Estado de Direito. Aqui surge então urna grande questão. Como pode ser normal a atividade do Poder Judiciário, incumbido de fazer Justiça, sob uma ditadura militar?

O QUE É DIREITO ALTERNATIVO?

Outro problema grave criado pela ditadura militar diz respeito ao ensino jurídico. Naqueles anos, as faculdades de Direito foram mais legalistas que outrora, e sua pedagogia cingia-se a transmitir os conteúdos (aparentes, não ideológicos) das normas em vigor, o pensamento de alguns doutrinadores e da jurisprudência, quase sempre, de extrema direita. O bom aluno era o decorador, o possuidor de boa memória, mesmo sendo incapaz de criar uma linha. Tentar problematizar a Ciência Jurídica, criticar seus dogmas era prática subversiva e poderia levar à Prisão, à tortura e, até mesmo, à morte. Nos dias atuais, no tocante à prática pedagógica e ao conteúdo ministrado, a realidade pouco mudou, ressalvadas apenas algumas faculdades com ensino mais crítico.

Com o fim da ditadura (1985), teve início o processo para a elaboração da nova Constituição Federal. A Associação dos Magistrados Brasileiros organizou várias reuniões regionais para confeccionar propostas ao Congresso Constituinte. Nessas reuniões, alguns juízes, em especial no Rio Grande do Sul, contrários ao regime militar, mas isolados e sós, identificaram-se com -outros colegas de profissão e concatenaram-se na defesa de temas comuns, como a reforma agrária, a democratização do Poder Judiciário, o acesso à Justiça, a distribuição de renda, entre outros.

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Também havia, como hoje há, uma forte insatisfação com a profissão e com a atitude do Poder Judiciário frente aos cruciais problemas nacionais. O Judiciário sempre comportou-se como uma instituição neutra, alheia aos problemas da população, sob o argumento de ser sua função tão-só aplicar a lei, ignorando as dificul-dades e conflitos existentes na sociedade e, até mesmo, o resultado dessa aplicação. Por corolário, a atividade de julgar foi burocratizada e circunscreveu-se, ressalvadas raras exceções, a resolver problemas setoriais da classe média e rica na área cível e a condenar pobres no âmbito criminal. Além disso, os julgadores deparavam-se, e se-guem deparando-se, com o anacronismo da legislação, com a rigidez processual e sua consequente ineficácia social da prestação jurisdicional e com o caráter meramente exegético da cultura jurídica dominante. O resultado é a formação de julgadores completamente vinculados à lei, ou melhor, a algumas leis eleitas corno prioritárias, e à jurisprudência dos tribunais. É curioso, mas os legalistas defendem e interpretam de forma extensiva as leis repressivas (Código Penal) e as protetoras de Direitos privados (Códigos Civil e Comercial), ao mesmo tempo que negam, não aplicam ou interpretam restritivamente as leis em vigor com conteúdo social ou as que estabelecem direitos coletivos 22

(Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código do Consumidor e Lei de Execuções Penais). Isto gera uma grande dissintonia entre o discurso jurídico hegemônico e a realidade socioeconômica do país.

Existiam, ainda, os descontentes com os benefícios usufruídos (as chamadas mordomias) pelos magistrados, em especial pelos membros dos tribunais, como uso de veículos oficiais para fins particulares, o nepotismo, as isenções fiscais, etc. Por derradeiro, talvez a mais angustiante das decepções, estava o descrédito popular do Poder Judiciário, resultando não só na perda do monopólio da função jurisdicional, pois vários conflitos jurídicos passaram a ser resolvidos fora de seu campo de atuação (as grandes corporações possuem mecanismos privados para resolver seus conflitos e a multidão de excluídos está submetida à lei do mais forte), mas também na própria desconfiguração da autoridade parti-cular do julgador.

Todo esse quadro criou uma tensão intrapoder. Do descontentamento surgiu uma práxis jurídica alternativa. Simultaneamente, a sociedade civil começou a organizar-se e a trazer ao Poder Judiciário reivindicações não resolvidas pelos outros Poderes; todas, até então, consideras políticas, econômicas ou sociais, não jurídicas. São exem-

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plos, as questões da terra (ocupações políticas), dos salários (grandes conflitos coletivos e greves - sistema econômico) e, inclusive, pedidos de indenizações por mortes ocasionadas pelo regime anterior (política). A população politizou o Judiciário, transformando as lides jurídicas de demandas só interindividuais em conflitos coletivos e classistas.

Incapaz de dar solução a esses pleitos, novamente, os magistrados, em sua ampla maioria, socorreram-se do argumento da neutralidade e da apoliticidade, e negaram-se a ingressar nessas polêmicas, para eles não jurídicas, ou juridicamente irrelevantes. Entretanto nem todos assumiram essa postura. Alguns magistrados abandonaram a atividade só formal, dita tecnodedutiva, e assumiram seu compromisso com o social, ou melhor dito, passaram a compreender a atividade jurisdicional como uma prática comprometida com as condições socioeconômicas da população. Passaram a dar importância aos resultados, aos efeitos reais de suas sentenças. Até porque a prática jurídica tida como apolítica, de pura técnica neutra, é, em realidade, uma práxis ideológica, vinculada ao poder hegemônico, comprometida, de igual forma, com determinadas condições socioeconômicas e políticas. A diferença destas formas jurídicas de agir está, no âmago, em quem se beneficia delas.

O QUE É DIREITO ALTERNATIVO?

Entre esses julgadores inovadores estavam os primeiros juízes alternativos, mas não só eles. Outros magistrados também se rebelaram contra o distanciamento e, até certo ponto, abandono do Poder Judiciário às questões sociais. Alguns agiram individualmente e embasados nas mais diversas ideologias (como o jusnaturalismo teológico, ou natural, e o marxismo) propugnavam a aplicação da Justiça como fator legitimador da atividade jurisdicional. Outros se organizaram em agrupamentos distintos, como foi o caso dos Juízes para a Democracia, movimento surgido em São Paulo, com inspiração nos juízes espanhóis denominados Jueces para la Democracia. O seguinte esquema permite uma visão global desse processo e do surgimento de correntes jurídicas no Direito brasileiro, pós-golpe.

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O primeiro passo para o início do Direito Alternativo foi a criação de um grupo de estudos, organizado por alguns juízes de Direito gaúchos, comuns e trabalhistas, após participarem de reuniões promovidas pela associação classista, com o propósito de levantar sugestões aos legisladores constituintes. Nesse mesmo tempo, juristas não magistrados, como Edmundo Lima de Arruda Júnior, Antônio Carlos Wolkmer, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Clèmerson Merlin Clève, entre outros, influenciados pelo movimento italiano do uso alternativo do Direito, já falavam na possibilidade de criação de um Direito Alternativo, isso por volta do ano de 1987. Não se pensava, até então, na criação de um movimento jurídico crítico, organizado em todo o Brasil.

O episódio histórico responsável pelo surgimento do Direito Alternativo ocorreu no dia 25 de outubro de 1990, quando o Jornal da Tarde, de São Paulo, veiculou um artigo redigido pelo jornalista Luiz Maklouf, com a manchete "JUIZES GAÚCHOS COLOCAM DIREITO ACIMA DA LEI". Essa reportagem teve o objetivo de ridicularizar e desmoralizar o grupo de magistrados do Rio Grande do Sul, que, até aquela data, reuniam-se para discutir a Ciência Jurídica sob uma visão crítica e debater formas alternativas de aplicação do Direito positivado, buscando alcançar fins

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sociais. O alvo central da matéria jornalística foi o juiz, hoje desembargador, Amilton Bueno de Carvalho, um dos responsáveis pela organização desses encontros. O efeito desejado pelo órgão de imprensa acabou invertido, pois não houve ridicularização ou desmoralização; ao contrário, a publicação acabou servindo como um grande veículo de propaganda, unindo vários magistrados descontentes com a postura tradicional do Judiciário, mas até aquele momento isolados e desorganizados. Muitos foram os juízes que escreveram artigos em jornais e revistas defendendo os colegas gaúchos. Eu mesmo procurei Amilton após esse fato, pessoa desconhecida antes do ocorrido.

Portanto é correto afirmar ter sido o mês de outubro de 1990 a data de início do Direito Alternativo ou, hoje mais consolidado, Movimento do Direito Alternativo Brasileiro. Isso porque Amilton e outros juristas críticos (Roberto Aguiar, José Geraldo de Souza, Miguel Baldez, Miguel Pressburger, José Reinaldo Lopes, Jackson Azevedo, Edmundo Lima de Arruda Júnior) receberam a notícia sobre a publicação da reportagem por telefone, quando estavam reunidos na casa da juíza do trabalho Ilce Marques de Carvalho, na cidade de Salvador, Bahia, participando do III Encontro Nacional da "Nova Escola Jurídica". Após a chamada telefônica, numa espécie de respos-

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ta, decidiu-se realizar o I Encontro Internacional de Direito Alternativo, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, nos dias 04 a 07 de setembro de 1991. Como ato preparativo para o congresso, foi publicado o livro Lições de Direito Alternativo 1. Desta forma, deu-se o nascimento do movimento.

O nome Direito Alternativo foi dado pela imprensa, pois os juízes gaúchos apontados no artigo do jornalista Luiz Maklouf assim foram denominados. Isso deve-se, acredito, à circunstância de Amilton ser professor, já naqueles dias, mesmo antes de surgir o movimento, da cadeira de Direito Alternativo, na Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul.

Sendo um movimento de crítica à ordem estabelecida e havendo, na época, ao final de uma ditadura militar, um forte espírito de reivindicação social e de luta por liberdade, o Direito Alternativo virou uma espécie de moda. Seus eventos foram de grande sucesso, sendo exemplo o I Encontro Internacional. Os organizadores previam a participação de aproximadamente quatrocentas pessoas. As inscrições, por falta de espaço físico, foram encerradas ao atingir o número de 1.200 participantes. O livro Lições de Direito Alternativo 1, com uma tiragem de dois mil exemplares, esgotou em um mês.

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O QUE É DIREITO ALTERNATIVO?

Naquele Encontro, foi criado o Instituto de Direito Alternativo - IDA, com sede na cidade de Florianópolis. Vários outros encontros e congressos foram realizados, como: I Encontro Internacional de Direito Alternativo do Trabalho, agosto de 1992, e II Encontro Internacional de Direito Alternativo, em setembro de 1993, ambos em Florianópolis; I Seminário de Direito Agrário Alternativo, Campinas, 1992; Seminário Nacional de Direito Alternativo, Rio de Janeiro, 1993. Novamente em Florianópolis, o II Encontro Internacional de Direito Alternativo do Trabalho e, em Blumenau, o I Congresso de Direito Civil Alternativo, ambos em 1994.

No exterior o tema foi debatido, sendo exemplo o curso Seguridad Jurídica y Crítica dei Derecho en Iberoamérica, ocorrido na Universidade Internacional de Andaluzia, na Sede Iberoamericana Santa Maria de la Rabida, Huelva, Andaluzia, Espanha, no final de 1994. Outro fator de extrema importância foi a participação de juristas alternativos em quase todos os eventos jurídicos efetuados desde o ano de 1991 até a presente data. Amilton Bueno de Carvalho profere palestra, literalmente, em quase todos os finais de semana. Além dele, vários outros juristas participam de encontros, congres-

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sos e seminários promovidos por estudantes, advogados, até mesmo magistrados e membros do Ministério Público.

Foram publicados vários livros sobre o assunto. Os primeiros pela editora Acadêmica, de São Paulo, como: Lições de Direito Alternativo 1 e Lições de Direito Alternativo 2, vários autores; Magistratura e Direito Alternativo e Direito Alternativo na Jurisprudência, de Amilton Bueno de Carvalho; Ministério Público e Direito Alternativo, de Antônio Alberto Machado e Marcelo Pedroso Goulart; Juiz Alternativo e Poder Judiciário, meu; Introdução à Sociologia Jurídica Alternativa, de Edmundo Lima de Arruda Jr.; Lições de Direito Alternativo do Trabalho, vários autores; Ensino Jurídico e Direito Alternativo, de Horácio Wanderlei Rodrigues; Lições de Direito Civil Alternativo, vários autores; Razão e Racionalidade Jurídica, vários autores, Lições Alternativas de Direito Processual, vários autores, e Revista de Direito Alternativo, volumes 1, 2 e 3. A editora Livraria do Advogado publicou os livros Motivações Ideológicas da Sentença e Princípios do Processo Civil, ambos do desembargador Rui Portanova; a editora Alfa-Ômega, a obra Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito, de Antônio Carlos Wolkmer; a editora Sérgio Antonio Fabris, o livro Justiça Alternativa de Elício de Cresci.

Só a editora Acadêmica publicou trinta e um mil e cinquenta exemplares, tendo vendido,

até o ano de 1995, quando encerrou suas atividades, um total de vinte e dois mil e duzentos e trinta livros, ou seja, no prazo de quatro anos, uma média de quatrocentos e sessenta e três obras vendidas por mês. Ressalto que esses livros foram comprados em decorrência de uma escolha livre dos leitores, pois não são manuais obrigatórios nas faculdades de Direito e nem são utilizados em concursos públicos.

Vários foram os artigos publicados em revistas e em jornais sobre Direito Alternativo, bem como algumas dissertações de mestrado e teses de doutorado foram elaboradas sobre o tema, não havendo, entretanto, uma catalogação, motivo pelo qual torna-se impossível citar a todos. Fora das fronteiras brasileiras alguns artigos foram publicados sobre o movimento. O professor argentino, radicado no México, Óscar Correas escreveu Alternatividad y derecho: el derecho alternativo frente a la teoria del derecho, texto publicado na revista Crítica Jurídica, México, e o livro Teoria del Derecho,

Barcelona, Maria

Jesus Bosch, S. L., 1995. Os professores Joaquín Herrera Flores e David Sanchez Rubio, ambos de Sevilha, Espanha, redigiram o trabalho Aproximación al derecho alternativo em Iberoamérica, publicado na revista Jueces para la Democracia, Madri. Carlos Maria Cárcova, jurista argentino, publicou o livro Teorias jurídicas alternativas, Centro Editor de América Latina,

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Buenos Aires. O professor David Sanchez Rubio publicou o livro Filosofia, Derecho y Liberación em América Latina, editora Desclée, Bilbao, 1999, quando estuda os autores alternativos brasileiros. Eu publiquei: Brasil: magistratura y Guerra de Posición, na revista Jueces para la Democracia, Madri e Dret Alternatiu, na revista catalã Demà, Periòdic per la Revolta. Um artigo de Amilton Bueno de Carvalho foi traduzido e publicado na revista Porta Voz, do Instituto Latino Americano de Serviços Alternativos - ILSA, Paris, sob o título Actuación de los jueces alternativos ganchos en ei proceso de postransición democrática: (o una nueva praxis en busca de una teoria). Além disso, foram criadas três disciplinas em universidades sobre Direito Alternativo, uma em graduação, como optativa, na Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL, Tubarão, hoje desativada, e duas em pós-graduação, uma em nível de mestrado, na Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC, Florianópolis, e outra em nível de especialização, na Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, Ijuí. Uma outra cadeira sobre Direito Alternativo já existia na Escola Superior da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul. No corrente ano ministrei uma cadeira optativa sobre Direito Alternativo, na Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC, Criciúma, sendo a mesmo escolhida livremente pelos alunos, através de

O QUE É DIREITO ALTERNATIVO? eleição, entre outras disciplinas oferecidas.

O Movimento do Direito Alternativo começou com juízes de Direito, em seguida alastrou-se por todas as áreas jurídicas, abrangendo promotores de justiça, advogados, professores e estudantes. Sua ascensão foi rápida e transformou-se em uma corrente organizada, talvez a maior, do pensamento jurídico crítico ao Direito tradicional, no Brasil.

Sem embargo, devo registrar que o modismo inicial acabou. Os últimos encontros e congressos tiveram um número de participantes bastante menor, e a publicação de livros e artigos foi reduzida. Nos anos de 1994 e 1995, houve um refluxo do movimento, a meu ver muito positivo, permitindo a seus membros uma espécie de parada para reflexão, pois a prática exercitada foi extraordinária, mas sua teoria era e ainda é embrionária e necessita ser aprofundada. No final do ano de 1995, entretanto, o movimento volta a ressurgir, de forma lenta. Foi publicado o livro GRAMSCI : Estado, Direito e Sociedade, de vários autores, com muitos artigos sobre Direito Alternativo. Eu defendi minha tese de doutorado na Universidade de Barcelona com o título: O

MOVIMENTO DE DIREITO ALTERNATIVO

BRASILEIRO (Contexto, história, posições e situação atual). Este estudo, após revisado, foi publicado, em 1996, pela editora Livraria do Advogado, com o título Introdução ao Direito Alterna-

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tivo Brasileiro. Já em 1997 foram publicadas as seguintes obras: Direito Alternativo em Movimento, de Amilton Bueno de Carvalho, pela editora Luam e Tempo do Direito Alternativo, de Cláudio Souto, pela editora Livraria do Advogado. Saíram, em 1998, as obras Direito e Século XXI: conflito e ordem na onda neoliberal pós-moderna, de Edmundo Lima de Arruda Júnior, e Teoria e Prática do Direito Alternativo, de Amilton Bueno de Carvalho, editora Síntese. Os membros do movimento passaram a publicar obras sobre outros temas, mas sempre mantendo a alternatividade como marco teórico. São exemplos Aplicação da Pena e Garantismo, de Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho, editora Lumen Juris, e Direito ao Direito, meu, pela editora JM. Recentemente, Amilton Bueno de Carvalho e seu filho Salo de Carvalho traduziram a obra do escritor argentino Diego J. Duquelesky Gomez, intitulada Entre a Lei e o Direito: uma contribuição à Teoria do Direito Alternativo, publicada pela editora Lumen Juris.

Nos dias 16 a 19 de outubro de 1996, aconteceu o III Encontro Internacional de Direito Alternativo, novamente na cidade de Florianópolis. O IDA realizou, em março e setembro de 1998, na mesma cidade, o I Congresso Internacional de Neo Socialismo e o IV Encontro Internacional de Direito Alternativo, e em junho de 1999 o II Congresso Internacional de Neo Socialismo, todos com a par-

ticipação de vários pensadores nacionais e estrangeiros. Em setembro de 1998 ocorreu o III Encontro Nacional de Direito Civil Alternativo, na cidade de Cáceres, MT, o que demonstra que a ideia alternativa já se espalhou por todos os rincões deste país.

O movimento, na atualidade mais maduro, passa por um instante histórico especialmente importante. Após um início eufórico, houve uma parada para reciclagem. Pouco a pouco foi retomando seu rumo e hoje volta à pauta do mundo jurídico brasileiro. Duas opções se abrem: 1) ou se firmará como uma corrente crítica do Direito, consolidando uma práxis jurídica alternativa e o início de uma nova teoria do Direito; 2) ou não terá êxito e ficará na história como uma moda, uma revolta momentânea que veio e passou. Apesar das constantes críticas e dos preconceitos criados contra o movimento, a primeira hipótese vem se consolidando. Ele ainda continua atuante, não obstante ter saído da vitrina do cotidiano forense. Seus membros sempre mantiveram suas atividades, e não foram poucas as conquistas democráticas ocorridas no dia-a-dia dos tribunais e fóruns de Justiça nos últimos seis anos. Fala-se em um grande congresso internacional em 2001 para sua reconstrução. Penso que nada deva ser reconstruído, pois o Direito Alternativo nunca morreu. Nestes 11 anos de existência, não se

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passou um único ano sem a presença dos alternativos em vários congressos, encontros, semanas jurídicas e demais atividades relacionadas com a Ciência Jurídica. O movimento não se institucionalizou, mas se transformou em uma forte ideia, presente na consciência dos juristas brasileiros e no cotidiano forense nacional. Usando uma expressão de Rui Portanova, se ele não alterou as relações de força e de poder no mundo do Direito, pelo menos infernizou e inferniza a vida das classes hegemônicas e de seus juristas.

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O amadurecimento

Na fase inicial, mais ou menos em seu primeiro ano de vida, o movimento do Direito Alternativo cingiu-se a duas posturas básicas no nível técnico/teórico: a) defesa contra as ferozes críticas efetuadas pelos juristas tradicionais, que, na maioria das vezes, acusaram os alternativos de práticas que não realizaram, de conceitos e teorias que não escreveram e não defenderam; e b) crítica ao sistema jurídico tradicional estabelecido.

Após a consolidação do movimento, com a realização dos primeiros congressos, algumas teorias surgiram e vários autores alternativos buscaram descrever, delimitar e explicar o conteúdo do movimento e sua prática.

Um dos primeiros conceitos surgidos foi o de Jurista Orgânico. Para os alternativos, os operadores jurídicos (juízes, promotores, advogados, professores, etc.), em sua maioria, estão comprometidos com as classes dominantes e laboram para manter a sociedade exatamente como se encontra, não querem mudar nada de estruturalmente importante, porquanto os privilégios que lhes favorecem estão estabelecidos e institucionalizados. Orgânico, portanto, é aquele jurista comprometido com a mudança social, que faz de seu labor uma luta constante em prol de transformações estruturais no seio da sociedade, buscando alterar as relações de poder nela

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existentes, com o escopo de combater a miséria, promover a liberdade e a igualdade material, fortalecendo uma possível democracia real.

Os juristas alternativos pretendem-se orgânicos, motivo pelo qual buscam, em suas atividades forenses cotidianas, criticar a ordem estabelecida, demonstrando o que entendem ser a ideologia latente do discurso oficial, com o propósito de desmitificá-lo, possibilitando as transformações pretendidas. Daí resulta uma de suas primeiras atividades, qual seja, a de destruir os mitos e os dogmas sustentadores da ideologia jurídica hegemônica, isto porque acredita-se que, uma vez desnudado o discurso jurídico oficial, ou seja, demonstrado para que e a quem realmente serve, qual a verdadeira intenção embutida em sua fala e em suas verdades, evitar-se-ão a adesão aerifica, a fé irrestrita, a obediência cega, e se construirão condições para câmbios.

É importante salientar que a prática alternativa deseja mudanças sociais, mas não pretende transformar a sociedade através do Direito (ou só através do Direito), ou através das instituições jurídicas. Toda transformação social só pode ser resultado da ação articulada de vários movimentos sociais progressistas (partidos políticos, sindicatos, movimentos organizados, etc.), entendidos como aqueles comprometidos com mudanças, em todas as instâncias sociais. Isso é pensamento unânime entre os alternativos. Acre-

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dita-se, entretanto, ser importante o mundo jurídico estar envolvido na liça pela construção de uma nova sociedade, ou uma nova forma de viver. Assim, desejam assumir seu papel orgânico na prática da alternatividade jurídica, pois entendem ser possível uma atividade progressistas na juridicidade, e que é necessária sua união às demais forças de esquerda existentes.

Com fulcro nessa ideia de organicidade, o magistrado Amilton Bueno de Carvalho, após criticar a lei como parcial e vinculada à classe que a produziu, não aceitando uma adesão dogmática à mesma, apregoando ser ela um referencial importante, mas sob constante crítica, criou o conceito Jusnaturalismo de Caminhada. Para ele, a lei deve ser a positivação de utopias. Essas devem representar a união da máxima cristã vida em abundância para todos, com o jusnaturalismo. Disso resultam Direitos Naturais definidos pelo homem, em seu momento histórico, como os melhores para a humanidade.

Sob essas primeiras teorizações, foram surgindo conceitos sobre Direito Alternativo. Amilton conceituou Direito Alternativo, em sentido amplo, como "atuação jurídica comprometida com a busca de vida com dignidade para todos, ambicionando emancipação popular com abertura de espaços democráticos, tornando-se instrumento de defesa/libertação contra a domi

O QUE É DIREITO ALTERNATIVO?

nação imposta." (CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e Direito Alternativo. São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, p. 89).

Afirmando dever o operar jurídico alternativo abandonar qualquer postura de neutralidade, assumindo, abertamente, um compromisso ético com as classes menos favorecidas, bem como serem os princípios gerais do Direito os critérios limites do julgador, o magistrado gaúcho elaborou mais alguns conceitos teóricos tentando delimitar a atuação alternativa. Em realidade, o movimento alternativo foi dividido em três atividades prático-teóricas, a saber:

1) Positivismo de Combate. Muitas reivindicações populares encontram-se erigidas à condição de lei. Como exemplo, cito a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código do Consumidor, a Lei n.º 8.009/90 (bens impenhoráveis), entre tantas outras. Essas normas, contudo, em contradição com todas as falácias positivistas, simplesmente não são cumpridas ou, quando são, sofrem violenta interpretação restritiva. Logo, não basta apenas tornar lei os anseios da população. Após a atividade legiferante, incumbe ao operador jurídico alternativo lutar pela efetivação (concretização) de todas essas legislações. Pode parecer paradoxal, mas uma das principais práticas alternativas é a luta pelo cumprimento da lei. A isso se chama

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positivismo de combate ou, como atualmente prefere Amilton, positivação combativa. Esse campo de atuação está localizado na esfera da legislação instituída, ou seja, legalmente produzida pelo Estado.

2) Uso alternativo do Direito. Ainda dentro do campo de atuação do Direito Positivo, do arcabouço jurídico do Estado. Partindo de uma visão restrita do movimento italiano antes estudado, os juristas latino-americanos, em especial os brasileiros, entendem por uso alternativo do Direito o processo hermenêutico pelo qual o interprete dá à norma legal um sentido diferente daquele pretendido pelo legislador de direita ou pela classe dominante. Assim, realiza-se uma exegese extensiva de todos os textos legais com cunho popular e uma interpretação restritiva da leis que privilegiam as classes mais favorecidas.

Adotando a Constituição Federal como norma condutora, em especial seus princípios, os juristas alternativos efetuam, sempre, uma interpretação social ou teleológica das leis, ou seja, objetivam dar um sentido à norma, bus-cando atender (ou favorecer) as classes menos privilegiadas, ou a maioria da sociedade civil.

3) Direito Alternativo em sentido estrito. Trata-se de uma visão do Direito sob a ótica do pluralismo jurídico. Significa o Direito existente

nas ruas, emergente da população, ainda não elevado à condição de lei oficial, ao contrário, com ela competindo. É o caso, por exemplo, do Movimento dos Sem-Terra, na luta por um Direito, tido como legítimo, de ter um solo para trabalhar e sobreviver, em conflito com o direito de propriedade formalmente estabelecido na legislação brasileira. Para diferenciar esse Direito paralelo, entendido como popular e efetivador de Justiça, do produzido pelos mafiosos ou narcotraficantes, pois também paralelo, colocam-se fatores diferenciadores ético/morais. Só é legítimo o Direito da rua que visa efetuar conquistas democráticas, para edificar uma sociedade mais igualitária e, consequentemente, mais justa. Esta postura, sob meu entender, possui graves difi-culdades epistemológicas, porquanto fundamenta uma teoria com valores subjetivos, até o momento usados com maestria pelos detentores do discurso jurídico oficial. Não há uma identidade ideológica no Direito Alternativo, não obstante existir uma concordância, especialmente em relação a algumas críticas ao positivismo jurídico e ao paradigma jurídico liberal/legal. Para comprovar isso, basta ver o pensamento do professor Edmundo Lima de Arruda Jr.. De formação marxista, ele critica alguns alternativos que exaltam a Justiça sobre a lei, por retornar ao jusnaturalismo. Não aceita,

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igualmente, a denominação "uso alternativo do Direito", pois entende que não há, nos países periféricos, um Estado de Direito mínimo; crê correto falar-se de uso do Direito, a ser praticado por todos os operadores jurídicos comprometidos com um projeto democrático, para ele sinônimo de socialismo.

O marxismo é considerado o referencial básico do movimento, mas não o é exclusivamente. Edmundo também divide, assim como Amilton, a atividade alternativa em três campos de atuação, a saber: a) no plano do instituído sonegado, ou seja, normas prevendo direitos que não são efetivados; b) no plano do instituído relido, tem-se o campo para a hermenêutica, mas não só do magistrado e, sim, de todos os juristas; e c) no plano do instituinte negado, de igual modo a partir do pensamento pluralista.

Por acreditar na inviabilidade, no atual contexto histórico, de uma revolução violenta, Edmundo entende ser objetivo do movimento pôr em prática a denominada revolução passiva (Antonio Gramsci), isso significando "ampliar os espaços de luta [inclusive na sociedade política], possibilitando a formação jurídica articulada dentro de um horizonte não fundado no ideário conservador burguês (a mobilidade a qualquer custo, a perspectiva individualista egoísta), mas comprometido com a construção de uma demo-

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cracia não meramente formal, mas real, com ampliação das conquistas populares e com a for-mulação/implementação de um novo projeto de sociedade, de base socialista." (ARRUDA JR., Edmundo Lima de. Reflexões sobre um ensino jurídico alternativo, in CARVALHO, Amilton Bueno de. (Org.) Revista de Direito Alternativo, n.º 1, São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, p. 60-61).

Para ele, o alternativismo é uma opção política, e sua crítica ao Direito dominante não pode ser entendida como uma crítica ao Direito em si, mas contra um determinado Direito, ditado por um minoria em nome da maioria. Efetua, ainda, uma análise da sociedade dividida em classes, não aceitando um Poder Judiciário supra classes. Por conseguinte, os alternativos assumem uma postura em favor das classes trabalhadoras e subalternas. O pluralismo jurídico é uma corrente muito forte no interior do alternativismo, possuindo vários defensores. Os mais destacados são Miguel Pressburger e seu Direito Insurgente, José Geraldo de Souza Júnior, continuados de Roberto Lyra Filho, e coordenador do projeto O Direito Achado na Rua, desenvolvido na Universidade de Brasília, e o professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Antônio Carlos Wolkmer. Esses juristas não aceitam que a produção do Direito seja uma exclusividade, um monopólio

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do Estado.

Pressburger vê o Direito Alternativo como o outro Direito, o não-estatal. Como advogado prático, entende ser função do jurista orgânico demonstrar à população as desigualdades sociais escondidas sob a igualdade legal, bem como organizá-la, para melhor defender seus direitos, ou seja, o Direito paralelo, insurgente.

José Geraldo, pessoa vinculada aos Movimentos Sociais Organizados, vê, nestes sujeitos coletivos de Direito, um potencial capaz de criar espaços políticos de atuação e, inclusive, novas categorias jurídicas com possibilidade de estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa.

O autor que mais aprofunda o tema do pluralismo jurídico é Antônio Carlos Wolkmer. Ele entende que o Estado liberal-burguês-capitalista produz um modelo de cultura (padrões de conduta da vida humana) demarcado pelos paradigmas do idealismo individualista, racionalismo liberal e formalismo positivista. Estes paradigmas estão em crise e não mais atendem às necessidades das sociedades dos países capitalistas periféricos. Wolkmer crê, outrossim, na necessidade de novos referenciais de conduta, hoje emergentes. Por isto, vê os movimentos e as práticas sociais existentes na sociedade civil como fontes geradoras do pluralismo jurídico.

O professor catarinense sugere uma mudança de paradigma no Direito, para construir um novo fundamento de validade, e propõe um Direito Comunitário, não identificado com o monismo jurídico, quer dizer, com o Estado como único agente produtor de normas jurídicas. As fontes do Direito seriam várias, incluindo as lutas e conquistas da sociedade e dos mo-vimentos populares. Nem toda manifestação normativa fora do Estado (Ku-Klux-Klan e Esquadrões da Morte, por ilustração), para ele, é legítima. Há, por corolário, a necessidade de alguns requisitos morais para legitimar o Direito Alternativo não-estatal. São exemplos: o respeito à vida humana, a eticidade e o valor justo. O Direito Estatal deverá estar subordinado ao Direito Comunitário, sendo este o alternativo.

A própria sociedade, em um determinado momento histórico, conceituará o significado de Direito Justo. Para Wolkmer, a sociedade civil, os movimentos sociais, hoje submetidos à exploração e à dominação, estão se transformando em novas fontes de Direito, criando uma juridicidade paralela ao Estado, isto é, um Direito Comunitário, que transpassará o próprio Direito Positivo vigente. Esse novo Direito, segundo sua ótica, é construído tendo como base os seguintes valores morais: a solidariedade, o respeito à vida humana, a alteridade, a participação coletiva, a éti-

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ca, a justiça e o bem-comum. Como demonstrarei ao final, estes conceitos ou valores morais são fórmulas vazias (usando expressão de Pietro Barcellona), além de serem correntes na Teoria Jurídica hoje hegemônica, e, em realidade, nada dizem de concreto, pois ética, justiça e bem-comum foram palavras muitas bem adaptadas nas bocas de muitos ditadores.

Diverso do pluralismo, outros juristas alternativos, como Clèmerson Merlin Clève, entendem ser função do Direito Alternativo, no presente momento histórico, a defesa incondicional da Constituição. Ele fala em uma nova dogmática jurídica alternativa, capaz de dar aos juristas, com base na Constituição, um método científico objetivo, para a prática da alternatividade e sua vinculação com o social.

Existem os críticos da própria expressão Direito Alternativo. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho vem afirmando, nos últimos congressos, ser equivocada essa denominação, pois não se está a lutar por outro Direito e, sim, pela transformação do Direito Positivo vigente. O movimento cinge-se ao instituído.

Por fim, há os que entendem que o Direito Alternativo, necessariamente, deve ser subversivo (não no sentido pejorativo, delituoso, hoje corrente) do Direito hegemônico, ou seja, deve buscar subverter a hegemonia da normatividade

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estatal, para tomar seu lugar. O professor Óscar Correas assim pensa. Para ele, o Direito Alternativo é um sistema normativo cuja obediência obriga à prática de condutas ou omissões tipificadas como delitos ou formas menores de faltas (contravenções, por exemplo), pelo sistema jurídico hegemônico. O Direito Alternativo, assevera, é uma forma jurídica, ou prática jurídica ligada à disputa do poder, mas não via guerra civil. Busca chegar ao poder debilitando a hegemonia do grupo social que o detém, para tomar seu lugar.

Conforme demonstrei, várias são as concepções sobre Direito Alternativo. Entre os pontos em comum mais importantes, estão: a) a ideia de modificar a sociedade, para acabar com a miséria de grande parte da população; b) a não aceitação do liberalismo como modelo político e do capitalismo como modelo econômico definitivos. Deseja-se superá-los.

Fase atual

O movimento encontra-se perplexo. Aliás, como ocorre com a esquerda em todo o mundo: sabe muito bem contra o que e contra quem luta, mas não possui uma proposta alternativa de sociedade. O momento é de busca de uma teoria jurídica alternativa realmente capaz de dar conta do fenômeno jurídico, permitindo sua

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integração com todos os demais fenômenos sociais, isso com o escopo de transformar a sociedade, erigindo condições e relações de vida entre os seres humanos, nas quais não haja lugar para a miséria, para a fome, para e exploração e para a dominação. Este é um velho e repetitivo discurso utópico, mas até hoje não elevado à condição de realidade. Assim, enquanto isso, os al-ternativos continuam laborando com as armas disponíveis, que, na atualidade, são as mencionadas anteriormente.

Há de ter-se presente que para o Direito Alternativo, buscando amparo na psicanálise, o sentido de progresso na civilização não corresponde à teoria do sentido da História. Ao contrário, põe em discussão a própria ideia de um "sentido" para a História. O progresso não está no futuro, no grande dia que chegará. O progresso é agora, em movimento circular de reforma do laço social, de destruição das ficções mestras, liberando o ser humano e inventando e reinventando as instituições sociais necessárias à manutenção da civilização.

A perplexidade acaba se diluindo no agir do momento, mesmo sem uma teoria acabada sobre uma sociedade ideal (ela seria absoluta e incompatível com o ser humano), até porque presente e futuro são indissociáveis no desenvolvimento histórico.

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