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O Sentimento de Solidão. Nosso Mundo Adulto e Outros Ensaios

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O Sentimento de Solidão

Nosso Mundo Adulto e Outros Ensaios Coleção Psicologia Psicanalítica

Direção de

JAYME SALOMÃO

Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro.

Tradução, Prefácio e Nogas de PAULO DIAS CORREA

Membro-Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicoterapia de Grupo. Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicaná- lise do Rio de Janeiro. Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro

IMAGO EDITORA LTDA.

PREFÂCIO À EDIÇÃO INGLESA

Este livro constitui o primeiro volume da obra de Melanie Klein patrocinado pela Fundação Melanie Klein na condição de seus Testamenteiros Literários.

Na presente coletânea encontram-se dois artigos que não tinham sido anteriormente publicados, "O Sentimento de Solidão" e "Certas Reflexões Sobre 'A Oréstia' de Esquilo" Esses dois artigos combina- dos a "Nosso Mundo Adulto e suas Raízes na Infân- cia" e "Sobre a Identificação" reúnem os escritos mais recentes de Melanie Klein a respeito de assun- tos diferentes do trabalho estritamente clínico. Ela vinha dedicando mais sua atenção em seus últimos anos a tais aplicações de maior amplitude de seu co- nhecimento psicanalítico.

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Apenas um dos artigos, "O Sentimento de

Solidão", requereu uma preparação editorial bem mais extensa. Fora apresentado em sua forma pri- meira e abreviada ao 21.° Congresso Internacional de Psicanálise de Copenhague em 1959. Um esboço qua- se definitivo da presente versão havia sido concluí- do pouco antes do falecimento da Sr a. Klein, mas sua redação final estava por ser feita.

A Fundação deseja agradecer a0 Dr. Eric Bren- nan e à srta. Judith Fay pela tarefa de compilar o indice Analítico-Remissivo e também, à Tavistock Publications Limited pela permissão de reimprimir

"Sobre A Identificação" de New Directions In Psy- cho-Analysls e "Nosso Mundo Adulto e Suas Raizes na Infância", de HumaB Ue1atioHs.

ELLIOTT JAQUES BETTY JOSEPH

NOTAS À GUISA DE INTRODUÇÃO E PREFÁCIO O aparecimento da tradução em português desse último volume da obra publicada de Melanie Klein vinha tardando.

Quase todos os demais - e montam a cerca de oito livros - são do conhecimento do leitor interessado. Os que se dedi- cam à psicologia, à pedagogia e à educação, os que trabalham com a psicologia de crianças especialmente, com as psicote- rapias e a psicoterapia de grupo em geral -- a analítica e as outras -- além dos sociólogos, antropólogos ou psicanalistas, tanto de crianças como de adultos, por certo já os leram e os conhecem, ou os estudam no original e nas traduções para os diferentes idiomas.

A característica principal, no entanto, do presente volume, que traz o título de O Sentimento de Solidão, agora entregue

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pela Imago Editora Ltda., principalmente, ao leitor brasileiro de média e grande cultura, é a de reunir quatro estudos analí- ticos da criadora da chamada "escola inglesa" de psicanálise - três dos quais permaneciam inéditos e cuja importância e significação eu não conseguiria exagerar.

Como em geral se reconhece, Melanie Klein foi uma inova- dora em matéria de técnica e, consequentemente, de teoria psicanalíticas. Contribuiu deveras para o desenvolvimento da psicanálise. Tal fato lhe custou, como seria de se prever, sérios riscos para a carreira de psicanalista, além de inúmeros con- tratempos de ordem pessoal. O impacto causado na "Sociedade Britânica de Psicanálise" quando aí começou a apresentar e a defender suas ideias marcou época e, ao final de cerca de quinze anos, acaba por cindir internamente a Sociedade.

As polémicas suscitadas e os ataques que eram ferrenhos, principalmente por parte da ala mais conservadora da psica- nálise vigente, valeram-lhe inimizades sem conta e muitos e rancorosos adversários de prestígio no mundo psicanalitico de então. O período decisivo ocorreu por volta dos anos de 1943- 1944, conforme rezam as quatro séries das "Controversíal Series 0/ Discussions" da British Psycho-Analytical Society, e a ex- tensa bibliografia a respeito (Glover, 1945).

Por fim - os ânimos já arrefecidos e, praticamente, sere- nada a contenda -- torna-se patente que a famosa entidade, passando a abrigar e a manter, lado a lado, três correntes dis- tintas e bem delimitadas de psicanalistas, por pouco não ex- cluíra definitivamente de seus quadros, a corajosa pesquisado- ra das ideias do inventor da Psicanálise.

Em escala menor, na verdade, reeditava~se processo idên- tico ao ocorrido cerca de meio século antes com o próprio Freud, quando também começou a revelar ao mundo suas des- cobertas. Com êle, segundo nos afiança Ernest Jones (1953), em documentada e exaustiva biografia do criador da Psicaná-

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lise, a situação fora mais crítica: por alguns anos, bem longos, teve que sustentar, sozinho, suas ideias e achados.

Ao tempo de Melanie Klein, no entanto, em Londres, já

havia ela encontrado adeptos e seguidores, e o mesmo Jones chegou a exercer, pessoalmente, grande influência em seu fa- vor - circunstância e fato, aliás, que Melanie Klein nunca esqueceu nem deixou de proclamar.

Contribuir, por conseguinte, ainda que seja em plano cien- tífico e clínico, riem sempre chega a despertar acolhimento ou simpatia. Pior ainda se as achegas fornecidas implicam certa ampliação de conceitos ou aprofundamento consequente de anteriores descobertas já, por si, tidas como arrojadas. Melanie Klein o que fêz - hoje se reconhece - foi apenas estender o conceito do inconsciente, dentro da acepção dinâmica em que Freud o descrevera e apresentou. Suas ilações e achados, po- rém, foram considerados perigosos ou quase heréticos, e se afiguraram como praticamente insuportáveis para o Establish- men¡ de então.

Freud também, nos começos da Psicanálise, teve que pros- seguir apesar de tudo e de todos, e de submeter-se às conclu- sões inelutáveis de seu trabalho clínico. Diante delas não po- dia recuar. Foi, por vezes, é verdade, compelido a reformular sua exposição não só da teoria como da técnica, por amor à verdade ê observância dos princípios já estabelecidos de pes- quisa psicanalítica. Assim, Melanie Klein, nos começos de seu trabalho analítico, igualmente em razão de seus achados não via meios de se permitir recuos ou desfalecimentos diante da evidência de suas descobertas.

Impelida, pela observação clínica, a perscrutar analitica- mente durante meses e anos consecutivos, e a acompanhar e a assistir as vicissitudes e as raízes da relação da criancinha com a mãe, e com o seio materno, viu-se colocada diante da importância fundamental dessa primeira relação bzpessoal.

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Daí por diante, torna-se para ela muito difícil negar se-

melhantes achados. Era inevitável que a tónica de sua análise recaísse predominantemente, sobre tal situação bipessoal. Vê que esta, a princípio, se caracteriza meramente pela relação

"bôca-seio". A seguir, é que pode falar de relação "mãe-filho".

Compreende logo e descreve as diferenças entre o relaciona- mento da mãe com o filho, e o da mãe com a filha.

Ainda com base nas várias manifestações da relação pri- mitiva bipessoal, vai reencontrando como reedições delas, os múltiplos aspectos da relação triangular clássica -- "filho-mãe- pai" que Freud mui leal e penosamente desvendara em si pró- prio e descrevera em seus pacientes adultos.

De vários modos, revela Melanie Klein iterativamente em crianças e adultos, neuróticos e psicóticos, a situação edipiana plena e completa. A ênfase era posta, entanto, na relação bi- pessoal ("bôca-seio", "filho-mãe"), indicando com isto a des- coberta do que chamou (em 1928) de "estágios precoces do conflito edipiano", ou seja, as indefectíveis raízes e universais precursores da situação plenamente desenvolvida, em suas ma- nifestações mais completas, clássica e amplamente descritas por Freud.

Aconteceu que, o brinquedo das crianças, antes praticamen- te destituído de significação, ou não passando de mera libe- ração de energia ainda sem finalidade - como na teoria da

"surplus energy" de Franz Alexander (1948) - para Melanie Klein, ao contrário, em suas análises de crianças muito peque- nas, foi visto como encerrando uma mensagem carregada de ansiedade e acompanhada de mecanismos específicos de defesa.

Ela demonstra clinicamente (de 1923 em diante) poder com- preender tal situação e interpreta-la dentro da técnica psica- nalítica preconizada por Freud, com pequenas adaptações in- dispensáveis à condição da criança, e de cujas interpretações se seguiam "the release of quantitíes of anxiety" (1929, pág.

225 de "Contributions to Psycho-Análysís")

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A técnica que desenvolveu, a sua play-analysis, por neces- sitar prosseguir como .psicanalista o tratamento de criancinhas que apenas iniciavam a fazer uso da palavra, precisou eviden- temente basear-se na atividade lúdica. Esta, ela pôde ver e demonstrar, além de constituir integralmente significativa ma- nifestação da fantasia inconsciente da criança de tenra idade, era absolutamente necessária ao desenvolvimento de sua vida mental florescente.

Logrou reconhecer assim, com clareza, que o brinquedo re- presentava uma forma definida da cerebração infantil (ou pri- mitiva). Deduziu, por conseguinte, que a criança enquanto brin- ca está como que proto-pensanão. A expressão pode não ser adequada, nem será, por certo, a que Melanie Klein empregou.

Melhor diria, talvez, que a criancinha estava simplesmente sendo: sendo como é; sendo como consegue ser, mas comuni- cando-se, e passível, portanto, segundo a técnica da play-

therapy, de ser entendida e interpretada analiticamente, e apre- sentar assim "resolvíng anã liberatíng effect" (1927, pág. 190 de "Contributions" citada).

Com o brinquedo, a criança está pois simbolizando algo.

Possivelmente criando imagens concretas e condensadas de proto-idéias (ou de fantasias inconscientes). Melanie Klein

admitiu e comprovou que, verbalizadas ou designadas por meio de palavras, tais fantasias podiam vir a ser conscíentizaãas.

Isto, caso alguém que, sabendo entendê-las (mãe ou psicana- lista), se dispusesse a lhes fornecer o significado - ou as in- terpretações, como em geral se diz em análise.

Melanie Klein não alcançou isto sozinha e de imediato

(de 1919 a 1945). Partiu -- além de sua análise pessoal é evi- dente - das descobertas de Freud e seu ensinamento de que os instintos, constituindo-se na fonte e origem de toda energia vital, encontram sua representação psíquica (simbólica por conseguinte), na fantasia inconsciente que é, por sua vez, como estamos repetidamente acentuando, raiz e primeiro mó-

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vel do pensamento verbal.

Melanie Klein viu também, no desenvolvimento do apare- lho psíquico, o quanto o poder de formar símbolos (1929) im- porta e tem significação relevante no aparecimento e evolu- ção da capacidade de personificação, da dramatização e de transformação do pensamento primitivo ou concreto (também chamado pensamento esquizofrénico) e na sua passagem para o pensamento verbal: por exemplo, as inibições do "impulso epistemofílico" (da curiosidade) responsabilizando-se direta- mente pelos distúrbios da fala ou da aprendizagem em geral.

A capacidade de formar símbolos, portanto reconhecida

como de importância fundamental, tanto para o aparecimento e uso da palavra quanto como um meio de designação do con- creto pelo abstrato é recurso precioso de comunicação com o mundo externo e com o mundo interno; é ainda fator essen- cial no surgimento da capacidade de abstração e generaliza- ção; na de particularização; na possibilidade de discernimen- to, na de cálculo e de previsão, exatamente por dispensar a presença do objeto concreto do qual, naquele momento, se pre- cisaria para pensar ou trabalhar com êle.

Tal aptidão funciona também como agente do poder de síntese dos objetos, antes defensivamente cindidos pelo ego em seus aspectos bom e mau; atua no aumento da capaci- dade de integração do ego - a instância psíquica das habili- dades humanas, do poder de adequação e das realizações - propiciando a utilização de suas várias funções e Virtualidades.

Por fim, não seria admissível deixar de mencionar - se

bem que de passagem também - o que em geral se considera o ponto alto do desenvolvimento da formação de símbolos - o tema fascinante do mistério da criação artística, ainda por desvendar. Mormente dado o fato de que o presente volu- me de Melanie Klein consta, em mais de metade, de dois alen- tados estudos de Psicanálise Aplicada, em que ela analisa e

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acompanha, interpretando em detalhe, como se estivesse no consultório, duas importantes obras literárias. Uma, a trilogia

"Orestia", considerada obra prima de Esquilo e do teatro mun- dial, poetização trágica de episódios que vinham ao encontro das inquietações da antiguidade clássica relativos ao Destino ou ao fatalismo; e outra, moderna, o romance de Julien Green - "If I Were You" (Se Eu Fosse Você), em que se pode ver também a trágica emolduração, num círculo fechado de cri- mes, tal como na trilogia mencionada, uma luta contra a ti- rania da "moira", o quinhão de cada um neste mundo.

Ele o mistério -- ultimamente se encara, de modo su-

mário, à luz das descobertas e achados da "escola inglesa" de psicanálise como um fenómeno de reparação à figura da mãe.

O artista, já parecendo ter elaborado suas fantasias primitivas de destruí-la, através dos seus sentimentos de inveja e com- petição, agora -- suficientemente motivado em sua capacidade de admirar a mãe boa e reconhecer-lhe as qualidades - tenta, com sua criatividade, devolver a ela algo gerado por êle sob o ponto-de-vista estético universal, como se desse modo sim- bólico, estivesse alcançando uma solução de ser mãe e che- gando a criar vida ou uma representação de vida.

Ainda com o recurso da play-technique, Melanie Klein vislumbrou na mente infantil, a existência de angustiante e às vezes desesperado esforço de se defender, principalmente contra determinados temores primitivos: a perseguição, a per- da, a separação, o luto - e suas consequências imediatas - a depressão e a melancolia ou o recurso ao suicídio. Seguindo Freud, Klein vinculou-os à força conflitante dos impulsos ins- tintivos de amor e de ódio inerentes ao ser humano. Percebeu que estavam na raiz do relacionamento inicial bipessoal, bebê- mãe, e eram elementos constantes do que descrevera sob a rubrica de "estágios precoces do conflito edipiano".

Tais temores ou ansiedades - persecutórias e depressivas como as denominou - encontram-se descritas e apresentadas

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de modo claro e direto no primeiro ensaio do presente volume, a conferência que prenunciou perante os membros dos Depar- tamentos de Antropologia Social e de Estudos Sociais da Uni- versidade de Manchester, em Maio de 1959, e se referem, desde o raiar da consciência na criancinha (ou seja, desde os seus três primeiros meses de idade em diante) ao resultado daque- les conflitos internos específicos, no relacionamento inicial com a figura da mãe ou substituta, e depois com o mundo, mas decorrentes sempre da polaridade e concomitância de fan- tasias amorosas e de fantasias agressivas.

Convém ressaltar que, a relação bipessoal, alvo de tantas e tamanhas críticas, constitui hoje relacionamento tido como raiz, base e modelo para todos os demais que se seguiram na infância e continuarão a vir no futuro. A figura do pai, que logo passou a fazer parte da cena, adquiriu realmente grande importância tanto para o desenvolvimento emocional e men- tal da menina como do menino. Com a descoberta da existên- cia do pai, a situação triangular ganha na verdade substância, concretamente, e se apresenta com toda a sua pujança, dos três aos cinco anos de idade.

A situação edipiana - seja a precoce ou a completa - am- bas de significação e alcance insofismáveis, têm em análise suas vicissitudes consectárias à chegada ou a descoberta da existência também de irmãos e irmãs, ou de familiares e agre- gados ao círculo familiar de um modo geral.

A suposta heresia daquele tempo, os chamados estágios precoces do que seria a situação triangular continuaram para dentro do anteriormente descrito complexo edipiano pleno e serviram de modelo, com o grupo familiar, também para o relacionamento com o grupo social mais amplo.

O modo de convivência ou a maneira de ser com esse gru- po social, inconscientemente já repete e revive, em suas gran- des linhas, o tipo de relação afetiva do que se conhece como o "grupo interno". Este, segundo se comprova em clínica psica-

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nalítica ou de psicoterapia analítica de grupo, não passa de uma réplica do "grupo externo", com a diferença única e im- portante, de que a realidade psíquica o colore à maneira de seus instintos conforme as pressões ou predominância interna inconsciente dos sentimentos de amor ou de ódio inerentes ao indivíduo que estabelece o relacionamento.

O chamado "grupo interno" continuará pois a constar e se compor e a se formar das imagens e figuras encontradas, desde o início da vida, e consideradas boas ou más, exatamente em acordo com a instintividade particular que cada ser huma- no apresenta de senti-las. E desse modo particular que elas - imagens e figuras externas -- existem "concretamente"

dentro do indivíduo, se assim posso me expressar, isto é, no reino de sua fantasia, revelando dinamismo bastante para de- terminar o comportamento da criança ou da parte infantil do adulto. Isso continuará assim, sempre, caso não sobrevenha alguma influência suficientemente esclarecedora do padrão es- tereotipado.

Esse grupo interno foi considerado mais operante em fun- ção do grupo familiar, como Melanie Klein o demonstrou, à luz do relacionamento inicial primitivo com o seio e a mãe.

Seria hoje difícil negar, sob esse ângulo de pensamento, que daí, desses estágios precoces, como o leitor verá pelo volume inteiro, da leitura de cada página e cada linha dos quatro ensaios - partem os fundamentos e a compreensão das varia- das e numerosas manifestações dos temores, das ansiedades e fobias, das inibições, das idiossincrasias, das rivalidades, dos amores e ódios, crimes e renúncias, ou das culpas e repara- ções, com seus múltiplos e complexos mecanismos de defesa ou dispositivos de proteção.

A escolha de cônjuge ou amante, a de profissão, a voca- ção, os chamamentos de natureza vária e recôndita - se bem que às vezes aparentemente inexplicáveis ou em direções an- tes insuspeitadas -- qualquer nossa maneira de ser enfim, ou

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de outrem, nosso proceder e atitudes existenciais, não obs- tante as influências modificadoras benfazejas ou não, dificil- mente podem deixar de revelar as raízes, ou fundamentos ou- tros que não aqueles primitivos e formadores iniciais de nossa caracterologia ou tipo de personalidade. Ao que tudo indica, este foi gradativamente plasmado a partir de nossa entrada no mundo e em função dos relacionamentos mais precoces que com êle estabelecemos.

Se a importância que os especialistas, mormente os da

chamada "escola inglesa" de psicanálise atribuem aos fatôres inconscientes e instintivos na formação da personalidade, no desenvolvimento das capacidades e aptidões, no poder de rea- lizar e nas atitudes diante da vida - fôr considerada faná-

tica, hiperbólica ou mesmo subjugada a ideias preconcebidas, ou a lucubrações apenas de mentes enfermas e tendentes ao misticismo e à fabulação, a leitura dos quatro ensaios de que se compõe este opulento volume 0 Sentimento de Solidão é que poderá dizer.

Daqueles, um - o último da coletânea - era ainda esboço quando a morte colheu Melanie Klein, em Setembro de 1960.

Permaneceria inédito se, o alcance e a importância da comu- nicação não encontrasse redação definitiva, na colaboração meticulosa e atenta de dois de seus mais constantes e ínti- mos seguidores - a Dra. Betty Joseph e Mr. Elliott Jaques.

Os que o lêem hoje, e os que conheceram, antes, a Sra.

Klein e com ela privaram ou lhe puderam acompanhar e pe- netrar a linha de pensamento, consideram o estudo contribui- ção de plena maturidade e de detida reflexão.

Ao redigir o esboço, Melanie Klein, em idade provecta, já nele havia consubstanciado uma experiência "ida e vivida" de cerca de quatro fecundas décadas de clínica, de observação e pesquisa, caldeada ao calor dos acontecimentos de sua vida particular, sofrida desde o início da carreira profissional em

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Berlim e temperada pelas alegrias de ver o emprego e a acei- tação de sua técnica e principais teorias.

Se foi perda não havê-lo terminado, a colaboração dedi- cada dos seguidores que lhe completaram a forma expositiva fala em favor da unidade de vistas da escola, quanto à experi- ência de trabalho com a teoria e a técnica, e o vigor e pro- fundidade de sua compreensão analítica.

Para Klein, expressamente nesse ensaio, o sentimento de

solidão nunca desaparece no ser humano; mas não tem o sen- tido de estar só. Revela, antes, uma implicação de se sentir ma! acampanhaão, sob o ponto-de-vista interno. Resulta da fantasia da presença de figura ou figuras perseguidoras dentro.

Ele é, entanto, que, no comum, impele a humanidade à

busca inconsciente da imagem boa do começo da vida (a mãe ou substituta), na relação com o mundo, e, aliando-se à espe- rança de reencontrá-la, favorece e propicia a capacidade de estar só externamente, sem se sentir muito em solidão.

Paulo Días Corrêa Capítulo Primeiro

NOSSO MUNDO ADULIO E SUAS RAIZES NA INFANCIA

A0 considerar do ponto de vista psicanalítico 0 com- portamento das pessoas no seu ambiente social, é necessário investigar como o indivíduo se desen- volve desde a infância até a maturidade. Um grupo - seja pequeno ou grande - consta de indivíduos num relacionamento recíproco; e, portanto, a com- preensão da personalidade é o fundamento para com- preender a vida social. A exploração do desenvolvi- mento do indivíduo conduz o psicanalista de volta, através de estádios graduais, à infância; e por conse-

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guinte, eu primeiro me estenderei sobre as tendên- cias fundamentais da criança de tenra idade.

Os vários sinais de dificuldades da criancinha - os estados de raiva, falta de interesse pelos que a circundam, de incapacidade de suportar a frus- tração e as expressões fugazes de tristeza - não encontravam anteriormente qualquer explicação, a não ser em termos de fatôres físicos. Pois até às grandes descobertas de Freud havia uma tendência geral a considerar a infância como um período de felicidade perfeita, e os vários distúrbios revelados pelas crianças não eram levados a sério. Os achados 1

de Freud vieram, no curso do tempo, nos ajudar a compreender a complexidade das emoções da crian- ça e revelaram que elas passam por conflitos graves.

Isso conduziu a uma melhor compreensão (insight) da mente infantil e sua conexão com os processos mentais do adulto.

A técnica do brinquedo que desenvolvi na psica- nálise de criancinhas e outros progressos na técnica resultante de meu trabalho me permitiu tirar novas conclusões sobre os estágios mais primitivos da in- fância e as camadas mais profundas do inconsciente.

Tal visão (insight) retrospectiva baseia-se em um dos achados cruciais de Freud, a situação de transferên- cia, isto é, no fato de que numa psicanálise o pacien- te restabelece em relação ao psicanalista situações e emoções primitivas - e eu acrescentaria, mesmo muito primitivas. Portanto, o relacionamento com o psicanalista às vezes apresenta, mesmo em adultos, características muito infantis, tais como a superde- pendência e a necessidade de ser orientado, junta- mente com uma desconfiança inteiramente irracio-

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nal. Faz parte da técnica do psicanalista reconhecer o passado nessas manifestações. Sabemos que Freud descobriu primeiro o complexo de Edipo no adulto e foi capaz de Ver suas origens na infância. Visto que tive a boa sorte de analisar crianças de idade muito tenra, pude conseguir uma compreensão (insight) ainda mais acurada de sua vida mental, o que me conduziu a uma compreensão da vida men- tal do bebé. Pude desse modo, pela atenção meti- culosa que dispensei à transferência na técnica do brinquedo, chegar a um entendimento mais profundo das formas pelas quais - na criança e posteriormente também no adulto - a vida mental é influenciada 2

pelas emoções mais primitivas e fantasias incons- cientes. E desse ângulo que descreverei, com o em- prego do menor número possível de termos técnicos, o que concluí sobre a vida emocional da criancinha.

Formulei a hipótese de que o recém-nasci do ex- perimenta, tanto no processo do nascer como no ajus- tamento à situação pós-natal, uma ansiedade de na- tureza persecutória. Isto se pode explicar pelo fato de que a criança de tenra idade, sem ser capaz de apreendê-lo intelectualmente, sente de forma in- consciente todos os desconfortos como se fossem in- fligidos sobre ela por forças hostis. Se logo lhe fôr proporcionado conforto - em particular calor, a maneira carinhosa com que é segurada e a gratifi- cação de ser alimentada - isto dá origem a emoções mais felizes. Ela sente que tal conforto lhe advém de forças boas e, creio eu, torna possível a primeira relação amorosa da criança com uma pessoa ou, como o diria o psicanalista, com um objeto. Minha hipótese é que a criancinha possui uma percepção inconscien- te inata da existência da mãe. Sabemos que animais

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de pouca idade de imediato se voltam para a mãe e buscam nela seu alimento. O animal humano não é diferente nesse sentido, e esse conhecimento ins- tintivo constitui a base da relação primária da crian- cinha com a mãe. Podemos também observar que numa idade de apenas algumas semanas o bebé já olha o rosto da mãe, reconhece-lhe os passos, o to- que de suas mãos, o cheiro e o tato de seu seio ou da mamadeira que ela lhe dá, tudo isso sugerindo que certa relação, conquanto primitiva, foi estabeleci- da com a mãe.

Ela não só espera alimento da mãe como tam- bém deseja seu amor e compreensão. Nos estágios 3

mais primitivos, o amor e a compreensão se expres- sam através do cuidado da mãe com o bebé e con- duz a certa unicidade inconsciente que se baseia no fato de o inconsciente da mãe e da criança estar em íntima relação mútua. A sensação que a criancinha experimenta de estar sendo compreendida fundamen- ta o primeiro relacionamento básico de sua vida - a relação com a mãe. Ao mesmo tempo, a frustração, o mal-estar e a dor, percebidos, segundo sugeri, como perseguição, entram também em seus sentimentos a respeito da mãe, porque nos primeiros meses ela representa para a criança o todo do mundo externo;

desse modo, tanto o que é bom como o que é mau chegam-lhe à mente, provindo da mãe, e isto leva a uma atitude dúplice em relação a ela mesmo sob as melhores condições possíveis.

Tanto a capacidade de amar como o sentido de

perseguição têm raízes profundas nos processos men- tais mais primitivos da criancinha. Primeiramente eles se dirigem para a mãe. Os impulsos destrutivos

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e seus concomitantes - tais como o ressentimento por frustração, o ódio que ela desperta, a incapaci- dade para se reconciliar, e a inveja do objeto todo poderoso, a mãe, de quem dependem sua vida e seu bem-estar - essas várias emoções despertam ansie- dade persecutória na criancinha. Mwtatis mutandis, tais emoções estão ainda operantes na vida ulterior.

Os impulsos destrutivos, por conseguinte, em rela- ção a qualquer pessoa estão sempre fadados a dar origem ao sentimento de que essa pessoa também se tornará hostil e retaliadora.

A agressividade inata inegavelmente aumentará pelas circunstâncias externas desfavoráveis e, in- versamente, será mitigada pelo amor e compreensão 4

que a criancinha receber; e tais fatôres continuam operantes durante todo 0 desenvolvimento. Embora a importância de circunstâncias externas, no entanto, seja agora reconhecida em escala crescente, a im- portância dos fatôres internos ainda é subestimada.

Os impulsos destrutivos, que variam de indivíduo para indivíduo, constituem parte integrante da vida mental, mesmo em circunstâncias favoráveis, e, por- tanto, temos que considerar o desenvolvimento da criança e as atitudes dos adultos como resultantes da interação entre as influências internas e exter- nas. A luta entre o amor e o ódio - agora que nos- sa capacidade de compreender os bebes aumentou - pode, até certo ponto, ser reconhecida através de cuidadosa observação. Alguns bebes experimentam intenso ressentimento por qualquer frustração e de- monstram isso pela incapacidade de aceitar a grati- ñcação quando ela se segue à privação. Diria que tais crianças têm uma agressividade inata e voraci- dade mais intensas do que aquelas criancinhas cujas

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explosões ocasionais de raiva logo se dissipam. Se um bebé indicar que é capaz de aceitar alimento e amor, isto significa que pode superar o ressentimento pela frustração com relativa rapidez e, quando a gratificação for novamente proporcionada, readqui- rir seus sentimentos de amor.

Antes de prosseguir na minha descrição do de- senvolvimento da criança, julgo que devo definir brevemente do ponto de vista psicanalítico, os ter- mos eu e ego. O ego, de acordo com Freud, é a parte organizada do eu, constantemente influenciada por impulsos instintivos, porém mantendo-os sob contro- le pela repressão; além disso, dirige todas as ativi- dades e estabelece e mantém a relação com o mundo 5

externo. O eu é empregado para abranger toda a per- sonalidade, que inclui não só o ego como a vida ins- tintiva que Freud denominou de id.

Meu trabalho levou-me a supor que o ego exis- te e opera a partir do nascimento e que, além das ñinções mencionadas acima, tem a importante tarefa de defender-se contra a ansiedade estimulada pelo conflito interno e pelas influências de fora. Ademais, dá início a numerosos processos dos quais, menciona- rei primeiro, a introjeção e a projeção. Ao processo não menos importante de divisão, isto é, de dividir impulsos e objetos, voltarei mais tarde.

Devemos a Freud e a Abraham a grande desco- berta de que a introjeção e a projeção são de gran- de importância tanto em distúrbios mentais graves como na vida mental normal. Tenho aqui que aban- donar mesmo a tentativa de descrever como especial- mente Freud, partindo do estudo da psicose maníaco-

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depressiva, chegou à^descoberta da introjeção sub- jacente ao superego. Ele também explanou a relação vital entre o superego e o ego e o id. Com o decorrer do tempo, esses conceitos básicos sofreram um de- senvolvimento ulterior. Como vim a reconhecer, à luz de meu trabalho psicanalítico com crianças, a in- trojeção e a projeção funcionam desde o começo

da vida pospus, tcàl como uma das atividades mais pri- mitivas do ego, que a meu ver opera a partir do nas- cimento. Considerada sob esse ângulo, a introjeção significa que o mundo exterior, seu impacto, as si- tuações que a criancinha vive, e os objetos que ela encontra, são experimentados não só como externos mas são recebidos dentro do eu e se tornam parte da vida interna dela. A vida interna não pode ser avalia- da mesmo no adulto sem esses acréscimos à perso- 6

nalidade que se originam da introjeção contínua. A projeção, que ocorre simultaneamente, implica que existe uma capacidade na criança de atribuir a ou- tras pessoas em torno dela sentimentos de Várias es- pécies, predominantemente o amor e o ódio.

Cheguei à conclusão de que o amor e o ódio para com a mãe estão vinculados à capacidade da crian- ça em idade muito tenra de projetar todas as suas emoções sobre ela, tornando-a assim tanto um obje- to bom como perigoso. A introjeção e a projeção, no entanto, embora tenham raízes na infância, não são apenas processos infantis. Constituem parte das fantasias da criança, que segundo me parece tam- bém operam desde o começo e ajudam a plasmar sua impressão do ambiente; e pela introjeção este quadro modificado do mundo externo influencia o que se passa em sua mente. Desse modo, estrutura- se um mundo interno que é, em parte, um reflexo do

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externo. Isto é, o duplo processo de introjeção e de projeção contribui para a interação entre os fatôres externos e internos. Esta interação continua através de cada estágio da Vida. Da mesma forma, a introje- ção e a projeção prosseguem pela vida afora e se mo- dificam no curso da maturação; mas nunca perdem sua importância na relação do indivíduo para com o mundo qúe o cerca. Mesmo no adulto, portanto, o jul- gamentovde realidade jamais está inteiramente isen- to da influência de seu mundo interno.

Já sugeri que sob um único ângulo os processos de projeção e introjeção que Venho descrevendo têm que ser considerados como sias inconscientes.

Como minha amiga, a falecida Susan Isaacs, o disse em seu trabalho sobre o tema (1), "A fantasia é (no primeiro caso) o corolário mental, a representação 7

psíquica do instinto. Não há impulso, nem pressão ou resposta instintiva que se não experimentem como fantasia inconsciente... Uma fantasia representa o conteúdo específico das necessidades ou sentimentos (por exemplo, desejos, temores, ansiedades, triunfos, amor ou pesar) que dominam a mente no momento".

As fantasias inconscientes não são o mesmo que devaneios (embora a eles estejam vinculadas), mas uma atividade da mente que ocorre em níveis incons- cientes profundos e acompanha todo impulso experi- mentado pela criancinha. Por exemplo, um bebe com fome pode temporariamente lidar com sua fome alu- cinando a satisfação de lhe darem o seio, com todos os prazeres que normalmente tira dele, tais como o gosto do leite, o cálido tato do seio, e de estar nos braços da mãe e ser por ela amado. A fantasia in- consciente, porém, também assume a forma oposta

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de sentir-se privado e perseguido pelo seio que se re- cusa a proporcionar-lhe esta satisfação. As fantasias - tornando-se mais elaboradas e referentes a uma variedade maior de objetos e situações - continuam durante todo o desenvolvimento e acompanham to- das as atividades; nunca deixam de desempenhar grande papel na vida mental. A influência da fanta- sia inconsciente sobre a arte, sobre o trabalho cientí- ñco e sobre as atividades da vida cotidiana não po- de ser superestimada.

Ja mencionei que a mãe é introjetada e que isto e' um fator fundamental do desenvolvimento. A meu ver, as relações de objeto começam quase desde o nascimento. A mãe nos seus bons aspectos - aman- do, ajudando e alimentando a criança - é o primeiro objeto born que a criança inclui em seu mundo inte- rior. Sua capacidade de conseguir isto, gostaria de 8

sugerir, é até certo ponto, inata. Para que 0 objeto bom se converta suficientemente numa parte do eu depende, em certa medida, da ansiedade persecutória - e, consequentemente, o ressentimento - não de- ve ser muito intenso; ao mesmo tempo, uma atitude amorosa por parte da mãe muito contribui para o êxito deste processo. Se a criança coloca no seu mundo interno a mãe como um objeto bom e mere- cedor de confiança, um elemento de vigor é adiciona- do ao ego. Presumo, pois, que o ego se desenvolve, em grande parte, em torno desse objeto bom, e a identificação com as boas características da mãe torna-se a base para ulteriores identificações benfa- zejas. A identificação com o objeto bom revela-se ex- ternamente no copiar a criança de tenra idade as ati- vidades e atitudes da mãe; isto se pode observar no seu brinquedo e amiúde também em seu comporta-

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mento com crianças mais jovens. Uma intensa iden- tificação com a mãe boa torna mais fácil para a crian- ça identificar-se também com um pai bom e ulterior- mente com outras figuras amigas. Como resultado, seu mundo interno passa a conter predominante- mente objetos e sentimentos bons, e a criancinha sente que esses objetos bons correspondem ao seu amor. Tudo isto contribui para uma personalidade estável, e torna possível estender uma simpatia e sen- timentos amistosos para outras pessoas. E eviden- te que uma boa relação dos genitores entre si e com a criança, e uma atmosfera doméstica feliz, desem- penham um papel vital no êxito deste processo.

Por melhores que sejam, no entanto, os sentimen- tos da criança em relação a ambos os genitores, a agressividade e o ódio também permanecem operan- tes. Uma expressão disso é a rivalidade com o pai 9

que resulta dos desejos do menino em relação à mãe e todas as fantasias a eles ligadas. Semelhante ri- validade encontra expressão no complexo de Edipo, que nitidamente se observa nas crianças de três, quatro, ou cinco anos de idade. Este complexo exis- te, todavia, muito mais cedo e tem raízes nas pri- meiras suspeitas do bebe de que o pai lhe tome o amor e a atenção da mãe. Há grandes diferenças no complexo de Edipo da menina e do menino, que eu caracterizarei apenas dizendo que, enquanto o me- nino em seu desenvolvimento genital retorna ao seu objeto original, a mãe, e por conseguinte procura objetos femininos com consequente ciúme do pai e dos homens em geral, a menina, até certo ponto, tem que se afastar da mãe e encontrar o objeto de seus desejos no pai e ulteriormente em outros homens.

Afirmei isso, contudo, de forma bastante simplifica-

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da, porque o menino se sente também atraído pelo pai e com êle se identifica; e portanto um elemento de homossexualidade entra no desenvolvimento nor- mal. O mesmo se aplica à menina, para quem a re- lação com a mãe, e com as mulheres em geral, nunca perde a importância. O complexo de Edipo não é assim, apenas uma questão de sentimentos de ódio e de rivalidade em relação a um genitor e de amor pelo outro, mas os sentimentos de amor e a sensação de culpa também existem em conexão com o geni- tor rival. Muitas emoções conflitantes centralizam-se, portanto, sobre o complexo de Edipo.

Passamos agora novamente à projeção. Quando alguém projeta a si ou parte de seus impulsos e sen- timentos sobre outra pessoa, realiza uma identifica- ção com essa pessoa, embora tal identificação seja diferente da que se origina da introjeção. Se um obje- 10

to, no entanto, é aceito dentro do eu (é introjetado), a ênfase está na aquisição de algumas das caracte- rísticas desse objeto e no ser influenciado por elas.

Por outro lado, ao colocar uma parte de si em ou- tra pessoa (por projeção), a identificação se baseia em atribuir ao outro algumas características. A pro- jeção tem inúmeras repercussões. Inclinamo-nos a atribuir a outrem - em certo sentido, a colocar neles algumas de nossas emoções e pensamentos; e é óbvio que dependerá de quão equilibrados ou per- seguidos estivermos se a natureza dessa projeção vai ser amistosa ou hostil. Atribuindo parte de nossos sentimentos à outra pessoa, compreendemos seus sen- timentos, suas necessidades e satisfações; em outra palavras, estamos nos colocando na pele do outro.

Há pessoas que vão tão longe nessa direção que se perdem inteiramente dentro de outrem e se tornam

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incapazes de discernimento objetivo. Ao mesmo tem- po, a introjeção excessiva põe em perigo a força do ego porque êle fica inteiramente dominado pelo obje- to introjetado. Se a projeção for predominantemente hostil, a verdadeira empatia e compreensão dos ou- tros é prejudicada. A característica da projeção é, portanto, de grande importância em nossas relações com os outros. Se a interação entre a introjeção e a projeção não fôr dominada pela hostilidade ou super- dependência, e fôr bem equilibrada, o mundo interno se enriquecerá e melhoram as relações com o mundo externo.

Referi-me anteriormente à tendência do ego in- fantil para dividir os impulsos e os objetos e consi- dero isto como outra das atividades primárias do ego.

Esta tendência a dividir resulta do fato de que fal- ta coerência bastante ao ego primitivo. Mas - aqui 11

de novo tenho que referir-me aos meus próprios conceitos - a ansiedade persecutória reforça a ne- cessidade de manter separado o objeto amado do per- rigoso e, portanto, de afastar o amor do ódio. E

que a autopreservação da criança em tenra idade depende de sua confiança numa mãe boa./Ao dividir os dois aspectos e ao apegar-se ao bom, ela preserva sua crença num objeto bom e em sua capacidade de ama-lo; e esta é uma condição essencial para se manter viva. Isso porque, sem pelo menos certa par- cela desse sentimento, ela ficaria exposta a um mun- do inteiramente hostil que ela teme venha a destruí- la. Esse mundo hostil também seria estruturado den- tro dela. Há, como sabemos, bebes em quem falta vi- talidade e que não se mantêm vivos, provavelmente porque não foram capazes de desenvolver sua rela- ção de confiança numa mãe boa. Em contraste, há

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outros bebes que passam por grandes dificuldades mas que manifestam suficiente vitalidade para utili- zar a ajuda e o alimento oferecidos pela mãe. Sei de uma criancinha que passou por um parto pro- longado e difícil e sofreu lesões no processo, mas quando posta ao seio, sugou-o avidamente. O mes- mo tem sido relatado acerca de bebés que sofreram operações graves logo após o nascimento. Outras criancinhas em tais circunstâncias não conseguem sobreviver porque apresentam dificuldades em acei- tar alimento e amor, o que implica que não puderam estabelecer a confiança e o amor na mãe.

O processo de divisão muda de forma e conteúdo à medida que o desenvolvimento prossegue, mas sob certos aspectos êle nunca é inteiramente abandona- do. A meu Ver, os impulsos destrutivos onipotentes, a ansiedade persecutória e a divisão predominam nos 12

três a quatro primeiros meses de vida. Descrevi essa combinação de mecanismos e ansiedades como a po- sição esquizoparanóide, que em casos extremos cons- titui a base da paranóia e da esquizofrenia. Os con- comitantes dos sentimentos de destruição nesse está- gio primitivo são de grande importância e separo deles a voracidade e a inveja como fatôres muito per- turbadores, ein primeiro lugar na relação com a mãe e ulteriormente com os outros membros da família, em verdade por toda a vida.

A voracidade varia consideravelmente de uma criancinha para outra. Há bebés que nunca se satis- fazem porque sua voracidade ultrapassa tudo que eles possam receber. A voracidade se acompanha do impulso de esvaziar o seio da mãe e de explorar todas as fontes de satisfação sem consideração por

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quem quer que seja. A criancinha muito voraz pode se satisfazer, por alguns instantes, com o que rece- be; Inas tão logo desaparece a gratificação, ela fica insatisfeita e é impelida a explorar, primeiro a mãe, e a seguir todos da família que lhe possam propor- cionar atenção, alimento ou outra gratificação. Não resta dúvida que a ansiedade aumenta a voracidade - a ansiedade de se sentir privado, de se sentir rou- bado e de não se sentir suficientemente bom para ser amado. A criancinha que se mostra tão voraz por ainor e atenção sente-se também insegura quanto a sua capacidade de amar; e todas essas ansiedades reforçam a voracidade. Tal situação permanece imu- tável ein seus fundamentos, tanto na voracidade da criança de mais idade como na do adulto.

No tocante à inveja, não é fácil explicar como a mãe que alimenta a criancinha e dela cuida possa também ser um objeto de inveja. Mas sempre que 13

tem fome ou se sente abandonada, a frustração da criança leva-a à fantasia de que o leite e o amor lhe são deliberadamente' negados, ou retidos pela mãe para se beneficiar comreles. Tais suspeitas cons- tituem a base da inveja. E inerente ao sentimento de inveja não só o desejo de posse, mas também um forte impulso de destruir o prazer que o outro obtém com o objeto desejado - impulso que tende a des- truir o objeto. Se a inveja é muito intensa, sua natu- reza destruidora perturba a relação com a mãe assim como ulteriormente com os outros; o que quer dizer também que nada pode ser plenamente desfrutado de vez que o objeto do desejo já foi destruído pela inveja. Além disso, se a inveja fôr intensa, a bonda- de não pode ser assimilada, nem fazer parte da vida interna, e nem assim dar origem à gratidão. Em con-

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traste, a capacidade de desfrutar plenamente o que foi recebido e a experiência de gratidão para com a pessoa que a proporciona influenciam intensamente tanto o caráter quanto as relações com outras pes- soas. Não é em vão que ao dar graças antes das re- feições, os cristãos empregam as palavras, "Pelo que estamos prestes a receber, que o Senhor nos fa- ça verdadeiramente agradecidos". Essas palavras im- plicam no pedido daquela qualidade - a gratidão - que traz a felicidade e liberta do ressentimento e da inveja. Ouvi uma meninazinha dizer que amava a mãe mais que a todas as outras pessoas, pois que faria se a mãe não a fizesse nascer e não a houvesse alimentado? Esse acentuado sentimento de gratidão estava vinculado a sua capacidade para o prazer e revelava-se em seu caráter e suas relações com ou- tras pessoas, particularmente em sua generosidade e consideração. Através da vida semelhante capacidade 14

para o prazer e a gratidão tornam possíveis inúme- ros interesses e alegrias. \

No desenvolvimento normal, com a crescente in- tegração do ego, os processos de divisão diminuem e a capacidade aumentada de compreender a reali- dade externa, e até certa medida de conciliar os im- pulsos contraditórios da criancinha, conduzem tam- bém a uma síntese maior dos aspectos bons e maus do objeto. Isto significa que as pessoas podem ser amadas apesar de suas limitações e que o mundo não é visto apenas em termos de preto e branco.

O superego - a parte do ego que critica e con- trola os impulsos perigosos, e que Freud primeira- mente situou, em torno do quinto ano de vida - vigora, de acordo com os meus pontos de vista, des-

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de muito antes. Admito a hipótese de que no quinto ou sexto mês de vida o bebé começa a temer o dano que seus impulsos destrutivos e sua voracidade cau- sam, ou podem ter causado, a seus objetos amados.

É que êle ainda não distingue seus desejos e impulsos dos efeitos que causam. Ele experimenta sentimen- tos de culpa e a necessidade de preservar tais objetos e de repará-los pelo dano causado. A ansiedade que agora experimenta é de natureza predominantemen- te depressiva; e as emoções que a acompanham, bem domo as defesas desenvolvidas contra elas, eu as reconheço como parte do desenvolvimento normal, e as denominei de "posição depressiva". Os senti- mentos de culpa, que ocasionalmente surgem em to- dos nós, têm raízes bastante profundas na infância e a tendência para a reparação desempenham um im- portante papel em nossas sublimações e relações de objeto.

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Quando observamos criancinhas por esse ângulo, podemos ver que às vezes, sem qualquer causa exter- na particular, elas parecem deprimidas. Nesse está- gio tentam agradar às pessoas em torno de todas as formas ao seu alcance - por meio de sorrisos, de gestos travessos, mesmo de tentativas de alimentar a mãe pondo-lhe na boca colher com alimento. Ao mesmo tempo, este e' também um período em que as inibições a alimentos e os pesadelos muitas vezes so- brevêm, e todos esses sintomas chegam ao máximo por ocasião do desmame. Com crianças maiores, a necessidade de lidar com sentimentos de culpa ex- pressa-se mais claramente; varias atividades constru- tivas se empregam para essa finalidade e na relação com os genitores ou irmãos há uma necessidade ex- cessiva de agradar e de ser prestimosa, o que ex- pressa não somente amor como também a necessi-

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dade de reparar.

Freud postulou o processo de elaboração como parte essencial do método psicanalítico. Em poucas palavras, isso significa permitir ao paciente experi- mentar suas emoções, ansiedades e situações passa- das repetidas vezes tanto em relação ao analista como às diferentes pessoas e situações na vida presente e passada do paciente. Há, contudo, uma elaboração que ocorre em certa medida no desenvolvimento in- dividual normal. A adaptação à realidade externa aumenta e com ela a criancinha atinge um quadro menos fantástico do mundo que a cerca. A experiên- cia repetida da mãe que vai e volta para ela torna sua ausência menos assustadora e portanto sua des- confiança de que ela a abandone diminui. Dessa forma, ela gradualmente elabora seus temores primi- tivos e consegue certo equilíbrio de seus impulsos e 16

emoções conflitantes. A ansiedade depressiva nesse estágio predomina e diminui a ansiedade persecutó- ria. Acredito que muitas manifestações aparente- mente estranhas, fobias inexplicáveis e idiossincra- sias que se podem observar em crianças em tenra idade são, a um tempo indicações de elaboração da posição depressiva e da maneira de elaborá-la. Se os sentimentos de culpa que surgem na criança não são excessivos, a necessidade de reparar e outros processos que fazem parte do crescimento trarão alívio. As ansiedades depressivas e persecutórias, no entanto, nunca são inteiramente superadas; po- dem retornar temporariamente sob pressão interna ou externa, embora uma pessoa relativamente nor- mal possa lidar com esse reaparecimento e readqui- rir seu equilíbrio. Se, contudo, a tensão fôr demasia- do grande, o desenvolvimento de uma personalida-

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de forte e bem equilibrada poderá ser impedido.

Tendo tratado - embora eu tema que de ma- neira bastante simplificada - das ansiedades para- nóides e depressivas e suas implicações, gostaria de considerar a influência dos processos por mim descri- tos sobre as relações sociais. Falei da introjeção do mundo externo e sugeri que esse processo continua através da vida. Sempre que podemos admirar e amar alguém - ou odiar e desprezar alguém - também

ficamos com algo deles em nós e nossas atitudes mais profundas são plasmadas por semelhantes ex- periências. No primeiro caso nos enriquece, e se tor- na um fundamento para preciosas lembranças; no outro, algumas vezes sentimos que o mundo externo está destruído para nós e o mundo interno fica, por- tanto, empobrecido.

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Posso aqui apenas mencionar a importância das experiências favoráveis e desfavoráveis concretas a que a criancinha está, desde o início, sujeita, pri- meiro por parte dos genitores, e ulteriormente por parte de outrem. As experiências externas são de suprema importância durante a vida. Contudo, mui- to depende, mesmo na criancinha, das maneiras pelas quais ela vai interpretar e assimilar as influências ex- ternas; e isto por sua vez depende em grande parte da intensidade com que atuam os impulsos destru- tivos e as ansiedades persecutórias e depressivas.

Da mesma forma, nossas experiências adultas são influenciadas por nossas atitudes básicas, que ou nos ajudam a lidar melhor com os infortúnios ou, se estivermos demasiadamente dominados pela suspeita e pela autocompaixão, transformam mesmo pequenas desilusões em desastres.

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As descobertas de Freud sobre a infância au-

mentaram a compreensão dos problemas da educa- ção, mas tais conhecimentos têm sido amiúde mal interpretados. Embora seja verdade que uma edu- cação demasiado rigorosa reforça a tendência da criança para a repressão, temos que nos recordar de que demasiada indulgência pode ser quase tão da- nosa para a criança quanto a extrema restrição. A chamada "auto-afirmação plena" pode apresentar grandes desvantagens tanto para os genitores como para a criança. Enquanto que em épocas pregressas a criança era amiúde a vítima da atitude rigorosa dos genitores, estes podem agora tornar-se as víti- mas de seus filhos. E um chiste conhecido de que havia um homem que nunca comeu peito de galinha;

é que comiam-no os genitores quando êle era crian- ça, e quando cresceu dava-o aos filhos. Ao lidar com 18

nossos ñlhos, é essencial manter um equilíbrio entre excessiva e escassa severidade. Fazer vista grossa a certas pequenas travessuras constitui uma atitude bastante saudável. Mas se estas se transformam em persistente falta de consideração, é necessário ex- pressar desaprovação e pôr um limite a seu compor- tamento.

Há outro ângulo do qual cumpre considerar a indulgência excessiva dos genitores: enquanto a criança pode tirar vantagem da atitude dos pais, ela também experimenta um sentimento de culpa quan- to a explora-los e sente necessidade de certa restri- ção que lhe proporcione segurança. Isto também lhe permitirá experimentar respeito pelos genitores, que é essencial a uma boa relação para com eles e ao desenvolvimento do respeito pelos outros. Além dis- so, devemos considerar também que os pais que so-

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frem demasiado diante da auto-afirmação sem limi- tes da criança - por mais que tentem submeter-se a ela - experimentarão por certo algum ressenti- mento que irá contaminar a atitude deles com a criança.

Já descrevi a criança de tenra idade que reage intensamente contra toda frustração - e não há educação possível sem certa inevitável frustração - e que tende a se ressentir amargamente ante quais- quer falhas e restrições de seu ambiente e a subesti- mar a bondade recebida. Em consequência, projetará seus rancores muito intensamente sobre as pessoas em torno. Atitudes semelhantes são bem conhecidas em adultos, Se confrontamos as pessoas capazes de suportar a frustração sem ressentimento excessivo, e que logo readquirem seu equilíbrio após uma desi- lusão, com aquelas que se inclinam a lançar toda a 19

culpa sobre o mundo externo, podemos verificar o efeito prejudicial da projeção hostil, É que a proje- ção do rancor desperta nos outros um sentimento con- trário de hostilidade. Poucos de nós temos tolerân- cia para suportar a acusação, mesmo não expressa em palavras, de que sob certas modalidades somos a parte culpada. De fato, isso muito amiúde nos faz desgostar de tais pessoas e lhes parecermos ainda mais hostis; em consequência, elas experimentam por nós mais sentimentos persecutórios e suspeitas, e as relações se tornam cada vez piores.

Uma maneira de lidar com a suspeita excessiva é tentar apaziguar os inimigos supostos ou reais. Isto é raramente coroado de êxito. Naturalmente, algu- mas pessoas podem ser influenciadas pela lisonja e pelo apaziguamento, mormente se seus sentimentos

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de perseguição contribuírem para a necessidade de serem apaziguados. Mas tal relação facilmente se desmorona e se transforma em hostilidade mútua.

De passagem, gostaria de mencionar as dificuldades que tais flutuações nas atitudes dos principais esta- distas poderão produzir nos assuntos internacionais.

Quando a ansiedade persecutória é menos intensa, e a projeção, atribuindo, principalmente a outrem bons sentimentos, torna-se desse modo a base da empatia, a resposta do mundo exterior é bem dife- rente. Todos nós conhecemos pessoas que têm a ca- pacidade de se fazerem amadas; é que temos a im- pressão de que elas têm certa confiança em nós, o que desperta em nós um sentimento de amizade. Não me refiro a pessoas que tentam tornar-se populares de maneira insincera. Pelo contrário, creio que as pessoas que são autênticas e têm coragem de susten- 20

tar suas convicções, são as que, em última análise, despertam respeito e mesmo amor.

Um interessante exemplo da influência das ati- tudes primitivas através da vida é o fato de que a relação com as figuras arcaicas continua reaparecen- do e que os problemas que permaneceram não resol- vidos no bebé ou na tenra infância são revividos, embora de forma modificada. Por exemplo, a atitude em relação a um subordinado ou a um superior re- pete até certo ponto a relação com um irmão mais jovem ou com um genitor. Se nos relacionamos com uma pessoa mais velha de modo cordial e amistoso, inconscientemente se revive a relação com um geni- tor ou progenitor amado; ao passo que uni indivíduo mais velho condescendente e desagradável incita no- vamente as atitudes rebeldes da criança para com os

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pais. Não é necessário que tais pessoas sejam fisica- mente, mentalmente, ou mesmo em idade real seme- lhantes às figuras originais; algo em comum em sua atitude é bastante. Quando alguém se acha inteira- mente sob o domínio de situações e relações primiti- vas, seu julgamento das pessoas e dos fatos estará perturbado. Normalmente, tal vivência das situa- ções primitivas se limita e se retifica pelo juízo obje- tivo. Isto é, somos todos capazes de ser influenciados por fatôres irracionais, mas na vida normal não so- mos dominados por eles.

A capacidade de amor e de dedicação, primeiro pela mãe, de muitas maneiras se transforma em de- dicação a várias causas consideradas boas e valiosas.

Isto significa que o prazer que no passado o bebé con- seguia experimentar ao se sentir amado e amando, na vida ulterior se transfere não só para suas rela- ções com os outros, o que é muito importante, mas 21

também para o trabalho e para tudo que lhe parece digno de valor. Isto implica também num enriqueci- mento da personalidade e na capacidade de gostar do trabalho, e lhe abre múltiplas fontes de satisfação.

Nesse esforço para alcançar nossos objctivoS,

bem como nossa relação com outras pessoas, o de- sejo primitivo de reparar se acrescenta à capacidade de amar. Já disse que em nossas sublimações, que decorrem dos interesses mais primitivos da criança, as atividades construtivas ganham mais ímpeto por- que a criança inconscientemente sente que desta ma- neira ela restaura as pessoas amadas a quem dani- ficou. Esse ímpeto nunca perde sua intensidade, em- bora muito amiúde não seja reconhecido na vida comum. O fato irrevogável de que nenhum de nós

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jamais esteja inteiramente isento de culpa apresenta aspectos bastante valiosos porque implica o desejo nunca plenamente esgotado de reparar e de criar de qualquer maneira que esteja ao nosso alcance.

Todas as formas de serviço social se beneficiam com essa necessidade. Em casos extremos, os senti- mentos de culpa impelem as pessoas a se sacrificarem completamente por uma causa ou por seus semelhan- tes, e podem levar ao fanatismo. Sabemos, contudo, que algumas pessoas arriscam suas vidas a ñm de salvarem outras, e isto não é necessariamente da mesma ordem. Não é tanto a culpa o que poderia ser operante em tais casos como a capacidade para amar, para a generosidade e uma identificação com o semelhante em perigo.

Ressaltei a importância da identificação com os pais, e subsequentemente com outras pessoas, para o desenvolvimento da criança em tenra idade e ago- ra desejo frisar um aspecto particular de identifica- 22

ção produtiva que se estende até à idade adulta.

Quando a inveja e a rivalidade não são demasiado intensas, torna-se possível desfrutar vicariantemen- te dos prazeres alheios. Na infância a hostilidade e a rivalidade do complexo de Edipo são contrabalança- das pela capacidade de desfrutar vicariantemente a felicidade dos genitores, Na vida adulta, os pais po- dem partilhar dos prazeres da infância e evitar ne- les interferir porque podem se identificar com os ñ- lhos. São capazes de observar sem inveja os seus filhos crescerem.

Semelhante atitude torna-se particularmente im- portante quando as pessoas se tornam mais velhas

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e os prazeres da juventude se tornam cada vez me- nos acessíveis. Se a gratidão por satisfações passa- das não tiver desaparecido, as pessoas idosas podem desfrutar do que quer que ainda se encontre ao seu alcance. Além disso, com tal atitude, que dá margem à serenidade, podem identificar-se com pessoas jo- vens. Por exemplo, qualquer um que esteja em bus- ca de talentos jovens e que ajude a desenvolvê-los - seja em sua função como professor ou crítico, seja em épocas anteriores como patrono das artes e da cultura - somente é capaz de fazê-lo porque pode identificar-se com outros; num certo sentido, está repetindo sua vida, algumas vezes chegando mesmo a alcançar de modo vicariante a satisfação de objeti- vos não realizados em sua vida.

Em todo estágio, a capacidade de identificar-se tor- na possível a felicidade de poder admirar o caráter ou as realizações alheias. Se não pudermos nos per- mitir apreciar as realizações e as qualidades dos ou- tros - e isso signiñca que não somos capazes de su- portar o pensamento de que nunca poderemos emu- 23

lar corn eles - estaremos privados de fontes de grande felicidade e enriquecimento. O mundo seria aos nossos olhos um lugar muito mais pobre se não tivéssemos oportunidade para compreender que a grandeza existe e continuará a existir no futuro. Tal admiração também desperta algo em nós e aumenta indiretamente nossa crença em nós. Essa é uma das muitas maneiras pela qual as identificações prove- nientes da infância se tornam parte importante de nossa personalidade.

A capacidade de admirar as realizações de outra

pessoa é um dos fatôres que torna o trabalho em equi-

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pe bem sucedido. Se a inveja não fôr grande em demasia, podemos ter prazer e orgulho em trabalhar corn pessoas que às vezes superam nossas capaci- dades, pois nos identificamos com esses membros proeminentes da equipe.

O problema de identificação é, contudo, mui- to complexo. Quando Freud descobriu o superego, considerou-o como parte da estrutura mental deriva- da da influência dos pais sobre a criança - urna influência que faz parte das atitudes fundamentais da criança. Meu trabalho com crianças de tenra ida- de mostrou-me que mesmo da tenra infância em diante, a mãe, e logo outras pessoas no ambiente da criança, se incorporam ao eu, e isto constitui a base de múltiplas identificações, favoráveis e desfavorá- veis. Apresentei acima exemplos de identiñcações que são úteis tanto para a criança como para o adul- to. A influência vital, no entanto, do ambiente pri- mitivo exerce também o efeito de que os aspectos desfavoráveis das atitudes do adulto com a criança são prejudiciais ao seu desenvolvimento porque in- citam nela o ódio e a rebelião ou uma submissão 24

demasiadamente grande. Ao mesmo tempo ela inter- naliza esta atitude adulta hostil e colérica. De tais experiências, um genitor excessivamente rigoroso, ou um genitor carente de compreensão e amor, por identificação influencia a formação do caráter da criança e pode conduzi-la a repetir na vida ulterior aquilo que êle próprio sofreu. Um pai, por conse- guinte, algumas vezes emprega os mesmos métodos erróneos com os ñlhos que seu pai utilizou em re- lação a êle. Por outro lado, a rebelião contra os erros experimentados na infância podem conduzir à reação oposta de fazer tudo diferentemente do modo

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pelo qual os genitores fizeram. Isto conduziria ao outro extremo, por exemplo à super indulgência com a criança, a que já me referi anteriormente. Ter

aprendido de nossas experiências na infância e, por- tanto, ser mais compreensivo e tolerante para com nossos ñlhos, bem como no tocante a pessoas fora do círculo familiar, é um sinal de maturidade e de desenvolvimento sadio. A tolerância, porém, não sig- nifica ser cego às faltas dos outros. Significa reco- nhecer tais faltas e, não obstante, não perder a ca- pacidade de cooperar com pessoas ou mesmo de ex- perimentar amor por algumas delas.

Ao descrever o desenvolvimento da criança, res- saltei de forma particular a importância da voraci- dade. Consideremos agora qual o papel que a vora- cidade desempenha na formação do caráter e o quan- to ela influencia as atitudes do adulto. Pode-se obser- var facilmente o papel da voracidade como um ele- mento bastante destrutivo da vida social. A pessoa voraz quer cada vez mais, mesmo à custa de qualquer outra pessoa. Ela realmente não tem consideração nem generosidade com os outros. Não me refiro aqui 25

apenas aos bens materiais mas também ao status e ao prestígio.

O indivíduo muito voraz está sujeito a ser am-

bicioso. O papel da ambição tanto em seus aspectos úteis como nos perturbadores revela-se onde quer que observemos o comportamento humano. Não res- ta dúvida que a ambição dá ímpeto à realização mas, se ela se torna a principal força propulsora, a coope- ração com os outros ñca em perigo. A pessoa alta- mente ambiciosa, apesar de todos os seus êxitos, per- manece sempre insatisfeita, da mesma forma que o

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bebé voraz nunca ñca satisfeito. Conhecemos bem o tipo da figura pública que, cada vez mais faminto de êxito, nunca parece estar contente com o que al- cançou. Uma característica desta atitude - na qual a inveja também desempenha importante papel - e' a incapacidade de permitir a outros que se desta- quem suficientemente. Pode-se-lhes permitir que de- sempenhem um papel secundário enquanto não ameaçarem a supremacia da pessoa ambiciosa. Veri- ficamos igualmente que tais pessoas não conseguem e não estão dispostas a estimular nem a encorajar pessoas mais jovens, porque algumas delas poderiam tornar-se seus sucessores. Um motivo da falta de sa- tisfação que tiram do êxito aparentemente grande resulta do fato de que o interesse delas não se de- dica tanto ao setor no qual trabalham como ao seu prestígio pessoal. Essa descrição implica a vincula- ção entre a voracidade e a inveja. O rival não é ape- nas encarado como aquele que roubou e privou al- guém de sua posição ou posses, mas também como o possuidor de valiosas qualidades que incitam a in- veja e o desejo de destrui-las.

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Quando a voracidade e a inveja não são exces- sivas, mesmo uma pessoa ambiciosa encontra satis- fação em ajudar os outros a realizarem sua tarefa.

Temos aqui uma das atitudes subjacentes à lideran- ça verdadeira. Aliás, até certo ponto, isto já é obser- vável entre as crianças pequenas. Uma criança maior pode orgulhar-se das realizações de um irmão ou ir- mã menor e tudo fazer para ajudá-los. Algumas crianças chegam mesmo a exercer um efeito integra- dor sobre toda a vida familiar; sendo predominante- mente amistosas e prestativas melhoram a atmosfera familiar. Tenho observado que mães que eram mui- to impacientes e intolerantes diante de dificuldades

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melhoraram pela influência de uma criança assim.

O mesmo se aplica à vida escolar, em que algumas vezes apenas uma ou duas crianças exercem efeito benéñco sobre a atitude de todas as outras por uma espécie de liderança moral que se baseia numa rela- ção amistosa e cooperante com outras crianças sem qualquer tentativa de fazê-las sentir-se inferiores.

Voltando à liderança: se o líder - e isso pode

também aplicar-se a qualquer membro de um gru- po - desconfia de que é objeto de ódio, todas as suas atitudes anti-sociais aumentam com esse sentimento.

Verificamos que a pessoa que é incapaz de suportar críticas porque ferem de imediato sua ansiedade per- secutória é não somente presa de sofrimento como também apresenta dificuldades em relação a outras pessoas e podem até mesmo pôr em perigo a causa pela qual trabalham em qualquer condição social;

mostrará incapacidade de corrigir erros e de apren- der com os outros.

Se encaramos nosso mundo adulto do ponto de vista de suas raízes na infância, ganhamos uma visão 27

interior (insight) da maneira pela qual nossa men- te, nossos hábitos e nossos conceitos se estruturaram a partir das fantasias e emoções da mais tenra in- fância até as manifestações adultas mais complexas e elaboradas. Há mais uma conclusão a ser inferida, ou seja, de que nada que alguma vez existiu no in- consciente não perde inteiramente sua influência so- bre a personalidade.

Outro aspecto do desenvolvimento da criança a ser examinado é a formação de seu caráter. Apresen- tei alguns exemplos de como os impulsos destruti-

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vos, a inveja e a voracidade, e as resultantes ansie- dades persecutórias, perturbam o equilíbrio emocio- nal da criança e suas relações sociais. Referi-me tam- bém aos aspectos benéficos de um desenvolvimento oposto e tentei mostrar como eles se originam. Expe- rimentei comunicar a importância da interação en- tre os fatôres inatos e a influência do meio. Ao atri- buir importância plena a essa interação, alcançamos uma compreensão mais profunda de como o caráter da criança se desenvolve. Sempre tem sido o aspecto mais importante do trabalho psicanalítico, no curso de uma análise satisfatória, que o caráter do paciente sofra mudanças favoráveis.

Uma consequência de um desenvolvimento equi- librado é a integridade e a força do caráter. Tais qua- lidades têm um efeito de longo alcance tanto sobre a autoconfiança do indivíduo como sobre suas rela- ções com o mundo exterior. A influência de um cará- ter realmente sincero e genuíno sobre outras pes- soas facilmente se observa. Mesmo aquelas que não possuem as mesmas qualidades se impressionam e não podem deixar de experimentarrcerto respeito pela integridade e pela sinceridade. E que tais qua- 28

lidades despertam nos outros uma imagem daquilo que eles poderiam chegar a ser ou talvez mesmo ve- nham a ser. Tais personalidades lhes dão certa es- perança a respeito do mundo em geral e uma con- fiança maior na bondade.

Concluí este trabalho examinando a importância do caráter, de vez que, a meu ver, o caráter é o fundamento de toda realização humana. O efeito de um bom caráter sobre os outros constitui a base do desenvolvimento social sadio.

Referências

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