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DO IMAGINÁRIO AO VIRTUAL MUNDURUKU: o Programa Luz para Todos e suas possibilidades dimensionais na Aldeia Kwatá 1

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DO IMAGINÁRIO AO VIRTUAL MUNDURUKU:

o Programa Luz para Todos e suas possibilidades dimensionais na Aldeia Kwatá1

Romy Guimarães Cabral2

O presente estudo traz um recorte histórico que materializa dois tempos- espaços, vividos pelo povo Munduruku da aldeia Kwatá (Borba-Amazonas), suas trajetórias, mudanças e transformações ocasionadas em tempos distintos, são eles: como viviam os Munduruku antes da implementação do Programa de Governo Luz para Todos (2001-2010) e após a efetivação corrente da energia elétrica e suas possibilidades e dimensões (2010-2019). Os subitens que compõem esta parte são elaborados na tentativa de deixar nítido como o fenômeno da globalização da economia, suas consequências e possibilidades contribuíram para a assimilação de novas formas de ser e estar no mundo, para os munduruku do Kwatá, em “simbiose” com o imaginário ritual-tradicional transmitido por seus antepassados, ou seja, com a educação tradicional munduruku. A abordagem é caracterizada por uma descrição sintetizada acerca da diacronia dos acontecimentos em convergência com as interações virtuais que transpõem o território geográfico da Terra Indígena Kwatá-Laranjal. Esse estudo ancora-se nas ideias de autores como: Lévy, (1999), Bustamante (2010), Silveira (2010), Foulcault (2006, 2004), Barnes (1987), Deleuze (1996), Deleuze e Guattari (1995), Silva, (2009), Novaes (2010), Haraway (2009) e Bourdieu (1996, 2001), Spix & Martius (1981).

Palavras-chave: Povo Munduruku; Ciberespaço; Luz para Todos

INTRODUÇÃO

O presente estudo é parte de pesquisa de doutoramento realizada junto ao povo Munduruku, iniciada em 2016 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Apresentar dados que mostrem a interação desse povo indígena com as

1 Artigo apresentado ao GT 56 – Experiências de contra-hegemonia em meios de comunicação e redes sociodigitais.

2 A pesquisadora é professora no curso de Licenciatura em Computação do Centro de Estudos Superiores de Itacoatiara (CESIT) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Doutoranda em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: romyranna@gmail.com

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Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s) e suas dimensões virtuais, políticas e culturais, é o principal objetivo.

O povo Munduruku, conhecido como “os cortadores de cabeça”, porque tomavam como troféu as cabeças decepadas dos inimigos (SPIX e MARTIUS, 1981), atualmente, usa o termo “cortador de cabeça” para impor prestígio diante dos seus e importância política, uma vez que usa o poder das palavras e manifestações corporais para provocar diálogos e acordos que atendam às suas demandas. No estado do Amazonas, a língua de comunicação e de contato é a língua portuguesa, sendo esta enriquecida por palavras e expressões da língua munduruku. É importante destacar, que a retomada da língua indígena faz parte de seus projetos de fortalecimento e valorização identitários.

O lugar onde a pesquisa acontece, a Aldeia Kwatá, pertence à Terra Indígena Kwatá-Laranjal3 (área de 1.121.300 ha), situada no município de Santo Antônio de Borba, no estado do Amazonas, que, por sua vez, é composta por dezenove (19) aldeias que se localizam ao longo dos rios Canumã, Mapiá e Mari- Mari. As aldeias são: Parawá, Saurú, Kwatá, Fronteira, Aru, Cobras, Niterói e Macambira4 – no rio Canumã; São Francisco, Pajurá, Mamiá e Terra Preta – no rio Mapiá; Varre-Vento, Sorval, Mucajá, Laranjal, Vila Batista (povo Sateré- Mawé), Vila Nova e Laguinho – no rio Mari-Mari.

O Kwatá, assim denominado pelos Munduruku que habitam esta Terra, é a aldeia central. Talvez empreguem a forma masculina devido à palavra kwatá significar uma espécie de macaco que existia em grandes bandos no lugar, hoje encontrado apenas em algumas áreas do total da terra demarcada. Nesta terra residem cerca de 80 famílias, segundo o censo de 20145, feito pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).

Em visita ao Kwatá, há cerca de sete anos, para participar como jurada do Festival Cultural Munduruku6 e para realizar reunião de coordenação e

3 Homologada em abril de 2003.

4 Esta aldeia formou-se há 15 anos, acima da boca da foz do Rio Canumã (situada em um pequeno braço de rio), com base em uma decisão política de defesa fronteiriça: para impedir o acesso ou invasão de ribeirinhos à terra indígena.

5 Informação obtida do senhor Ricardo Moreira Cardoso, Agente Indígena de Saúde (AIS/AIM) do Kwatá. Registrada através de telefonema, em meados de maio de 2014.

6 Durante três (3) dias, no mês de abril, é realizado em comemoração ao Dia do Índio. A programação deste evento compõem-se de competições variadas: melhores nadadores, flecheiros, caçadores, pintores, artesãos, compositores e intérpretes, a moça Munduruku mais bonita...).

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professores cursistas do curso Pedagogia Intercultural7, o primeiro olhar após sete anos8, foi de impacto diante da mudança de paisagem na aldeia: restos de objetos quebrados jogados pelo terreiro, certa devastação florestal, casas modificadas em arquitetura e materiais, quadra de esporte construída, asfalto, mães que passeavam ao redor da pracinha central com seus filhos (em carrinhos para bebês trigêmeos), fotos e selfies tiradas de computadores, tabletes, celulares ... as fotografias9 de antes e de depois trazem contrastes de mudanças políticas, econômicas, nacionais, globais e culturais, vivenciadas pelos Munduruku ao longo do tempo de seis (6) anos...havia chegado os programas de governo “Luz para Todos” e “Bolsa Família”. Esses programas, dentre outras formas de trabalho/emprego existentes no Kwatá, foram o caminho financeiro e de ingresso ao mundo virtual.

Sob essa conjuntura, tomamos como caminho investigativo a implantação do Programa “Luz para Todos”, ação do governo federal desenvolvida para possibilitar acesso aos meios de comunicação e proporcionar o desenvolvimento econômico e social das regiões norte e nordeste. Esse programa foi e é a política pública que intensificou a comunicação interna e externa à Aldeia Kwatá.

1 PREÂMBULOS – DO IMAGINÁRIO AO VIRTUAL MUNURUKU OU DO VIRTUAL AO IMAGINÁRIO

De acordo com Tomaz Tadeu da Silva (2009), vivemos num tempo em que há o claro entrelaçamento entre ciência, política, tecnologia, sociedade, natureza e cultura na atualidade. Silva, faz essa colocação afirmando que não existe estado de pureza, de intocabilidade, tudo está relativamente ou totalmente imbricado, ou seja, para se compreender os modos de vida de um povo, se deve considerar seu “total e inevitável embaraço”, considerar suas complexidades e ambiguidades seja na vida em comunidade ou em sociedade.

7 Licenciatura ofertada (2009-2013) pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), para 52 municípios, através do Programa de Formação do Magistério Indígena (PROIND). Esta graduação é de modalidade especial, regular e presencial, a qual foi viabilizada por sistema IP.TV (transmissão simultânea – estúdio-internet-televisão).

8 A pesquisa de mestrado “MODOS DE EDUCAR: vida Munduruku e relação gente natureza na Aldeia Kwata/Borba/Amazonas (2003-2005)”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Faculdade de Educação (FACED), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), foi realizada no mesmo lugar.

9 Arquivo pessoal.

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O povo Munduruku do Kwatá, habitante da Terra Indígena Kwatá-Laranjal no Estado do Amazonas, após anos de contato e de relações fluidas com a sociedade envolvente, vive nesse tempo-espaço em que seu modo de ser e viver está eivado de mudanças em suas formas de conceber, perceber e construir o mundo à sua volta. Considerando as inevitáveis formações conjunturais - ciência e tecnologia, política e sociedade, natureza e cultura - em constante hibridização e movimento em pares ou todas ao mesmo tempo, a visualização de novas subjetividades nesse contexto é uma das vertentes a serem consideradas, principalmente quando falamos de jovens Munduruku em interação no ciberespaço.

Nessa perspectiva, a tecnologia não é neutra. Estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões – e é importante saber quem é que é feito e desfeito (HARAWAY, 2009). Para Donna Haraway (2009) essa relação entre organismo e máquina, Munduruku no ciberespaço [grifo nosso], tem sido uma guerra de fronteiras. As coisas que estão em jogo nessa guerra de fronteiras são os territórios da produção, da reprodução e da imaginação (p. 37).

Por conseguinte, tomaremos as categorias levantadas por Haraway para tentar entender o(s) território(s) Munduruku nesse mundo de redes (BARNES, 1987; DELEUZE, 1996; e DELEUZE e GUATTARI, 1995), “em parte humanas, em parte máquinas”, pois quando em interação virtual, não se pode definir seu início e seu fim, onde começa o humano e onde termina a máquina e vice-versa (SILVA, 2009), por isso levanta-se o surgimento de outras subjetividades, uma vez que há novos exercícios comunicacionais expressos em uma mesma localidade.

Com base nas assertivas acima, faz-se mister considerar que as categorias propostas por Haraway (2009), necessariamente não são e não serão analisadas em partes; ora poderão ser percebidas e registradas como um todo, em que aparecerão completamente entrelaçadas, dado a dinamicidade em que acontecem, ora poderão ser percebidas como fenômenos específicos.

Lembrando Pierre Bourdieu (1996), ao referir-se às questões de dominação simbólica, em que a ordem das coisas podem ser ora objetivas e ora subjetivas.

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Nessa construção de ideias, também consideraremos, para efeito de análise o conceito de habitus10 de Bourdieu (2001), pois certamente, as relações interativas Munduruku, seja em rede social ou social-virtual, farão vir à tona relações de dominação e de poder (BOURDIEU, 1996). Para tanto, deve-se compreender as estruturas objetivas que constam nos campos sociais, e os habitus (estruturas incorporadas) dos sujeitos envolvidos nesse lócus.

1.1 O Programa Luz para Todos

O Programa Luz para Todos é uma das políticas públicas executadas pelo Estado Nacional, criado em resposta a demandas sociais que necessitavam de intervenção, prioritariamente áreas rurais e proximidades, onde ainda não havia o serviço de energia elétrica. O princípio da universalização (BOURDIEU, 1996) é reflexo norteador dessa ação governamental que, apesar de responder a uma necessidade, também se constitui em instrumento de vigilância e controle social do Estado sobre o território nacional (FOUCALT, 2006).

O programa Luz para Todos foi implementado em 2003, na vigência do governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através da Lei 10.438, de 26 de abril de 2002, a qual dispunha sobre a expansão da oferta de energia elétrica emergencial, sobre a recomposição tarifária extraordinária (para áreas de baixo poder aquisitivo) e sobre a universalização do serviço público de energia elétrica. Esta lei renova as redações das leis anteriores (como a Lei 9.427/1996 e Lei 9.648/1998), no intuito de assegurar e ampliar a oferta do serviço de energia elétrica11.

De acordo com informações contidas no site Politize12, esta iniciativa foi coordenada pelo Ministério de Minas e Energia (MME), operacionalizada pela Eletrobrás, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANAEEL) e executada pelas concessionárias de energia elétrica em parceria com os governos estaduais. O objetivo do programa constituiu-se em garantir energia elétrica às áreas rurais e áreas onde ainda não havia a oferta do serviço. O índice de

10 Trata-se de um capital acumulado, de conhecimento adquirido por um sujeito, ou sujeitos. É um saber prático das regras de ordenamento social adquiridos pela socialização/interação em determinado espaço ou campo social.

11 Informações obtidas no site do Planalto. Site:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10438.htm. Acessado em: 29/11/2018.

12 https://www.politize.com.br/luz-para-todos-programa-social/. Acessado em: 29/11/2018.

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afetação seria principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país, atendendo aproximadamente 2 milhões de lares brasileiros (dados do Censo de 2000).

Dados levantados pelo Banco Mundial, em 2001, foram a motivação inicial para a implementação do programa, apresentavam altos índices de desigualdade social e fatores de exclusão em área rural, em localidades de baixa densidade populacional, mas de praticamente total exclusão.

Em 2003, o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) apresentou relatório apontando que 80% do total nacional de exclusão elétrica era no meio rural, que cerca de 10 milhões de brasileiros viviam sem acesso a esse serviço público, contabilizando cerca de 2 milhões de domicílios.

Desse total, 90% dessas famílias possuíam renda inferior a 3 salários mínimos (o que correspondia a situação abaixo da linha da pobreza13, cerca de 54% da população), grupo esse correspondente ao que se tem denominado agricultura familiar. Dessas 16,5 milhões de pessoas, 8,1 milhões foram classificadas como extremamente pobres14.

O termo assinado em 2003 estabelecia uma meta de alcance até o ano de 2011, no entanto, como o Governo Federal não conseguiu cumprir o estabelecido, foi feito um plano de ação para o cumprimento da meta de ligação de luz elétrica às famílias ainda não atendidas, até o ano de 2018. Dessa vez, a prioridade foi atender “comunidades quilombolas e indígenas, assentamentos, ribeirinhos, pequenos agricultores, famílias em reservas extrativistas, populações afetadas por empreendimentos do setor elétrico, além de área com poços de água comunitários” (POLITIZE, 2018).

Com base no Decreto presidencial nº 9.022, de 31 de março de 2017, foi editado, pelo Ministério das Minas e Energia o Manual de Operacionalização do Programa “LUZ PARA TODOS, para dar continuidade às metas de ligação da energia elétrica para a população de baixa renda e fora do alcance da área urbana”.

13 A classificação de pobreza é entendida como: renda familiar per capita mensal de até ½ salário-mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 207,50. Site Politize:

https://www.politize.com.br/luz-para-todos-programa-social/

14 O entendimento dessa classificação é: renda familiar per capita mensal de até ¼ de salário- mínimo, que em valores de setembro de 2009 correspondia a R$ 103,75. Site Politize:

https://www.politize.com.br/luz-para-todos-programa-social/

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Segundo dados do portal Politize (2018), a luz elétrica já chegou a 35 mil famílias indígenas e para informá-las sobre o uso racional, consciente e seguro dessa tecnologia, a FUNAI em parceria com o MME, elaborou cartilhas bilíngues com informativos didáticos sobre o programa.

Conforme estabelecido também pelo Programa Luz para Todos, as famílias atendidas realizam um cadastro numa plataforma de Cadastro Único para Programas Sociais. Esse registro garante o pagamento de uma tarifa social pelo serviço de energia elétrica, desde que o inscrito comprove renda per capta de até meio salário mínimo. Os descontos podem variar entre 10% e 65% de acordo com o consumo da família e sua renda per capita. As famílias indígenas e quilombolas que tenham renda familiar per capita menor ou igual a meio salário mínimo podem ter isenção de todo o valor da conta, com o limite de consumo de 50kWh/mês.

No relatório de Universalização de acesso e uso da energia elétrica no meio rural brasileiro: lições do programa social Luz para Todos (IICA, 2013), consta que o impacto social nas áreas atendidas foi de significativa melhora, indicando crescimento na renda familiar, cerca de 41, 2%. Mas o dado mais interessante do ponto de vista da pesquisa proposta é que o desdobramento econômico dessa ação permitiu acesso a celulares, computadores e à internet, que não fazia parte da realidade de muitos moradores de áreas atendidas. Na lista de aparelhos mais consumidos após a chegada da luz elétrica, estão:

televisão – aumentou em 81,1% – 2,5 milhões de TVs; geladeira – aumentou em 78% – 2,4 milhões de geladeiras; celular – aumentou em 62,3% – 1,9 milhões de aparelhos.

De acordo com o Diário Oficial, publicado em 14 de setembro do corrente ano, o orçamento destinado ao Programa Luz para Todos no ano de 2019 será de R$ 1,07 bilhão, 8% menor que o valor empregado esse ano de 2018. Apesar dos cortes, R$ 165 milhões, do valor total, serão destinados a ligar energia elétrica para 13.316 famílias no Estado do Amazonas (EBC15, 2018).

Corroborando com essas informações, no site do Planalto16 – Presidência da

15 Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Site:

http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-09/orcamento-do-luz-para-todos.

Acessado em: 29/11/2018.

16 http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-planalto/noticias/2018/04/decreto-prorroga- programa-luz-para-todos-ate-2022

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República, consta que o presidente Michel Temer assinou medida provisória em 27 de setembro de 2018, prorrogando o Programa Luz para Todos até o ano de 2022.

1.2 Antes da chegada do Programa Luz para Todos (2001-2010)

Antes da chegada da luz elétrica de uso contínuo, na parte central do Kwatá, a organização socioespacial das casas, postos da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e de saúde, centro social, escolas, igrejas católica e evangélica, ainda seguiam um formato circular, conforme aponta a organização social na literatura sobre o povo Munduruku e os primeiros contatos, no século XVIII, de acordo com o historiador Francisco Jorge dos Santos (1995).

Nesse tempo, atividades coletivas eram comuns no cotidiano munduruku, como: a farinhada (produção de farinha), por meio de meada, era comum entre as famílias que moravam próximas; a formação de ajuris (mutirão) para a limpeza da comunidade ou para outras atividades; a produção de piracuí, realizada por cada família, quando o peixe era excedente, e, para não estragar, virava farinha ou era salmorado.

Durante o dia saíam para seus afazeres diários, como ir à roça, caçar e pescar, lavar roupa nos jiraus, dentre outras ocupações. À noite, alguns comunitários saíam de suas casas para assistir TV, conversar na casa dos parentes e outros ainda, saíam para faxiar17/fachear ou caçar. Se houvesse alguma notícia ou reunião importantes, reuniam-se no centro social (mesmo lugar onde acontecia o curso de formação para o magistério indígena – projeto Kabiará) para poder dar informes necessários ou para discutir as pautas definidas pelo cacique e demais lideranças.

As tecnologias usadas para comunicação externa e para conhecimento do que ocorria fora da aldeia, eram compostas por: dois (2) orelhões - telefones comunitários implantados pelas empresas telefônicas regionais Embratel e Oi;

radiofonia, proporcionada pela FUNAI local; e pela energia elétrica veiculada por um motor comunitário (gerador de energia à gasolina). Essas eram as formas de comunicação e de recepção de informações no Kwatá.

17 Pescar à noite, geralmente usando zagaia (instrumento como uma lança).

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A TV e o contato com a sociedade envolvente (de forma institucional e não institucional), já eram caminhos de mudanças comportamentais para os Munduruku. No entanto, como a TV só funcionava após às 19h, quando tinha combustível suficiente, funcionando em poucas casas que tinham o aparelho de TV; isso não afetava diretamente e nem intensamente alguns costumes e compreensões rituais/tradicionais da vida munduruku.

Sobre esse período, uma imagem emblemática me vem à lembrança:

certa noite, saiu a notícia de que haveria um eclipse lunar, no telejornal da rede Globo; o comunicado parecia não ter soado bem aos ouvidos de quem assistiu ao programa. Mas, nada se comentou sobre. Por volta da meia noite (00:00), muitos comunitários, espalhados pela aldeia, batiam panelas fora de suas casas, com a justificativa de que tinham que acordar a lua, caso contrário o mundo permaneceria para sempre na escuridão.

Apesar das influências ou interferências da igreja (e seus missionários), da ação da FUNAI, da radiofonia no Kwatá, dentre outras relações, o ocorrido demonstra que as notícias que vinham de fora, ainda eram pensadas face às tradições culturais e ritualísticas munduruku. Por isso afirmo, pontualmente, que a TV não afetava intensamente a cultura munduruku (no Kwatá), de forma a modificar seus entendimentos sobre o funcionamento da vida e a relação com o mito de origem, criação e ensinamentos tradicionais. Ensinamentos esses que eram transmitidos oralmente, de geração a geração, pelos avós, tios, pais e demais parentes.

Recordo ainda que a igreja, no caso a igreja católica, seus preceitos e dogmas coexistiam com essas concepções míticas e rituais sobre a vida Munduruku. Aos domingos a igreja era pequena para tantos fiéis. Apesar de não ter padre fixo ou missionário, os responsáveis pela leitura da palavra bíblica faziam a missa acontecer. Era um evento dominical. A maioria das pessoas ia à missa pela manhã, antes de qualquer outra atividade. E no templo evangélico, iam duas pessoas, a dona Ester (mãe do cacique geral) e sua neta Kassiani. A fé Bahá’í já havia passado por lá e deixado uns poucos seguidores, para ser mais exata, algumas pessoas da família nuclear do cacique, que no geral, não aparecia naquele meio.

O comércio ainda era tímido, na prática constituía-se por duas pequenas tabernas e de poucos e raros regatões que passavam de tempos em tempos por

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ali. Comerciavam e/ou trocavam de quase tudo um pouco, frangos congelados, refrigerantes (principalmente os de cor laranja), munição para rifles, bombons, bolachas, pilhas, dentre outros produtos. Duas casas/famílias produziam pão caseiro, a produção e a venda aconteciam mais durante os festejos ou algumas vezes no mês, se os “padeiros” fossem buscar matéria-prima no município de Nova Olinda do Norte.

O “sonho” do povo nesse período era ter a aldeia asfaltada, devido às chuvas colaborarem para que a terra preta virasse lama, em toda a extensão do terreiro. Essa era uma reivindicação recorrente quando vereadores e prefeitos (de Nova Olinda e de Borba) visitavam a aldeia, geralmente durante festejos ou reuniões articuladas pelas organizações e conselhos internos do Kwatá, como a UPIMS (União dos Povos Indígenas Munduruku e Sateré), a organização dos professores, o conselho das mulheres e dos agentes de saúde. A “rua principal”

(o caminho que corta o Kwatá, passando em frente à casa do cacique) foi cimentada em meados de 2004, recebendo o nome de “Andorinha” em homenagem a um parente que havia falecido pouco tempo, assassinado durante os festejos de Santo Antônio de Borba, em Borba.

1.3 Após a chegada do Programa Luz para Todos

No final do ano de 2010, as redes elétricas começaram a ser postas e ligadas no Kwatá. As possibilidades de novidades elétricas e eletrônicas proporcionadas pela implementação do programa Luz para Todos e do cadastro e recepção do Bolsa família e de outros benefícios como aposentadorias, dos poucos empregos existentes (professores munduruku, servidores da FUNAI e agentes indígenas de saúde), além dos comerciantes locais com poder aquisitivo, ocasionaram total mudança no lugar e nas pessoas. Reflexo da globalização da economia em todos os recantos do mundo.

De acordo com Bauman:

Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social. Os desconfortos da existência localizada compõem-se do fato de que, com os espaços públicos removidos para além do alcance da vida localizada, as localidades estão perdendo a capacidade de gerar e negociar sentidos e se tornam cada vez mais dependentes de ações que dão e interpretam sentidos, ações que elas não controlam [...].

(BAUMAN, 1999, p.8).

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A premissa de Bauman nos permite compreender como os impactos da globalização da economia, seus processos e meandros, interferem de forma radical em determinados locais, causando certo ou total descontrole sociocultural, como no Kwatá. À princípio, a novidade causou um frisson nas pessoas, a luz elétrica finalmente chegou. Os programas de governo, como o Bolsa Família, foram condutores e receptores do consumo humano necessário e do consumismo desmedido, antes contido pela falta de recursos financeiros, de energia elétrica, do acesso à produtos e da lobotomia consumista veiculada pelas mídias televisivas.

Praticamente, junto com a condução da energia elétrica chegaram regatões específicos, barcos de lojas existentes nos centros comerciais dos municípios de Borba e de Nova Olinda. À essa altura, já era de conhecimento das grandes e pequenas empresas comerciais que índios e ribeirinhos faziam parte dos cadastros de direito e aquisição de bolsas sociais, ou seja, já tinham como pagar por mercadorias, consideradas antes de valor inacessível.

Com o dinheiro proveniente dos programas indicados, numa velocidade quase instantânea, cada casa da aldeia foi sendo preenchida com móveis e eletroeletrônicos, antenas parabólicas, camas, geladeiras, brinquedos diversos (de funcionamento manual, como velocípedes e bicicletas, a movidos à pilha e baterias), fogões elétricos, frízeres, televisores modernos, caixas amplificadoras e muitos aparelhos de som.

Praticamente, cada morador do Kwatá, enquanto chefes de famílias nucleares, destinaram seus recursos financeiros a aquisições de objetos que viriam provocar/causar a mudança de valores sociais e, consequentemente, de comportamentos e relações interpessoais e cotidianas de forma abrupta, pois não foram ações surgidas da decisão de um coletivo (como dantes), mas da vontade e direitos do indivíduo.

Adiciona-se a esse movimento, a retirada de instituições como a FUNAI local, deslocada do Kwatá com o objetivo de melhor coadunar ações que se converteriam na efetivação de políticas públicas que viriam atender às demandas dos povos indígenas habitantes da região do Rio Madeira, como os Munduruku.

Analisando esse contexto é importante enfatizar a satisfação da comunidade pela sensação de ter poder aquisitivo e de uso, ao mesmo tempo

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parecia que as bolsas seriam recursos contínuos, o que fez com que a grande maioria deixasse de plantar suas roças e de investir em suas atividades de subsistência. Poucos foram os que, realmente, usaram o recurso de forma devida, ou seja, cujas bolsas serviram para alavancar o acesso à alimentação e escolarização mais adequadas. Mais famílias passaram a enviar seus filhos para continuar os estudos nos municípios próximos (Nova Olinda do Norte e Borba), enquanto os professores Munduruku qualificavam-se para dar conta da demanda crescente escolar, das séries finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

Enquanto o recurso da Bolsa Família chegava, algumas plantações de açaí cresceram, tomaram conta de parte do Kayawé, a ponta do Kwatá. Os comunitários desse espaço, talvez por serem mais afastados da parte central e das famílias se comunicarem mais, os investimentos na plantação de açaí foram de ação coletiva. O objetivo era potencializar, além da venda para sustentabilidade da aldeia, merenda escolar regionalizada. Uma das metas da UPIMS e da organização de professores.

No bojo desses acontecimentos, as televisões e caixas de som tomaram conta do chão, da terra e do ar que ecoava e ecoa na aldeia durante o dia e a noite. A curiosidade, a alegria em poder mostrar a potência das caixas de som e o tipo de gosto musical virou concorrência. Cada família, mesmo morando próximo, lado a lado, concorre para entrar com suas escolhas na casa do vizinho, via propagação do som. A política de boa vizinhança começou a mudar. Os projetos coletivos de comunidade tomavam outros rumos.

No entendimento de Bauman, o fenômeno da globalização atinge seu objetivo final, “os usos do tempo e do espaço são acentuadamente diferenciados e diferenciadores. A globalização tanto divide como une; divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo.

(BAUMAN, 1999, p.7-8). Divide a comunidade, porque cada um passou a conceber seu espaço privado, sua casa, suas coisas, seus gostos, suas vontades. Ao mesmo tempo une, porque todos voltam-se para o externo, passa a ser mais importante o que acontece fora da aldeia, a veiculação de notícias e programas unificam modos de ter, ser e estar no mundo.

Para Novaes (2010), o sistema neoliberal usa a tecnologia materializada através do uso de aparelhos eletroeletrônicos e digitais para a massificação e

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manutenção do próprio sistema. Para ele “a única forma de analisar a tecnologia é como sistema, justamente porque não se pode separar a natureza da tecnologia de seu uso”. (NOVAES, 2010, p. 78).

No início do governo Temer, em 2016, o sistema de radiofonia foi desligado, bem como, com a justificativa de contenção de gastos, vários cargos e funções foram dispensados do corpo administrativo e funcional da FUNAI.

Esse era o início da descentralização de ações que garantiam, de forma já precarizada, a efetivação de direitos, o acompanhamento de atividades de controle das fronteiras, a demarcação e homologação de terras indígenas, além da oferta de projetos sociais e das ações institucionais referentes a salvaguarda dos povos indígenas em solo brasileiro.

1.3.1 A Transição – “o rebojo do rio” os fez retornar ao ponto de partida dessa história?

Tudo mudado, um novo mundo nascendo no velho mundo. O Kwatá foi atingido pelas doenças sociais corriqueiras (principalmente da periferia) da sociedade envolvente. É triste ver a “sujeira social” afetando uma aldeia indígena e essas assimilações serem vistas pelos Munduruku com normalidade / naturalidade.

O consumismo exacerbado deixou sequelas, talvez irrecuperáveis, como a proliferação de um sentimento de perda e de apego ao capital e suas possibilidades.

A sensação de volúpia consumista durou pouco, as bolsas foram cortadas em consideráveis percentuais. Os carrinhos para trigêmeos não trafegam mais ao redor da pracinha, o capim toma conta dela. As roças não estavam prontas para a colheita, pois não haviam sido roçadas e nem semeadas.

O aumento da violência, o descrédito das lideranças junto ao próprio povo, os jovens não ouvem mais seus responsáveis e seus idosos, há consumo de drogas (situação quase incontrolável), bullying, pesca consentida predatória (negociação com grandes empresas de barcos pesqueiros), o povo precisa ir mais longe para pescar e caçar, isso e mais situações fazem parte da vida dos moradores do Kwatá após a implementação do Programa Luz para Todos e das relações construídas com instituições governamentais, não governamentais,

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com os municípios de entorno (Nova Olinda do Norte e Borba) e com a cidade de Manaus, dentre outros lugares.

Segundo Chiquinho Munduruku (2018),

os Munduruku que vieram para cá já não são os verdadeiros, pois quando Karosakaibo os criou, deixou-os pendurados numa corda, quando essa se partiu os que vieram para cá (terra) eram os verdadeiros, os mais fortes, mas também vieram bons e maus, por isso as pessoas são diferentes, cada um com um comportamento e pensamento.

A fala de Chiquinho, tentava explicar o porque das mudanças, que pareciam radicais aos meus olhos, estarem acontecendo na aldeia Kwatá. A referência ao mito ajuda-o a compreender que as pessoas têm concepções diferentes sobre a vida e sobre o que pensam que é melhor para elas - o que lhes parece aproximar de autonomia, conquistas e de felicidade.

Nessa conversa, faz referência ao som do lugar não ser mais o mesmo e muito menos as pessoas, na sua maioria jovens, não cultivam os valores tradicionais munduruku.

Apesar de parecer desanimado, Chiquinho se colocava de forma a compreender as mudanças e dialogar sobre o assunto. Perguntei a ele se em algum momento essa nova dinâmica social, o uso das TMDIC’s, pelos Munduruku, teriam sido problematizadas pelo cacique, demais lideranças e/ou comunitários. A resposta foi silenciosa e negativa, balançando a cabeça de um lado para o outro.

1.3.2 Da aldeia ao ciberespaço

No meio desse rebojo, os celulares foram aparelhos adquiridos, inicialmente por professores. O pagamento salarial mensal, a necessidade de comunicação externa a aldeia, principalmente por conta de discussões trabalhistas e/ou mesmo pela formação nas licenciaturas interculturais18 serem fora da comunidade, compreendendo as relações comunicacionais entre o

18 A maior parte dos professores e professoras Munduruku que exercem docência no Kwatá e na T.I. Kwatá-Laranjal, são graduados em licenciaturas interculturais provenientes da Formação de Professores Indígenas (FPI), da Faculdade de Educação (FACED), da Universidade do Estado do Amazonas (UFAM); e do curso de Licenciatura em Pedagogia Intercultural, do Programa de Formação de Professores Indígenas (PROIND) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

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Kwatá, Manaus, Nova Olinda (município de melhor acesso, a partir de Manaus), Borba (onde a T.I. se situa) e o estado do Pará (também T.I. Munduruku), os fez conceber a aquisição de aparelhos celulares, computadores e máquinas fotográficas digitais como recursos materiais essenciais às suas necessidades pessoais, especialmente, acadêmicas e profissionais.

Nessa configuração, transformam-se usos, espaços, meios e fins.

Aparelhos celulares antes usados para comunicação externa a aldeia, passaram a servir como máquinas fotográficas, câmeras de vídeo, gravadores e como rádios. Objetos de distração e lazer de crianças, jovens e adultos da aldeia, mais precisamente – a geração 2.0 surgindo em contexto indígena.

Logo os professores Munduruku perceberam que poderiam intensificar o uso dos aparelhos para melhorar suas interações externas ao Kwatá – a internet passa a ser o mais novo sonho de consumo. Assim, organizaram-se para pagar um serviço de rede digital que possibilitasse comunicações fluidas e ao mesmo tempo fosse um recurso a mais nas pesquisas de conteúdos escolares.

A cobertura digital, provedora de internet, foi colocada na escola recém- inaugurada - Escola Estadual Ester Caldeira Cardoso. A senha de acesso ao wifi era de domínio dos professores e demais servidores que atuam nas escolas do Kwatá. Mas, como era de se prever, logo o acesso se espalhou. As rodas de conversa começaram a ser substituídas por rodas físicas, que compunham novas rodas ao redor da escola - as rodas interativas e virtuais. Ousaria afirmar, mais virtuais que interativas entre si, pois os jovens se posicionavam no entorno da escola para melhor captar o sinal de internet e assim possibilitar as interações virtuais.

A novidade durou menos tempo que o esperado. A diretora da escola alegou que o serviço deveria ser desligado por ordem da Secretaria de Educação (SEDUC-Borba). Segundo depoimentos de professores, a diretora afirmou que só quem poderia instalar o serviço digital seria o Estado. Assim, o controle social e as negociações políticas em torno disso se estabeleceram como uma espécie de micropoder. (FOUCAULT, 1993).

1.3.2.1 Interações facebookianas munduruku

De acordo com Pierre Lévy (1999), o ciberespaço, espaço criado no meio virtual, “não compreende apenas materiais, informações e seres humanos, é

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também constituído e povoado por seres estranhos, meio textos, meio máquinas, meio atores, meio cenários [...]” (p. 41). Esse lugar virtual é acessado por meio da internet. Lugar, onde pessoas de contextos geográficos, de idade e gêneros diversos podem interagir acerca de um ou vários assuntos ao mesmo tempo e por meio de linguagens igualmente distintas, podendo se fazer representar de forma individual e também de forma coletiva.

Essa conexão no ciberespaço apresenta duas inegáveis vertentes: virtual e real. Sendo essas amalgamadas por redes de interligação ilimitada, em que a

“informática contemporânea [...] está desconstruindo o computador em benefício de um espaço de comunicação navegável e transparente, centrado na informação” (LÉVY, 1999, p. 43). Para o referido autor, “esse lugar é concebido pelos usuários como um lugar ‘natural’ ” - para os nascidos nessa era digital e para os curiosos e usuários, cujas atividades diárias exigem o uso de meios tecnológicos e digitais. Desta forma, sendo difícil detectar a partida da conexão em rede, de que tipo de aparelho, computador, celular, ou ainda até onde terá alcance essa conexão. Esse movimento, certamente, “é um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar algum, um computador hipertextual, disperso, vivo, fervilhante, inacabado: o ciberespaço em si (LÉVY, 1999, p. 44).

No caso dos Munduruku, como sujeitos atuantes nesse ciberespaço, o celular é o meio mais usado para ativar as conexões em rede, as conexões virtuais. Os meios de comunicação mudaram... o ciberespaço leva os povos indígenas a (re)afirmar a própria cultura? a luta pela questão étnica é recorrente?

a autoevidência os faz pertencer a uma outra coletividade? A comunicação agora é em rede.

A interação via internet possibilitou a transposição das fronteiras territoriais geográficas. As fronteiras étnicas permanecem no sentido da autoidentificação e das bandeiras de luta, pela divulgação e fortalecimento da cultura Munduruku, de acordo com o relato19 de alguns. Até aqui, não tenho

19 Desde março de 2017 (início da pesquisa empírica) a pesquisadora mantem “amizade virtual”

com cerca de 50 indígenas, de várias etnias (Sateré-Mawé, Tukano, Dessana, Apurinã, Palmari, Arara, Wai Wai, Baré, Mura, dentre outros povos indígenas). Dos “amigos virtuais”, 22 são Munduruku, habitantes da aldeia Kwatá. Também realiza pesquisa in locu desde 2018.

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como afirmar que tipo de outras fronteiras é possível identificar, mas é possível afirmar suas transcendências.

As interações via Facebook são intensas. Em geral as exposições são individuais, conectadas, principalmente, com “amigos” Munduruku, tanto residentes no Amazonas como no Estado do Pará. Tais mensagens constam de pensamentos, mensagens religiosas, posicionamentos políticos e gostos pessoais (músicas, alimentos, receitas, times de futebol, diversos), além de posts de memes que tratam com humor algumas notícias regionais, nacionais e internacionais.

Em relação a interação Munduruku do Amazonas e do Pará20, sempre que possível, trocam palavras e pequenas frases na língua indígena. Há que se evidenciar que essa interação também faz parte da tentativa de (re)vitalização da língua originária por parte dos Munduruku do Amazonas, posto que os Munduruku do Pará são fluentes em língua munduruku.

Algumas interações individuais, feitas por lideranças e membros da aldeia Munduruku, expõem, através de fotografias e de vídeos, atividades desenvolvidas na Terra Indígena Kwatá-Laranjal, ou seja, atividades que beneficiam o povo Munduruku de todas as aldeias dessa terra, como: abertura de canais e braços de rio que propiciam melhor navegação pela área, feita em mutirão (ajuri), visitas e reuniões com representantes de instituições/órgãos governamentais, em prol de questões territoriais, agrícolas, ambientais e políticas; encontros pedagógicos de professores Munduruku; demais reuniões provenientes do cenário educacional, dentre outras demandas relevantes para o povo.

Essas exposições evidenciam, em geral, o orgulho étnico, questões de pertencimento, de valorização da cultura Munduruku, reivindicações e denúncias. Tais notícias e/ou compartilhamentos entram em rede e, certamente, são compartilhadas no ciberespaço, sem limites de fronteiras. A questão que fica é que tais compartilhamentos, uma vez socializados na web podem ser acessados e alterados sem controle da veracidade dos fatos, partindo do ponto em que os Munduruku estejam compartilhando fatos reais e não construídos/inventados.

20 Observações feitas através de perfis munduruku no Facebook.

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Interessante que quando os participantes Munduruku são questionados sobre porque vincularam-se ao Facebook e qual o principal motivo de uso, apontam engajamento político quanto a divulgar: quem são, que terras habitam, a necessidade de entrelaçar suas concepções ancestrais com as questões de luta e de cunho tradicionais ao povo Munduruku. Divulgar a cultura Munduruku é a afirmativa mais recorrente. No entanto, das respostas registradas (em celular), metade dos perfis, de fato, confirmam tais proposições, muitas vezes, nem mesmo o nome no perfil indica alguma conotação com o povo, como sobrenome ou algum codinome em língua munduruku.

Quanto ao exercício digital realizado pelos jovens, além das similaridades mencionadas acima, na faixa etária entre 12 a 20 anos, geralmente usam celulares para ouvir música, brincar com joguinhos virtuais (adquiridos/baixados quando vão à cidade – Borba ou Nova Olinda), tirar selfies (na saída da escola), para tirar foto da tela da tv - durante o curso tecnológico (curso à nível médio, de plataforma IP.TV, da SEDUC-AM). Segundo alguns alunos do curso tecnológico, ter celular facilita o registro dos conteúdos veiculados pelos professores, do estúdio de gravação simultânea em Manaus.

1.3.3 Povo Munduruku e a Relação Homem-Máquina: o mito como caminho de compreensão da vida

A conversa com Chiquinho me trouxe outras ideias. Sua sábia e esperançosa análise sobre os comportamentos dos comunitários do Kwatá, me trouxeram à memória o Mito dos Objetos e a possibilidade de pensar os comportamentos ubíquos Munduruku a partir da história mitológica. Com essa intenção, reproduzo abaixo texto elaborado pelo professor Paulo Gilberto Cardoso Munduruku, quando compunha seu trabalho de conclusão de curso (TCC) do magistério indígena (Projeto Kabiará):

O Mito dos Objetos

Há tempos era o homem, e não a mulher, quem tomava de conta dos objetos de trabalho, tomava conta do machado, da enxada, do terçado, do forno, do remo, da peneira, do paneiro, do tipiti, da gareira e de outros.

Todos esses objetos trabalhavam sozinhos, o homem só fazia levar “os trabalhadores” (os objetos) em seus trabalhos que eles saberiam exatamente o que fazer, que era dar conta do trabalho.

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E todos os dias: machado derrubava, enxada cavava, terçado roçava, forno torrava farinha, remo remava, peneira peneirava, paneiro carregava mandioca, tipiti espremia, gareira acumulava a massa, enfim, e todos tinham suas funções no trabalho.

Mas como desde o começo dos tempos já existia gente teimosa, um dia o homem não estando, deixou sua mulher tomando conta dos objetos, e antes aconselhou-a dizendo a ela que não fosse ver “os trabalhadores” trabalhar, que deixasse eles sozinhos. Então ele saiu. A mulher, muito curiosa para ver quem eram os trabalhadores de seu marido, foi lá para o roçado onde havia as árvores caindo, e foi devagarinho espiando. No lugar onde estavam as árvores caindo, não viu ninguém segurando os machados e terçados. Depois de espiar um pouco, voltou para sua casa.

Quando o marido chega em casa, não ouve “os trabalhadores”

trabalhando e, desconfiando de sua mulher pergunta se ela não tinha ido ver “os trabalhadores”. Ela respondeu que não. E ele disse: - como eles estão calados!

Foi quando resolveu ir até o lugar de trabalho dos objetos. Chegando lá avistou todos caídos no toco das árvores. Triste o homem voltou para casa e disse para sua mulher:

- Mulher, agora sim, de hoje em diante, se nós quisermos possuir e termos alguma coisa, a gente vai ter que escorrer o suor do nosso rosto no trabalho. Eu não disse para você que não fosse ver “os trabalhadores”?!. Daqui para frente vamos trabalhar dando murro no pesado, para podermos ter o que comer e beber todos os dias.

Vocabulário: Dar murro no pesado – ter que trabalhar na roça plantando e cultivando.

(Paulo Gilberto Cardoso Munduruku, abril de 2004).

O mito, registrado didaticamente em linguagem coloquial, por Paulo Munduruku, à exceção de me trazer reflexões sobre relações e questões de gênero, como em muitas histórias mitológicas, provenientes de povos indígenas de linha patriarcal, a mulher aparece como “culpada” pelos objetos não trabalharem mais sozinhos. Como na história bíblica de Adão e Eva e a cobra, na árvore da sabedoria, a curiosidade feminina é que acaba com os encantos do paraíso. Também não pretendo tecer comparações sobre o conceito e compreensão do termo trabalho, para os Munduruku.

O mito me leva a pensar, como a resiliência de Chiquinho, que a ubiquidade já coexistia nessas histórias, que consequentemente, reproduziam no imaginário munduruku a possibilidade e as vantagens de estarem em muitos lugares ao mesmo tempo – os objetos trabalhavam sozinhos, mas sob os cuidados do homem, que, de longe, acompanhava os trabalhos necessários diários realizados pelos objetos. O uso dos objetos está para os Munduruku como o uso das tecnologias na facilitação de execução de tarefas cotidianas.

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CONSIDERAÇÕES...

O desenvolvimento da pesquisa proposta, e o viés de recorte trás para o centro da discussão as redes sociais digitais como caminhos para entendimento sobre a atuação do povo Munduruku no ciberespaço e no exercício da cibercultura, em constante transformação e formas de representação.

Essa atuação no ciberespaço, através das redes sociais digitais, “é um exercício criativo de cidadania digital [...]”. Esse exercício crescente e intenso,

“supõe, definitivamente, caminhar até que o indivíduo recupere a esfera do biopoder” (BUSTAMANTE, 2010, p. 33). A colocação do referido autor leva a pensar que a capacidade de interação/atuação/intervenção no espaço vivido, por usuários, como para os Munduruku, é claramente possível, o que faz com que essa parcela interativa da população se perceba um ativo cidadão com possibilidades de manifestação e intervenção no meio.

Corroborando com as ideias de Silveira (2010):

O que se torna cada vez mais evidente é que se a comunicação em redes digitais distribuídas não dissolve as diferenças socioculturais no ciberespaço, ela recoloca, em um novo cenário, o antigo e complexo debate entre universalismo e relativismo.

[...] Tais fatos podem reforçar a proposição de Gustavo Lins Ribeiro de que a comunicação transnacional estaria conformando uma

‘comunidade transnacional virtual-imaginada’, um sentimento mais forte de pertencimento ao mundo do que simplesmente a comunidade imaginada nacional. (p. 67).

Nessa composição, é possível afirmar que este povo vive em meio a um movimento contra-hegemônico - o processo de emancipação identitária, econômica e social - , diante do caos político generalizado que vive o Brasil desses tempos. Ou seja, o povo Munduruku, no uso de seu direito planetário, surge, como outras minorias, como cidadão do mundo, onde não mais falam pelo tutelado, mas o povo Munduruku é protagonista de seu lugar no mundo, evidenciado por ocasião de seu exercício cidadão no ciberespaço, apesar das contradições e realidades vividas no chão da aldeia Kwatá.

REFERÊNCIAS

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BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas, SP:

Papirus Editora, 2001.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1996.

BUSTAMANTE, Javier. Poder comunicativo, ecossistemas digitais e cidadania digital. In: SILVEIRA, Sérgio Amadeu da (org.). Cidadania e redes digitais = Citizenship and digital networks. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil: Maracá – Educação e Tecnologias, 2010. Vários tradutores.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia.

Trad.: Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995.

(Coleção TRANS. Vol. 1).

FOUCAUL, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FOULCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed. São Paulo: Graal, 2004.

HARAWAY, Donna J. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo- socialista no final do final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).

Antropologia do Ciborgue: vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte:

Autêntica, 2009.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad.: Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. (Coleção TRANS).

NOVAES, Henrique Tahan. O Fetiche da Tecnologia: a experiência das fábricas recuperadas. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

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SILVEIRA, Sérgio Amadeu da (org.). Cidadania e redes digitais = Citizenship and digital networks. 1. ed. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil:

Maracá – Educação e Tecnologias, 2010. Vários tradutores.

SPIX, Johann B. von & MARTIUS, Carl Friedrich Ph. von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Belo Horizonte/São Paulo: Edusp Itatiaia, 1981. vol.3.

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