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XIX ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS 25 a 29 de outubro de GT 26 Trabalho e Sindicatos na Sociedade Contemporânea

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XIX ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS 25 a 29 de outubro de 2005

GT 26 – Trabalho e Sindicatos na Sociedade Contemporânea

PARA ALÉM DOS SINDICATOS: OS GRUPOS DE ATINGIDOS DO TRABALHO

Diana Antonaz (UFPA)

José Sérgio Leite Lopes (UFRJ)

Resumo1

O trabalho procura restituir o processo de constituição de grupos de “atingidos do trabalho”

enquanto formas de reunião de trabalhadores que demandam o reconhecimento público de doenças e acidentes do trabalho, a partir da análise de estudos de caso no Brasil e da comparação com grupos semelhantes em outros países. Sua atuação se constitui em nova estratégia de trabalhadores no enfrentamento de empresas e instâncias de governo. Tais grupos – é assim que vamos nomeá-los em virtude de sua dimensão política – não se constituem, via de regra em organizações estruturadas, são dinâmicos, de composição variável e tem sua existência marcada tanto pela ação individual, quanto pela coletiva. Freqüentemente constituídos a partir das organizações sindicais, tendem algumas vezes a autonomizar-se e além de reivindicarem “reconhecimento e justiça”, ampliam sua atuação para outras esferas de direitos civis e sociais, produzindo junto com outros grupos (“atingidos de barragens”, “da base de Alcântara”) uma categoria cumulativa e mais geral de atingidos. Podemos dizer que, da mesma forma que em outras esferas, na do trabalho, verifica-se igualmente uma

“ambientalização dos conflitos”.

1 Pesquisa em andamento: Movimentos sociais no sul-sul. Um estudo comparativo das tendências recentes de atuação de organizações de trabalhadores no Brasil, África do Sul, Índia e Tailândia.

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PARA ALÉM DOS SINDICATOS: A FORMAÇÃO DE GRUPOS DE ATINGIDOS DO TRABALHO

1. A invenção da ‘saúde do trabalhador’

A partir da segunda metade dos anos 80, verifica-se a estruturação, nos principais sindicatos e centrais sindicais, de áreas especializadas em saúde do trabalhador. Essa temática se destacava, já no início da década, quando alguns dirigentes sindicais do eixo Rio – São Paulo associam-se a profissionais de saúde, que defendem profunda reestruturação das políticas de saúde, através da realização de uma reforma sanitária ampla, que envolva nas decisões e ações a participação dos interessados. Em trabalhos anteriores (Antonaz, D., 2002; Leite Lopes, JS et al., 2004) mostramos como se dá a emergência dessa área – saúde do trabalhador -, a partir de 1979, coincidindo com o processo de democratização do país, onde se encontram, por um lado, profissionais de saúde, que haviam seja constituído grupos de resistência e transformação dentro das universidades, seja retornado do exterior, e por outro, sindicalistas de diferentes categorias de trabalhadores, que com estes organizam ações pela anistia e também pela democratização da saúde. “Saúde do trabalhador”, que tem como diretrizes o protagonismo do próprio trabalhador e a intervenção de especialistas voltados para os interesses dos trabalhadores contrapõe ao controle até então exercido pelo Estado, através do Ministério do Trabalho, e à dominação das empresas nessa área2. Esse movimento, centralizado inicialmente nos sindicatos dos médicos do Rio de Janeiro e São Paulo, dá origem ao DIESAT (Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas e dos Ambientes de Trabalho – 1979), ao CESTEH (Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana – 1984), a departamentos de saúde do trabalhador nos sindicatos, sendo que os mais importantes contratam assessorias, e, ainda ao Instituto Nacional de Saúde do Trabalhador da

2 A disputa se dá também e principalmente na esfera do simbólico. Por um lado, os antigos departamentos de segurança e higiene do trabalho do Ministério do Trabalho se especializam, refletindo isso em uma transformação da denominação: em 1976 passam a se denominar Secretaria de Engenharia de Segurança e Medicina do

Trabalho. Já nos anos 90, o Ministério do Trabalho procura se adequar aos novos tempos e o setor ganha nova denominação: Secretaria de Segurança e Saúde do Trabalhador. As empresas, por sua vez contratam especialistas em seus quadros (engenheiros e médicos do trabalho)

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CUT Ao longo dos anos 80, as articulações freqüentemente informais entre profissionais de saúde pública e trabalhadores produzem diversos efeitos de grande relevância.

De fato, até a década de oitenta, as doenças do trabalho são absolutamente ausentes das estatísticas do então INPS (atual INSS). Os peritos seguem uma lógica atuarial–judicial, completamente dissociada das percepções de dor e doença dos trabalhadores; por outro lado, verifica-se o desconhecimento por parte de militantes sindicais e trabalhadores a respeito das manifestações de dilapidação3 dos corpos nas fábricas e nos serviços. A articulação

‘profissionais de saúde – trabalhadores’ favorece uma troca, ou mais precisamente uma amálgama de informações. Os primeiros passam a construir seu conhecimento, agregando a contribuição da experiência concreta dos trabalhadores, que desvenda processos de trabalho, o uso de produtos químicos perigosos, o sofrimento do corpo resultante; os últimos aprendem a construir uma relação entre condições de trabalho e adoecimento, a identificar sinais e sintomas, a nomear as doenças, a aprender novos direitos, passando a reunir, desta forma, as condições para enfrentar de forma mais eficaz o empresariado e exercer pressão sobre instituições de governo. Ao longo da década de oitenta, milhares de doenças associadas ao trabalho são denunciadas, sendo que algumas vem a ser formalmente reconhecidas, seja administrativamente pelo INSS, seja por decisão judicial, gerando direitos previdenciários e/ou garantindo indenização por parte das empresas, o que configura ação coletiva voltada para a aquisição de direitos anteriormente inexistentes.

O processo de organização dos trabalhadores em torno da saúde e sua articulação com especialistas – no caso, poder-se-ia falar em anti-experts (Pollak, M., 1993), uma vez que estes aplicam novos métodos e impõem novos resultados -, ao viabilizar a aquisição, por parte dos trabalhadores, de categorias e conhecimentos da esfera médica, não apenas produz transformações na relação com médicos e peritos de empresas e INSS, mas permite que se expressem de forma eficaz na esfera pública. Desta forma, elaboram dossiês pessoais e coletivos, constroem manifestações, que possibilitam ampla divulgação das denúncias e repercussão na mídia, sendo que as matérias publicadas na imprensa passam a engrossar o material documental4. Tal estratégia exerce pressão sobre os representantes das instituições

3 A respeito do uso de ‘dilapidação’, cf. Leite Lopes, J.S., 1978.

4 Tendo como referência Boltanski, L. (1984), podemos dizer que os trabalhadores aprendem a construir um caso que ganha visibilidade pública.

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governamentais, produzindo em algumas circunstâncias efeitos concretos5. Essa linguagem eficaz facilita, além disso, a construção de organizações informais em torno da doença, bem como a reprodução desse conhecimento junto aos trabalhadores6. Trata-se aqui de um processo de formação e de reprodução de intelectuais - ou especialistas orgânicos, em torno dos quais se formam grupos de “atingidos pelo trabalho”. Inicialmente, a organização tem lugar no interior de cada sindicato, sendo que por iniciativa de uma ou mais entidades de trabalhadores são organizados fóruns intersindicais. Em algumas ocasiões, as organizações sindicais não se envolvem com os trabalhadores doentes, e estes passam a se reunir e a empreender ações através do engajamento de um ou mais trabalhadores atingidos e do apoio e envolvimento pessoal de algum especialista.

Constata-se, igualmente o surgimento de novos especialistas e instâncias nas esferas de governo. A articulação ‘especialistas – trabalhadores’ favorece a construção de conhecimento diferenciado por parte destes profissionais, que passa a englobar dados concretos, transformando substancialmente a qualidade de seus métodos e a obtenção de resultados. Por outro lado, essa articulação se constitui em grupo de pressão capaz de modificar a estrutura das formas de governo, com a criação de novas instâncias públicas como os Programas de Saúde do Trabalhador (dentro do SUS, em nível local) e órgãos especializados nos níveis estaduais e federais, além de espaços de debate7. Também, aponta-se o curso pioneiro do CESTEH/Fiocruz (Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Fundação Oswaldo Cruz) de especialização em saúde do trabalhador, que tem como foco central a saúde vista a partir do trabalhador, como forma de divulgar conhecimentos e principalmente instituir uma forma de pensar em nível nacional8. Em decorrência, diversos novos cursos de especialização em saúde do trabalhador passaram a ser

5 Como por exemplo, elaboração de novas normas técnicas no âmbito do INSS, Ministério da Saúde, Ministério do Trabalho.

6 Elaboração de cartilhas, reuniões periódicas com militantes da área e/ou especialistas, participação em eventos.

7 Citamos desde a primeira Conferência nacional de saúde dos trabalhadores até a RENAST (Rede Nacional de Saúde do Trabalhador), criada por Portaria do Ministério da Saúde em 2002, e atualmente em processo de implantação. A RENAST constitui-se em rede nacional que visa organizar e articular ações de saúde em nível nacional, contando com a representação dos estados e dos trabalhadores. Toda a sua essência gira em torno do

“controle social”a ser exercido pelos trabalhadores.

8 Esses cursos contrapõem-se, como formulação, aos cursos de especialização em engenharia de segurança e medicina do trabalho - de caráter normativo e voltados para a lógica da produção -. No entanto, Pode-se dizer que ó movimento de saúde do trabalhador cria uma nova cultura que se reflete até mesmo nesses cursos e na forma de pensar de funcionários de organizações mais tradicionais como o Ministério do Trabalho.

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ministrados nas universidades, freqüentemente demandados pelas prefeituras. Novos mestrados de saúde do trabalhador vêm sendo criados.

As pressões dos trabalhadores e a constituição de um conhecimento diferenciado propiciam a instituição de Conselhos e fóruns especializados bi e tri-partites: O Conselho Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, apoiado pelo PST (Programa de Saúde dos Trabalhadores) no nível estadual, constituído por representantes de instituições e representantes de sindicatos, tem sua formação inspirada na existência de um grupo não institucionalizado que obteve importantes avanços no reconhecimento de doenças do trabalho.

O Conselho é uma instância pioneira, protagonista de embates com o empresariado e o Ministério do Trabalho, e que foi capaz de produzir importantes transformações no âmbito dos direitos dos trabalhadores, em associação com outras instâncias como a Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembléia Legislativa (RJ) e o Ministério Público do Trabalho9. Por outro lado, principalmente em São Paulo, foi criada uma verdadeira rede de atenção à saúde do trabalhador, com ações que podem ir desde a intervenção nas fábricas, ao atendimento médico dos trabalhadores, ao estudo em combinação com especialistas de universidades e centros de pesquisa.

Nos anos 80 e parte dos anos 90, há um importante investimento dos sindicatos na área de saúde do trabalhador, o que se verifica ao lado de uma tendência mais geral à

“descorporativização” e, já no final dos anos 90 à “onguização”10. A partir da segunda metade da década de 90, alguns dos sindicatos mais atuantes vêem-se atropelados por processos de privatização e demissões que atribuem ao processo de “globalização”, além de reestruturação dos postos de trabalho e do aumento da terceirização das atividades. O processo de onguização persiste, mas algo muda em sua forma: passam da articulação concreta e aliança com organizações populares a espaços mais amplos, que desde o início do governo Lula vêm se multiplicando, além da participação em fóruns internacionais11. Os sindicatos não conseguem mais dar conta do cotidiano dos trabalhadores doentes e apenas alguns ainda mantêm

9 Participação de comissões de trabalhadores de várias categorias em ações de fiscalização, o que constitui um evento inédito; legislação estadual proibindo o uso de jato de areia nas operações industriais. Leite Lopes (2004), referindo-se ao PST (RJ), fala em atuação subterrânea do estado.

10 Cf. Veras, R. O (2002)

11 Como o SIGTUR (Congress of Southern Initiative on Globalisation and Trade Unions Rights) que já está em sua sétima edição (Bangkok, junho 2005) e do qual participam entre outros CUT, COSATU (África do Sul), KCTU (Coréia), ACTU (Austrália), oposições sindicais indiana e tailandesa. (cf. Lambert, 2005).

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assessorias permanentes nessa área, conforme se verificava nos anos 90. A saúde do trabalhador, junto com outras temáticas como meio ambiente, economias solidárias, internacionalização das organizações sindicais, continuam na ordem do dia12, no entanto, no que se refere aos trabalhadores atingidos não são mais suficientes para dar conta dos trabalhadores doentes, que são remetidos ao sistema de saúde. Muitos sindicatos continuam apoiando formalmente os grupos de atingidos do trabalho, cedendo-lhes espaços, recursos e advogados e publicando boletins e cartilhas, mas nem sempre há alguém na estrutura sindical pronto para ouvir a expressão do sofrimento cotidiano dos trabalhadores, seja aquele sentido no corpo, seja aquele freqüentemente resultante do pouco caso de algumas instituições de governo e do não reconhecimento formal de seus males, o que produz, nos atingidos, profundo sentimento de injustiça, que só pode ser reparado com o reconhecimento da doença do trabalhador. O que ocorre é que o corpo do trabalhador se contrapõe de forma contundente aos discursos contemporâneos politicamente corretos das empresas e às instâncias de governo que demonstram fracassar em sua ação de fiscalização do trabalho13.

A antropologia e sociologia do trabalho vêm de alguma forma registrando essas transformações. Nos anos setenta, abordam os temas mais diversos a respeito do trabalho e das classes trabalhadoras. A produção da época procura sublinhar a lógica das relações de trabalho, centrando as análises nas formas de dominação e resistência das classes trabalhadoras, no disciplinamento do corpo e do espírito dos operários. Os trabalhos acadêmicos começam a valer-se, então, dos relatos orais e das histórias de vida, e é na voz dos próprios operários que ecoa o sofrimento no trabalho. Desta forma, os cientistas sociais passam a dar visibilidade ao sofrimento no chão da fábrica. A categoria marxista “consumo do corpo”, associada à extração de mais-valia, é renomeada e reinterpretada. Fala-se então em

“desgaste operário”, em “dilapidação do corpo” em “desgaste” e/ou “sofrimento mental”14. Outra denominação corrente nos textos é “vítimas do trabalho”15. Em estudos mais recentes, voltados para as transformações das organizações sindicais e de suas agendas, a saúde do

12 Entre as mais recentes está outra construção ‘a do assedio moral’, que implica a criminalização de pressões e coerções sofridas no trabalho, tendo uma estreita conexão com o adoecimento, quando a supervisão exige que o trabalhador exerça funções perigosas.

13 Vale sublinhar que o executivo federal é responsável por múltiplas funções: fiscaliza, perícia e reconhece (ou não) a doença e paga o benefício.

14 Refiro-me aqui a autores como Asa Cristina Laurell, José Sérgio Leite Lopes e Edith Seligmann Silva.

15 Cf. Faleiros V. e Cohn, A., por exemplo.

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trabalhador aparece como tópico importante de ação sindical e de negociação, no entanto, as organizações de ‘trabalhadores atingidos’ não tem sido explorada no âmbito das ciências sociais. Nos anos 70, os cientistas sociais amplificavam o significado da exploração, empreendendo sua leitura através da dilapidação do corpo dos operários, utilizando, fazendo ecoar, com freqüência, a própria voz dos trabalhadores. A construção de grupos de atingidos do trabalho se constitui em representação exemplar, enquanto drama vivenciado e representado publicamente da exploração no trabalho. Antonaz (2001) mostra a relação entre o aparecimento de dor em telefonistas e as transformações sociais no âmbito do trabalho que culminam com o fim da profissão e a privatização da empresa. Na pesquisa preliminar, que deu origem ao presente texto, verifica-se, em alguns dos casos onde pudemos recuperar a história, uma crise de origem que marca o ato inaugural desses movimentos. No caso dos leucopênicos de Volta Redonda, a privatização da CSN e a tomada do sindicato por grupo que condena os enfrentamentos, deixando sem espaço um movimento, cuja própria existência é a essência da contestação. O mesmo ocorre com outros grupos, conforme será apontado mais adiante nesse trabalho.

A nomeação dos grupos de ‘atingidos do trabalho’.

No decorrer da pesquisa que fundamenta esse trabalho, localizamos número expressivo de grupos constituídos, ou em formação, de trabalhadores doentes, cada um, e cada personagem dentro deste com uma história de sofrimento e ação cotidiana, seja voltada para resolver problemas mais sentidos, seja ampliando a ação para esferas mais distantes dos interesses imediatos. Apesar de diversidades e algumas semelhanças entre eles, abordaremos três casos empíricos que demonstrem as especificidades e características desses grupos, a partir dos quais realizaremos nossa análise. Dentre os grupos localizados, citamos os seguintes: associação brasileira dos expostos ao amianto (ABREA); associação de expostos e intoxicados por mercúrio metálico (AEIMM); associação de combate aos poluentes orgânicos persistentes (associação dos contaminados por poluentes orgânicos persistentes) (ACPO)16;

16 O movimento é iniciado pelos trabalhadores contaminados por agrotóxicos na Rohdia, em Cubatão, nos primeiros anos da década de 90. A entidade possui um a página na internet com o “memorial” dos intoxicados.

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associação das vítimas de contaminação por chumbo (AVICCA); associação em defesa dos reclamantes e vitimados por doença do trabalho na cadeia de produção do alumínio (ADRVT- CPA); trabalhadores contaminados por benzeno em refinarias; trabalhadores contaminados por benzeno em siderúrgicas, e entre estes a pioneira associação dos leucopênicos17 de Volta Redonda; associação das vítimas do césio 137; associação dos trabalhadores contaminados por substâncias radioativas18; trabalhadores contaminados por agrotóxicos no campo (diversas associações em diferentes estados); associação de portadores de LER (diversos grupos em diversos estados)19.

A simples relação acima mostra a dramaticidade e a dimensão do problema. Mas antes de procedermos, consideramos oportuno esclarecer os motivos que nos levaram a utilizar a categoria contida no título. Como bem podemos ver, não se trata de categoria nativa, e sim tomada de empréstimo pelos autores de outros grupos – os atingidos pelas barragens - ao tentar expressar uma síntese de todos os significados que esses grupos evocam. Os ‘atingidos por barragem’ é uma categoria construída pelas organizações que permite englobar todos não apenas aqueles que sofrem a desapropriação de suas terras, mas também outros que se sentem prejudicados com a construção da barragem20, e são também os movimentos que se organizam em função dos danos sofridos pelos seus participantes. Ao associarmos a palavra ‘atingidos’ a trabalho, a expressão ganha novas leituras: a profundidade histórica da exploração, a construção de efeitos visíveis, a busca de reconhecimento de um estatuto e de direitos. As categorias utilizadas pelos grupos incluem ‘expostos’, ‘contaminados’, ‘intoxicados’,

‘vítimas’, ‘vitimados’, ‘reclamantes’, ‘leucopênicos’, ‘portadores’. Quase todas as categorias são passivadas, procuram expressar pessoas que sofreram danos irreversíveis, causados por alguém (as empresas no caso) e que demandam reparação. Apenas a categoria ‘reclamante’

Em 1999 a ACPO incorpora as causas ambientais empreendendo campanha contra a transferência de rejeitos tóxicos para regiões mais vulneráveis.

17 A leucopenia se caracteriza pela redução do número de leucócitos no sangue, constituindo-se no principal sintoma inicial da doença. Ataca o processo de produção do sangue, podendo o trabalhador vir a desenvolver leucemia.

18 Trata-se dos trabalhadores na ex-empresa Nuclemon, sediada em São Paulo- SP,subsidiária da ex-estatal Nuclebrás, que trabalharan durante anos na extração e processamento de areias monasíticas, para purificação e posterior extração de urânio. A empresa, hoje fechada, armazena toneladas de resíduos ainda sem destino.

19 Distúrbios osteo-musculares atribuídos à execução de atividades que demandam movimentos repetitivos, tanto na indústria, particularmente na montagem de peças, quanto no setor serviços (digitação, leitura de código de barras por caixas de supermercados, entre outras). Ver a este respeito Antonaz, D., 2001.

20 Para um estudo acurado a respeito da categoria ‘atingido’, ver Vainer, C. 2002.

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remete diretamente à ação, no entanto, a articulação de associação e vítima evoca igualmente a busca de reparação. Algumas categorias são mais amplas, como vítimas e vitimados e respondem também por situações mais gerais, como no caso, os intoxicados por chumbo, que associam trabalhadores e a população mais geral (esse grupo inclui os trabalhadores e moradores de Santo Amaro da Purificação na Bahia, onde uma empresa do grupo francês Penarroya abandonou toneladas de resíduos, contaminando famílias inteiras)21, ou ainda as vítimas do césio 137, que remete ao caso de Goiânia, incluindo moradores da cidade e trabalhadores que executaram tarefas de descontaminação, e os vitimados de Barcarena, que envolvem trabalhadores afetados por numerosas doenças ao longo do ciclo de produção do alumínio, desde a extração de bauxita em atividades de mineração, até a produção de alumina e sua redução para transformação em alumínio primário. As categorias ‘expostos’,

‘contaminados’ e ‘intoxicados’, são referidas a substâncias e compostos químicos e assinalam diferenças importantes. Assim, a utilização de ‘expostos’em relação ao amianto (ou asbesto) refere-se à particularidade dos efeitos dessa fibra sobre o corpo, uma vez que a doença22 pode vir a se manifestar, de forma devastadora, décadas após ter ocorrido a exposição. Qualquer pessoa que tenha aspirado fibras do mineral, independentemente da quantidade e da duração da exposição e do tempo em que ocorreu pode vir a desenvolver asbestose, mesotelioma ou câncer. Com isso, qualquer pessoa exposta é um doente em potencial. O nome da associação é indicativo de que esta pretende englobar não apenas aqueles que já se encontram doentes, mas, igualmente, os que o são potencialmente, uma vez que as doenças provocadas pelo asbesto independem da quantidade de fibras inaladas e do tempo de exposição à substância e se caracterizam por sua longa latência23. A sutileza desta nomeação aponta para o fato de que

21 No site www.midiaindependente.org datado de 13.06.05, encontra-se uma matéria contendo a denúncia e intitulada “Brasileiros vitimados por chumbo dos franceses”. O texto inicial tem os seguinte teor: “mais que a dor da contaminação , é não termos respostas concretas que venham fazer justiça e reparos aos nossos doentes, vitimados pela empresa do grupo Penarroya – hoje metal Europa. (...) O chumbo deixado pelas ruas da cidade contaminou lavouras e deixoou marcas profundas na população. No artigo é relatado que foram utilizados rejeitos para a pavimentação das ruas, além de terem sido abandonados montanhas de resíduos após o fechamento da fábrica. Sempre segundo o artigo, as crianças são as vítimas principais. Em uma primeira testagem, 555 em 600 crianças encontravam-se com níveis de chumbo no sangue acima dos níveis normais. A associação foi formada em 2002, com o objetivo de “defender os trabalhadores e a população da cidade”, obter indenizações e tratamento do INSS e, principalmente para garantir a descontaminação da cidade.

22 A asbestose caracteriza-se pela formação de quistos compactos em torno das fibras depositadas nos pulmões, provocando grande redução da capacidade respiratória; em alguns casos as pessoas podem desenvolver um câncer de pleura raro e grave, denominado mesotelioma.

23 Podem ocorrer até mesmo trinta anos após a exposição.

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todos somos potencialmente doentes e para a necessidade de banimento do amianto, uma das grandes bandeiras da associação. A análise da sutileza das diferentes nomeações implica no reconhecimento de diferentes identidades de ‘atingidos’ através dos diferentes processos que constroem o doente e que são verbalizados pelos intelectuais orgânicos dos movimentos, e por vezes por especialistas que lhes dão sustentação ou que participam diretamente dos moviementos.

Os ‘atingidos do trabalho’: estudos de caso

Entre os estudos de caso das pesquisas efetuadas, escolhemos três, por serem representativos de diferentes formas de constituição e ocorrerem em momentos diversos, e também por se tratar dos coletivos, em relação aos quais, possuímos maior número de dados.

Caso 1: Os leucopênicos de Volta Redonda

Os leucopênicos de Volta Redonda são pioneiros em sua constituição enquanto grupo;

sua existência intervém intensamente no processo de transformação vivido pela cidade nos últimos vinte anos e seu caso é exemplar no sentido de revelar agentes constroem conexões entre saúde do trabalhador e meio ambiente. O sindicato dos metalúrgicos de Volta Redonda, que se reconstrói após a ditadura militar em torno de sindicalistas como Juarez Antunes24, importou a experiência do sindicato dos metalúrgicos de Santos que representa os trabalhadores da COSIPA25. Por sua vez, duas médicas do sindicato, com essas informações, passaram a pedir exames de sangue de trabalhadores que apareciam com sintomas da doença, passando a descobrir a existência da intoxicação por benzeno entre operários da CSN. As duas médicas do Sindicato de VR. e doentes associam-se ao grupo que discute “agravos à saúde dos trabalhadores”, constituído no Rio de Janeiro e obtêm que seja publicada uma portaria da Superintendência INSS do Rio reconhecendo a doença. De imediato, são diagnosticados cerca de 300 casos. Exames admissionais de rotina em empresas da região

24 Como presidente do sindicato dos metalúrgicos esteve à frente da greve de 1988, durante a qual a CSN foi invadida pelo exército para retirar os trabalhadores que a ocupavam e mantinham os fornos em operação e que culminou com o assassinato de três metalúrgicos por soldados do exército. Elegeu-se deputado federal e prefeito da cidade. Desapareceu em acidente de automóvel em janeiro de 1989, a poucos dias da posse.

25 Para a descoberta da leucopenia em Santos, foi decisiva a pesquisa realizada pela médica sanitarista Lia Giraldo, que desenvolveu esse tema em sua dissertação de mestrado.

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constatam a presença da doença em trabalhadores que nunca haviam entrado na Siderúrgica. A divulgação desse evento produz entre os moradores da cidade um sentimento coletivo de ameaça e medo. Esse terreno fértil favorece a ação ambientalista tanto de entidades privadas, quanto públicas. É nesse campo que se travam as disputas centrais entre empresa, de um lado, e prefeitura, movimentos sociais e governo do estado (na época da privatização), de outro. A ambientalização dos conflitos (cf. Leite Lopes et al., 2004) é desencadeada a partir da organização dos leucopênicos, que se afastam do sindicato quando metalúrgicos que defendem uma política de parceria com a empresa ganham as eleições. O metalúrgico, hoje aposentado por doença do trabalho, e coordenador da comissão relata como se deu o processo de autonomização do grupo. Segundo o entrevistado, ex-empregado da coqueria da usina, lugar onde são emitidos os vapores de benzeno originados da queima do coque, a nova diretoria do sindicato passou a tentar reduzir o número de leucopênicos afastados26. O s trabalhadores começaram a ficar preocupados como o seu destino e resolveram se organizar como comissão, enfrentando o sindicato e a empresa. Passaram a atuar fora da estrutura sindical, indo a programa de televisão para denunciar a sua doença. Constituíram a associação, com estatuto e coordenação, tendo-a registrada em 1995. Passam, desta forma, a atuar em esfera própria, participando como grupo legitimado na agenda 21 local, na comissão de saúde, no programa de saúde do trabalhador e eventualmente em fóruns extra-locais27. O meio-ambiente passa a ser o espaço, - a linguagem do entendimento possível entre diferentes agentes. A visibilidade alcançada pelo grupo dos leucopênicos permeia a formação de acordos, intervenção de agentes externos como o Ministério Público e a criação e multiplicação de novos fóruns de participação popular e de negociação com a empresa28. O grupo se mantém sem o apoio da diretoria do sindicato, cuja tendência, eleita por ocasião privatização se mantém, mas vinha recebendo algum apoio da prefeitura local. Mais recentemente, foram constituídos duas associações de âmbito nacional de contaminados por benzeno, uma em siderúrgicas, outra em refinarias, mas cujo processo, é bastante diferente do da pioneira associação dos leucopênicos de Volta Redonda, sendo criado na defesa dos trabalhadores doentes, mas também, como forma de exercer pressão (e, possivelmente inspirado por) sobre o

26 Em 1993, havia cerca de 500 metalúrgicos afastados do trabalho com leucopenia e cerca de 1.200 casos diagnosticados.

27 No período pós-privatização a prefeitura começou a ganhar importância, havendo sido criados vários fóruns de

28 As duas médicas do sindicato foram sucessivamente secretárias municipais de saúde

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grupo interinstitucional do benzeno, instituição tripartite, que se propõe a normatizar os limitesde exposição e os parâmetros para o diagnóstico da doença.

Caso 2: A ABREA – associação brasileira de expostos ao amianto

A ABREA foi criada em 1995 no município de Osasco (SP), principalmente em virtude da suspeita e confirmação da existência de trabalhadores doentes em virtude de exposição anterior a fibras de amianto, conforme constatado pela engenheira da DRT, Fernanda Giannasi, também sócia fundadora da ABREA. A constituição da associação foi ocasionada pela falta de resposta dos sindicatos de trabalhadores diretamente relacionados com a produção de amianto (mineração e fábricas de artefatos de amianto), cujos dirigentes se demonstram preocupados em defender empregos a qualquer custo (até mesmo o da vida dos trabalhadores), bem como a sobrevivência das próprias organizações sindicais29. A associação possui uma estrutura leve, sem cargos, apenas os de coordenação, que podem ser facilmente deslocados de um para outro dos associados. Possui atualmente cerca de 1.000 associados que se encontram em estágio avançado de doenças relacionadas com o amianto. Apesar da doença empenham-se em esclarecer vizinhos e organizações a respeito dos riscos do amianto, por vezes expondo publicamente seus próprios casos e aconselham aos consumidores o uso de produtos alternativos. Além da sede de São Paulo, possui representações e associados no Rio de Janeiro (onde estavam localizadas as fábricas de artefatos de amianto Eternit e Asberit) e na Bahia (mineração e produção). Formalmente a ABREA tem como propósitos: a) aglutinar trabalhadores e expostos em geral; b) cadastrar expostos e vítimas em geral; c) encaminhar expostos para exames médicos; d) conscientizar a população em geral, trabalhadores e opinião pública sobre os riscos do amianto; e) propor ações judiciais em favor de seus associados; f) integrar-se a outros movimentos sociais e ONGs pró-banimento do amianto em nível nacional e internacional; f) Lutar pelo banimento do amianto (cf. Castro, H., Giannassi, F. e Novello, Cyro, 2003; Scavone, L., Giannasi, F., Thébaud-Mony, A.).

A ABREA como diversas das congêneres atua em dois níveis, no do cotidiano, do interesse imediato dos sócios doentes, que é o âmbito do concreto: da esfera médica (exames,

29 Note-se que há uma série de importantes interesses em jogo. No caso da mina de Munuaçu, os impostos recolhidos correspondem a 30% arrecadação do município. Além disso, as empresas que exploram e produzem o amianto são grandes multinacionais francesas, que vêm deslocando sucessivamente suas instalações (ou

ampliando-as) em países onde a extração e produção de amianto ainda são permitidas.

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diagnósticos, tratamentos) e processos judiciais, e, ainda da agregação de novos companheiros e em uma esfera de articulação mais ampla: com sindicatos, movimentos de saúde do trabalhador, instituições de governo, ONGs nacionais e internacionais, redes e ‘redes de redes’. A primeira é a esfera da urgência, de pessoas que têm pressa, que freqüentemente têm os dias de vida contados. Há uma intensa atividade no dia-a-dia, que tem como objetivo, sob variadas formas, obter respostas concretas para os trabalhadores doentes e freqüentemente esposas e filhos igualmente doentes. O acompanhamento de processos é uma dessas atividades (a entidade está promovendo atualmente cerca de 2.500 processos), sendo que as informações a respeito do andamento das ações circulam rapidamente entre os associados. A morte daqueles que estão à frente da organização não tem trazido dissolução de continuidade nas ações do cotidiano. Seu Miguel, uma importante liderança do movimento, e recentemente falecido, é lembrado com sua foto que contém todos os signos da doença: magro, sentado na cama de uma casa modesta, um tubo penetrando a narina, o olhar perdido no vazio. Sua imagem, exposta em um cartaz da ABREA, em evento no Sindicato dos Petroleiros de Santos ocorrido em agosto de 200530, mostra, por um lado a necessidade de construção da memória, como elemento da própria construção do movimento, e contém, além disso, todos os elementos que expressam a exploração no trabalho, o sofrimento, a indignação com a injustiça, enfim, a concretização da vítima.

A atuação em outros níveis envolveu, mesmo antes da criação formal da associação, em 1994, a realização do Simpósio “Uso controlado do amianto: banimento ou uso controlado?”, sob o patrocínio da Fundacentro (Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Saúde no Trabalho) e da CUT (Central Única dos Trabalhadores), no decurso da qual, foi divulgada a declaração de São Paulo a favor do total banimento do amianto (contrapondo-se a instituições que defendiam o uso controlado e seguro do amianto) e criando a redes ‘Asbestos free world’ , ‘Ban asbestos international’ e a ‘Rede virtual cidadã pelo banimento do amianto na América Latina’, da qual, atualmente, Fernanda Giannasi é a coordenadora. Nessa esfera que envolve relações externas à entidade, a internet tem sido um instrumento poderoso de circulação de denúncias e informações. A ABREA possui uma página na internet e vários entre seus sócios dispõem de endereço eletrônico.

30 Simpósio Nacional do Trabalhador contaminado por susbstâncias químicas, 11 e 12 de agosto de 2005.

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Caso 3: A ADRVT-CPA - associação em defesa dos reclamantes e vitimados por doença do trabalho na cadeia de produção do alumínio.

O município de Barcarena está localizado no Pará, a uma distância de Belém que pode ser percorrida de uma a duas horas, dependendo do meio de transporte utilizado. Até vinte anos atrás, época de instalação da Albrás -, a população local vivia exclusivamente de pesca, extrativismo e agricultura. Nesta fábrica, são produzidos lingotes de alumínio a partir de alumina, que era importada até 1995, data de inauguração da Alunorte, onde é processada a bauxita, e transformada em alumina. O acionista principal das duas empresas é a Companhia Vale do Rio Doce, que responde por grande parte dos negócios de mineração e de metalurgia, do Estado do Pará, exercendo grande no governo do estado e na mídia local. A produção de alumínio é uma das mais poluidoras do mundo, envolvendo inúmeros produtos químicos31. As empresas enfrentam o problema da poluição com alguma tecnologia, especialistas e discurso.

Isto resulta na produção de uma hegemonia do conhecimento técnico a respeito da poluição, que é privativo da empresa, desqualificando qualquer representação nativa, baseada na experiência, cuja leitura é feita a partir da observação da natureza e das transformações vivenciadas pelos corpos individuais e apreendidas coletivamente. E essa hegemonia é representada didaticamente, de forma repetida, nos eventos de poluição causados por outras empresas, que são controlados pelos departamentos de meio ambiente do complexo industrial, e não pelas instâncias públicas competentes, municipais e estaduais, conforme seria de se esperar. A primeira vista, o que está em jogo é a imagem da empresa junto a seus parceiros internacionais, que procuram, a todo custo, evitar que um caso clamoroso de poluição venha atingir a imagem do empreendimento junto aos clientes. Esta representação, bem como as repetidas demonstrações públicas de conhecimento privilegiado, produzem efeitos simbólicos de grandes dimensões, mostrando, a todos, quem manda na região. Esse tipo de demonstração exemplar é repetido em outras esferas (na área social, obras em vias públicas,

31 A respeito das representações e significados da poluição entre as famílias que exercem atividades de pesca, agricultura e extrativismo, cf. Antonaz, D., 2004 .

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presença permanente na mídia), ampliando a presença das fábricas de alumínio (e da Companhia Vale do Rio Doce como um todo no Pará).

Os trabalhadores do complexo são representados por dois sindicatos. O sindicato dos metalúrgicos do Pará representa os trabalhadores da Albrás e o sindicato dos químicos os da Alunorte. O primeiro, após uma etapa de enfrentamento, que tem seu clímax na greve de 1990, adota uma relação de parceria com a empresa, que, como estratégia concede com facilidade algumas vantagens por ocasião das negociações coletivas, tentando produzir o descontentamento entre os trabalhadores químicos, que não recebem o mesmo tratamento, e o desgaste do sindicato junto aos trabalhadores (cf. Antonaz, D., 2004 a.).

As reclamações referentes a doenças dos trabalhadores da Albrás e da Alunorte, vêm se reproduzindo ao longo dos últimos dez anos. Uma antiga reivindicação de pagamento de adicionais de salário por condições de risco, permite o acúmulo de uma discussão que acaba se transformando muito rapidamente na percepção de adoecimento coletivo. As primeiras tentativas de reconhecimento de doenças e lesões graves decorrentes de acidentes do trabalho são rechaçadas pela empresa, que, como resposta, demite trabalhadores doentes, exigindo que comprovassem suas denúncias. A partir de determinado momento, os doentes de ambas as empresas se agregam em torno do sindicato dos químicos, uma vez que o sindicato dos metalúrgicos assume e reproduz o discurso da empresa, recusando-se a representar os trabalhadores. Isolados em Barcarena, os trabalhadores buscam alianças extra-locais, nacionais (CUT e outros sindicatos da região) e internacionais (Fórum Carajás, organização que reúne organizações de trabalhadores e de populações atingidas pelos projetos de mineração e produção de alumínio e entidades alemãs de apoio). Com o objetivo de se fortalecer localmente, o sindicato dos químicos promove um grande evento sobre a produção de alumino, onde a saúde do trabalhador era a tônica, com a presença de convidados nacionais e internacionais. Em decorrência da repercussão do evento, a delegacia regional do trabalho empreende uma tímida investida e é convocada audiência pública para debater o assunto na assembléia legislativa estadual. Passados alguns meses, quando a repercussão do caso perde seu efeito, as empresas começam a processar os dirigentes sindicais por injúria e difamação, e vasculham as suas vidas pessoais, promovendo o desarquivamento de uma investigação envolvendo o presidente do sindicato, o que tem como conseqüência sua desestabilização emocional e a instalação de um temor indefinido a respeito do que poderia vir a ocorrer com

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outras lideranças sindicais. Esse momento de instabilidade produz um enfraquecimento temporário do sindicato e deixa conseqüências. Havendo perdido, pelo menos formalmente, o espaço de sustentação possível, os trabalhadores, com auxílio externo, de representantes do F’rum Carajás, de profissionais de saúde locais e do Rio de Janeiro, que procuram realizar diagnósticos positivos dos casos de doença (fluoroses, intoxicações por alumínio, por hidrocarbonetos aromáticos, exposição a ácidos e calor, entre outras) constituem a sua própria associação. Tendo a frente um trabalhador, que sofre de sérios problemas neurológicos, são articulados apoios externos e propostas ações de reconhecimento das doenças e de indenização. Os dirigentes da associação, em sua maioria afastados do trabalho há longo tempo, estão presentes em fóruns de articulações coletivas, procurando, assim, as formas possíveis de romper o isolamento, de granjear apoio sindical e extra-sindical e de estabelecer relações com especialistas (no caso, principalmente a Fundação Osvaldo Cruz), que possam apóia-los em suas demandas.

Os personagens à frente das associações

Há sempre algumas pessoas, cuja ação é fundamental para a constituição das associações e o enfrentamento que a condição de ‘atingido do trabalho’ implica. Algumas pessoas – doentes ou especialistas – destacam-se nesse processo e assumem posições de liderança. Procuraremos esboçar, aqui, quem são esses personagens e o que os leva para a linha de frente. Entre os trabalhadores doentes há alguns indivíduos especiais32, que inicialmente se vêem diante da impossibilidade de acreditar que a situação que experimentam se situa no campo dos possíveis. Em seguida, a realidade concreta da dor e do sofrimento os leva a romper uma relação encantada com a empresa. A indignação que sentem por se sentirem enganados e freqüentemente abandonados socialmente leva-os a exigir o reconhecimento de suas doenças e sentem a necessidade de fazer justiça. São esses os moventes principais – reconhecimento e justiça – que os fazem percorrer hospitais e instituições públicas, buscar alianças, reunir iguais em diferentes níveis, estruturar grupos,

32 Refiro-me aqui a alguns trabalhadores muito especiais que conduziram esse processo e que encontrei ao longo de minhas pesquisas: Ivan metalúrgico (Rio), atingido pela silicose; Fabinho do metrô, atingido por asbestose (Rio); Vantuil, metalúrgico leucopênico (VR) ; Edna, telefonista atingida por LER (RJ); Damasceno, metalúrgico do alumínio, doente neurológico por afecção química em indústria de alumínio (Barcarena).

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contribuir para a transformação de agendas sindicais, buscar informações, vasculhar a internet, livros e jornais. Há grandes diferenças internas e diferentes possibilidades pessoais de construção do enfrentamento. A simples decisão de exposição pública de sua própria história, pode, por vezes, causar ressonâncias de tais dimensões, que permitam que medidas sejam tomadas imediatamente. Este foi o caso de Fabinho, trabalhador do metrô do Rio de Janeiro, acometido por asbesto, em decorrência de seu trabalho, que consistia em lixar sapatas de freio de amianto em uma cabine fechada. Vamos nos deter rapidamente na história de Fabinho, porque contém dimensões que serão objeto de nossa análise posterior. Fabinho, trabalhador negro e forte, havia trabalhado na construção do metrô. Analfabeto, não teria acesso a emprego na então recém-inaugurada Companhia do Metropolitano do Rio de Janeiro, que exigia segundo grau completo de seus empregados. No entanto, conforme revelado por supervisores da empresa, havia sido contratado para uma tarefa manual em virtude de sua grande capacidade de trabalho. Após alguns anos de atividade, começou a ser internado sucessivamente em hospitais, em virtude de deficiência respiratória. Aparentemente, sua doença não foi diagnosticada, e a cada alta médica voltava a seu trabalho. A sua doença foi descoberta por uma equipe de pesquisadores do DIESAT (Departamento intersindical de estudos e pesquisas dos ambientes de trabalho), e a denúncia que se seguiu, produziu o imediato reconhecimento da doença e substituição das pastilhas de amianto por outro material.

Fabinho foi aposentado e suas condições foram piorando ao longo do tempo.

Em outros casos, o processo é longo e difícil: exames médicos sucessivos, perícias sem fim, recursos das empresas, enfrentamento de peritos hesitantes. O reconhecimento das doenças e as compensações devidas só ocorrem em muitos casos após a morte dos trabalhadores. Os atingidos do trabalho, por isso, têm urgência: não dispõem de tempo para esperar os longos trâmites judiciais. Há sempre alguém à frente dos processos que contribui enquanto tem forças, quando vai sendo substituído por outro. Com efeito, as associações de

‘atingidos’ diferenciam-se de outras organizações, que, freqüentemente, atuam de forma pontual quando ocorre algum problema ou situação capaz de motivar sua ação (cf. Leite Lopes, J.S. et al., 2004). Não podemos deixar de apontar, no entanto, as dificuldades que essas ações significam para os trabalhadores. Para os trabalhadores afetados por uma das doenças do amianto, andar algumas centenas de metros, subir uma escada representam imenso esforço físico, que pode representar isoladamente resultados muito modestos, ou até mesmo nenhum

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resultado, além de muitas vezes sofrerem o que vivenciam como humilhações por parte de funcionários, médicos e peritos. Mas, as organizações de ‘atingidos’, embora tenham como objetivo o reconhecimento de seu estado e a eliminação do risco para outros trabalhadores intervêm na estrutura do estado, garantindo (e inventando) novas leis e serviços. Com sua sofrida experiência, indicam um modus facendi extremamente eficaz de atuação junto ao estado e às empresas, contribuindo para transformá-los.

Por outro lado, a conexão dos atingidos com organizações e redes internacionais se dá por meio da intervenção de intermediários: especialistas e militantes de ONGs e o acesso de informações através da internet, para os trabalhadores em particular acaba ficando restrito, às vezes por dificuldade de acesso a computadores e quase sempre em virtude do idioma. No entanto, nem sempre os especialistas atuam apenas como intermediários. Para alguns (ou melhor dizendo, algumas)33 o trabalho na associação se transforma no próprio objetivo de vida. Este é o caso de Fernanda Giannasi, engenheira, e de Cecília Zavariz, médica, ambas da DRT de São Paulo que são sócias fundadoras respectivamente da ABREA e da AEIMM.

Outras pertencem a programas de saúde do trabalhador, a ONGs ou assessorias sindicais.

Fernanda, na sua função inspeciona empresas, onde o amianto é utilizado ou os artefatos são produzidos. As conversas com os trabalhadores leva à suspeita de que existam trabalhadores doentes, sendo localizados os primeiros e encaminhados para exames médicos. O Congresso internacional realizado em São Paulo amplia a sua ação e a dos atingidos, que empunham a bandeira do banimento do amianto. Em decorrência de seu trabalho, Fernanda acaba sofrendo investigação no serviço público e processo por parte das empresas de amianto. Em seu apoio, corre uma lista na internet, que é assinada por especialistas e militantes de ONGs do mundo inteiro. Fernanda mantém seu vínculo estreito com os trabalhadores, acompanhando o cotidiano de cada um, mas também ganhou relevo internacional, enquanto especialista em amianto, sendo convidada a participar de fóruns organizados por instâncias internacionais, como a OIT, a OMS, o Parlamento Europeu.

Notas etnográficas de uma reunião

33 Em todos os casos por nós levantados, as especialistas envolvidas com as associações eram todas do sexo feminino.

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Enquanto estávamos preparando este paper, participamos em 11 e 12 de agosto do

“simpósio nacional de saúde do trabalhador contaminado por substâncias químicas”, realizado no Sindicato dos Petroleiros de Santos. O encontro, promovido propunha-se a organizar as propostas dos trabalhadores atingidos para a 3a. Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador34. O amplo auditório do sindicato, no segundo andar, representava dificuldade de acesso para muitos dos participantes, que subiam a escada devagar, parando a cada degrau.

No auditório, um palco elevado, onde se sucediam oradores oficiais das secretarias e ministério de saúde e alguns especialistas. O ponto alto do evento foi realizado em horário fora da programação do evento – à noite – ganhando aí caráter especial e cerimonial: a “audiência pública de direitos humanos, econômicos, sociais e culturais”35, conduzidos por Lia Giraldo da Silva Augusto36, durante a qual, os trabalhadores relataram seu sofrimento, tanto físico, quanto moral, e apresentaram queixas a respeito das humilhações recebidas por representantes de empresas, profissionais em hospitais e principalmente os peritos do INSS, na direção dos quais, as queixas e denúncias são unânimes.

No evento propriamente dito, deslocamos nossa atenção do foco central – o palco – onde se apresentam os palestrantes, para percorrer a platéia, onde integrantes de diferentes associações se mantêm juntos, e principalmente as paredes do auditório, nas quais, cartazes, faixas e painéis representam simbolicamente os grupos de atingidos. Cada grupo procura manter seu material em espaços contíguos, porém, não há propriamente uma ordem e por vezes os materiais se superpõem e misturam. Aproximando o olhar do material exposto verificamos a existência de material bastante antigo, de 1988, no caso das intoxicações de mercúrio na Eletrocloro e 1991, outro caso de intoxicação de mercúrio na fábrica de lâmpadas Sylvania. Alguns materiais não são datados, mas os cartazes e faixas expostos são como quadros sucessivos a contar histórias. Figuras centrais nessas histórias, são os trabalhadores

34 Trata-se de um evento realizado de dez em dez anos. O primeiro foi realizado em 1986. Congrega organizações de trabalhadores, de instâncias de governo e representantes de empresas, tendo o objetivo de atualizar as

políticas de saúde dos trabalhadores.

35 Não pudemos assistir a este evento, as informações foram repassadas por Fernanda Giannassi e duas trabalhadoras do Rio de Janeiro que desenvolveram doenças decorrentes da exposição ao amianto e com quem almocei no dia seguinte. Estavam tomando o lugar de uma colega à frente do movimento, que se encontrava enfraquecida .Além disso, as doenças associadas ao asbesto haviam matado o marido e o filho no último ano.

36 Lia Giraldo, médica, a partir de seu estudo com petroleiros no sindicato de Santos, correlacionou a leucopenia à intoxicação por benzeno. Pertence atualmente aos quadros da Fundação Osvaldo Cruz de Recife e é relatora da ONU de direitos humanos ao meio ambiente.

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mortos – as vítimas -. A foto de seu Miguel destaca-se isolada sobre uma cartolina amarela e por si só conta uma história: um cômodo modesto de casa de operário, Seu Miguel, magro, sentado sobre a colcha estampada de uma cama de solteiro, no canto direito uma garrafa de oxigênio ligada a um tubo introduzido em uma das narinas. O outro trabalhador morto, Nilson Domingos da Conceição, vítima do acidente da Sylvania, está em uma página de jornal. O primeiro foi militante, alguém que esteve próximo, como alguém da família, diferenciando-se do segundo, que não teve tempo de exercer a militância. O que há de fundamental nesses cartazes e faixas, que contam uma história, é que mostram a necessidade de construção de uma memória das doenças a partir da experiência cotidiana. Desta forma, a produção da memória constitui um capital social coletivo dos trabalhadores, que expressa e denuncia, de forma concreta, teimosamente, a cada momento, a exploração do capital, em uma época em que bandeiras empresarias, tais como, parcerias com empresas, ética, responsabilidade social, preocupação ambiental, parecem borrar tensões, conflitos e interesses de classe.

De forma a emprestar maior intensidade as histórias, são exibidos cartilhas e cartazes contendo informações técnicas a respeito dos efeitos dos produtos químicos. Tudo é feito de forma muito didática, seja dividindo-se o texto em tópicos temáticos, seja indicando os efeitos das substâncias químicas sobre uma figura do corpo humano, apontando o que ocorre com os diferentes órgãos. A ABREA, além disso, faz a apresentação da entidade em um dos painéis.

Além disso, há ainda, inúmeras faixas e cartazes exigindo o banimento das substâncias.

As e cartazes, reproduz em denúncias, como: “AIEMM - Basta de vítimas de doenças do trabalho e de intoxicação por mercúrio”; “ABREA - No Brasil, o amianto é legal... até quando?”; “AEIMM – Estamos de luto e na luta pela eliminação do uso do mercúrio no Brasil”. Ainda outros materiais chamam para a ação e organização em movimentos mais amplos: “ Sindicatos dos químicos unificados - Marcha em defesa do meio ambiente e pela qualidade de vida”; “Encontro nacional para lançamento da campanha: CPI para apurar conivência dos peritos do INSS e médicos de empresas”; “AIEMM – no dia 28 de abril estamos presentes para relembrar os trabalhadores mortos e lutar pela vida com dignidade”.

A ofensiva contra a atuação de peritos do INSS está tomando corpo, outra reunião do mesmo tipo foi realizada em Porto Alegre, em junho de 2005, promovida pelo Movida-Brasil, visando organizar um movimento para a instalação de CPI “contra a postura arbitrária da perícia médica do INSS”.

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A referência ao dia 28 de abril da outra faixa, dia da saúde dos trabalhadores (dia nacional em memória das vítimas de acidentes do trabalho e doenças do trabalho) assinala a morte de 78 mineiros americanos, na mina de Farmington, no ano de 1969. A comemoração da data é anualmente organizada por diversas entidades de trabalhadores, dentre as quais o Fórum nacional de militantes em saúde do trabalhador , outra organização surgida nos últimos anos a partir desses movimentos e que se propõe a manter sua independência, tendo-se recusado a fundir-se no RENAST, conforme sugerido por alguns técnicos do setor saúde. Na programação de 2005 foi incluída a realização do ‘tribunal do amianto’.

A instituição desta data internacional marca um evento significativo para as classes trabalhadoras, comparável a 1o. de maio e 8 de março. Nos três casos, o evento de origem é semelhante e visa produzir efeitos semelhantes, mas principalmente fortalecer simbolicamente a memória dos trabalhadores, que constituem centralmente sua identidade através da construção cotidiana de uma memória coletiva.

Alguns significados dos grupos de atingidos do trabalho

O material acima mostra amplas e múltiplas possibilidades de análise. No entanto, devido às limitações deste paper, limitar-nos-emos a alguns aspectos que consideramos mais relevantes.

Cabe acrescentar, que esse objetivo inicial se expande para ocupar espaços sociais e políticos mais amplos. O que se observa, mais recentemente, é a formação de grupos de atingidos que intervêm diretamente através de sua ação e de sua voz na defesa de interesses específicos e mais gerais, como meio ambiente e direitos humanos de modo amplo. A atuação dos grupos de atingidos do trabalho se dá mais intensamente em áreas contíguas, como saúde e meio ambiente. Verifica-se com freqüência um trânsito entre essas áreas e o e a linguagem subjacente ao discurso que engloba e relaciona os danos à saúde dos trabalhadores e o meio ambiente tem se mostrado muito eficaz. Também está presente aí uma articulação entre justiça social e justiça ambiental, uma vez que são os sentimentos de perplexidade e injustiça que mobilizam os atingidos do trabalho.

A atuação dos grupos de atingidos do trabalho se dá mais intensamente em áreas contíguas, como saúde e meio ambiente. Verifica-se com freqüência um trânsito entre essas

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áreas e o e a linguagem subjacente ao discurso que engloba e relaciona os danos à saúde dos trabalhadores e o meio ambiente tem se mostrado muito eficaz. Também está presente aí uma articulação entre justiça social e justiça ambiental, uma vez que são os sentimentos de perplexidade e injustiça que mobilizam os atingidos do trabalho.

Cabe comentar rapidamente a recente estruturação das grandes empresas, com suas gerências de meio ambiente, a contratação de consultores internacionais (médicos e engenheiros do trabalho) e os recém-implantados setores de responsabilidade social, como resposta a esses novos movimentos e às pressões do mercado internacional. Também no nível do Estado há iniciativas de articulação internacional como o ‘sistema globalizado humanizado de classificação e rotulagem de produtos químicos’, decorrente do capítulo 19 da agenda 21. A reunião da qual participamos a esse respeito pareceu-nos apontar para, ouvidos os técnicos, a criação de um grande consenso internacional do que seria ou não perigoso.

Observa-se, comparando os vários casos estudados, uma sucessiva autonomização dos

“grupos de atingidos do trabalho”. A sua origem se dá freqüentemente a partir de uma articulação com especialistas funcionários do estado e com o apoio dos sindicatos das respectivas categorias. Um estudo na longa duração mostra que esses grupos tendem a se autonomizar em momentos de crise, seja devido a mudanças de orientação na estrutura sindical, como nos casos de Volta Redonda e Barcarena; seja devido a crises ou transformações do poder local, como na situação específica de Volta Redonda e a se associar a redes nacionais e internacionais.

Uma pesquisa internacional recém-iniciada pelos autores deste trabalho mostra que esses grupos também se constituem em contraposição a estados autoritários, nos quais a ação sindical é intensamente vigiada. Cita-se o caso da organização Assembly of Patients from Occupational Hazards and Environment37, que atua participando e em colaboração com a Assembly of the Poor38. Esses grupos de atingidos tendem a se articular em rede com outras organizações nacionais e internacionais39, extrapolando seus objetivos iniciais e fazendo parte, freqüentemente, de importantes grupos de pressão. Nesse sentido, a categoria “atingidos”

37 Leite Lopes, J.S.; Antonaz, (2004 b)

38 Esta organização incluiu, em sua agenda, críticas às políticas de desenvolvimento, voltadas, entre outros problemas para reforma agrária, barragens riscos industriais graves, condições de trabalho perigosas, discussão ambiental e violação de direitos humanos.

39 Isso se verifica nos três casos estudados.

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acaba tendo seu significado inicial - voltado para as populações que sofrem os efeitos dos grandes projetos e das barragens em particular – ampliado para outros grupos, implicando isso, também, na ampliação da ação coletiva.

Finalmente, a pergunta que nos colocamos é: afinal, que grupo é esse? Como pode ser comparado aos movimentos existentes?

Castro, H. et al. (op. cit.) sugerem se inseririam dentro dos chamados “novos movimentos sociais”, incensados por alguns cientistas sociais por sua plasticidade e seu potencial de “empoderamento”, e que se constituem enquanto um contra-poderes, distanciando-se das organizações sindicais que freqüentemente se aliam aos patrões em uma pretensa defesa do emprego.

Os dados apresentados neste trabalho parecem confirmar tal plasticidade, no entanto, parece-nos que os ‘atingidos do trabalho’ não se enquadrariam facilmente nos “novos movimentos sociais”, uma vez que a identidade de seus integrantes é essencialmente de trabalhadores e, freqüentemente lançam mão de estruturas de sindicatos, que estão imediatamente disponíveis.

Quanto ao primeiro aspecto, essas organizações não possuem diretorias estruturadas, mas apenas coordenações bastante flexíveis. É fato, também, que se articulam em redes nacionais e internacionais e que a internet se transformou em novo instrumento de denúncia, mobilização e organização. No entanto, tanto por limitações físicas, de escolaridade e econômicas, ou mesmo de capital social, nem todos os trabalhadores têm condições de participar de eventos nacionais e internacionais, ou de utilizar a internet e conectar-se com as redes em inglês. Com efeito, são apenas alguns especialistas e trabalhadores de posição e escolaridade mais elevadas que tem acesso a esses recursos. Portanto, essa inserção e essa participação dependerão de apenas algumas pessoas que se transformam em porta-vozes das organizações e de sua capacidade de transportar o mundo para o movimento e o movimento para o mundo.

Os grupos de ‘atingidos do trabalho’ distanciam-se dos chamados ‘novos movimentos sociais’ em diversos aspectos: a forte marca da identidade de trabalhadores e a construção, cotidianamente, de ‘uma classe’, que se opõe claramente aos interesses do capital (embora sem esta intenção), denunciando o lado mais sombrio das organizações empresariais e das

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instâncias de governo, os objetivos claramente estabelecidos, além de sua ação cotidiana e duradoura. A dor, o sofrimento físico e moral, o profundo sentimento de injustiça estabelecem pré-condições diferenciadas para os movimentos de ‘atingidos do trabalho’.

Se alguma aproximação pode ser feita, acreditamos, que em alguns aspectos, os grupos aqui estudados estejam mais próximos dos grupos de parentes de mortos e desaparecidos, tanto na forma de ação (tribunais públicos, indenização), como na necessidade de recontar a história e constituir uma memória, usando essencialmente as fotos das ‘vítimas’, tanto em um como em outro grupo, como representação simbólica de uma memória que não pode ser destruída e da dor.

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Referências

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