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Open Escravidão e resistência: a ironia como recurso estilístico nos contos machadianos.

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Academic year: 2018

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CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LITERATURA E CULTURA

MARINA RODRIGUES DE OLIVEIRA

ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA:

A IRONIA COMO RECURSO ESTILÍSTICO

NOS CONTOS MACHADIANOS

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ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA:

A IRONIA COMO RECURSO

ESTILÍSTICO NOS CONTOS

MACHADIANOS

Dissertação apresentada à Universidade Federal da Paraíba como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura e Cultura.

Orientadora: Profa. Dr.a Zélia Monteiro Bora

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O48e Oliveira, Marina Rodrigues de.

Escravidão e resistência: a ironia como recurso estilístico nos contos machadianos / Marina Rodrigues de Oliveira. -- João Pessoa, 2011.

110f.

Orientadora: Zélia Monteiro Bora

Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCCHLA

1. Assis, Machado de – Contos - Crítica e interpretação. 2. Literatura e Cultura. 3. Escravidão – Brasil. 4. Escravidão – história – cultura.

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Primeiramente, gostaria de agradecer à professora Zélia Monteiro Bora, pela parceria acadêmica desenvolvida ao longo desses dois anos, bem como das contribuições advindas desta.

Às secretárias do Programa de Pós – Graduação em Letras, Rose e Mônica, pelo atendimento sempre solícito, no tocante aos aspectos mais “burocráticos”.

À minha família, por todo apoio e compreensão que foram me dados.

Aos meus amigos que fiz na cidade de João Pessoa, no Programa de Pós-Graduação em Letras e aos que há muito tempo me acompanham, na minha cidade natal, Campina Grande, pelas palavras carinhosas, pelo estímulo e também pela companhia sempre calorosa.

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Resumo: Esta dissertação tem, como objetivo, investigar o valor da ironia romântica como recurso estilístico e crítico na representação da visão machadiana sobre o problema da escravidão na sociedade brasileira. Para efeito didático, serão estudados os seguintes contos: Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1891) e Pai contra mãe (1906). A referida abordagem constitui-se como uma tentativa em elucidar a “possível” falta de criticidade da obra machadiana, no tocante ao problema da escravidão, conforme foi afirmado, durante muito tempo, pela Crítica Literária. Portanto, tratar a respeito do negro na escravidão brasileira compreende entendê-lo não como uma engrenagem motivadora de um mero sistema econômico-social que perdurou por três séculos – do XVI ao XIX – mas, antes de tudo, como um sujeito representado à margem, explorado desumanamente e excluído em uma sociedade em vias de modernização. Assim, a trajetória do negro, nos contos machadianos, nesse contexto, deve ser vista a partir da perspectiva literária, como um aspecto bastante significativo, além dos contextos histórico e cultural.

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Abstract: This dissertation aims to investigate the value of irony as a stylistic and critical resource in the representation of Machado's vision on the problem of slavery in Brazilian society. For didactic purposes, the following short stories will be studied: Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1891) and Pai contra mãe (1906). This approach constitutes an attempt to elucidate the "possible" lack of criticism in Machado's work regarding to slavery, as critics have stated for a long time. Therefore, dealing with black slavery in Brazil means to understand it not as a motivating gear of a mere economic-social system that lasted for three centuries – from the sixteenth to the nineteenth century – but, above all, as a subject represented at the margin, ruthlessly exploited and excluded within a society undergoing modernization. Thus, in this context, the trajectory of the black in Machado‟s short stories should be seen, by the literary perspective, as a very significant aspect in addition to the historical and cultural contexts.

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Introdução 10

1. Machado de Assis e as representações literárias da escravidão

15

1.1. O negro e a literatura brasileira 23 1.2. Machado de Assis e a escravidão 27 1.3. Revisão crítica sobre a escravidão em Machado de Assis

34

2. A ironia como recurso estilístico 48 2.1. Percurso histórico da ironia: da

Antiguidade Clássica à Idade

Contemporânea

49

2.2. A ironia em Machado de Assis: revisão crítica

63

3. Ironia e escravidão através dos contos de Machado de Assis

76

3.1. Virginius (1864): o embrião da representação escravocrata

77

3.2. Mariana (1871): a prisão em meio à liberdade

83

3.3. Encher tempo (1876): uma narrativa pouco conhecida

86

3.4. O caso da vara (1891): escravidão e relações de poder no sistema escravagista.

91

3.5. Pai contra mãe: “Nem todas as crianças (escravas) vingam”

96

3.6. Virginius, Mariana, Encher tempo, O caso da vara e Pai contra mãe: pontos de convergência e divergência

101

Conclusão 103

(10)

INTRODUÇÃO

O século XIX, no Brasil, e, particularmente, o Segundo Reinado (1840-1889), foi um período de mudanças, uma vez que o sistema escravagista começou, gradualmente, a ser extinto, por meio da promulgação de leis, como a Eusébio de Queiroz (1850), a do Ventre Livre (1871) e a dos Sexagenários (1885), que, em conjunto com o crescimento do movimento abolicionista e da pressão política exercida por países estrangeiros, a exemplo da Inglaterra, acabou por culminar com a definitiva libertação dos cativos, assegurada pela publicação da Lei Áurea (1888).

Em meio a esse contexto, vários escritores representaram, em suas obras, a escravidão, tendo sido os Românticos, de forma particular, os que deram maior ênfase ao referido tema: na obra “inauguradora” do Romantismo brasileiro, Suspiros poéticos e Saudades, mais precisamente, no poema “Invocação à saudade”, de Gonçalves de Magalhães, já se observa, ainda que de forma “embrionária”, uma abordagem do escravo, mostrando a saudade que o mesmo sentia da terra natal.1

Raymond Sayers (1958, p. 145-6), em O negro na Literatura Brasileira, afirma que, apesar de representar o negro, Gonçalves de Magalhães ainda o faz sob uma perspectiva que se assemelha a de outros autores, como Odorico Mendes, cujo poema Hino à tarde, “dialoga” com a obra Night throughts, de Edward Young. Dessa forma, nesse momento inicial, o que se observa é a representação do negro brasileiro ainda com base na literatura estrangeira, sem haver, contudo, uma visão própria da realidade brasileira.

Ainda segundo Sayers (1958, p. 156-7), posteriormente a Gonçalves de Magalhães, as primeiras obras que vão surgir, abordando a problemática do escravo, serão de pouca repercussão, dentre as quais, podem ser citadas algumas peças de Martins Pena (1841-1898), o romance A moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo e alguns poemas de João Salomé Queiroga, que foram escritos antes da década de 1830.

1

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Entretanto, a representação do negro só ganhará mais espaço com o crescimento do movimento abolicionista, fase que corresponde, na Literatura Brasileira, à chamada “geração condoreira”. Neste período, as obras de escritores como Castro Alves e Luís Gama, apoiadas no discurso abolicionista, destacam-se, por abordarem as crueldades do sistema escravagista, sob uma perspectiva de crítica à sociedade brasileira.

Machado de Assis adotará uma perspectiva semelhante à de Castro Alves e Luís Gama, muito embora se distinga destes, uma vez que não era envolvido com o movimento abolicionista, tampouco sua produção literária este caráter, fato que fez com que o autor de Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas fosse, por muito tempo, pela Crítica Literária, considerado como “alienado” à temática da escravidão.

A fortuna crítica de Machado de Assis inclui os gêneros crônica, romance, poesia e dramaturgia. Entretanto, o conto tornou-se um veículo simbólico, através do qual o escritor expressou melhor as suas principais ideias sobre a sociedade de seu tempo, proporcionando, dessa forma, uma ampla visão do Rio de Janeiro Imperial ao leitor. Essas representações do contexto social carioca deram-se, principalmente, no plano estilístico, no qual a ironia se constitui como uma importante figura de linguagem, uma vez que permitiu a Machado de Assis abordar o tema da escravidão, sob uma perspectiva crítica, constituída e narrada a partir do Outro, por meio da ironia.

Dentre os diversos temas trabalhados pelo escritor carioca, o problema da escravidão, na obra de Machado de Assis, atualmente, tem despertado interesse da crítica contemporânea. A referida temática foi objeto de discussões críticas desde a década de 1930, quando Lúcia Miguel-Pereira publica Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, apesar da participação do escritor, no processo crítico, ter sido bastante minimizada por críticos do passado.

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trapézio, de Raymundo Faoro (1974) e Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz (1977); oitenta, com Machado de Assis: ficção e história, de John Gledson (1986) e “Um caso para o leitor pensar”, de Regina Zilberman (1989); noventa, Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz (1990) e Machado de Assis: o enigma do olhar, de Alfredo Bosi (1999); e, por fim, dois mil, Machado de Assis: ficção e utopia, de Massaud Moisés (2001); “Querer, poder, precisar: „O caso da vara‟”, de Alcides Villaça (2006) e Por um novo Machado de Assis: ensaios, deJohn Gledson (2006).

Nossa perspectiva buscará demonstrar como o problema foi abordado, de ponto de vista estético, por Machado de Assis, através dos seguintes contos: Virginius (1864), Mariana (1871), O caso da vara (1899), Pai contra mãe (1906), retirados da antologia realizada por John Gledson (2001)2 e Encher tempo (1876), obtido de uma coletânea realizada pela Editora Mérito, em 1962. A ordenação cronológica de tais contos, pelas datas nas quais foram publicados, além de ter por objetivo contextualizá-los historicamente, pretende, também, verificar as possíveis mudanças na abordagem machadiana acerca do tema, bem como a postura do escritor Realista.

A análise de tais contos teve, além do objetivo supracitado – o de abordar o tema da escravidão –, também o de complementar o entendimento de como a ironia estabelece um parâmetro crítico, por parte do escritor, sobre a escravidão, na construção das personagens negras principais das referidas obras, a saber: Julião e Elisa, que, em “Virginius”, ao mesmo tempo que simbolizam a inversão do tratamento dado ao cativo, acabam por ser vítimas da violência senhorial; Mariana, do conto homônimo, que, apesar de ser tida como “igual” às suas sinhás brancas, acaba, diante da impossibilidade de concretizar o amor que sentia pelo seu sinhozinho, cometendo suicídio; Tia Mônica, de “Encher tempo”, que, ao mesmo tempo que é livre e tida, de forma análoga à Mariana, como membro da família senhorial, é também vítima desta; Lucrécia , em “O caso da vara”, que é castigada por Damião, jovem branco, que prometeu protegê-la da fúria de Sinhá Rita; Arminda, de “Pai contra mãe”, quefoge, grávida, da casa na qual trabalha, é capturada por Cândido Neves, homem que, apesar de branco, também pertence à uma classe social inferior, e, para salvar o filho da Roda dos Enjeitados, não

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hesita em entregar a escrava ao seu senhor, fazendo-a abortar e, com isso, puni-la pelo “delito” cometido.

Para embasar teoricamente os estudos sobre ironia, serão aqui utilizadas as contribuições de Kierkegaard (1991), D. C. Mueke (1995), Berel Lang (1996) e Beth Brait (2008), que privilegiaram aspecto histórico, fazendo um percurso sobre as mudanças de conceito e de categorização pelas quais passou a ironia, como, no caso particular de Lang, que enfatiza uma determinada tipologia, a ironia romântica.

Para efeito de organização de nossa discussão, o trabalho será dividido em três capítulos. O primeiro estabelecerá uma correlação entre o ambiente sócio-cultural brasileiro e a literatura de Machado de Assis, especialmente no que se refere ao contexto escravagista. Além desses aspectos, também serão considerados outros antecedentes literários sobre as representações do negro, principalmente na Literatura Brasileira.

O segundo capítulo objetiva mapear um estudo sobre a Ironia como recurso estilístico e suas utilizações através do discurso literário, em alguns momentos, desde a Antiguidade Clássica até o Romantismo, concluindo com as abordagens sobre a sua retomada por Machado de Assis.

Como instrumentos acessórios, na nossa discussão sobre ironia, serão retomados alguns estudos críticos sobre a obra machadiana, entre eles os de Lúcia Miguel Pereira (1936), Raymond S. Sayers (1958), Helen Caldwell (1960), José Aderaldo Castello (1969), Raymundo Faoro (1974), Roberto Schwarz (1977, 1990), John Gledson (1986, 2006), Regina Zilberman (1989), Alfredo Bosi (1999), Massaud Moisés (2001) e Alcides Villaça (2006).

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encontra-se representada nas obras machadianas, encontra-se inserida nesse contexto –, até chegar à atualidade.

(15)

1. Machado de Assis e as representações literárias da escravidão.

Machado de Assis, ao longo de sua trajetória literária, foi um escritor que “dialogou” com os mais diversos autores, a exemplo de Laurence Sterne, William Shakespeare – conforme bem demonstra Helen Caldwell, em O Otelo brasileiro de Machado de Assis –, Guy de Maupassant, Tchekhov, como também com outros intertextos, a exemplo da Bíblia, conforme se observa em contos, como “Na arca”, “Adão e Eva” e no romance “Esaú e Jacó”. Nestes “diálogos”, o escritor Realista abordou os mais diversos temas, a exemplo do adultério, política, ciência, relações sociais e, também, a escravidão, assunto cuja representação se centrará a discussão deste capítulo.

Os efeitos da escravidão sobre os escritos machadianos são representados através de sutilezas estilísticas, como é o caso da ironia, figura que norteia as mais diversas ações nas histórias sobre escravos e negros livres, que emergem como personagens secundárias, porém não menos importantes.

A representação do negro, na literatura brasileira, é introduzida antes do século XIX, antecipando, assim, a produção machadiana. Antes, porém, de correlacionar as narrativas do escritor Realista ao problema da escravidão, faz-se necessário entender, em linhas gerais, alguns aspectos do complexo processo escravocrata, especialmente em relação à cidade do Rio de Janeiro, no século XIX, época em que Machado viveu. Para tanto, fazem-se necessárias algumas colocações sobre os africanos e a diáspora. A diáspora africana, no Brasil escravagista, refletiu as fissuras daquele território, sendo fruto de um regime feudal e de guerras entre povos inimigos naquele continente, como também, de interesses econômicos de nações europeias.

O conceito de diáspora, segundo Stuart Hall (2009, p. 32-3), está baseado num processo de construção binária, no qual os pares exclusão / construção, dentro / fora se encontram subordinados sempre à identidade de um “outro”, de um indivíduo distinto.3

Os países envolvidos no tráfico negreiro atuavam de maneira distinta, como enfatiza Joseph C. Miller (2009, p.44):

3 O

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(...) Escravistas portugueses e brasileiros não competiam com os europeus do norte, ao longo da costa de Loango, no século XVIII, mas os dinâmicos comerciantes do Rio se aproveitavam das interrupções dos embarques franceses e britânicos, durante as guerras européias da década de 1790. Por essa razão, começaram a enviar „cabindas‟ [denominação esta dada aos negros que viviam na Costa Norte da Angola] para o Brasil após 1800, continuando até a década de 1840 (...).

Se as estratégias de atuação variavam entre as nações envolvidas, também variavam em um mesmo país. No caso do Brasil, por exemplo, os diferentes ciclos econômicos estiveram atrelados às heterogeneidades nacionais dos escravos traficados, conforme assinala o trecho a seguir:

Distinguem-se habitualmente quatro grandes ciclos de importação de escravos para o Brasil:

(i) no século XVI, o ciclo da Guiné, sendo os escravos principalmente sudaneses, originários da África situada ao norte do equador;

(ii) no século XVII, o ciclo do Congo e de Angola, que trouxe ao Brasil negros da zona banta;

(iii) no século XVIII, o ciclo da costa de Mina, que atingiu de novo negros sudaneses. A partir da metade do século XVIII, esse ciclo desdobrar-se-á num ciclo propriamente baiano: o ciclo da baía do Benim;

(iv) no século XIX, os escravos vieram um pouco de cada lugar, mas com predominância de negros vindos de Angola e de Moçambique.

Essa repartição em ciclos só é válida em suas grandes linhas, porque o fim de um ciclo não estanca totalmente a chegada de homens negros vindos da região do ciclo precedente e, ademais, a metrópole portuguesa teve sempre a política de misturar as diferentes etnias para impedir a concentração de africanos de mesma origem numa mesma região.

As razões econômicas ligadas a esses ciclos de importação são: nos séculos XVI e XVII, a cultura da cana de açúcar e do fumo; no século XVIII, a exploração das minas de ouro e de diamantes, mas também a cultura do algodão, do arroz e a colheita de especiarias; no século XIX, a cultura do café. (Vianna Filho, L. 1946; Mattoso, 1979 apud Bonvini, 2008, p.26-7)

Do exposto, depreende-se que as diferentes origens culturais dos negros vindos para o Brasil poderiam ter influenciado as diversas representações literárias destes, como príncipes, soldados, mulheres, órfãos, feiticeiros, etc. Não foi, entretanto, o que ocorreu, uma vez que o negro passou a ser visto sob uma perspectiva inteiramente eurocêntrica e racista, criando diversos estereótipos negativos, popularizados através da Literatura, gerando uma imagem inteiramente maniqueísta, como explica Franz Fanon (2008, p. 160):

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concreta, seja simbolicamente, representa o lado ruim da personalidade. Enquanto não compreendermos esta preposição, estaremos condenados a falar em vão do „problema negro‟. O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais, enegrecer a reputação de alguém; e, do outro lado: o olhar claro da inocência, a pomba branca da paz, a luz feérica, paradisíaca. Uma magnífica criança loura, quanta paz nessa expressão, quanta alegria e, principalmente, quanto esperança! Nada de comparável com uma magnífica criança negra, algo absolutamente insólito. (...) Na Europa, isto é, em todos os países civilizados e civilizadores, o negro simboliza o pecado. O arquétipo dos valores inferiores é representado pelo negro.

O processo crescente de despersonalização, que passou a atribuir, ao negro, em geral, independentemente da sua posição social, os aspectos acima citados e que foram reforçados pela escravidão negra, a ponto de gerar, no Brasil, um antagonismo entre os próprios negros, que, por sua vez, já traziam as diferenças tribais existentes no continente de origem. Apesar da separação entre os escravos pertencentes a uma mesma etnia e, muitas vezes, devido à convivência forçada entre aqueles pertencentes a grupos distintos, no Brasil, foram estabelecidos laços de solidariedade, expressos pelas comunidades quilombolas, que reuniam grupos de origens linguísticas e culturais diferentes.

Como exemplo dessa realidade, Robert W. Slenes (2009, p. 196-7) cita as afinidades existentes entre os escravos, no Brasil, provenientes de vários países da África Central, especialmente para o Rio de Janeiro, enfatizando que, apesar de uma grande parte dos cativos não pertencerem ao grupo linguístico banto, isso não foi um impedimento para a organização e entendimento entre os mesmos, uma vez que foi estabelecida uma espécie de “gramática” afim, centrada no conceito de linhagem (matriarcal / patriarcal), que era um aspecto em comum a todos os diferentes povos escravizados.

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Além dos contos citados terem, como aspecto em comum, a reação das personagens negras à opressão sofrida, o que se observa é que Machado de Assis enfoca o universo da escravidão urbana, mostrando que a liberdade “usufruída” pelos cativos – como assinalam Manolo Floretino, Horacio Gutierrez e Ida Lewkowicz (2008, p. 36) – pode ser questionada, dado que, mesmo sendo mais “independentes” que os escravos rurais, os urbanos também não estavam isentos da opressão senhorial.

Kátia Mattoso, na obra Ser escravo no Brasil, aprofunda essa relação de dependência entre os escravos urbanos e seus senhores, e afirma:

Uma coisa é certa: o escravo urbano nem sempre é tão especializado em seu trabalho quanto o quer a tradição: o escravo doméstico transforma-se facilmente em escravo „ganha-pão‟ à vontade de seu senhor, em escravo que vende fora de casa sua engenhosidade, sua mercadoria, a força de seus braços. O escravo da cidade é eclético. Alguns deles, evidentemente, adquiriram na África, ou com o seu senhor, um ofício determinado (cozinheiro, cocheiro, bordadeira, costureira, calafate, pedreiro, caldeireiro, carpinteiro, etc.). Estes vendem sua competência, se o mercado a requer. Outro venderá da mesma maneira sua habilidade em levar o cliente a comprar o que lhe queira vender (...). (MATTOSO, 1988, p. 140).

Zélia Monteiro Bora (2008, p. 97), no artigo “Food and religion: women and the Afro-Brazilian identity in the nineteenth century”, aborda o universo da escravidão urbana, destacando o papel desempenhado pelas mulheres, no tocante à preparação de comidas que eram utilizadas para fins religiosos:

(…) Desde o final do século dezenove, por meio do Candomblé, a participação das mulheres Afro-Brasileiras em rituais, e no controle na produção de comida nas cozinhas de seus senhores, enquanto escravas e libertas, foi um papel mediador essencial na organização de várias formas de rituais [,] enquanto expressão de uma coletividade [,] que tentou preservar a memória de seus ancestrais, fragmentada pela experiência da escravidão. O papel das mulheres na preparação da comida foi útil [,] no sentido de invocar e louvar seus deuses e espíritos.4

.

4 T aduç o li e da segui te itaç o:

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Ainda nesse texto, a autora citada enfatiza que nem todas as escravas ou mulheres livres trabalhavam em atividades relacionadas às práticas religiosas; muitas, não tinham a mesma sorte e acabavam sendo exploradas de outras formas, a exemplo da prostituição. Essa forma de exploração é ressaltada, também, por Julio José Chiavenato, em O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai (1980), à qual acrescenta a atividade das negras como vendedoras ambulantes:

(...) As negras ganhadeiras, quando não se empregavam na prostituição, eram enviadas às ruas para vender doces, comidas etc. A origem das „baianas‟ vendendo acarajé e outras iguarias está nas negras ganhadeiras, que chegaram a ser importante fonte de renda suplementar da aristocracia urbana do século XIX. (CHIAVENATO, 1980, p. 138-9).

As atividades desempenhadas pelo escravo urbano estão, também, presentes nos cinco contos machadianos: em Virginius (1864), enquanto Julião trabalha nos serviços braçais da casa de Pio, ou “Pai de todos”, cabe a Elisa a organização, por meio das prendas domésticas (lavar, passar, cozinhar), do pequeno casebre no qual vive com o pai; já Mariana, personagem do conto de mesmo nome, e Tia Mônica, de Encher tempo (1876), são casos atípicos, uma vez que são tidas como “crias” das casas nas quais moram e, por isso, não são mostrados, nas narrativas, momentos em que estas personagens desempenham alguma espécie de trabalho; Lucrécia, d‟ O caso da vara (1899), é aprendiz de costura de Sinhá Rita, enquanto Arminda, de Pai contra mãe (1906), trabalha em uma casa, possivelmente nas funções relacionadas às prendas domésticas, de forma semelhante a Elisa. Percebe-se que as atividades praticadas pelas personagens machadianas, sobretudo as mulheres, estão marcadas pela autoridade branca, fato que reflete a organização social e de gênero da época.

(20)

No contexto rural, o trabalho do escravo se diferenciava um pouco do praticado na cidade: enquanto no contexto urbano, conforme foi visto, os cativos tinham a possibilidade de trabalhar tanto nas casas de seus senhores, quanto nas ruas, nas mais diversas ocupações, no mundo rural, a maioria dos escravos trabalhava exclusivamente nas terras pertencentes a seus proprietários, produzindo uma economia de subsistência, sendo privilégio de poucos vendê-la e comercializá-la nas cidades, conforme afirma Mattoso, em Ser escravo no Brasil:

(...) O negro do campo raramente vende fora da fazenda os produtos do pequeno pedaço de terra que lhe permitem explorar e que servem, antes de tudo, a complementar suas rações diárias. Ele produz para uma economia de subsistência e não para uma economia de mercado (...) Outros escravos agrícolas – é verdade que uma insignificante minoria – tiveram oportunidade de serem encarregados da comercialização dos produtos que cultivam na plantação: estes pertencem, ao mesmo tempo, à cidade e ao campo; cultivam a terra, mas vendem sua produção na cidade, o que é considerado muito constrangedor e degradante para os brancos, mas dá ao escravo a possibilidade de ganhar algum dinheiro seu. (...) (MATTOSO, 1988, p. 168-9).

Partindo para o contexto histórico do século XIX, particularmentedurante o Segundo Reinado, observa-se que o Rio de Janeiro era o principal centro do país e, consequentemente, cenário dos acontecimentos políticos e econômicos mais importantes. Era ainda uma das cidades – senão a cidade – com maior número de escravos, que eram tanto domésticos, quanto “ao ganho”, categoria esta que incluía os vendedores, comerciantes e prostitutas, conforme salientaram as citações anteriormente assinaladas.

Para garantir a continuidade do sistema escravocrata, a elite brasileira propagava a ideia do cativeiro como “habitat natural” dos negros, atribuindo-lhe a condição de objeto, privando-o do seu caráter humano. Enfatiza-se, também, o papel dos postulados europeus, dentre os quais o evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social-darwinismo (este último, sendo entendido como a aplicação do darwinismo na organização das sociedades, nas quais apenas as mais adaptadas às mudanças sofridas sobreviveriam), amplamente divulgados e aceitos no Brasil, a partir da década de 1870, como analisa Lilia Moritz Schwarz (2008, p. 28):

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um novo argumento para explicar as diferenças internas. Adotando uma espécie de „imperialismo interno‟, o país passava de objeto a sujeito das explicações, ao mesmo tempo que se faziam das diferenças sociais variações sociais. Os mesmos modelos que explicavam o atraso brasileiro em relação ao mundo ocidental passavam a justificar novas formas de inferioridade. Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos –„classes perigosas‟ a partir de então – nas palavras de Silvio Romero transformavam-se em „objetos de sciencia‟ (prefácio a Rodrigues 1933/88). Era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades (...).

Como se observa, a escravidão dá origem a um segmento de marginalizados, tidos, como ressalta Schwarz, como “classes perigosas”, para designar os pertencentes a esse grupo de pessoas, que se caracterizariam por serem indivíduos fora de qualquer acordo, no âmbito da cidadania. Serão exatamente esses sujeitos que estarão presentes nas narrativas machadianas, em inúmeras situações, especialmente no ambiente doméstico, como se encontram representados, através dos contos.

O atributo mais comum, que, provavelmente, ajuda a correlacionar a visão histórica à literária é o da despossessão, que cerca os indivíduos, como se verifica no tocante ao aspecto financeiro. Apesar da miséria que gerava aos cativos, o sistema escravocrata brasileiro produziu grande riqueza para aqueles que exploravam a mão-de-obra africana, tendo, do seu princípio até o final, o apoio de várias nações, particularmente da inglesa, cujos interesses, na relação com Brasil, estavam ligados à expansão comercial e investimentos industriais, conforme assinala Myriam Ellis et al., em O Brasil monárquico, v. 6: declínio e queda do Império (2004, p. 167).

A campanha empreendida pela Inglaterra para a abolição do tráfico negreiro brasileiro foi constante. Primeiramente, em 1826, um tratado assinado pelos dois países tentou pôr fim à escravidão, entrando em vigência em 1827, perdurando por três anos. Como consequência desse acordo, em 1831, foi promulgada uma lei que visava punir os traficantes e libertar os escravos; os resultados, entretanto, foram infrutíferos, de acordo com Boris Fausto (1999, p. 194), em História do Brasil:

(...)

(22)

Esse contexto histórico, no qual a escravidão continua a existir, mesmo sendo o tráfico proibido, encontra-se representado nos contos machadianos aqui em análise: embora estes sejam publicados entre os anos de 1864 e 1906, seus enredos estão centrados na década de 1850, portanto, quase vinte anos após a promulgação da lei de 1831. Em todas as narrativas – Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1899) e Pai contra mãe (1906) –, percebe-se que o tratamento dado aos cativos é bastante cruel, embora haja diferentes graus. A situação mais irônica é entre aqueles que são considerados como “crias” das casas onde moram, a exemplo de Mariana e Tia Mônica, não se observando, com exceção de Virginius, a punição daqueles que maltratam seus cativos. Machado de Assis demonstra, dessa forma, sua postura crítica, ainda que “velada”, em sua obra, a respeito da questão.

É interessante a postura de “justiceira”, adotada pela Inglaterra, principalmente se for considerado o fato de que tal atitude só veio depois da própria Inglaterra abolir, no início do século XIX, a escravidão em suas colônias, fato observado por Emília Viotti da Costa (2008, p. 24), na obra A abolição:

(...) Foram as pressões internacionais que levaram finalmente à aprovação da Lei de 1831, que proibiu o tráfico de escravos. A pressão veio da Inglaterra que, depois que o Parlamento inglês abolira o tráfico de escravos em suas colônias (1807), tornou-se paladina da emancipação e passou a perseguir os negreiros em alto-mar (...).

A pressão inglesa ao tráfico de escravos, em terras brasileiras, reflete um longo processo de dependência: a Inglaterra havia ajudado, em 1808, a família real portuguesa a se instalar no Brasil, recebendo, em troca, de D. João VI, vantagens comerciais, que, posteriormente, estreitaram mais ainda os laços entre os dois países, que se tornaram mais intensos após a intervenção da Inglaterra, junto a Portugal, para o reconhecimento da Independência do Brasil, fatos estes assinalados por Costa (2008, p. 25). Todo esse processo tornou o Brasil extremamente dependente da Inglaterra, e proporcionou a esta, mais tarde, condições para intervir na política do país sul-americano.

(23)

1831 e 1885, o que se observou foi o crescimento do movimento abolicionista, cuja origem data de meados do século XIX, segundo Costa (2008, p. 39), como, ainda da literatura que representará o negro, não só nas obras machadianas, como de outros escritores que lhe foram contemporâneos, a exemplo de José do Patrocínio e Luís Gama.

Percebe-se que, no plano político, a abolição no Brasil foi um processo gradativo, fato que irá interferir na representação do negro, na Literatura local, uma vez que as personagens escravas ganharão mais espaço, nas obras da época, ainda que sob uma visão permeada por estereótipos. Para aprofundar essa discussão, bem como ver como se deu esse processo, será feita uma explanação, no tópico que se segue.

1.1. O negro e a literatura brasileira

Conforme afirma o estudo O negro na literatura brasileira, de Raymond S. Sayers, a literatura brasileira, desde seus primórdios até a época aqui em estudo, o século XIX, pouco enfatizou a figura do negro. Nesse último período, ainda de acordo com o estudioso, o africano passa a ser uma figura de destaque, na Literatura, dado o crescimento do movimento abolicionista: provavelmente, motivado por essa contingência histórica, Machado de Assis irá publicar seus contos a respeito do tema, e, conforme será visto, não sob um viés abolicionista e panfletário, mas num tom irônico e crítico.

Sayers (1958, p. 60-1) observa que, inicialmente, nos idos do século XVII, os escravos eram citados apenas como bens móveis, em documentos, muito embora tenham existido escritores, a exemplo dos padres José de Anchieta e Antonio Vieira, que condenavam, por meio de seus escritos literários, as condições às quais tais trabalhadores eram submetidos.

Na mesma época dos escritos de José de Anchieta e Antonio Vieira, Gregório de Matos, em seus poemas, vai representar a figura do escravo, mas não sob a perspectiva crítica adotada pelos escritores religiosos, utilizando-se, na maioria das vezes, da sátira, ao opor homens e mulheres brancos aos negros, segundo Jerry Santos Guimarães e Marcelo Moreira (2007, p. 11):

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base da hierarquia política, a mulher, negra, herege, feiticeira, puta, africana, escrava e desonesta. Assim é a ordem natural das coisas, contra a qual não convém se levantar, sob pena de desestabilizar o corpo místico social e atentar contra Deus. É com vistas a tornar evidentes e corrigir tais desrespeitos contra naturam que estes e outros tipos sociais são satirizados.

Contrapondo-se à visão de Gregório de Matos, Machado de Assis, em seus escritos, em particular nos contos aqui em análise, representará os escravos como vítimas de um sistema opressivo. No tocante às mulheres, que aparecem em todas as narrativas aqui em estudo – Virginius, Mariana, Encher tempo, O caso da vara e Pai contra mãe –, é preciso enfatizar que o processo de vitimização será ainda maior, uma vez que será acompanhado, a exceção de Encher tempo, de cenas que retratam a violência sofrida, incluindo desde castigos físicos até a morte.

O século seguinte às publicações de José de Anchieta, Antonio Vieira e Gregório de Matos, o XVIII, no Brasil, corresponderá ao Arcadismo, movimento cujos escritores, embora tenham sido claramente influenciados pelos ideais Iluministas - dentre os quais estava incluída a abolição da escravatura – não incluíram, em suas ações, especialmente, aquelas voltadas para um suposto ideário nacional, a incorporação, em sua bandeira, do fim do cativeiro negro, especialmente em insurreições como a Inconfidência Mineira. Esse aspecto só será amplamente discutido através da incorporação temática em obras de poetas,

como Castro Alves, Luís Gama, Fagundes Varela e Tobias Barreto. Esse aparente paradoxo, em relação aos escritores árcades, pode estar relacionado ao grau de comprometimento dos seus membros com a política portuguesa, segundo o que afirma Costa (2008, p. 14-5).

A “apropriação” das ideias Iluministas não ficou restrita, apenas, ao contexto da Inconfidência Mineira. O estudo de Costa (2008, p. 15) destaca que,

em 1798, na Bahia,

(...) mulatos e pretos livres e escravos foram condenados (...) por defenderem „os abomináveis princípios franceses‟ e por tramarem contra os poderes constituídos. Os revolucionários da conjura baiana (como muitos outros revolucionários daí por diante) não tinham lido os autores da Ilustração: Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Raynal, que tanto entusiasmavam os intelectuais da época, mas tinham entendido, à sua maneira, a mensagem de liberdade e igualdade que a nova ideologia revolucionária continha (...).

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XVIII, afirmam uma postura de resistência, diante do sistema escravagista, atitude que se tornará recorrente, principalmente no século posterior, em vários outros Estados brasileiros. No século XVIII, entretanto, o que se observa, ainda, é o forte domínio do sistema escravagista, o que implicará na interferência do campo político no literário e, com isso, a representação do negro ficará comprometida.

No século XIX, o negro, na Literatura Brasileira, segundo Sayers (1958, p. 161-2), “deixa (...) de ser uma abstração para tornar-se pessoa”, uma vez que os personagens tipos serão ampliados, bem como as situações nas quais estes estarão envolvidos. Dentre os fatores que permitem tal mudança estão a emergência do nacionalismo literário, a crescente importância que o negro passou a ter, dentro do gradativo processo de Abolição, as pressões de países como a Inglaterra, para o fim do cativeiro, a emergência do ideário abolicionista, caracterizado por uma visão mais humanizada do negro, além do aparecimento de autores que lançaram novos olhares a respeito da condição do cativo, a exemplo de José da Natividade Saldanha, escritor brasileiro (1796-1830), cuja obra vai exaltar a figura de Henrique Dias, capitão negro que combateu os holandeses:

(...)

Provavelmente, como o refere a tradição, o „mulato‟ Saldanha escreveu uma série de odes aos heróis das guerras contra os holandeses, uma das quais dedicadas a Henrique Dias. Contudo, nessa ode à memória do grande capitão negro, há apenas duas referências à sua ascendência africana, nela não havendo maior vivência pessoal do que há na escrita ao chefe português, Vidal de Negreiros, ou ao herói índio, Camarão. De fato, Saldanha dá o nome de Cipião tanto para Camarão quanto para Henrique Dias, e, se compara este último a Aquiles, compara o primeiro a Pompeu (...). (SAYERS, 1958, p. 142).

Não apenas a Literatura de Machado de Assis aborda a questão do negro, como também a Crítica, sendo Sílvio Romero um dos estudiosos que irá se pronunciar a respeito. Segundo Maria Elizabeth Chaves de Mello, no artigo “Sílvio Romero vs. Machado de Assis: Crítica Literária vs. Literatura Crítica”, apesar do crítico sergipano ter assimilado o discurso determinista, segundo o qual o homem era um produto do meio, da raça e do momento (argumento que usará, enfaticamente, para atacar a obra machadiana, bem como o escritor Realista), não deixou de reconhecer a importância do africano:

(...)

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pela intelectualidade nacional. O que quer que notardes de diverso entre o brasileiro e o europeu, atribui-o em sua máxima parte ao preto (MELLO, 2008, p. 184 apud ROMERO, 1978, p. 3)

É ainda nesse momento, segundo Sayers (1958, p. 205-6), que Sílvio Romero publica Cantos do fim do século (1878), uma antologia de poemas, cuja introdução e conclusão merecem algumas considerações. Na introdução do livro, Sílvio Romero faz uma ampla discussão sobre a poesia, particularmente a Romântica, criticando a permanência de traços desta na Literatura da época, ao afirmar que “(...) é certo que as ironias de Byron, e os prazeres de Lamartine há muito se acham desacreditados” (ROMERO, 1878, p. 727), bem como as influências de certas correntes de pensamento, a exemplo do positivismo e do socialismo na poesia. Ao abordar a poesia brasileira da época, destaca a falta de técnica que esta sofria, uma vez, que na sua opinião, “(...) não somos um povo de alta cultura, não porque nos faltassem frases, que nos sobram; mas por faltar-nos sciencia; não por falharem os trovadores, mas porque não se encontram os artistas” (ROMERO, 1878, p. XV ). Atribui, assim, os eventuais problemas à influência da poesia didática – da qual destaca como representantes e “influenciadores” Shakespeare e Schiller –, da ciência e religião; por outro lado, enaltece a poesia que classifica como “indômita”, que se caracterizaria pela presença do riso, do delírio, tendo como exemplos autores como Ésquilo e Dante.

Ao destacar o período que compreende os anos de 1863 a 1869, Sílvio Romero compara dois autores, Tobias Barreto e Castro Alves, atribuindo, ao primeiro, a introdução do estilo literário de Victor Hugo, no Brasil, e caracterizando o segundo como “(...) um homem de imaginação mais que de sentimento. – Exagera o estilo” (ROMERO, 1878, p. 237). Após tecer outras considerações acerca da poesia brasileira da época, Sílvio Romero enumera alguns de seus artigos, dentre os quais, serão aqui destacados dois:

(...)

3.0 A Poesia das Falenas – na Crença de 30 de Maio do mesmo ano [1870]. Nesta crítica ao livro do Sr. Machado de Assis eram combatidos o lirismo subjetivista e o humorismo pretensioso.

4.0 A Poesia das Espumas Flutuantes. A crítica ao desditoso Castro Alves , então ainda vivo, ataca sobretudo as imitações servis a Victor Hugo feitas pelo poeta. No Americano do Recife em Setembro de 1870. (ROMERO, 1878, p. 242 ).

(27)

Assis e Castro Alves, ainda demonstra o preconceito do crítico em relação aos referidos escritores, posição que acaba por ser destoante do crescente movimento abolicionista e da representação do cativo em voga.

No tocante a este último aspecto, é importante frisar que a representação do negro deu-se a partir de estereótipos ou personagens tipos, como está denominado em Sayers (1958, p. 161-2):

(...) Aos poucos a tipo padrões já encontrados na poesia e na prosa, como o negro heróico, o negro fiel e o negro melancólico, acrescentam-se outros tipos, entre os quais os mais importantes, sem dúvida, são os da bela mulata e o da negra formosa. Além do mais, as situações de que o negro pode participar aumentam consideravelmente (...)

Em meio a esse contexto, a obra estrangeira “A cabana do pai Tomás” (Uncle Tom´s Cabin), escrita por Mistress Harriet Beecher Stowe, será de grande importância, dado que serviu como estímulo aos escritores antiescravagistas a se oporem, de forma mais veemente, à escravidão, além de ter dado maior destaque ao negro, mostrando a crueldade dos feitores e o bom caráter dos escravos, fato assinalado por Sayers (1958, p. 317), muito embora apresente uma perspectiva que não era do negro, mas de uma branca ou de alguém que não tenha tido, sobre si, o estigma da escravidão.

De modo distinto à autora de A cabana do pai Tomás, Machado de Assis, ao representar a escravidão, o fará sob uma perspectiva crítica, dada sua condição de afro-descendente, que, somada a uma aguda percepção dos acontecimentos políticos da época, bem como o uso da ironia, proporcionará, às obras machadianas, uma ampla abordagem do negro e do problema do cativeiro, conforme se observará no tópico a seguir.

1.2. Machado de Assis e a escravidão.

Este tópico objetiva demonstrar a visão crítica de Machado de Assis, representada através da Literatura, a respeito da escravidão brasileira. Para isso, será estabelecida uma analogia entre a produção do escritor Realista e o contexto histórico-social da época, o Segundo Reinado. A presente discussão é introdutória, uma vez que é impossível esgotar o assunto, devido aos limites propostos para esse trabalho.

(28)

relacionando-se com as várias situações da escravidão, sendo a maior delas a que se refere ao sistema legal brasileiro e ao não-cumprimento das leis antiescravagistas.

É importante ressaltar, ainda, que o estudo da representação literária da escravidão, por Machado de Assis, não é um tema recente, registrando-se, entre as obras pioneiras, a de Lúcia Miguel-Pereira, Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, cuja primeira edição data de 1936. Antes, contudo, de abordar a respeito dos estudos feitos pela Crítica Literária, a respeito do assunto em questão, faz-se necessário abordar alguns aspectos referentes à época na qual as narrativas, anteriormente citadas, foram publicadas, dando especial ênfase às leis abolicionistas que antecederam à promulgação da Lei Áurea, bem como à inaplicabilidade das mesmas.

O Segundo Reinado, período no qual viveu Machado de Assis, será, também, fortemente marcado pelos embates sobre o fim da escravidão, conforme foi anteriormente assinalado. Foram promulgadas, nessa época, três leis de combate à escravidão - a Eusébio de Queiroz (1850), a do Ventre Livre (1871) e a dos Sexagenários (1885). Em meio a esse contexto, Machado de Assis será um escritor que acompanhará as transformações em curso, analisando-as sob uma perspectiva crítica e, sobretudo, irônica, fato que será visível na publicação de suas obras da época, por meio das quais o escritor irá demonstrar que, apesar das promulgações das leis, acima referidas, a não-aplicabilidade das mesmas manteve as relações sociais existentes entre senhores e escravos, sobretudo no tocante ao tratamento dado a estes últimos.

A esse respeito, uma das primeiras fontes que comenta sobre o problema encontra-se no estudo realizado por Maria de Fátima Rodrigues das Neves, em Documentos sobre a escravidão no Brasil (2001), livro no qual a autora transcreve o texto das três leis que antecederam à Áurea, já anteriormente citadas.

A Lei Eusébio de Queiroz teve por objetivo promover o término do tráfico negreiro, conforme assinalava em seu texto:

Art. 1.0 As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriais do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cuja importação é proibida pela Lei de 07.11. 1831, ou havendo-os desembarcado, serão apreendidas pelas Autoridades, ou pelos navios de guerra brasileiros, e consideradas em tentativa de importação de escravos.

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Art. 3.0 São autores do crime de importação, ou de tentativa dessa importação o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação e o sobrecarga. São cúmplices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos no território brasileiro, ou que concorrerem para os ocultar ao conhecimento da autoridade, ou para os subtrair à apreensão no mar, ou em ato de desembarque, sendo perseguido. (...) (NEVES, 2001, p. 84-6).

Embora tenha conseguido, por um lado, diminuir o número de escravos traficados, conforme salientam os números apresentados por Myrian Ellis et al. (2004, p. 169), a Eusébio de Queiroz não findou com o “abastecimento” de cativos, que continuou a existir por meio de uma nova forma, o chamado tráfico interprovincial, como será assinalado por Fausto (1999, p. 204).5

Machado de Assis irá representar essa realidade em suas obras, particularmente no romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) – que é, possivelmente, o grande trabalho machadiano a respeito da falibilidade na execução da Eusébio de Queiroz –, no qual a personagem Cotrim se destaca por ser sido um contrabandista de escravos:

(...)

Como [Cotrim] era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais. (MACHADO DE ASSIS, 2007, p. 211, grifo desta citação).

Machado de Assis, no trecho acima, ironiza o fato de que o fim do tráfico negreiro não extinguiu a escravidão, tampouco as suas práticas de punição aos escravos, que permaneciam ainda subjugados aos senhores. Cotrim, dessa forma, acaba por ser uma representação da pequena burguesia que, vendo no negro seu principal meio de sobrevivência econômica, ainda o explorava à exaustão, dado que não existiam punições para os senhores que maltratassem seus cativos, fato enfatizado por Roberto Schwarz, em “Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis” (2008, p. 36).

5 Antes da Eusébio de Queiroz, outros dois decretos foram promulgados: a lei de sete de

(30)

A participação dos escravos na Guerra do Paraguai (1864 – 1870) fomentou o movimento abolicionista já existente, somada à crise política de 1868. Tais manifestações propiciaram condições para as primeiras discussões acerca da Lei do Ventre Livre, conforme está destacado por Costa (2008, p. 49):

(...)

A participação de escravos na guerra forneceu novos temas aos que lutavam pela sua emancipação. A campanha em favor da libertação dos escravos recrudesceu. Grêmios, clubes, jornais, associações abolicionistas ou emancipadoras foram organizadas nas principais cidades do país. As lojas maçônicas passaram, por sua vez, a dar apoio a essas iniciativas. Em São Paulo, um famoso negro descendente de escravos, Luiz Gama, organizava uma campanha jurídica em favor da emancipação do escravo. Apoiando-se na lei de 1831, passou a exigir a libertação de grande número de escravos a quem defendeu nas cortes de Justiça, alegando que tinham entrado no país depois daquela data e, portanto, não podiam ser mantidos no cativeiro. A campanha organizada por Luiz Gama constituía uma ameaça aos proprietários, pois um grande número de escravos nessa época tinha, de fato, entrado no país depois de 1831 e seu cativeiro era de fato ilegal.

A década de 1870 inaugurava-se, portanto, em um clima de apreensão por parte dos proprietários de escravos e renovado entusiasmado dos que lutavam pela emancipação dos escravos. A crise política desencadeada pela queda do Ministério Liberal, em 1868, agira como elemento catalítico. Os debates travados na Câmara e pela imprensa em torno da Lei do Ventre Livre fizeram da emancipação dos escravos uma questão nacional.

Promulgada em 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre teve por objetivo libertar os filhos de mulheres escravas, ou ingênuos, como também passaram a ser denominados. Tal liberdade, entretanto, estava condicionada à vontade do senhor das escravas, conforme salienta o texto da lei, assim transcrito em Neves (2001, p.87-8):

(...)

Art. 1.0 Os filhos de mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.

Par. 1.0 Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de 8 anos completos.

Chegando o filho da escrava a esta idade o senhor da mãe terá a opção ou de receber do Estado a indenização de 600$000 réis ou de utilizar-se do menor até a idade de 21 anos completos.

No primeiro caso o Governo receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei.

A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6% os quais se considerarão extintos no fim de 30 anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias a contar daquele em que o menos chegar à idade de 8 anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.

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A Lei do Ventre Livre criou, entre os senhores de escravos, um impasse, uma vez que nem todos reconheceram a necessidade de libertar os cativos recém-nascidos. Diante dessa realidade, muitas escravas que engravidavam, temendo o destino de seus filhos, praticavam o aborto, prática que, embora já existisse, tornou-se, nesse contexto, mais intensa, de acordo com Chiavenato (1980, p. 133). Machado de Assis, exatamente no mesmo ano de promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, escreveu um conto bastante simbólico, Mariana, no qual aborda a história da personagem-título, uma jovem escrava, criada como “filha” na casa de seus senhores e que se apaixona pelo filho destes, Coutinho. Diante da impossibilidade de ser correspondida sentimentalmente e socialmente, uma vez que Coutinho, além de estar hierarquicamente numa posição social superior, era, também, noivo, Mariana, após uma série de fugas, suicida-se, atitude que se configura como uma demonstração das incompatibilidades entre a sua situação como “cria da casa” e a realidade de escrava, sendo esta última a que realmente condizia com a visão apresentada pela família senhorial.

A década de 1880 será marcada pela promulgação de mais uma lei destinada à libertação dos escravos: desta vez, os “beneficiados” foram os que tinham sessenta anos ou mais - a Lei dos Sexagenários (1885) - conforme atesta o trecho abaixo:

Art. 3.0 (p. 81).

Par. 10. São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviço a seus ex-senhores pelo espaço de três anos.

(...)

Par. 13. Todos os libertos maiores de 60 anos, preenchido o tempo de serviço de que trata o parágrafo 10, continuarão em companhia de seus ex-senhores, que serão obrigados a alimentá-los, vesti-los, e tratá-los em suas moléstias, usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles, salvo se preferirem obter em outra parte os meios de subsistência, e os Juízes de Órfãos os julgarem capazes de o fazer. (NEVES, 2001, p. 80-1).

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Machado de Assis vai representar, em algumas das suas obras, a relação entre o escravo idoso e a família senhorial: em Encher tempo (1876), tem-se a figura de Tia Mônica, que, apesar de “forra”, ainda mora junto ao padre Sá e à sobrinha deste, Lulu, de quem fora cativa, situação análoga àquela de Raimundo, do romance Iaiá Garcia (1878). Apesar dessas duas obras terem sido publicadas alguns anos antes da promulgação da Lei dos Sexagenários, já se observa, em ambas, a aguçada percepção machadiana sobre o problema do escravo que se tornava, com o passar dos anos, “membro” da família senhorial, muito embora a relação entre ambos, nas obras do escritor Realista, nunca tenha se modificado, permanecendo a mesma de outrora.

Apesar da aplicação da Lei dos Sexagenários ter repetido o fracasso de suas antecessoras, a Lei Eusébio de Queiroz e a do Ventre Livre, o contexto histórico no qual tal decreto está inserido o distingue de seus antecessores – e que acabará culminando para a assinatura da Lei Áurea –, por ser bastante particular: o movimento abolicionista cresceu, ao fim do Segundo Reinado, de forma bastante expressiva, a ponto de várias entidades abolicionistas que defendiam a liberdade dos africanos serem formadas para ajudar os cativos a fugirem das fazendas.

Outro importante fator foi o “rompimento” do Exército com o Império. Explica-se: durante boa parte do Império, o Exército, por meio da Guarda Nacional, teve como principal função capturar os negros fugidos das fazendas, contando, para isso, com o apoio da monarquia.

Tal quadro irá mudar com a deflagração da Guerra do Paraguai, na qual a maioria dos soldados que compunha as tropas brasileiras era de escravos, uma vez quehouve, na época, uma forte campanha de incentivo para que os negros não só se alistassem, como também fossem servir nos campos de batalha, em troca, supostamente, de suas alforrias. Dessa forma, o Exército brasileiro deveu grande parte de suas conquistas, na Guerra, ao esforço desse contingente de cativos.

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manter a escravidão, uma vez que a Abolição tinha sido deflagrada em todas as colônias inglesas, interessadas, naquele momento, no trabalho livre e assalariado. Um mês antes da assinatura da Lei Áurea, que foi assinada em 13 de maio de 1888, Machado de Assis, sob o pseudônimo de Policarpo, publica uma crônica, na qual ironiza todo o processo de abolição, demonstrando que a visão da burguesia, a respeito do assunto, não condizia com a real situação na qual viviam os escravos, posição que ficou bastante clara com as promulgações das leis anteriores à Áurea e cujos resultados foram inócuos.

Como destaca o estudo de Costa (2008, p. 134-5), o fim da escravidão, ao invés de proporcionar melhores condições de vida para os negros, acabou por gerar uma miséria maior para muitos que, outrora, foram cativos, principalmente pelo fato de que, com o fim da escravidão negra, a mão-de-obra que passou a ser empregada foi a imigrante, o que colaborou, ainda mais, para a marginalização social do negro. O racismo, portanto, impediu o escravo de conseguir seu status de cidadão, na sociedade brasileira.

É importante enfatizar que, apesar de ter sido explorado, o negro conseguiu, por vários meios, resistir ao cativeiro, dentre os quais, podem ser incluídos: o suicídio, o assassinato, a formação dos quilombos e as insurreições.

Ainda em contraposição ao regime escravocrata, a obra de Machado de Assis vai representar, nos contos, três dessas formas de resistência: o assassinato, presente em Virginius, no qual Julião mata a própria filha, Elisa, para livrá-la da “desonra” que sofrera; o suicídio, em Mariana, conforme foi anteriormente assinalado, e a fuga de Arminda, em Pai contra mãe. Essas três narrativas, publicadas em momentos distintos da produção machadiana – respectivamente, nos anos de 1864, 1871 e 1906 –, não apenas mostram a atitude de Machado de Assis, em destacar a resistência negra, como também a hipocrisia da sociedade brasileira.

Dessa forma, ao mostrar a resistência do escravo, Machado de Assis demonstra estar em consonância com o depoimento histórico, conforme se observa na citação abaixo:

(...)

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escravos e no conjunto da sociedade. (...) Fogem das piores condições, sem se darem conta de que sinais particulares distintivos – desconhecido, imenso, hostil; somente alguns escravos de regiões fronteiriças podem ter esperança de passar a um estado vizinho. Fogem nos navios de partida para a África, mesmo que sejam descobertos à primeira inspeção feita a bordo. Esperam, às vezes, encontrar um senhor melhor e com freqüência passam do ruim ao pior. Qualquer fuga, se não termina obtendo a proteção de um grupo, é condenada ao insucesso (...). Alguns fujões tiveram a sorte de se fazerem aceitar por uma tribo indígena: se conseguem, nesses casos, casar-se com uma ou um indígena, a lei os declara livres e aos seus descendentes, pois, desde o começo do século XVIII, a administração pública, protetora dos índios, quis desta maneira impedir que os senhores pouco escrupulosos reduzissem à escravidão as tribos indígenas favorecendo esse gênero de uniões. (...) Nessas fugas individuais, os escravos que conseguem obter do homem ou da mulher que lhe deu refúgio que o compre a seu antigo proprietário ganham o direito de trabalhar para o senhor que escolheram. É praticamente impossível viver sozinho no imenso Brasil e mesmo os casais que fogem partem para uma aventura extremamente perigosa; (...) (MATTOSO, 1988, p. 153-4).

.

1.3. Revisão crítica sobre a escravidão em Machado de Assis.

Como já foi pontuado, anteriormente, a inoperância do sistema legal constitui, provavelmente, a maior das ironias representada na literatura machadiana. Demonstrou-se, brevemente, por parte de críticos como Lúcia Miguel-Pereira (1936), em Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, que a acusação sobre a alienação social, em relação à escravidão, de Machado de Assis, não é convincente.

No entanto, essas opiniões não desmerecem a fortuna crítica de Machado de Assis, pelo contrário, contribuem, ainda mais, para a elucidação do fenômeno literário. Nesse caso, endossam a perspectiva aqui adotada, críticos como Raymond S. Sayers (1958), Helen Caldwell (1960), José Aderaldo Castello (1969), Raymundo Faoro (1974), Roberto Schwarz (1977, 1990), John Gledson (1986, 2006), Regina Zilberman (1989), Alfredo Bosi (1999), Maussaud Moisés (2001) e Alcides Villaça (2006).6

6Co e eç o dos estudos de Bosi, Moisés, Gledso Po u o o Ma hado de Assis , e

Villaça, os demais pertencem a edições distintas das consultadas pela autora desta dissertação, daí o porquê das citações virem com datas diferentes das acima mencionadas.

A ediç o do li o O Otelo asilei o de Ma hado de Assis Hele Cald ell data de ; ‘ealidade e ilus o e Ma hado de Assis José Ade aldo Castello , segu da ediç o, ; Ma hado de Assis: a pi ide e o t apézio ‘a u do Fao o , ua ta ediç o, ; Ao e edo as atatas ‘o e to “ h a z , ui ta ediç o, , U est e a pe ife ia do

apitalis o ‘o e to “ h a z , ua ta ediç o, ; Ma hado de Assis: fi ç o e histó ia Joh

Gledson), segunda edição, 2003.

(35)

Conforme foi anteriormente destacado, as referências críticas sobre a representação do sistema escravagista, na obra de Machado de Assis, não são recentes, tendo sido Machado de Assis: estudo crítico e biográfico uma das obras pioneiras a respeito, na qual já se encontra a caracterização do autor Realista como a de uma pessoa apática ao tema do cativeiro, tanto no plano das ideias políticas, quanto literárias.

Para endossar essa postura, Miguel-Pereira assinala uma passagem pertencente a um escrito do literato carioca, cujo título não é mencionado, acerca da abolição no Ceará (1998, p. 81), primeiro Estado que libertou, integralmente, os negros, e que serviria para demonstrar a “indiferença” machadiana em relaçãoà importância do ocorrido, uma vez que o mesmo é tratado apenas por meio de uma metáfora (“ „O Ceará é uma estrela; é mister que o Brasil seja um sol‟”.), o que atestaria a falta de solidariedade de Machado de Assis para com os “irmãos” de cor.

No plano literário, mesmo diante da publicação de contos machadianos que retratavam os horrores do sistema escravagista, a exemplo de Pai contra mãe e O caso da vara, duras críticas são tecidas, uma vez que Miguel-Pereira percebe tais obras como “casos isolados” e de pouca valia:

(...)

Sem dúvida, muitos são os casos esporádicos, sem repercussão, em que o autor se encerra dentro dos limites do episódio, como nos dois contos em que trata da escravidão, „Pai contra mãe‟, e o „Caso da Vara‟. Aí parece ter querido isolar o caso da mulata Arminda ou da negrinha Lucrécia do problema da escravidão. (MAEC, 1988, p. 226).

Como meio de reforçar a suposta apatia machadiana à servidão negra, tem-se, em Miguel-Pereira (1988, p. 82), a recorrência a dados biográficos de Machado de Assis, mais precisamente ao fato do escritor ter trabalhado no Ministério da Agricultura, o que impediria de tê-lo uma postura mais “atuante”, fato que não é verdadeiro, uma vez que, mesmo trabalhando em tal órgão, Machado de Assis intercedeu, em inúmeros processos, a favor de escravos que se encontravam em situação de perigo, conforme assinala Sidney Chalhoub, em Machado de Assis, historiador (2003, p. 276-7).

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avaliar o autor por meio de sua biografia, não condiz com uma análise mais apurada do texto machadiano, especialmente se tivesse levado em consideração o problema da ironia, figura estilística cujo uso, por Machado de Assis, serviu para demonstrar a postura crítica do escritor diante do sistema escravagista, muito embora esta não tenha sido abolicionista e panfletária, como foi a adotada por outros escritores, a exemplo de José do Patrocínio e Luís Gama.

Conforme foi anteriormente mostrado, a obra O negro na literatura brasileira, de Raymond Sayers (1958), discute como se deu a representação do negro nas obras de Machado de Assis, a partir de um amplo estudo, que inclui, além dos escritos machadianos, outros que apresentam a referida temática, percorrendo desde a Literatura Ibérica até a Brasileira do século XIX. Nesse referido percurso, percebem-se as graduais mudanças ocorridas, bem como os acontecimentos que as proporcionaram.

A perspectiva, assinalada por Sayers, vai mostrar que os contos machadianos representam uma visão bem mais realista sobre o negro, obviamente enriquecida pela “identidade secreta” de Machado de Assis, cuja ascendência era explicitamente afro-brasileira, uma ressalva que não é biográfica, porém cultural, dado que o escritor Realista vai, em sua obra, emergir os personagens negros ao plano principal da narrativa, não limitando a caracterização dos mesmos aos tipos já existentes (a negra lascívia, a feiticeira, o negro herói etc.), mostrando, ainda, uma posição de empatia em relação a estes (SAYERS, 1958, p. 393-4). A crítica, presente em Sayers, é mais próxima à realidade, ao destacar a descendência afro-brasileira de Machado de Assis como um aspecto determinante para seu estudo.

Outro mérito da representação do negro, em Machado de Assis, consiste, segundo Sayers (1958, p. 394-5), na importância que o escravo adquire, como ocorre nos contos O caso da vara, em que a personagem Lucrécia simboliza a exploração da mão-de-obra infantil, e Pai contra mãe, no qual Arminda figura como a cativa que foge, grávida, para salvar a própria vida e a do filho, elementos estes que se configuram como os mais universais da obra machadiana.

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Machado de Assis não concordou com a escravidão e sentiu que os seus efeitos sobre a sociedade brasileira e sobre o caráter brasileiro eram nocivos. Todavia, embora louvasse os romances e as peças antiescravistas nas suas críticas literárias, ele próprio não tentou produzir obras de propaganda, pois o tipo de romance em que poderia melhor exprimir-se dificilmente poderia servir aos fins da campanha antiescravista (...). ( SAYERS, 1958, p. 400).

Na década de 1960 - portanto, posterior à publicação do estudo feito em Sayers-, dois estudos vão continuar a abordar a obra machadiana: O Otelo brasileiro de Machado de Assis, escrito por Helen Caldwell, em 1960, e Realidade e ilusão de Machado de Assis, de José Aderaldo Castello, de 1969.

Em O Otelo brasileiro de Machado de Assis, ocorre uma análise comparativa entre o romance “Dom Casmurro”, escrito pelo escritor Realista brasileiro, e a peça “Otelo, o mouro de Veneza”, de Shakespeare, tendo, por objetivo,

(...) responder duas questões diretamente do próprio Dom Casmurro, uma subsidiária à outra. A questão principal é: „A heroína é culpada de adultério?‟; a subsidiária, „por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para decisão do leitor?‟ (CALDWELL, 2002, p. 13).

O estudo de Caldwell é centrado na credibilidade do narrador, Bento Santiago / Dom Casmurro. Ao chamá-lo de Otelo brasileiro, o referido estudo traz à tona a comparação entre o depoimento do narrador-personagem, que insinua a traição de Capitu, sua esposa, e a desconfiança e os ciúmes do personagem de Shakespeare, em relação à Desdêmona. Esse, entretanto, não será o único aspecto a ser analisado no referido estudo: a comparação que é feita, entre Capitu e Desdêmona, analisa não apenas as diferenças existentes entre essas personagens, mas, também, aquelas que estão vigentes na relação das jovens personagens com seus parceiros, Santiago / Otelo, enfatizando que, na obra de Machado de Assis, ao contrário da de Shakespeare, existe o abismo social entre o referido par, havendo a oposição entre o mundo dos ricos e dos pobres, aspecto este que também estará presente nos contos machadianos que representam a escravidão, no qual o universo senhorial irá “colidir” com o universo do cativo:

(...)

Referências

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