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Dialogismo e educação: uma aproximação entre Paulo Freire e Mikhail Bakhtin?

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Academic year: 2021

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Dialogismo e educação:

uma aproximação entre Paulo Freire e Mikhail Bakhtin?

Marcelo Rythowem*

Jair José Maldaner**

Resumo: A proposta defendida nesse artigo é estabelecer uma leitura do dialogismo a partir de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. Ambos apre- sentam uma série de convergências, divergências e complementaridades em suas reflexões. Na obra de ambos há reconhecimento de que os seres humanos só se constituem a partir da relação com os outros em um pro- cesso dinâmico, histórico e inacabado. Emerge de suas reflexões uma ética de compromisso para a superação do processo de reificação dos seres humanos. Ressaltamos o diálogo como fundamento da existência humana que só pode realizar sua vocação ontológica em “ser mais” na dinâmica das relações dialógicas que estabelece com os outros em pro- cesso contínuo e aberto. Abordamos também as possibilidades no cam- po educativo de transformação das relações sociais pela formação de

* Professor do IFTO Campus Palmas. Coordenação de Ciências Humanas. Licencia- do em Filosofia (IFIBE/UPF), Mestre(UnB) e Doutor em Educação (UFG). E-mail:

<marcelorythowem@gmail.com>.

** Professor do IFTO Campus Palmas. Coordenação de Ciências Humanas. Licencia- do em Filosofia (IFIBE/UPF), Mestre e Doutor em Educação (UnB). E-mail: <jair maldaner@yahoo.com.br>.

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personalidades democráticas capazes de se reconhecerem como atores- -autores da construção da história.

Palavras-chave: Dialogismo. Educação libertadora. Polifonia. Consciência.

1. Introdução

O ser humano é vocacionado para realizar-se historicamente e construir um sentido para sua existência no mundo e com o mundo:

constrói a si mesmo construindo mundo. Todavia, essa vocação tem sido negada quando esse direito à realização de um projeto de mundo pautado no diálogo é impedido pelas forças que oprimem o ser huma- no nas relações sociais, econômicas, culturais, afetivas, educativas entre outras. Em virtude dessas forças opressoras, o ser humano é coisificado, reificado - torna-se um objeto manipulável pelo opressor.

A reificação é, portanto, um fenômeno no qual as relações sociais estariam cada vez mais submetidas a uma finalidade calculadora. A re- lação dos sujeitos com seu mundo circundante não comportaria mais a dimensão da produção de si mesmos como sujeitos, mas seria claramen- te substituída por uma atitude de disposição meramente instrumental e indiferente cuja conduta calculadora característica atingiria as próprias experiências mais íntimas dos sujeitos e suas condições de autorrealiza- ção. Tal reificação imprimiria à consciência e à subjetividade a força de uma ação irrefletida e calcada no imediatismo da ação individualista.

A superação dessa condição de objeto poderia ser alcançada pelo processo dialógico, isto é, da construção de uma subjetividade aberta ao outro e no reconhecimento ético e político de que nossa condição hu- mana é produto das interações mediadas pela transformação do mundo.

Esse processo, que ultrapassa a dimensão psicológica e subjetiva, mas não prescinde delas, constitui-se em uma dinâmica política de cons- trução de novas instituições, entre elas a escola, capazes de oferecer aos sujeitos históricos a oportunidade de se produzirem como sujeitos que se autodeterminam reconhecendo-se coautores de seus processos edu- cativos.

Tal empreitada se viabiliza na medida em que a relação ao outro seja constituída por uma interação baseada em uma ética de respeito ao

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outro enquanto radicalmente outro (LEVINAS, 1988). Essa relação ba- seada no dialogismo implica em sujeitos capazes de compreender que a busca de um sentido para seu mundo está sendo permanente construído na arena da linguagem. O psiquismo não pode, nesse sentido, ser com- preendido fora do campo da linguagem, pois não há atividade mental sem expressão semiótica. Assim sendo, o pensamento está vinculado a um determinado conjunto de ideologias que são refletidas e refratadas pelo sujeito. A subjetividade e a ação educativa político transformadora, portanto, só se constituem tendo como horizonte essa relação com o outro.

Reconhecendo esse projeto de construção de seres humanos au- tônomos, capazes de reflexão, capazes de construírem uma sociedade e consequentemente uma humanidade livre de toda forma de opres- são, abordaremos a perspectiva conceitual e política de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. Exploraremos doravante suas concepções sobre o ser humano como um ente constituído dialogicamente e proporemos algu- mas reflexões no campo da educação a partir dessa perspectiva.

2. O dialogismo em Paulo Freire

O dialogismo em Paulo Freire (2005) remete ao reconhecimento de que os seres humanos são históricos e que é pelo diálogo que constroem e reconstroem o mundo. O diálogo não pode ser portanto, um manho- so instrumento na mão de um sujeito visando conquistar o outro. A conquista almejada é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, que por essa conquista produzem a sua libertação das situações e relações sociais em que são submetidos a coisa, objeto. O diálogo nesse sentido é condição para a formação do sujeito histórico e social.

Assim sendo, dizer a palavra verdadeira é transformar o mundo.

Para Paulo Freire, esse processo só é viável pela dupla dimensão da prá- xis: ação e reflexão solidariamente interagindo (FREIRE, 2005b). Dessa forma, uma práxis que não busque a radicalidade da transformação do mundo não pode dizer o mundo autenticamente. Essa palavra só pode ser inautêntica com a qual

[...] não se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia

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que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamente na reflexão também, se transforma em pala- vreria, verbalismo, blablablá. Por tudo isto, alienada e alienante.

É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois não há denúncia verdadeira sem compromisso de transforação, nem este sem ação (FREIRE, 2005b, p. 90).

Não é possível a existência muda ou silenciosa. Renunciar a essa condição é abrir mão da própria dignidade. Da mesma forma, em parte, o ser humano renuncia de seu papel de ator-autor na história quando homens e mulheres nutrem-se de palavras falsas ou vazias. “Existir, hu- manamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronun- ciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar" (FREIRE, 2005b, p. 90).

Portanto, “[...] não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (FREIRE, 2005b, p. 90). Assim sendo, o ato de proferir a palavra verdadeira que se faz mundo pelo tra- balho, pela práxis e que pode transformar o mundo é direito de todos e jamais pode ser privilégio de poucos. Em consequência disso, jamais a palavra verdadeira poderá ser dita por um só sujeito, ou prescrever a verdade aos demais. Esse é um ato que implica em reconhecer que só o diálogo permite o dizer a palavra verdadeira. “[...] dizendo a palavra com que, pronunciando o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação en- quanto homens" (FREIRE, 2005b, p. 91).

O diálogo é, portanto, um encontro de seres humanos mediatizado pelo mundo, ultrapassando a relação interindividual abrindo-se para a transformação do mundo. Nas palavras de Paulo Freire (2005), esse processo não é viável quando alguns não querem a pronuncia trans- formadora do mundo e negam esse direito aos demais. É preciso, desse modo, reconquistar esse direito primordial de dizer a palavra cessando o ato desumanizante que rouba o poder “ser mais” daqueles que são silenciados.

Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o en- contro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no

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outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes (FREIRE, 2005, p. 90).

Por outro lado, o diálogo não pode existir quando se dá na forma de uma discussão guerreira, polêmica. Os sujeitos sociais devem aspirar ao compromisso com essa pronuncia transformadora do mundo. Buscar em conjunto a verdade e evitar de todas as formas impor suas ideologias arbitrariamente uns aos outros.

Chama atenção, nesse sentido, o relato de Paulo Freire, na obra Pedagogia da Esperança, da situação em que foi duramente questionado pela forma como se referia aos seres humanos usando sempre o termo homem. Após receber uma série de reclamações de leitoras da Pedagogia do Oprimido, Freire reconhece que em seu discurso acabou por introje- tar o discurso machista e revê seu posicionamento para um pronunciar criativo e libertador. Ele reconhece seu débito para com aquele grupo de mulheres por ter tido a oportunidade de perceber o quanto de ideologia tem a linguagem. Nesse sentido assevera que

A discriminação da mulher, expressada e feita pelo discurso ma- chista e encarnada em práticas concretas é uma forma colonial de tratá-la, incompatível, portanto, com qualquer poção pro- gressista, de mulher ou de homem, pouco importa [...] Por isso mesmo, ao escrever falar uma linguagem não mais colonial eu o faço não para agradar mulheres ou desagradar a homens, mas para ser coerente com minha opção por aquele mundo menos malvado de que falei antes. Mudar a linguagem faz parte do processo de mudar o mundo. A relação entre linguagem-pensa- mento-mundo é uma relação dialética, processual, contraditória (FREIRE, 2005, p. 68).

Freire argumenta que não se pode pensar autenticamente se outros também não pensam. Não se pode pensar pelos, nem sem, nem para os outros. No campo da educação, o diálogo, portanto, não anula as dife- renças entre professores e alunos, muito pelo contrário. Somente pelo diálogo é que se pode marcar de forma democrática a posição de profes- sores e alunos. Esse diálogo deve existir desde o processo que estabelece como se deve desenvolver um programa de disciplina, o que pode ser investigado, como um determinado objeto pode ser conhecido, como posso me aproximar dele.

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O dialogo tem significação precisamente porque os sujeitos dia- lógicos não apenas conservam sua identidade, mas a defendem e assim cresce um com o outro. O diálogo, por isso mesmo, não nivela, não reduz um ao o outro. Nem é favor que um faz ao ou- tro. Nem é tática manhosa, envolvente, que um usa para confun- dir o outro. Implica, ao contrário, um respeito fundamental dos sujeitos nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não per- mite que se constitua. Assim também a licenciosidade, de forma diferente, mas igualmente prejudicial (FREIRE, 2005, p. 118).

Para que o diálogo ocorra de forma a permitir o “ser mais”, voca- ção ontológica dos seres humanos, é preciso que os educadores sejam capazes de falar e compreender a língua dos oprimidos. Freire (2005a) sustenta que é preciso de forma imperiosa que educadores e educadores se esforcem em compreender e se familiarizarem com a sintaxe e a se- mântica dos grupos populares. É preciso ter a mínima noção de como procedem em suas leituras de mundo; como usam as artimanhas para sustentar uma cultura de resistência contra a violência a que são subme- tidos. Esse esforço torna-se fecundo porque

A relação dialógica, porém não anula, como as vezes se pensa, a possibilidade do ato de ensinar. Pelo contrário, ela funda este ato, que se completa e se sela no outro, o de aprender e ambos só se tornam verdadeiramente possíveis quando o pensamento crítico, inquieto, do educador ou da educadora não freia a capa- cidade de criticamente também pensar ou começar a pensar do educando (FREIRE, 2005b, p. 118).

A partir dessa perspectiva, o dialogismo freireano está vinculado à construção da personalidade democrática. Desde as primeiras obras publicadas, percebe-se que é necessário a formação de uma personalida- de compatível com a experiência de uma sociedade democrática. Nesse sentido o diálogo torna-se um elemento central tendo em vista esse ob- jetivo (BEISIEGEL, 2010). Em sua tese para o concurso da Universidade de Pernambuco Freire assevera que

A nossa experiência, por isso que era democrática, tinha de se fundar no diálogo, uma das matrizes em que nasce a própria democracia. Diálogo da instituição com o operário, seu cliente, através de clubes recreativos e educacionais. Dialogação que re-

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presentava uma cada vez maior participação do operário na vida da instituição a que se ligava e com que sobretudo aprenderia a ver a coisa pública através de outras perspectivas (FREIRE apud BEISIEGEL, 2010, p. 33).

De certa forma retomando as mais diversas tradições intelectuais de tomada de consciência por parte do sujeito, Freire postula um itine- rário em que se parte de uma consciência intransitiva para a consciência transitiva crítica. Na primeira na qual não há consciência da histori- cidade dos seres humanos está voltada quase que exclusivamente para a subsistência biológica. Superado esse estágio passa-se a consciência transitiva. Num primeiro momento essa é uma consciência ingênua que tem um certo gosto pelo passado, acredita em soluções mágicas para os problemas, explicações fantasiosas, é refratária ao contraditório. Em um terceiro momento é possível conquistar a consciência crítica. Todavia sem o diálogo esse momento é praticamente inalcançável porque é uma conquista que se dá de modo coletivo. Freire a caracteriza nos seguintes termos:

A transitividade crítica, pelo contrário, se caracteriza pela pro- fundidade na interpretação dos problemas. Esta modalidade da consciência transitiva teria como características a “substituição de explicações mágicas por princípios causais”, o teste dos acha- dos e a permanente disposição a suas revisões; a disposição ao abandono de preconceitos na análise dos problemas: o esforço por evitar deformações; a recusa à transferência da responsabili- dade, a “recusa a posições quietistas”, a “segurança na argumen- tação “o gosto pelo debate uma “maior dose de racionalidade” a aceitação de arguições: a “apreensão e receptividade a tudo o que é novo”. Seria também marcada pela aceitação da massificação como um fato, e ao mesmo tempo pelo esforço dirigido à hu- manização do homem. (FREIRE apud BEISIEGEL, 2010, p. 31).

Posteriormente, quando Paulo Freire caracteriza a ação dialógica em Pedagogia do Oprimido, ele retoma essas reflexões:

Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hoje normalizado, para o crítico, a transformação permanente da realidade, para a permanente humanização dos seres humanos.

Para o pensar ingenuo, a meta é agarrar-se a este espaço garan-

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tido, ajustando-se a ele e, negando a temporalidade, negar-se a si mesmo. [...] Somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz também, de gerá-lo. [...] Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação. A que, operando a su- peração da contradição educador-educandos, se instaura como situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu ato cog- noscente sobre o objeto cognoscível que os mediatiza (FREIRE, 2005b, p. 95-96).

O diálogo se faz uma relação horizontal porque se funda no amor, na humildade e na fé nos seres humanos. A confiança de um polo no outro é condição necessária. Para Paulo Freire (2005b) seria uma con- tradição se o diálogo não provocasse este clima de confiança entre seus sujeitos estando fundado nessas condições. Não há nenhuma garantia por parte do oprimido. É preciso confiar e essa confiança inexiste na antidialogicidade da concepção “bancária” da educação. Como assevera Freire:

Se a fé nos homens é um dado a priori do diálogo, a confiança se instaura com ele. A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronuncia do mundo. Se ha esta confiança, é que falharam as condições discutidas anteriormen- te. Um falso amor, uma falsa humildade, uma debilitada fé nos homens não podem gerar confiança. A confiança implica o tes- temunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções. Não pode existir, se a palavra, descaracterizada, não coincide com os atos. Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério, não pode ser estímulo à confiança (FREIRE, 2005b, p. 94).

Assim sendo, falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira.

A confiança só pode ser conquistada portanto pela coerência de quem busca transformar o mundo e suas opções no campo da educação volta- da para a formação político-ideológica comprometida com as mudanças necessárias.

Para os educadores que fazem a opção por uma educação compro- metida com a libertação, com a dialogicidade, expressão de uma prática de liberdade, o processo começa a partir da escolha dos objetos em tor- no dos quais o processo gnosiológico irá se desenvolver. Isso implica em

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como determinar os conteúdos programáticos nos quais o diálogo será construído. Assim sendo,

Para o educador-educando, problematizador, dialógico, o con- teúdo programático da educação não é uma doação ou uma im- posição - um conjunto de informes a ser depositado nos educan- dos - mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma de- sestruturada (FREIRE, 2005b, p. 96-97).

Na medida em que o educador dialógico investiga o pensar dos seus educandos mais os dois se educam juntos. Nesse caso, a investiga- ção temática, que definirá os temas geradores, é um processo indisso- ciável do processo educativo na perspectiva problematizadora. Ao con- trário da educação bancária que deposita no aluno os conteúdos que o professor determinou a priori, “[...] na prática problematizadora, dialó- gica por excelência, este conteúdo, que jamais é ‘depositado’, se organiza e se constitui na visão do mundo dos educandos, em que se encontram seus temas geradores” (FREIRE 2005, p. 120).

Os conteúdos abordados e as situações de aprendizagem, na pers- pectiva problematizadora são dinâmicos como é a vida.

Por tal razão é que este conteúdo há de estar sempre renovando- -se e ampliando-se. A tarefa do educador dialógico é, trabalhan- do em equipe interdisciplinar este universo temático recolhido na investigação, devolvê-lo como problema, não como disserta- ção, aos homens de quem recebeu (FREIRE 2005, p. 120).

Vimos portanto, algumas considerações do ponto de vista de uma análise filosófica do processo do diálogo em Paulo Freire. Ressaltamos o diálogo como fundamento da existência humana que só pode realizar sua vocação ontológica em “ser mais” na dinâmica das relações dialógi- cas que estabelece com os outros em processo contínuo e aberto. Abor- damos também as possibilidades no campo educativo de transformação das relações sociais pela formação de personalidades democráticas capa- zes de se reconhecerem como atores-autores da construção da história.

Na seção seguinte procuraremos abordar o dialogismo na ótica bakhtiniana estabelecendo algumas proposições de convergência, diver- gência e complementaridade com o diálogo como foi proposto nessa etapa.

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3. Dialogismo em Bakhtin

O dialogismo embasa, fundamenta e proporciona unidade ao pen- samento bakhtiniano. “Essa noção funda não só a concepção bakhti- niana da linguagem como é constitutiva de sua antropologia filosófi- ca” (FIORIN, 2006, p. 18). A construção teórica de Bakhtin sobre o ser humano e a sociedade são impregnadas pelo princípio do dialogismo.

Nesse sentido, o outro, os outros são sempre um polo de referência sig- nificativa na maneira como o sujeito se constitui enquanto ser humano que produz um sentido ao mundo que o circunda. Em certo sentido, a vida mesma é uma produção dialógica. Sem o confronto, o diálogo a vida é impossível.

A língua em sua totalidade concreta, viva, em seu uso real tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estrito do diálogo face a face, que é apenas uma forma composicional, em que elas ocorrem. Ao contrário, todos os enunciados no processo de comunicação, in- dependentemente de sua dimensão, são dialógicos. Neles, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a pa- lavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está pre- sente no seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados (FIORIN, 2006, p. 18-19).

A concepção dialógica bakhtiniana apoia-se na compreensão da in- teração discursiva como um evento comunicacional. Ao contrário das correntes positivistas da linguagem que predominavam em seu tempo, Bakhtin (2003), afirma que é no processo de interação, no evento da fala viva, entre dois interlocutores que é possível a construção de sentido. Des- sa forma, o enunciado está inserido no contexto social do qual emerge, é emoldurado pela entonação expressiva de quem o pronuncia. Em sua re- cepção ocorre uma resposta que é um novo enunciado e assim por diante, de tal forma que a apropriação de um determinado discurso nunca é uma transmissão mecânica entre dois interlocutores, mas uma apropriação criativa que implica concordância, discordância, conflito, negação.

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Na obra de Bakhtin, o dialogismo ocupa essa posição privilegiada porque em seu horizonte de reflexão esteve muito presente a problemá- tica da relação entre o “eu e o outro” (STAM, 2000). Não se trata da re- lação de duas mônadas absolutamente separadas entre si como opostos que se contradizem (EMERSON; MORSON, 2008). Os indivíduos não formam mônadas completamente determinadas ocupando um deter- minado lugar fixo. Sempre se é meio para o outro, e é nessa desordem que se dá uma relação de fronteira entre as particularidades de nossa experiência individual e a auto-experiência dos outros, porque a cons- ciência não é um território soberano, mas um evento social e linguisti- camente constituído, isto é,

[...] a estrutura da atividade mental é tão social como a da sua objetivação exterior. O grau de consciência, de clareza, de aca- bamento formal da atividade mental é diretamente proporcional ao seu grau de orientação social (BAKHTIN, 1986, p. 114).

A própria consciência é antes de subjetiva, intersubjetiva. Sem sa- ber ao certo quando inicia-se a participação na comunidade humana, o sujeito social pode reconhecer no seu processo de formação que é fruto de um conjunto de vozes que recebe e que ativamente posiciona-se dian- te delas. A consciência reflete e refrata o discurso ideológico do qual busca as referências para se fazer pessoa humana.

Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência in- dividual está repleta de signos. A consciência só se torna cons- ciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação social (BAKHTIN, 2006, p. 33).

Uma cultura, grupo social, comunidade é formada pela interação permanente que é representada pelo dialogismo. Assim sendo, o com- plexo fenômeno da linguagem é fruto das relações dialógicas historica- mente construídas e dinamicamente vividas. Quando se está ocupando uma certa posição na cadeia discursiva o sujeito social é sempre perpas- sado por múltiplos discursos, textos e contextos dos quais não pode se

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imiscuir. No discurso próprio há sempre uma referência ao discurso dos outros, não se pode simplesmente existir sem a figura do outro.

Há sempre, portanto outras vozes, discursos impregnados na cons- ciência individual. Essa interação nem sempre está explícita. Todavia pelo simples fato de o ser humano poder se comunicar com outros já indica que ele entrou no campo da linguagem assumindo e ressignifi- cando para si aquilo que a cultura lhe ofereceu. Desse modo,

A ideia não vive na consciência individual isolada de um ho- mem: mantendo-se apenas nessa consciência, ela degenera e morre. Somente quando contrai relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros é que a ideia começa a ter vida, isto é, a formar-se, desenvolver-se, a encontrar e renovar sua expres- são verbal, a gerar novas ideias. O pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na palavra. É no ponto desse contato entre vozes-consciências que nasce viva a ideia (BAKHTIN, 1997, p. 86).

No processo de comunicação, portanto na construção social da realidade e da consciência, os sujeitos sociais utilizam os enunciados. A sua principal característica é a dialogicidade. Ao pronunciá-los sempre se leva em conta a réplica de um outro interlocutor para quem ele é en- dereçado e do qual são levados em conta as expectativas e concepções.

Desse modo não há emissor ativo e nem receptor passivo, mas um pro- cesso contínuo de interlocução e produção de sentido.

O ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição res- ponsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc; essa posição responsiva do ouvinte forma-se ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante.

Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativa- mente responsiva (embora seu grau de ativismo seja bastante diverso);

toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte torna-se falante (BAKHTIN, 2003, p. 271).

O referencial teórico de Mikhail Bakhtin, portanto, oferece algu- mas categorias que poderão ajudar-nos a repensar e redesenhar proces-

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sos interativos que visem à autonomia na construção do conhecimento.

Exploraremos a seguir os conceitos de dialogismo e polifonia com for- mas de expressão de uma relação pedagógica que podem proporcionar uma educação crítico-reflexiva.

O caráter de evento, de irrepetibilidade, de um enunciado se jus- tifica visto que o contexto em que ele foi pronunciado não é o mesmo, a entonação expressiva é diferente pois as pessoas mudam e nunca res- pondem de modo igual a diferentes enunciados (EMERSON; MOR- SON, 2008). Nesse sentido, é preciso compreender que

A língua existe não por si mesma, mas somente em conjun- ção com a estrutura individual de uma enunciação concreta. É apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação, imbui-se do seu poder vital e torna-se uma reali- dade. As condições da comunicação verbal, suas formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições so- ciais e econômicas da época (BAKHTIN, 1986, p. 68).

Por contar com a participação de um sem número de vozes em um determinado tema a relação dialógica pode ser também polifônica. A polifonia representa a possibilidade de que

o nosso discurso da vida prática está cheio de palavras dos ou- tros. Com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz, esquecendo-nos de quem são; com outras reforçamos nossas próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós;

por último, revestimos terceiras das nossas próprias intenções, que são estranhas e hostis a elas (BAKHTIN, 1997, p. 195).

A polifonia fundamenta-se em uma visão dialógica da verdade e em uma posição especial de quem enuncia essa percepção de verdade (EMERSON e MORSON, 2008). A polifonia caracteriza-se como um evento em que várias consciências se encontram dialogando sem neces- sariamente finalizar essa interlocução. Nesse sentido, diferentes vozes sociais se fazem presentes cuja riqueza de pontos de vista e ideologias oferecem ao discurso ilimitadas alternativas de sentido. Em oposição à polifonia, o discurso monofônico não reconhece a multiplicidade e não dá voz ao outro (FIORIN, 1994).

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4. Considerações finais: Freire e Bakhtin um diálogo possível na educação

Retomamos nesse ponto, procurando colher algumas possibilida- des de diálogo entre os autores mencionados, a ideia de reificação, coi- sificação, que apontamos no início desse trabalho. Cremos ter demons- trado que em ambos a superação dessa situação pelos seres humanos é mais que um objetivo, é centro de um projeto intelectual, político e existencial. Por postularem uma concepção de mundo aberta, inacaba- da e uma antropologia dialógica Freire e Bakhtin sofreram um processo de perseguição e exílio. Pagaram um preço muito alto por acreditarem e lutarem pela construção de um ser humano emancipado, liberto de toda forma de exploração.

No campo da educação, a reificação o “ser menos” ou até o não ser, está representada, em Paulo Freire, pela educação bancária com os depósitos de conteúdos que ocorrem em sentido único. É o momento do discurso sonolento que torna a prática educativa enfadonha, que in- viabiliza uma formação autêntica. Esse processo, a partir de Bakhtin, podemos identificá-lo com a monofonia. Impera nessa visão o topos autoritário e reducionista que tudo vê e tudo comunica sob uma con- cepção totalitária e fechada de verdade. A prática monofônica negando o caráter dialógico do encontro entre educador e educando explicita a necrofilia que Paulo Freire condena nas formas autoritárias de educação

Educação libertadora e perspectiva educativa polifônica são coe- rentes. Em ambas predominam linguagens das mais variadas formas que possibilitam a construção de sentidos múltiplos, sempre inacabados abertos ao novo. Proporcionam o estabelecimento de uma compreensão de mundo baseada em uma ética de respeito ao outro como sujeito his- tórico autônomo.

Sendo o diálogo o princípio de toda e qualquer forma humaniza- ção pela linguagem em ambos teremos um reconhecimento e respeito profundo pela alteridade, pelo reconhecimento ético do outro no pro- cesso de constituição do eu. Essa relação eu-tu sempre será aberta. Para Bakhtin, o diálogo sem outro é impossível, sem isso não há linguagem nem subjetividade. Recusar-se ao diálogo, não reconhecer o outro, é ne- gar a própria humanidade. Em Paulo Freire o outro é o oprimido lutan- do pela sua libertação, que criando sua humanidade pode libertar a si

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mesmo e ao opressor restaurando a humanidade em ambos. A liberta- ção é um processo coletivo, libertando-se em comunhão com os outros se resgata a dignidade de todos.

No diálogo encontra-se a estratégia de construção social aponta- da pelos autores; na alteridade encontra-se a forma única de cons- tituição da subjectividade; na linguagem, o lugar do encontro e desencontro dos homens Significar o mundo, tornando a vida existência parece ser o ponto nevrálgico de aproximação dos dois autores. E esta se constrói nas relações sociais, nas instituições so- ciais, apesar e a despeito dos seus mecanismos de objectivação e subjectivação: as histórias de interacções nunca são idênticas en- tre si, e daí a irrepetibilidade de casa homem; as memórias de fu- turo são possibilidades, compagináveis com outros sonhos, mas não redutíveis ao mesmo e ao idêntico (GERALDI, 2003, p. 51).

Em vista do exposto nesse artigo, postulamos que a convergência entre os autores, por suas lutas e projetos de vida, tem no processo edu- cativo dialógico uma oportunidade privilegiada de articular suas ideias.

O desafio maior é construir e viabilizar, na prática docente e no com- promisso com a transformação das relações sociais, um diálogo capaz de promover o “ser mais” a que todos os sujeitos histórico-sociais são vocacionados.

Referências bibliográficas

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Referências

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