• Nenhum resultado encontrado

Femicídios: situações limite decorrentes da violência de gênero 1 Femicides: extreme situations due to gender violence

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "Femicídios: situações limite decorrentes da violência de gênero 1 Femicides: extreme situations due to gender violence"

Copied!
8
0
0

Texto

(1)

Femicídios: situações limite decorrentes da violência de gênero1 Femicides: extreme situations due to gender violence

Stela Nazareth Meneghel Médica sanitarista, professora e pesquisadora do Curso de Análise de Políticas e Sistemas de Saúde/PPG Enfermagem/UFRGS e PPG Saúde Coletiva/UFRGS stelameneghel@gmail.com

Resumo

Femicídio é definido como o assassinato de mulheres baseado em gênero e é um conceito ainda pouco utilizado pelas instituições que atuam no enfrentamento da violência. Este texto apresenta uma reflexão acerca do femicídio, pensado como

“situação limite” da violência de gênero. O trabalho apresenta conceitos, cenários, dados estatísticos e situações de risco para as vítimas. O uso do conceito femicídio retira a conotação de naturalidade que envolve os assassinatos de mulheres e politiza essas mortes.

Palavras chave: femicídios, violência de gênero, homicídios baseados em gênero

Abstract

Femicide is defined as the killing of women based on gender and this concept is still little used by institutions that operate in coping of violence. This paper presents a reflection about the femicide, thought of as "extreme situation" of gender violence. The paper presents concepts, scenarios, statistical data and risk situations to victims. The use of the term femicide removes the connotation of naturalness that involves the murder of women and politicizes these deaths.

Keywords: femicides, gender violence, gender-based murders

1 Este texto foi adaptado a partir do texto original publicado na Revista Athena Digital, 12(3):

227-236, novembro 2012.

(2)

Os femicidios como situações limite

Para trabalhar a noção de “situação limite” partimos da compreensão da violência como uma infração de direitos humanos. Neste sentido, entendemos as situações limite da violência de gênero como atos de extrema gravidade decorrentes ou associados a violências perpetradas a mulheres, jovens, meninas e mesmo a homens, principalmente os que não exercem masculinidades hegemônicas.

O conceito inclui a violência fatal, compreendendo os femicídios, entendidos como assassinatos de mulheres devido ao fato de serem mulheres, ou seja, decorrentes das condições de gênero. Incluem os assassinatos de meninas, jovens violentadas e/ou exploradas sexualmente, prostitutas, mulheres pertencentes a minorias étnicas como indígenas e afro-descendentes, população LGBT, além de outras mortes em que a condição de gênero foi determinante para a ocorrência do crime. Atualmente, tem-se considerado femicídio, as mortes causadas por abortamentos inseguros, assim como suicídios induzidos por maridos ou companheiros após longas rotas de violência.

Também se considera femicídio o assassinato de co-habitantes de mulheres mortas ou ameaçadas por parceiro íntimo, que podem ser filhas, mães, familiares ou amigas que tentaram proteger as vítimas (Dobasch & Dobasch, 2012).

O conceito de femicídio foi utilizado pela primeira vez por Diana Russel em 1976, perante o Tribunal Internacional sobre Crimes Contra as Mulheres, realizado em Bruxelas, para caracterizar o assassinato de mulheres (IIDH, 2006), portanto trata-se de um conceito relativamente recente e cujo uso ainda tem sido restrito.

Uma situação que mobilizou a opinião pública internacional para esse tipo de delito cometido contras mulheres foi a dos assassinatos seriais ocorridos na Cidade de Juarez no México. A Anistia Internacional e organizações não governamentais mexicanas denunciaram que, entre 1993 e 2003, ocorreu o desaparecimento de aproximadamente 400 mulheres. A maioria das vítimas era operária das “maquiladoras” (empresas transnacionais que montam sucursais em países de Terceiro Mundo) surpreendidas, violadas e assassinadas no trajeto do trabalho.

(3)

Marcela Lagarde (2004) e Monarrez Fragoso (2002), ao estudar os crimes sexuais ocorridos em Cidade Juarez, apontam que o assassinato de mulheres é habitual no regime patriarcal, um tipo de crime em que ocorre tortura, mutilação, violação e morte de mulheres e meninas. As causas destes crimes não são condições patológicas dos ofensores, mas devem-se às características de vulnerabilidade das vítimas, situação que muitas vezes é usada para incriminá-las.

Estudos realizados em diversos países mostram que entre 60% e 70% dos homicídios de mulheres correspondem a femicídios. Na Costa Rica mais da metade dos homicídios de mulheres é consequência da violência baseada na desigualdade de gênero e a violência doméstica foi uma das causas mais frequentes dos homicídios de mulheres ocorridos na década de 1990. Nos Estados Unidos estima-se que 63% dos homicídios de mulheres são cometidos por companheiros ou ex-companheiros e a maioria ocorreu no domicílio (Carcedo y Sagot, 2000).

A América Central é uma das regiões onde as taxas de femicídios estão entre as mais elevadas do mundo, principalmente na Guatemala, El Salvador e Honduras. Nesta região está ocorrendo uma escalada deste tipo de homicídio e a crueldade utilizada nos crimes, demonstra que se trata de execuções marcadas pelo ódio misógino (Carcedo, 2010). Outros países com taxas elevadas são a África do Sul, Jamaica e Rússia (Geneva Declaration of Armed Violence, 2011).

Ao analisar as situações de femicídio, considera-se fundamental a contextualização dos atos ou a identificação dos cenários mais propícios para a ocorrência destas mortes, que ajudam a compreender os seus determinantes. Em primeiro lugar, cabe citar os cenários familiares e domésticos, já que a família em sociedades patriarcais confere todo o poder ao homem, e as relações entre parceiros íntimos nas quais as mulheres são consideradas propriedade dos maridos, companheiros, namorados e ex-companheiros. Muitos femicídios acontecem após uma longa rota de violências e agressões, quando a mulher decide dar um basta e sair da relação (Sagot, 2000; Meneghel e cols., 2011).

Outra situação que pode levar ao femicídio é a agressão sexual, que ocorre em todas as classes sociais, no âmbito público e no privado. A violência sexual representa uma

(4)

profunda misoginia em que as mulheres estão na posição de meros objetos descartáveis, tornando esse ato extremamente perigoso pela necessidade do agressor de eliminar testemunhas e vestígios, matando a vítima após uma violação sexual (Carcedo, 2010).

Outros cenários incluem o comércio sexual, em que predomina a “coisificação”

feminina, o valor da mulher é reduzido e, portanto, sua vida não vale nada. O ódio misógino é tão elevado em relação às trabalhadoras do sexo, a ponto de tonarem-se alvo de ações internacionais diretas de extermínio sob o rótulo de limpeza social.

Mulheres assassinadas encontram-se predominantemente entre adolescentes e adultas jovens. Em grande parte dos países, as vítimas pertencem às classes pobres, vivendo em espaços urbanos em que a segurança tem-se restringido a ponto de desaparecer. Estes dados reforçam a idéia de que o femicídio é um tipo de crime de poder e dominação, atingindo os grupos mais fragilizados (Oliveira e Geraldes, 1998) e que é mais frequente nos locais onde o Estado ou a sociedade são tolerantes com a violência, deixando impunes os agressores (Geneva Declaration of Armed Violence, 2011).

No Brasil, no período de 1999-2005, ocorreu a morte por agressão de mais de 20.000 mulheres; a maior parte delas jovem, solteira e negra. As unidades da federação onde as taxas de mortes femininas por agressão eram maiores possuíam maior quantidade de população evangélica e altas frequências de mortes masculinas por agressão, indicando que os locais mais violentos para os homens também o são para as mulheres (Meneghel

& Hirakata, 2011). Em São Paulo, uma investigação sobre homicídio de mulheres mostrou que as vítimas são jovens, brancas, solteiras, com baixa escolaridade e profissões não qualificadas. Muitos dos agressores possuem antecedentes criminais e conduta de ameaças e violências dirigidas às mulheres (Blay, 2008).

Dentre os fatores sócio-demográficos associados ao femicídio perpetrado por parceiro íntimo destaca-se a pobreza, disparidade de idade entre os cônjuges, situação marital não formalizada, tentativas prévias da mulher em obter a separação (especialmente nos três meses que antecederam o assassinato) e histórias repetidas de violência e agressões.

Porém, grande parte dos homens que assassinam as esposas são “comuns e convencionais”, o que pode ser ainda mais perigoso (Dobasch & Dobasch, 2004).

(5)

Outros autores encontraram taxas maiores de femicídio em locais onde predomina a instabilidade social, população negra e crimes violentos (Grana, 2001; Campbell et al., 2007). Acrescente-se em relação ao agressor, o fato de estar desempregado, haver histórico de comportamento violento, possuir arma de fogo e ter ameaçado a mulher de morte; para a vítima, a gravidez, a presença de filho de relação anterior e a violência doméstica ascendente constituem fatores de risco (WHO, 2012).

A nova configuração mundial do neoliberalismo e globalização, que promove a superexploração das camadas menos privilegiadas da sociedade e dos países de periferia, tem sido responsável pela vulnerabilização e pauperização dos mais frágeis:

mulheres, jovens e crianças. Esse contexto possibilitou a emergência de gangues e grupos mafiosos nacionais e internacionais, organizações que exercem a violência indiscriminadamente contra homens e mulheres. Essas redes fazem a exploração e tráfico sexual de mulheres e meninas, descartando-as facilmente quando adoecem, ameaçam fugir ou não estão cumprindo as tarefas impostas nas situações de trabalho escravo a que são submetidas.

Além disso, mulheres cujos maridos os companheiros estão envolvidos em atividades ilegais (tráfico de drogas, armas, migração clandestina) muito facilmente se convertem em território de vingança e, pela maior facilidade de serem localizadas, são executadas em lugar dos companheiros, fazendo com que esse tipo de crime também se caracterize como femicídio.

A presença destes contextos e condicionantes pode estar emaranhada havendo várias situações de risco superpostas, dificultando a identificação e o enfrentamento das causas. Enfim, existe um cenário de misoginia e crueldade em que as mortes são acompanhadas de violações e os corpos são mutilados, desnudados e desqualificados. O femicídio representa então uma mensagem enviada às mulheres (para aterrorizá-las e mantê-las submissas) e aos outros homens (para demarcar território e mostrar quem é que manda) (Carcedo, 2010).

Femicídio é um tema que ainda tem sido pouco explorado em estudos e investigações, porém tratar o assassinato misógino de mulheres como tal, significa retirar a conotação

(6)

de “naturalidade” que envolve a morte feminina por agressão para politizá-la, passando, portanto à esfera do público e do social. Femicídio pode ser considerado uma forma de terrorismo sexual ou genocídio de mulheres, denunciam militantes feministas e assassinatos baeados em gênero incidem também sobre homens que ousam se comportar como mulheres: gays, travestis e transexuais.

Na medida em que o assassinato representa o ponto final de um continuum de violência de gênero, acreditamos que estudar assassinatos pautados em gênero, pode servir tanto para denúncia quanto para a identificação de situações, territórios ou pessoas em vulnerabilidade, contribuindo para o enfrentamento das violências.

Referências

Blay, Eva A. (2008). Assassinato de mulheres e direitos humanos. São Paulo: USP, ED.

34.

Campbell, Jacquelyn; Glass, Nancy; Sharps, Phyllis; Laughon, Kathryn; Bloom, Tina (2007). Intimate partner homicide – review and implications of research and policy.

Trauma, Violence and Abuse, 8(3): 246-269.

Carcedo, Ana (2010). No olvidamos ni aceptamos: Femicidio em Centroamérica 2000- 2006. CEFEMINA 1ª ed. San Jose. Associación Centro Feminista de Información y Acción.

Carcedo, Ana; Sagot, Montserrat (2000). Femicídio en Costa Rica 1990-1999.

Washington, D.C: Organización Panamericana de la Salud, 2000.

Dobasch, Emerson & Dobasch, Russel P. (2004). Not an ordinary killer – just an ordinary guy – when men murder an intimate woman partner. Violence against women, 10(6): 577-605.

(7)

Dobasch, Russel P. & Dobasch, ,Emerson.(2012). Who died? The murder of collaterals related to intimate partner conflict. Violence against disease, 18(6): 662-671.

Geneva Declaration of Armed Violence (2011). Global Burden of Armed Violence

2011. When the victim is a women. p.113-144. In:

http://www.genevadeclaration.org/fileadmin/docs/GBAV2/GBAV2011_CH4.pdf, Acesso: junho 2013.

Grana, Sheryl J. (2001). Sociostrutural considerations of domestic femicide. Journal of Family Violence, 16(4).

IIDH - Instituto Interamericano de Direitos Humanos (2006). Situação e análises do femicídio na região Centro-Americana.

Lagarde, Marcela (2004). Por la vida y la libertad de las mujeres, fin del Feminicidio.

El Día V, hasta que la violencia termine, jornada de protesta y denuncia. Disponível em: http://www.cimacnoticias.com/especiales/comision/diavlagarde.htm

(Acessado em 25.09.2008)

Meneghel, Stela Nazareth (2010-) Femicídios e assassinatos pautados em gênero no Rio Grande do Sul. Projeto aprovado pelo CNPq em desenvolvimento na Escola de Enfermagem da UFRGS, 2010-.

Meneghel, Stela Nazareth & Hirakata, Vania Naomi (2011). Femicidios: assassinatos de mulheres no Brasil. Rev Saúde Pública, 45(3):564-74.

Meneghel, Stela Nazareth; Bairros, Fernanda; Mueller, Betania; Monteiro, Débora;

Collaziol, Marceli (2011). Rotas críticas de mulheres em situação de violência. Cad Saúde Pública, 27:743-752.

Meneghel, Stela Nazareth (2012). Situações limite decorrentes da violência de gênero.

Revista Athena Digital, 12(3): 227-236.

(8)

Monarrez Fragoso, Julia (2002). Feminicídio sexual serial em Ciudad Juárez: 1993- 2001. Debate Feminista, 25(13): 1-16.

Oliveira, Dijaci David; Geraldes, Elen Cristina; Lima, Ricardo Barbosa. (1998).

Primavera já partiu: relato dos homicídios femininos no Brasil, MNDH - Movimento Nacional dos Direitos Humanos.

Sagot, Montserrat (2000). Ruta critica de las mujeres afectadas por la violência intrafamiliar en América Latina: estudios de caso de diez paises. OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde).

WHO. Understanding and addressing violence against women. Femicide. Geneva.

WHO, 2012. In:

http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/77421/1/WHO_RHR_12.38_eng.pdf. Acesso:

junho 2013.

Referências

Documentos relacionados

O fenômeno da violência urbana; Tipologias e modalidades de violências (violência social, física, sexual, psicológica, negligência entre outras) Violência de gênero e

(VERÍSSIMO, Érico. Solo de Clarineta. Porto Alegre: Edi- tora Globo, 1978.) Neste texto, por meio da metáfora da lâmpada que ilumina a escuridão, Érico Veríssimo define como uma

Revista de Sociologia, n. Desejo de cidade e sociabilidade negra. Articulações entre gênero e raça/cor em situações de violência de gênero. Estudos Avançados,

Territórios da violência de gênero: normativa internacional e os casos “Campo Algodoeiro” (México) – “Morro do Garrote” (Brasil).. Revista de Direito Internacional,

O metabólito sulfona do protótipo de fármaco antiasmático LASSBio-596 foi caracterizado utilizando os fungos Cunninghamella echinulata ATCC 9244 e Beauveria bassiana

Security dialogue, Oslo: International Peace Research Institute, 1994.. Uma história dos

The monthly distribution of the relative frequencies of gonadal maturation stages (Fig. 2) shows females in maturation in October; mature and spawning females are found from

No entanto, reconhece-se agora que a vitamina K2 é ideal para o corpo utilizar o cálcio, a fim de construir os ossos fortes, saudáveis e para inibir os depósitos de cálcio