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Os rumores sobre o poder da magia não eram incomuns. As histórias

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Academic year: 2022

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Fabricio Costa Rosa

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4 - MAGIA SOMBRIA

Os rumores sobre o poder da magia não eram incomuns. As histó- rias de magos poderosos que realizavam grandes feitos navegavam, principalmente, pela imaginação das crianças e por suas brincadeiras co- tidianas. Nas aldeias, os pais e mães preferiam manter aquilo tudo como um mito, para que as suas crianças não desenvolvessem os seus medos sobre o assunto. A falta de conhecimento levava a população em geral a preferir ignorar os fatos sobrenaturais e inexplicáveis que cercavam os magos.

Essa negligência geral fazia com que os magos ficassem cada vez mais raros e esquecidos, tornando o ofício algo reservado e os poucos que se mostravam eram tidos como farsantes. Nas cortes em geral, era conheci- da a figura do mago, quase sempre um conselheiro informal do senhor feudal da região, mas, por uma questão de superstição e má fama, o con- tato era sempre evitado.

Daniel nasceu em uma aldeia, nas proximidades do grande Reino de Septhum. Magia não passava de um boato para a maioria, mas não para o rapaz, que lidava diariamente com ela, pois seu padrasto era um mago, um estudioso dos elementos da natureza. Havia mais de 5 anos, ele se lembrava bem, o dia em que lhe foi ensinado o significado da magia proibida, vulgo Sombria, Arte das trevas ou qualquer alcunha que fizes- se referência ao lado obscuro do âmago humano.

- Um bruxo, você diz? Ou Bruxa? Está inventando! – O conselheiro fala com falso ceticismo. Ele estava assustado, como qualquer outro na sala.

A princesa Sol cessara o choro, parecia catatônica com o olhar distante.

Já a sua irmã mais nova, pousara uma mão na boca forçando sua men- te a aceitar os fatos. O Duque dá curtos passos até a cama de Melanir, a garota dormia tranquila, com o lençol em cima das pernas, a barriga exposta com o pequeno corte de contornos negros.

- Se encaixa com o que você ouviu dos Goblins. – O Duque Cláudio responde ao Conselheiro real.

- Ele está afirmando isso justamente porque ouviu o que eu falei – Na- 50

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tanael fala ao Duque, se aproximando do mesmo. Acreditando no que dizia a cada palavra.

- Você viu as flores.

- Um truque! Uma prestidigitação.

- Ah – A princesa Melanir geme. Ela franze o cenho ainda de olhos fe- chados, aperta o colchão com as duas mãos e mexe os pés, incomodada.

Kalifa aproxima-se da irmã, colocando a mão em sua testa. Chama o nome “Mel”, várias vezes, tentando acordá-la, mas sem sucesso. Nata- nael se aproxima para dar suporte e a princesa enferma grita, um som estridente e carregado de dor. Ela abre os olhos azuis com as pupilas dilatadas, seu rosto fica rosado com o esforço do grito.

Natanael chama pela princesa desesperado, Kalifa começava a chorar de preocupação, agarrando a irmã nos braços. Sol permanecia imóvel como uma estátua, sem saber o que fazer. Ouvem-se batidas na porta, os dois guardas que estavam do lado de fora entram.

- Saiam! – Ordena o Duque aos homens – Tragam o rei!

Os homens vão embora com a mesma rapidez que entraram e o Duque fecha a porta na cara de Devan e Galahan, ambos com ar sobressaltado.

Melanir parou de gritar e desabou, inconsciente, mais uma vez. A man- cha escura, que contornava as veias ao redor do ferimento, começa a se espalhar devagar, subindo para o umbigo e descendo para seus pelos pubianos.

- Ela vai ficar bem, não vai? – Sol permanecia em pé, como uma árvore débil e de olhos instáveis.

Kalifa faz uma careta de choro, lembrando uma criança pequena, e dei- xa a irmã na cama, seca os olhos com as costas de ambas as mãos e vai até Daniel. A princesa segura a mão do garoto e com uma forçada voz rouca de controle ela implora:

- Por favor! Faça alguma coisa!

Daniel sente as mãos quentes da menina, as bochechas dela estavam ro- sadas e os olhos marejados, sua boca fazia um arco com as pontas para baixo. Ele sente um misto de compaixão com um calor que descia pela barriga, era a primeira vez que ele a via de perto. A íris da bela moça

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havia deixado o tom cinza e agora parecia um azul vivo.

Daniel suspeitou que não conseguiria dizer não a ela, mesmo tendo usa- do o recurso mais forte que Jaborandi lhe ensinou, ele se sentiu obriga- do a ir mais longe e usar um método do qual havia prometido ao Ancião Umbuzeiro jamais voltar a usar. Tirou o olhar de Kalifa para depositar em Melanir, a enferma estava voltando a fazer caretas de dor, como se sofresse em um pesadelo, o conselheiro passava a mão na cabeça da ga- rota, tentando tranquilizá-la.

- Não há nada que você possa fazer? Por favor.

A princesa caçula do rei implorava, beirando o desespero. Vendo o sofri- mento crescente dela, o aprendiz de curandeiro fecha os olhos, tentan- do refletir melhor naquele momento de pressão, sentiu um calafrio ao pensar em usar seus antigos conhecimentos mais uma vez. Mel guinchou alto, atrapalhando sua concentração. Ele sentiu como se uma música aterradora lhe subisse à mente, em um único som contínuo e agoniante.

Não conseguiu prestar atenção à segunda súplica de Kalifa. Ouviu a voz do Ancião dizendo no passado para nunca mais usar tais artes.

Abriu os olhos de súbito. Ele viu que a caçula espremia, nos cantos dos olhos, lágrimas gordas. Então, o rapaz pensou que pelo bem de outros, não haveria problema em usar sua magia proibida. Deixou a princesa com seu choro para ir até a cama. Decidido, puxou Natanael de perto da enferma, colocou um joelho no colchão e segurou Mel pela nuca, colocando o rosto da garota de frente para o dele.

- O que está fazendo? – O conselheiro pergunta aflito, sem fazer menção de interromper o garoto, qualquer milagre para ele seria válido.

- Estou fazendo meu melhor – O rapaz responde segurando o rosto da princesa com a mão esquerda. Ela arfava e expressava dor.

Kalifa abraça sua irmã, Sol, que ainda estava paralisada, as duas se con- solam, observando a cama com esperança. O Duque ainda permanecia próximo à porta, como se aguardasse alguma salvação entrar por ali.

Perdido em algum devaneio, ele retorna à realidade ao perceber o que Daniel fazia e se aproxima devagar ficando ao lado das sobrinhas.

- Gaien omun van altain.

Daniel sente um frio subir por sua espinha dorsal ao pronunciar tais pa- 52

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lavras, ele encosta o polegar da mão direita na testa de Mel e vai imedia- tamente em busca de seu refúgio mental. Tal lugar era um bloqueio es- piritual que seu padrasto lhe ensinou para mexer com a magia. O mago treinava seu intelecto para que a energia vinda das trevas não o afetasse e prejudicasse seu desempenho. O ponto de ignição do bloqueio era ba- seado em um trabalho da mente que o mago treinava ao redor de uma sensação gerada por uma lembrança, a sensação podia variar de mago para mago e do momento em que o mesmo se encontrasse.

Antigamente, para tornar sua mente bloqueada, Daniel usava a memó- ria do colo agradável e quente de sua mãe, o sentimento extraído da- quilo virava seu porto seguro e ele conseguia executar os feitiços sem problema, mas agora essas memórias estavam deturpadas, e o rapaz foi obrigado a achar outra memória. Forçou-se a lembrar da paz que vinha sentindo no acampamento da Mata Viva e dos membros que pareciam apreciar sua presença, lembrou-se da simplicidade de Glenn e da comi- da de sua esposa, logo se sentiu intocável e mais uma vez pronunciou as palavras malditas como um sussurro ou reza de um sacerdote em um enterro.

- Gaien omun van altain vain.

Todo o quarto ao seu redor fugiu de seu campo de visão, como se ele tivesse sido tragado por um buraco negro e agora pairava sobre um mar infinito em um céu negro, não conseguia sentir seu corpo, apenas um formigamento. Olhou para baixo e viu o mar de tristeza que isolava a princesa Mel, imediatamente sentiu-se triste, mas seu bloqueio mental lhe vez perceber que nada do que sentia pertencia a ele, sendo assim, afundou nas águas.

Afundou em um mar gelado. Sentiu o fluir da magia sombria na cor- renteza, ela trazia um pesar anormal em seu íntimo, estimulando-o a lembrar do passado. Forçou seu lado racional a trabalhar e reconheceu a fraqueza de seu escudo mental. Mesmo se sentindo invadido, conti- nuou a descer e pensar na princesa. Ao lembrar com força da garota, sentiu uma presença aconchegante, logo olhou uma luz dourada que brilhava na escuridão.

Encolhida em posição fetal, Mel pairava nas águas de olhos fechados, sua expressão estava tranquila. Sua imagem lembrava um espectro da

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garota enferma deitada na cama, seu corpo estava nu, mas nenhuma de suas partes íntimas era visível, pois estava difuso, como que embaçado e ao olhar fixamente em sua direção, percebia que era transparente.

O aprendiz de curandeiro se aproxima e mais uma vez é puxado, a rea- lidade ao seu redor se distorce e volta a sentir seu corpo em um espaço físico. O local era um grande salão de festas, com várias lareiras carrega- das de lenha e fogo. Haviam enfeites no teto, tecidos de diferentes cores pregadas e flores em cada canto. Em um altar, o Rei da Gleba-Rubra es- tava em pé, trajando suas vestes reais, com coroa e cetro. Atrás dele, um trono de pedra polida com joias incrustadas permanecia vazio. Toda a corte do castelo estava em pé e bem vestida, eles se agrupavam organiza- damente em fileiras meridianas, deixando um corredor no meio deles.

Na multidão estava Daniel, vestido como muitos outros membros da corte, em um estilo aristocrata.

O rapaz estava dentro de um sobretudo roxo escuro, era comprido, qua- se arrastando no chão. No corpo uma jaqueta de cintura alta, na cor verde, feita de um couro que lhe lembrava o do seu manto de jacaré que lhe apertava, por baixo dessa peça de roupa ainda vestia uma túnica de manga longa. Para encerrar seu vestuário, usava um cinto de couro e calças brancas. Seus pés estavam em um sapato de bico fino cuja plata- forma lhe dava a altura que sempre sonhara ter.

Olhou ao redor para entender o que ocorria e viu que alguém estava na frente da corte, sendo observado pelo rei. Era um homem alto, vestido em uma roupa toda adornada, calças brancas, manto azul e uma jaqueta double negra. Eram as cores do reino de Septhum, Daniel reconheceu quando viu a enorme bandeira do reino ao lado da bandeira das terras vermelhas colocadas na parede atrás do trono. Era azul à esquerda, bran- ca à direita e no centro um escudo negro com um grifo lançando suas garras. Já o símbolo da Gleba-Rubra se tratava de um corte horizontal, bege bem claro acima, vermelho abaixo e uma espada cruzando com uma enxada no centro.

Curiosamente, o representante de Septhum não possuía rosto, era ape- nas uma figura embaçada. O garoto procurou por Mel naquele local, virando o rosto para esquerda e direita. Viu Kalifa e Sol, belíssimas em vestidos longos, de cintura com armação bem larga e ambas balançavam

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um leque contra o rosto. Estavam bem à frente da multidão e ao lado delas se encontrava também o conselheiro Natanael, com seu cabelo parcialmente grisalho, todo apertado em trajes nobres.

A porta se abre e a princesa Mel entra acompanhada do Duque, seu tio. Estava exuberante em um vestido azul, com a saia tão armada que Claudio não conseguia se aproximar muito dela. O decote da garota desnudava metade das costas e os ombros. Um broche de ouro segurava seu manto branco na altura dos seios, o manto vinha se arrastando logo atrás. Uma tiara dourada com cristais segurava seus cabelos loiros para trás. Duas meninas acompanhavam seu passo lento em direção ao altar e jogavam pétalas de diversificadas flores.

O ritmo lento da marcha prosseguiu até o Duque entregar a princesa ao homem de Septhum e ir juntar-se às outras sobrinhas. As meninas choravam na plateia e Mel, antes de pegar na mão de seu noivo, virou-se para suas irmãs e cochichou:

- Eu não quero.

- Pelo bem do reino – Sua irmã Sol cochichou de volta

- Força irmã – Kalifa diz um pouco mais alto – Lembre-se, sempre tem a opção de mata-lo e virar bandoleira.

Mel não achou graça, pois estava nervosa. Daniel reparou que, absur- damente, ninguém ouviu a conversa das irmãs. O Rei ergue seu cetro e com sua voz carregada, porém amorosa, de uma forma que o rapaz duvi- dava que fosse possível que ele falasse, diz:

- Devido ao fato de não sermos reconhecidos como reino por nenhuma igreja e não termos uma religião oficial, eu, o primeiro rei da Gleba-Ru- bra, Claus Donmark primeiro, filho de Gorb Donmark e atuante go- vernador destas terras, me autorizo para ter o poder de juntar este casal matrimonialmente.

Daniel resolve deixar de atuar como figurante naquela cena e começa a andar por entre as pessoas da plateia, indo para o altar, algumas resmun- gam contra o garoto, e ele tem dificuldade de passar por entre as arma- ções das saias de duas nobres choronas que consolavam uma à outra.

- Incumbido desse poder – O rei prosseguia, mas sua filha Mel o inter- rompe.

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- Pai, por favor – A menina diz, tímida - Não quero casar com ele. É in- justo que você e a mamãe tenham se apaixonado e casado e eu vá casar com qualquer um.

Sem olhar para a filha, como se prosseguisse seu discurso matrimonial, o rei fala alto para todos:

- Ele não é qualquer um – Diz, pontuando palavra por palavra, a plateia ouvia como se fosse tudo normal – É um príncipe de Septhum, terceiro herdeiro do trono. Precisamos de reconhecimento na Assembleia dos reinos.

- Vamos virar vassalos! – A menina diz, birrenta.

Daniel atravessa por debaixo das saias das garotas e leva um tapa de uma e um sorriso sapeca de outra. Com pressa ele percorre em direção à fren- te, tropeça na plataforma que calçava e esbarra em um homem gordo que lhe xinga, mantendo o tom de voz baixo. O rapaz rasteja pela saída mais próxima e sai no corredor coberto de pétalas.

- Incumbido desse poder de unir casais matrimonialmente – O rei dizia em tom de discurso, como se nunca tivesse sido interrompido – Exi- jo saber, se não há nenhuma outra garota mimada para contestar essa união ou qualquer outra pessoa que tenha algo contra esse casamento.

O aprendiz de curandeiro, atrapalhado, se levanta no meio do corredor, o rei olha para ele e junto com seu olhar todas as cabeças ali presentes se viram para o centro. Quando Daniel ia falar algo, um homem alto e forte irrompe do meio da multidão derrubando o garoto no chão.

- Eu! – O homem diz com uma voz bonita de cantor, com uma leve se- melhança à voz do rei.

Uma ovação é ouvida na multidão e o rei coça a barba grande e pergun- ta intrigado:

- Quem seria o senhor?

- O verdadeiro amor dela! – Meia dúzia de meninas desmaiam, entre elas a princesa Sol. Mel suspira e observa esperançosa para o pai.

- Mas que diabos?! – Daniel se levanta irado a anda rápido até o altar.

O humor do rei muda, com ele o clima lá fora também. Uma súbita ven- tania invade o salão, derrubando o chapéu das madames e levantando

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suas saias. O rosto de rei se contrai em fúria. Mel fica apavorada, lágri- mas surgem em seus olhos. Um relâmpago é ouvido lá fora.

- Você vai casar dona Melanir! Ah, se vai! – O cetro já não existia em sua mão e sim a espada longa com as escritas “Ira da tempestade” em uma linguagem antiga.

Sem ter uma origem, o vento sopra mais forte no salão, as pessoas gri- tam, um homem robusto é derrubado. Daniel vai de encontro à prince- sa e a ventania passa a empurrá-lo, impedindo que o garoto se aproxime mais. O rosto do rei se desfigura por um breve instante, ele dá um largo sorriso incomum para a sua estrutura facial. Algumas verrugas começam a surgir em seu rosto.

- Princesa Melanir! – Daniel grita protegendo o rosto da turbulência.

- Sua garota mimada! Hahahaha! – A voz do rei vacila e, durante a gar- galhada, ela fica mais histérica e aguda.

- Princesa! – O rapaz grita mais alto e a garota confusa, contendo as lá- grimas, se vira para ele – Escute! Toda essa tristeza que você sente, não é sua! – Mel continuou fitando-o, com um olhar de incompreensão – Você precisa lutar contra isso!

A ventania tornou-se pior, começou a levar pedaços de parede, pessoas, uma parte do chão. Atrás de todo aquele cenário que agora parecia falso, havia um mar azul esperando para invadir, como se uma parede invisível o segurasse. O rei pulou do altar com a espada na mão e, agarrando a princesa pelo cabelo, ele disse:

- Se não quer casar... – Seu rosto ficou horrendo, seu nariz adunco e enorme, seu queixo pontudo e sua barba sumiu - ...é melhor morrer e dar a vez à sua irmã!

A voz do rei ficou histérica ao fim da frase. Seus dentes apodreceram e os cabelos alongaram, ficando brancos. Sem piedade, enfiou a espada no peito da garota e passou a rir de forma aguda e contínua. O corpo de Mel ficou esbranquiçado, assumindo uma aparência espectral e se fe- chou na posição fetal. Toda a realidade fora levada pelo vento e Daniel se afogou em uma tristeza absurda na forma de fortes águas marítimas invasivas. O rei se tornou uma velha feia e magra, de poucos cabelos brancos e secos.

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- Um verme como você? Tentando me desafiar? Hahahahahaha!

A velha avançou na direção dele e Daniel ficou cada vez mais letárgico, sua visão desfocou e quando retornou passou a ver sua mãe. Estava bran- ca como leite, magra, com as mãos e as pernas roxas, e manchas leves de tons esverdeados pelo rosto e pescoço. Os olhos dela estavam esbranqui- çados e fora de foco, entravam no crânio deixando olheiras profundas.

Um garoto da pele escura, da cor de Daniel, passou correndo por ele.

Era mais baixo e idêntico, só que com a aparência mais jovem. Foi até sua mãe e a abraçou.

Daniel viu o garoto se aninhar no colo de sua mãe, encostando a cabe- ça na barriga, envolvendo-a com seus braços. A mulher não expressava nada, seus olhos estavam fixos e impassíveis. Um cheiro podre de carne em decomposição invadiu as narinas do garoto, então, ele sentiu o frio da pele de sua mãe e quando olhou para cima, observou que o queixo dela estava com um machucado roxo. Teve medo quando percebeu que era o jovem Daniel de dois anos atrás, apenas uma frágil criança.

- Mãe! – Chamou manhoso e a mulher olhou de cima indiferente – Faça cafuné em mim! – E maquinalmente ela estendeu a mão sobre sua ca- beça e deslizou sem delicadeza pelos cabelos. Repetiu o ato várias vezes.

Um pânico crescente invade o peito do garoto, ele queria sumir daquela cena, queria apagar suas memórias, voltar no tempo ou deixar de existir.

A angústia invadiu o peito, entalou em sua garganta e explodiu em sua mente. Então, achou que morreria e logo parou de respirar. Sentiu uma pressão na cabeça, forçou o ar pela garganta, mas foi inútil. Buscou seu pescoço e um par de mãos estavam lá, estrangulando-o. Viu sua mãe rindo por cima de seu rosto, os dentes mais arreganhados que o normal e os olhos saltados e insanos.

O som de uma gritaria, que se ouvia ao longe, aos poucos foi se aproxi- mando. Reconheceu a voz de Kalifa e de Natanael. Seu pescoço doía, era impossível respirar e começou a ficar desesperado. A realidade se reconstruiu ao seu redor, Melanir apertava seu pescoço com uma força monstruosa. A garota sorria debilmente e seu olhar era maligno. Ela es- tava sentada na cama erguendo o garoto no ar.

- Pare com isso, Mel! Ele está lhe ajudando! – Kalifa dizia apreensiva em pé, ao lado da cama.

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- Princesa pare! Vai matar o garoto! – O conselheiro gritava gesticulando nervoso – Princesa?! – Ao chamar por ela Natanael percebeu que não dava o menor sinal de entendimento, então, teve certeza de que estava em transe. Agarrou o braço dela para aliviar a pressão no pescoço do ga- roto, mas ao tocá-la afastou-se bruscamente e bateu as costas na parede, tropeçando por cima do baú.

O conselheiro gritou de dor e segurou sua mão como se estivesse machu- cada. Ficou sentado em cima do baú e escorado na parede, observando sua mão, procurando algum ferimento, mas não havia nada. Sem querer esperar para ver o que havia ocorrido, a princesa Kalifa agarrou o braço da irmã tentando liberar Daniel e soltou na mesma hora, dando um grito agudo e contido. O aprendiz de curandeiro balançava suas pernas inutilmente e tentava se libertar da prensa, mas logo sentiu suas forças se esvaindo e se mexia cada vez menos. Sua cor passava do vermelho ao roxo.

Sem saber ao certo como agir, o Duque saca sua espada, mas sua sobri- nha Sol se joga em sua frente o abraçando e gritando para não a ma- chucar. Cláudio parecia muito perturbado observando a cena, por um breve momento pareceu que ele teria coragem de atacar a princesa, mas logo reconheceu a loucura a largou a espada.

- Ela vai matá-lo! – Daniel ouviu o Duque afirmar. Sua vista começara a escurecer e seu corpo foi ficando dormente.

Melanir alargou o sorriso, algumas verrugas surgiram e sumiram em seu rosto, desfigurando sua face por um instante em uma mulher velha e horrenda. Daniel passou a observar tudo como se estivesse em um tú- nel, sentiu um frio como nunca havia sentido e um pássaro pequeno, do cocuruto negro, sobrevoou sua visão embaçada.

Em um obstinado ímpeto, Kalifa se atira contra sua irmã, saltando em cima do braço esquerdo dela, abraçando-o contra o peito e jogando ha- bilmente a parte interna do joelho direito sobre o queixo de Mel, enro- lando-se nela como uma cobra. Ignorando a dor que o toque dela cau- sava com uma careta, ela cerra os dentes e põe a perna esquerda sobre o busto da irmã, esticando seu corpo para trás leva o braço que segurava junto. Daniel é liberado de um lado e o conselheiro o puxa para trás, agarrando o garoto.

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Ambas as princesas caem sobre a cama, Mel dominada em uma chave de braço e balançando a cabeça violentamente. Kalifa estava ficando com as bochechas vermelhas, reprimindo um grito de dor, ela não suportava mais manter contato com sua irmã, mantendo o braço dela preso entre as pernas e agarrada ao antebraço.

Daniel buscava o ar em um som rouco, passando a mão pelas marcas vermelhas em seu pescoço, ele estava gelado como um morto e banhado de suor, tanto que sua camisa interna estava úmida. Natanael colocou ele sentado no chão e perguntou com preocupação:

- Você está bem garoto?

Era óbvio que não. Uma mistura conturbada de sentimentos borbulha- va dentro dele e lágrimas de tristeza, frustração, angústia, desespero e ódio molhavam seu rosto. Ainda podia sentir um frio sobrenatural e a sensação de morte. Passou a mão pelos cabelos enrolados e negros ten- tando manter o que sentia em ordem.

Kalifa sucumbiu à dor lancinante e largou a irmã e relaxou. Gotículas de suor já se formavam em sua testa. Mel, possessa, rapidamente se coloca de joelhos e ergue as mãos para o pescoço da irmã que se esquiva rolan- do na cama até cair no chão de frente sem disposição para se levantar, mostrando um desgaste mental e parcialmente físico. Melanir se levanta sobre a cama e gargalha alto, histericamente.

O garoto aprendiz se levanta, e enxuga as lágrimas do rosto. Ele se con- centra na pequena porção de ódio que sentia no meio de tantos outros sentimentos. Estava irritado consigo mesmo por se achar uma criança chorona. Então, fez o exato oposto do que seu padrasto lhe ensinara e, germinando com dificuldade a cólera dentro de si, sibilou “Gaien Omun van arien vain”.

- O que vai fazer? – Natanael pergunta, espantado ao ouvir o sussurro.

Mais uma vez Daniel sente o calafrio gerado pelo poder da magia som- bria e sua raiva multiplica-se dentro de si. Sentia ódio da princesa pos- sessa, do conselheiro por implicar com ele, do Duque por não fazer nada, da princesa Sol por só chorar, do escudeiro Clauzor por ser irri- tante, de Kal por não estar lá para ajudar, de Jaborandi por não ter lhe ensinado o suficiente, do ancião por ter lhe enviado, do seu padrasto

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por ter destruído sua vida e de sua mãe por ter escolhido mal seu espo- so e sentiu um rancor ainda maior por seu pai biológico, o homem que nunca esteve por ele.

Gritando em fúria, o rapaz se jogou de ombros nas coxas de Mel e os dois desabaram na cama. O rapaz força sua essência para o interior dela e vê a realidade se alterando ao seu redor ao ser puxado para dentro, mais uma vez o mar azul de tristeza estava lá. Sem perder tempo, Daniel aponta para baixo e uma ventania poderosa explode as águas para todo os lados. Sentindo o peito arder como se estivesse em chamas, ele voa até o mar e um tornado se forma ao seu redor, unindo-se à água e se transformando em um híbrido, um turbilhão. Percorrendo seu centro, de forma a não ser tocado por nada, Daniel prossegue até onde Mel se achava em sua forma fantasmagórica e frágil.

A bruxa estava em frente à princesa, uma forma esguia e negra, com bordas bruxuleantes, a feição mordaz e terrível sorrindo com poucos dentes. Ela debocha:

- Omun é meu refúgio, criança!

O aprendiz avança até ela em um rompante e a velha apenas aponta a mão aberta para ele e a fecha lentamente. Logo a ira cega-o e tamanho era seu descontentamento que se arranhou e gritou com todas as suas forças. Ele viu o alvo de seu ódio, um homem de meia idade usando um manto preto. Estava de costas para ele enquanto mexia em um cadáver nu de uma das garotas sumidas de sua antiga vila.

Um Daniel mais novo que o atual descia as escadas do subsolo, estava perturbado, como estivera nas ultimas semanas e então disse a seu pa- drasto:

- August, mamãe esta lá em cima de novo e não se mexe mais. Você pode fazer ela se mover?

Distraído e ocupado observando o interior do abdômen da garota mor- ta, ele responde, áspero:

- Daniel, pelos deuses, você já tem poder o suficiente para reanimar sua mãe. Em vez de ficar brincando pegue um pássaro da gaiola para mim.

Vou tornar este corpo um servo permanente, venha aprender.

O garoto se aproxima da mesa onde havia várias gaiolas com a Toutine- 61

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gra, em vez de pegar o pássaro, segura uma lâmina que estava na borda da mesa retangular, próximo a outros objetos. Ele se aproxima por trás e levanta os olhos para observar as frágeis costas do homem que destruiu sua vida. Impassível, enfiou a lâmina no lado do rim direito uma vez e depois uma segunda vez.

O homem se virou sem entender, como se para ele fosse difícil de assi- milar os acontecimentos e o garoto o furou mais duas vezes na altura do fígado e do diafragma. O sangue começou a se precipitar aos montes, August estendeu a mão para a cabeça de Daniel, mas não conseguiu per- furar seu escudo mental.

- Omun...

Ele tentou dizer e gemeu com a dor da faca lhe entrando e saindo da barriga, despencou de costas para a mesa do cadáver e caiu no chão sentado, Daniel furou sua garganta para se certificar de que não faria conjurações e passou a esfaqueá-lo incessantemente. Quando viu que já estava morto, o garoto se permitiu odiá-lo e perdendo todo o autocon- trole passou a golpear com mais força, sentindo os impactos subirem por seu braço.

Já estava banhado de sangue e chorava quando terminou. Seu padrasto estava irreconhecível, apenas um corpo banhado de sangue e cortes. A Bruxa gargalhou. Sussurrando no ouvido do garoto ela diz:

- Mate os culpados pela morte de sua mãe, você é o próximo!

E Daniel sentiu tanto ódio de si mesmo que pensou que iria explodir.

Ele sabia que não poderia continuar assim ou sua mente iria se estilha- çar e morreria por dentro virando um demente. Por isso procurou um porto seguro, uma proteção mental, mas não havia sentimento nem lembrança que pudesse usar. Pensou na Mata viva, mas estava com ran- cor demais de todas as pessoas ali. Então buscou por uma memória so- litária.

Lembrou-se da floresta e das arvores que subia, da satisfação ao chegar ao topo. Vivenciou mais uma vez o dia que escalou a mais alta de todas as árvores, lá de cima se equilibrou por uma hora para ver o pôr do sol.

O vento quase lhe derrubou, balançando o frágil galho sobre o qual estava e quando se recompôs, foi pego de surpresa pelo último feixe de

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luz do sol e sentiu-se bem. Sentiu que era imbatível, indomável e feliz.

As nuvens ao redor da coroa solar estavam rosadas e os diversos tons do laranja ao vermelho distribuíam-se à vontade por todo o céu. Naquele dia, achou a paz que somente o colo de sua mãe lhe dera antes.

Fechou sua mente como nunca antes em uma poderosa proteção. Sen- tiu a cólera distante, como se fosse parte de um garotinho de 12 anos birrento que já não tinha espaço dentro dele, pois agora era um homem.

O tornado de água ainda o circulava e podia sentir nele a soma de duas magias sombrias.

Yulma lançou um olhar de incredulidade e gargalhou imitando uma horrível voz de bebê:

- O papaizinho transformou a mamãe em um morto vivo foi? Que histo- rinha triste.

- Ele não era meu pai.

Ao dizer isso Daniel comanda o turbilhão atrás de si e ele avança como uma serpente varrendo Yulma dali. A bruxa velha grita de ódio e é ex- pulsa para longe, sendo removida em alta velocidade da mente de Mel, fazendo com que o castelo, a cidade e os campos passem por ela como borrões. Até encontrar a floresta e em seu meio uma clareira, no centro desta uma cabana de madeira e finalmente encontrar seu corpo que segurava o leitão pela orelha, agachada ao chão. Foi tão forte a entrada de sua alma que de forma sobrenatural foi arremessada por 3 metros batendo com sua nuca na parede de madeira. O pequeno leitão correu e se debateu em um canto da casa.

Yulma gritou de rancor e dor, as protuberâncias em sua face se multipli- caram, haviam tantas em seu nariz que se tornaram uma segunda pele, inchada e vermelha, sua testa ficou alongada e ganhou duas pontas ob- tusas. Ela se ergueu do chão ignorando o braço ferido e puxando dois tufos de cabelo branco com voracidade. Tamanho era o sentimento que fervia dentro dela que mordeu seu labo inferior arrancando um pedaço.

- Yulma? - Uma mulher bonita de cabelo negro, liso e sedoso, no auge de seus trinta anos, entra na cabana mancando de uma perna – Olhe, sou bela mais uma vez!

Yulma congelou, o sangue negro e espesso descia-lhe da boca e alguns 63

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dos cortes no braço haviam aberto e sangravam. A velha bruxa pergun- tou em um tom de voz incrédulo e bizarramente controlado:

- Onde está meu banho de beleza?

Sem graça e relutante, sua ajudante da um pequeno sorriso e responde:

- Eu...eu usei ele.

Yulma faz um gesto e, como se dedos mágicos envolvessem o pescoço de sua ajudante, ela é arrastada, se debatendo e sem conseguir respirar.

Após isso desaba no chão na frente da bruxa.

- Yulma, por favor... – Sua parceira suplica cheia de medo.

A bruxa chama magicamente a faca engatada na parede ao lado da porta que voa até sua mão e diz para sua ajudante:

- Vai preferir ter morrido quando eu terminar.

E crava a ponta da faca no canto do olho da mulher.

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