• Nenhum resultado encontrado

A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na imprensa

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na imprensa"

Copied!
123
0
0

Texto

(1)

Arthur Serra Massuda

Controles na Liberdade de Expressão

A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na imprensa

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

Arthur Serra Massuda

Controles na Liberdade de Expressão

A 1ª Conferência Nacional de Comunicação na Imprensa

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica: análise de mídias, sob orientação do Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado

SÃO PAULO

(3)

Banca Examinadora

________________________________________________________________

________________________________________________________________

(4)

Resumo: Esta pesquisa investiga a cobertura da imprensa brasileira sobre a Primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Para tal, parte da teoria de discurso de Michel Foucault e em especial do conceito de procedimentos de controle do discurso, bem como da teoria política do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. A análise da cobertura sobre a Confecom foi realizada no corpus constituído pelos

jornais Folha de S.Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo, no mês de dezembro de

2009, data da realização da etapa nacional da referida conferência. O resultado da análise revela um discurso jornalístico controlado por uma racionalidade voltada para fins, criando um espaço de invisibilidade em torno das violações de liberdade de expressão denunciadas pela conferência. Além da análise midiática, examinamos também os próprios documentos da Comissão Organizadora da Confecom, acompanhando como os debates se deram na etapa nacional. O resultado mostra um debate efetuado a partir de uma divisão em eixos temáticos e grupos de trabalho e de sua efetividade a partir de procedimentos de votação. O modelo de um debate público capitaneado pela imprensa, em que sujeitos articulados pela técnica jornalística difundem suas expressões por meios de comunicação sobretudo privados, pode ser encontrado nas recomendações do sistema interamericano de liberdade de expressão, da Organização dos Estados Americanos, e é constituído a partir das necessidades da democracia. Nessas recomendações, a democracia opera de forma análoga ao liberalismo utilitário que Foucault discute nas práticas de governo a partir do séc. 18, voltadas para a gestão de interesses entre o público e o privado. Entre as necessidades democráticas, a busca jornalística pelo interesse público se destaca por exigir uma configuração específica na economia política da comunicação para o debate público funcionar adequadamente, caso contrário, lida-se com a ameaça constante da sobredeterminação dessa busca pelo interesse particular. Por outro lado, ao sustentar um discurso produtor de um antagonismo inconciliável, essa posição liberal, embora necessária para a democracia recomendada pelo sistema interamericano, não atende às necessidades da democracia radical defendida por Mouffe em The Democratic Paradox, que busca a inclusão constante daqueles excluídos pelo e do processo

político. Ao final, esboça-se uma possibilidade atender às necessidades da democracia radical por meio do controle do discurso jornalístico a partir do enfrentamento de experiências de desrespeito, com os fundamentos da teoria do reconhecimento de Axel Honneth.

(5)

Abstract: This research reviews the Brazilian press reports on the First National Conference on Communications (Confecom). It combines concepts from Michel

Foucault‟s discourse theory, particulary his concept of procedures on discourse control,

and Ernesto Laclau and Chantal Mouffe‟s political theory of discourse. The selection of press reports on Confecom included those from newspapers Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo and O Globo, in December 2009, when the conference took place.

The review reveals a journalistic discourse controlled by an end-oriented rationality, constituting an invisible space around violations of freedom of expression denounced by the conference. The research included analysis on documents from the Confecom Organizing Commission, in order to assess how debates were expected to occur. Results reveal a debate where discourses were divided into thematic axis and work groups, while their effectiveness is controlled by vote procedures. A model of public debate where the press is a protagonist, i.e. subjects articulating journalistic techniques express themselves through mainly private means of communication, can be found on recommendations from the Organization of American States‟ inter-American system of freedom of expression and is designed based on democratic needs. In these recommendations, democracy is analogue to a utilitarian liberalism that Foucault points out on government practices during 18th century, aiming the management of public and private interests. Among the democratic needs, the journalistic quest toward public interest is questioned as it demands specific configuration on the political economy of communications in order to work properly. Otherwise, it is always vulnerable to an overdetermination of particular interests on this quest. On the other hand, by maintaining an unsolvable public-private antagonism, such liberal position, though a necessity to the inter-American-recommended democracy, does not measure up to the radical democracy need advocated by Mouffe on The Democratic Paradox, meaning the

inclusion of those excluded from and by political processes. In the conclusion, an effort to constitute a public debate to achieve this need is developed based on Axel Honneth theory of recognition. On such a debate, journalistic discourse is controlled by a resistance to experiences of disrespect.

(6)

Introdução Controle social sobre a mídia... 7

Capítulo 1 Controle discursivo no liberalismo... 14

O liberalismo em oposição à razão de Estado ... 18

O sistema interamericano de liberdade de expressão ... 26

Os fundamentos da liberdade de expressão ... 26

Governamentalidade para um debate público democrático ... 33

O controle da expressão pelo interesse ... 42

Capítulo 2 A imprensa e a Confecom ... 45

O Estado de S. Paulo ... 48

Folha de S.Paulo ... 54

O Globo ... 58

Uma doutrina jornalística ... 62

Capítulo 3 Controle discursivo na Confecom ... 70

A pluralidade de sujeitos na mobilização ... 73

A gestão de conflitos pela Comissão Organizadora ... 78

A produção discursiva na etapa nacional ... 85

As propostas e suas denúncias de exclusão ... 92

Conclusão Um novo debate democrático ... 102

A dinâmica dos conflitos sociais ... 108

Debate democrático como espaço de reconhecimento ... 110

Sistema de participação ... 115

(7)

Introdução

(8)

Em meio a uma paisagem rochosa e sem vida, a última fronteira do mal, uma instalação abriga o laboratório mais seguro do mundo, onde foram eliminadas as maiores aberrações existentes na face da Terra: vírus, bactérias, só o que existia de pior. Numa cela especial, ainda habita a criatura mais temida: um monstro mantido congelado para jamais despertar de novo. Porém, um sentinela sonolento não percebe a temperatura subindo... e o alarme toca. O monstro da censura escapa!

Como um documentário de vida selvagem, flores se abrem, aves migram e leões-marinhos nadam, enquanto o locutor mexe com os sonhos humanos de liberdade, um sonho no qual os seres humanos, além de livres, detêm direitos. Pois a liberdade sem direitos... é um tubarão se alimentando, um guepardo perseguindo um filhote de antílope. Num tom didático e lúdico inspirado no documentário de Jorge Furtado A Ilha das Flores (1989), o locutor apresenta o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, que versa sobre a liberdade de expressão, e denuncia a concentração dos meios de comunicação no Brasil, que prejudica o direito de muitos cidadãos de receber e transmitir ideias por quaisquer meios.

O vídeo Não Deixe o Monstro da Censura Acordar1 é assinado pelo Centro de

Referência sobre Liberdade de Expressão – um empreendimento do Conselho de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Já a produção Levante sua voz2 foi realizada pelo Intervozes -

Coletivo Brasil de Comunicação Social, com o apoio da Friedrich Ebert Stiftung e da “lei de incentivo ao „te vira‟” e do “ministério da cultura do „faz com pouca grana‟”. Ambas as

produções denunciam diferentes ameaças das quais a liberdade de expressão precisa ser defendida, o monstro da censura e a selvageria da concentração dos meios de comunicação. Com tantos defensores, a liberdade de expressão pareceria um consenso no Brasil. O problema é que a solução para a selvageria vem sendo sistematicamente associada a um monstro: os perigos do controle social sobre a mídia são denunciados pelos sujeitos cuja selvageria se pretende controlar como as condições para se instituir um ambiente propício à censura. Trata-se de uma disputa de

1 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Px3bnCwJMjo>. Acesso em: 9 ago. 2013.

(9)

ameaças.

Esta pesquisa apresenta o funcionamento discursivo das estratégias que deveriam organizar um debate democrático, discute como algumas condições precisam estar controladas e vigiadas para que os discursos das populações possam florescer e circular livres como um leão-marinho pelo ambiente social, disputando corações e mentes. Pode parecer contraintuitiva uma associação entre controle e liberdade, dado o senso comum de que liberdade seria a ausência de amarras e controle essas mesmas amarras. No entanto, é o controle de algumas condições – na produção do discurso, na adequação dos discursos circulantes e na seleção dos sujeitos enunciadores – que organiza os discursos no sentido de atingir um determinado fim social, para que resultados possam surgir da interação desses discursos: seja a condução de conflitos sociais de maneira a não atentarem contra a integridade física e moral das identidades constituintes e constituídas por esses discursos, seja a conquista da livre expressão por qualquer pessoa independente de sua posição social, seja a denúncia de ameaças à ordem estabelecida ou pretendida.

A importância de um estudo focado nas escolhas que nossa sociedade faz para controlar suas ordens discursivas recai sobre o desvelamento de quais fins são esses e com quais estratégias se pretende atingi-los. Se o controle social sobre a mídia seria o primeiro passo para a censura ou a domesticação das forças econômicas no debate público, revela-se aí uma disputa sobre o que deveríamos temer mais: a intervenção –

na forma de políticas públicas, regulação e regulamentação – ou a falta de intervenção social sobre o debate público, deixando-o fluir autorregulado. Ambos as posições buscam sua forma de liberdade, mas têm estratégias distintas para atingi-las. O foco no controle discursivo revela tais estratégias assegurando uma independência em relação a discursos legitimadores desses controles. O filósofo francês Michel Foucault faz a seguinte reflexão a esse respeito:

(10)

não dispõe de nenhum fim, ela funciona, controla seu próprio funcionamento e cria, a cada instante, as formas para justificar esse controle (FOUCAULT apud CASTRO, 2009, p. 85).

Em Foucault, o termo controle aparece inicialmente para designar uma série de mecanismos de vigilância surgidos nos séculos 18 e 19 com a função nem tanto de punir o desvio, mas de corrigi-lo e preveni-lo. O controle social constitui uma população

gerenciada em função de modelos normativos integrados ao Estado, enquanto institui um sistema de individualizacão que se destina a modelar cada individuo e a gerir sua

existência (REVEL, 2005, p. 29-30). Mais recentemente, no entanto, sob a ótica da democratização brasileira, o termo tem sido utilizado pelo governo e pela sociedade civil como uma forma de gestão participativa das políticas públicas e do combate à corrupção3.

Em ambos os casos, o controle busca a correção, a prevenção e a punição de desvios de acordo com o modelo normativo de referência para instituir tal controle. A partir daquilo de que não se quer desviar, necessidades são formadas: se queremos uma população manejável, precisamos normalizar os colonos de um território; se não queremos corrupção, precisamos fiscalizar a condução dos gestores públicos. Se falamos de controle social, portanto, é indispensável tratar de sua referência normativa.

Nesse sentido, reivindicar a liberdade de expressão para promover uma normalização ou condenar um desvio é um tipo de controle: por esse termo fazemos entender algumas expectativas de práticas e saberes – comportamentos e instituições –

em torno das capacidades comunicativas do ser humano. Por exemplo, expectativas como livre acesso à informação tornam necessárias práticas como a produção e circulação sistemáticas de informação por uma pluralidade de fontes independentes.

3 Em 2012, por exemplo, ocorreu a 1ª Conferência Nacional sobre Transparência e Controle Social

(Consocial), cujo tema foi “A sociedade no acompanhamento e controle da gestão pública”. Este autor

testemunhou na primeira reunião da Comissão Organizadora Nacional uma confusão atribuída ao termo

(11)

Divide-se a finalidade proposta das estratégias para atingi-la, ou seja, em nome do que se condena um desvio e como evitar um desvio. A liberdade de expressão, dessa maneira, sempre contou com um controle social sobre seu exercício, já que existem referências normativas muito claras em relação ao que configuraria um desvio (como monopólios informativos) e estratégias para a realização dessas referências. Quais mecanismos estratégicos serão instituídos para organizar o debate público, por exemplo, pode depender de se é o mercado ou o Estado que precisa ter seus desvios controlados para a existência de uma pluralidade de fontes de informação.

A descrição das necessidades que o Estado e o mercado podem suprir para um debate público vigoroso, e de quais desvios não serão tolerados, pode ser encontrada no discurso sobre direitos humanos, especificamente nos sistemas de proteção regional, como aquele sob o guarda-chuva da Organização dos Estados Americanos. O objetivo do capítulo 1 é revelar o que o sistema interamericano entende por liberdade de expressão e como ela deveria funcionar: as finalidades que deve atender e a estratégia para atingi-las. A partir da estratégia instituída para a aplicação desses fundamentos, identidades ganham importância, condições se tornam indispensáveis e algumas práticas são inadmissíveis e ameaçadoras. Os desvios que o sistema interamericano recomenda evitar fazem referência a uma tradição do liberalismo na qual o Estado é controlado para garantir a independência dos governados; independência, porém, sempre em risco, o que cria a necessidade de uma série de condições para uma relação da imprensa com o Estado e com o mercado funcionar de forma adequada, sem desvios perigosos.

No capítulo 2, examina-se como funcionam os controles discursivos em um debate público capitaneado pela imprensa. A cobertura sobre a 1ª Conferência Nacional de Comunicação pelos jornais O Globo, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo

revela como o controle na produção discursiva da imprensa é orientada por uma racionalidade específica que organiza o espaço social a partir do interesse do veículo. Mais grave, esse controle discursivo torna invisível precisamente as situações de desrespeito que motivariam a organização de uma conferência sobre políticas públicas de comunicação.

(12)

conferencial, por meio do estudo de caso da última etapa da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, em dezembro de 2009. A análise trata tanto de controles discursivos exercidos por uma comissão organizadora que diferenciam esse debate daquele recomendado pelo sistema interamericano – pois funciona pelo princípio de colaboração entre governantes e governados –, quanto das propostas de controle que emergiram do processo: uma amostra das resoluções aprovadas é discutida a partir do procedimento proposto de controle discursivo com o fim de incitar um debate sobre os resultados da conferência. A Confecom foi generalizada pela imprensa como uma ameaça, o que tornou invisíveis situações de desrespeito à liberdade de expressão denunciadas nas resoluções finais. Ao invés de focar em como determinado controle pode ser uma ameaça, o capítulo busca a finalidade do controle, a situação de abuso que se pretendeu reverter.

O foco no controle discursivo abre a possibilidade de mudar a estratégia pela qual saberes fundamentais sobre a liberdade se tornam práticas sociais. Se temos consciência dos resultados da aplicação de determinados procedimentos de controle discursivo, tais mecanismos podem ser aperfeiçoados. Um esboço dessa possibilidade é apresentado na conclusão deste trabalho com a proposta de um modelo de debate público no qual o desvio não acontece pela ação interessada entre governantes e governados, mas na ocorrência de uma experiência de desrespeito, em consonância com a teoria do reconhecimento de Axel Honneth. Um debate vigilante a experiências de desrespeito diante dos movimentos sociais, em que circulem discursos emancipatórios e sejam conectados sujeitos em rede ganha um horizonte moral até agora perdido no debate liberal voltado para a gestão de interesses do mercado.

(13)
(14)

Capítulo 1

(15)

Fato marcante para aqueles que acompanharam a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), denominação dada a um conjunto de conferências sobre o tema realizadas pelo Brasil ao longo de 2009, foi a retirada em bloco das entidades empresariais do processo conferencial. Em 13 de agosto de 2009, seis das oito entidades representantes de empresários da comunicação abandonaram suas posições na Comissão Organizadora Nacional (CON) para acompanhar as etapas conferenciais de longe, sem “interesse algum em impedir sua livre realização” (FNDC, 2009). Elas

fundamentaram sua saída pela reação negativa de interlocutores na CON, que incluía

governo e sociedade civil, a incorporar os “preceitos constitucionais da livre iniciativa,

da liberdade de expressão, do direito à informação e da legalidade” (Idem) nos

documentos organizadores da Confecom. Em 18 de dezembro de 2009, a Associação Brasileira de Empresas de Radiodifusão e Televisão (Abert), que capitaneara a saída das outras entidades, soltou a nota “Conferência Nacional de Comunicação termina com propostas que ameaçam a liberdade de imprensa”, em que diz que o resultado conferencial atentaria contra “a liberdade de imprensa e a livre iniciativa” (ABERT, 2009).

A partir dessa fundamentação, as entidades empresariais denunciaram o suposto funcionamento no interior do processo conferencial de uma racionalidade de ameaça à ordem democrático-constitucional, para elas detectável desde as primeiras etapas de organização.

Mas algo não fecha nessa linha de raciocínio. Convidadas pelo governo, as entidades empresariais tinham mesmo poder de voto que a sociedade civil não empresarial, ou seja, não eram meros sujeitos legitimadores de um processo de cartas marcadas. Além disso, conferências de políticas públicas são espaços de participação nos processos de gestão dessas políticas, instâncias em que qualquer cidadão pode recomendar diretrizes e ações ao governo em relação a algum tema ou área de incidência. No caso da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, milhares de participantes das etapas municipais, estaduais, livres e nacional produziriam esses conteúdos que seriam o resultado de todo o processo – no entanto, as entidades empresariais já haviam formado uma posição sobre a Confecom antes mesmo de ela produzir resultados. Em seu discurso, a saída das entidades foi necessária para a

(16)

conferência. As entidades, portanto, se posicionaram a partir de uma lógica em que ideias específicas constituiriam um risco à segurança de determinado ordenamento. O foco nos documentos que essas entidades publicaram para sustentar sua saída verifica a articulação de um saber que funciona de maneira específica, sensível a perigos a uma certa ordem e que posiciona o sujeito para sua defesa. O saber de que se trata é aquele chamado de liberalismo, cuja forma de organização do espaço social é o objeto de estudo deste capítulo.

Para incidir sobre essa ordem discursiva, será utilizado o instrumental teórico de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe sobre análise de discurso. Segundo Howarth et al. (2000, p. 7-16), esse referencial se desenvolve em torno da disputa política pelo sentido. O caráter contingencial do sentido – o fato de um fenômeno poder ser interpretado por diversos discursos e nenhum deles ser capaz de totalizá-lo – implica em uma disputa por hegemonia entre diversas forças sociais: todas buscam posicionar o fenômeno em disputa dentro de sua perspectiva discursiva para possibilitar uma agência política. A disputa se a Confecom seria uma ameaça à democracia ou a própria realização da democracia demonstra o esforço de diferentes projetos políticos de organizar discursivamente o espaço social, modalizar a conferência e promover seus programas. A organização discursiva do espaço social ocorre pela fixação de alguns sentidos que estruturam uma rede de significados, os chamados pontos nodais. A partir desses

pontos de referência, identidades podem ganhar sentidos diferentes: “Estado” pode ser

um problema se articulado por uma rede de significados que tem como referência o

“mercado” ou uma solução se articulado a partir dos “direitos” das partes sociais em

contenda.

Nesse contexto de disputa, antagonismos sociais representam uma ameaça a ordens discursivas pelo funcionamento da lógica da equivalência. “Essa lógica funciona

criando identidades equivalentes que expressam negação pura de um sistema

discursivo”4 (HOWARTH et al, 2000, p. 11), ou seja, na presença de um Outro que

ameaça a existência de uma ordem de discurso, essa lógica opera atribuindo identidades ao Outro que neguem aquelas pertencentes à ordem discursiva, dividindo o espaço social num confronto entre identidades que não podem coexistir. Frases como

(17)

“ou está conosco ou está contra nós” expressam essa operação ao anular todas as diferenças sociais em prol de um conflito selecionado que resume identidades a aliados e inimigos, opressor e oprimido, bem e mal, etc.

Howarth (2000, pp. 8-9) aponta ainda para o desenvolvimento que Laclau opera na lógica de estruturação discursiva do social pela criação do conceito de significante vazio. O significante vazio funciona como um ideal, algo presente por sua ausência e

que orienta diferentes estratégias políticas em busca desse ideal, como “liberdade de expressão” ou “interesse público”. Os agentes sociais disputarão a hegemonia de

sentido sobre esses significantes vazios. Se a liberdade de expressão é o direito que impede qualquer intervenção social sobre os meios de comunicação ou é o direito a partir do qual os meios de comunicação são objeto de debate e agência social, isso caracteriza uma disputa política em torno de um significante que ganhou grande importância no ordenamento da sociedade: aquele sentido de liberdade de expressão que conquista corações e mentes, hegemoniza-se e orienta o funcionamento da comunicação na direção dos empresários midiáticos (o do interesse capitalista) ou na direção democrática de inclusão de vozes que até agora estão fora do espaço público comunicacional, sem canais.

Como esses conceitos denunciam, menos preocupada com a motivação das entidades empresariais para se retirar do processo conferencial, esta análise se volta para o funcionamento do saber articulado por essas organizações na construção de sua identidade como defensoras da liberdade. É um saber que desperta interesse pelo sentido que atribui àqueles que se oporiam a tal identidade, relegados a ser inimigos dessa liberdade. Ao fundamentar a saída das entidades, ao organizar os sentidos que explicariam tal ação social, esse saber liberal não deu chances à Confecom: esta virou uma ameaça à liberdade de imprensa e aquele se enunciou como defensor da liberdade. Trata-se de uma inversão retórica. Pretende-se aqui contestar tal interpretação demonstrando não hipocrisia, alienação ou ingenuidade desses

“defensores” liberais, pois isso seria entrar na disputa prevista pela hegemonia que as

(18)

constante risco de ser deixada no silêncio.

Ao invocar preocupações como liberdade de expressão e direito à informação, o discurso das entidades midiáticas hegemônicas se insere em uma tradição de pensamento bem específica: o liberalismo. Para compreender o funcionamento dessa tradição, retoma-se a genealogia que Michel Foucault (2008b, p. 3-95) faz do liberalismo em suas aulas de 1979 no Collège de France, ocasião em que se dedica à análise da arte do exercício da soberania política, em uma investigação histórica a respeito da reflexão e racionalização das práticas de governo5. Ele identifica a origem do liberalismo nessa reflexão, quando alguns saberes passaram a conceber o Estado a partir de seus limites e a organizar a soberania política no sentido de produzir certas condições que deveriam se sobrepor a todas as contingências. No liberalismo, essa organização das práticas de governo se orienta em um sentido: a produção de liberdade.

O liberalismo em oposição à razão de Estado

Para revelar as origens do liberalismo, Foucault identifica, no decorrer do século 16, "a emergência de um certo tipo de racionalidade na prática governamental, um certo tipo de racionalidade que permitiria regrar a maneira de governar com base em algo que se chama Estado" (FOUCAULT, 2008b, p. 6). Segundo a chamada razão de Estado,

o governante deve respeitar as leis divinas, morais e naturais, mas não é expressão dos poderes divino, imperial ou paternal. O Estado, continua Foucault, surge como uma realidade específica e descontínua, com sua existência concretizada na organização da produção e dos circuitos comerciais (mercantilismo), na regulação do país a partir de um modelo de organização urbana (gestão interna policial) e na manutenção da pluralidade de Estados concorrentes na balança de poder internacional (aparelhos permanentes diplomático-militares). Do século 17 ao início do 18, essa racionalidade foi hegemônica, com a regulação da vida e atividades dos súditos, da produção e dos preços visando à concorrência e equiparação do Estado a outros num sistema

5

Segundo Castro (2004), Foucault considera práticas “a racionalidade ou a regularidade que organiza o que os homens fazem (...), que têm um caráter sistemático (saber, poder, ética) e geral (recorrente) e, por

(19)

internacional, ou seja, uma racionalidade que objetivava o fortalecimento e o enriquecimento do Estado. “O que é governar? Governar segundo o princípio da razão de Estado é fazer que Estado possa se tornar sólido e permanente, que possa se tornar rico, que possa se tornar forte diante de tudo o que pode destruí-Io” (FOUCAULT, 2008b, p. 6).

Na oposição a essa racionalidade, mas ainda no interior de reflexões com pretensões racionalizantes, Foucault identifica o movimento dos dois saberes que mais tarde dariam corpo ao liberalismo: uma tradição jurídica de crítica ao poder real e uma reflexão crítica sobre as práticas governamentais desdobrada da própria razão de

Estado. Nesse contexto, surgiram teorias envolvendo direitos naturais ou um contrato social e reflexões histórico-jurídicas sobre um estado pré-estatal de direitos primitivos. Em ambos os casos, uma racionalidade surge a partir de uma suposta naturalidade (do ser humano, de processos sociais) que deve ser respeitada enquanto o Estado organiza uma população entrelaçada a valiosas dinâmicas econômicas. O liberalismo seria uma crítica interna da razão governamental, uma reflexão constante sobre as fronteiras de competência das práticas de governo, buscando impedir qualquer possibilidade de excesso.

A liberdade da tradição jurídica

Na Idade Média, a prática judiciária fora um multiplicador do poder real. Com um "sistema de justiça acompanhado de um sistema armado", afirma Foucault, "o rei pouco a pouco limitou e reduziu os jogos complexos dos poderes feudais" (2008b, p. 11). Esse sistema de justiça medieval sofreu uma mudança com a ascensão, até a hegemonia, da razão de Estado e suas pretensões de poder ilimitado: do século 17 ao início do século seguinte, o direito passou a funcionar na subtração do poder real, tornando-se o apoio para todos que buscavam limitar a extensão indefinida das práticas governamentais. Era uma batalha política dos juristas contra a razão de Estado a partir de certas "leis fundamentais", localizadas fora da razão de Estado, que estabeleceriam os limites das práticas de governo.

(20)

uma vertente do liberalismo – que nomeia de axiomática, jurídico-dedutiva, rousseauniana ou revolucionária.

[P]rocurar definir quais são os direitos naturais ou originários que pertencem a todos os indivíduos, definir em seguida em que condições, por causa de que, segundo que formalidades, ideais ou históricas, aceitou-se uma limitação ou uma troca de direito. Consiste também em definir os direitos cuja cessão se aceitou e, ao contrário, os direitos para os quais nenhuma cessão foi acordada e que permanecem, por conseguinte, em qualquer condição e sob todos os governos possíveis, ou em todo regime político possível, direitos imprescritíveis. (FOUCAULT, 2008b, p. 54).

A partir dessa tradição jurídica de autolimitação, portanto, direitos originais devem ser preservados na sociedade política e qualquer intervenção pela soberania seria a princípio irracional e ilegítima, afinal, foi exatamente para mantê-los que se teria formado o Estado. Consagra-se uma concepção sobretudo francesa de liberdade que funciona como o exercício de certos direitos fundamentais, uma liberdade que projeta uma vontade de verdade6 que exercerá pressão e coerção sobre outros discursos sociais. Esses direitos e liberdades fundamentais formam o regime de verdade da via jurídico-dedutiva do liberalismo, segundo Foucault.

Quando digo regime de verdade, não quero dizer que a política ou a arte de governar, por assim dizer, finalmente, alcança nessa época a racionalidade. Não quero dizer que se atingiu nesse momento uma espécie de limiar epistemológico a partir do qual a arte de governar poderia se tornar científica. Quero dizer que esse momento que procuro indicar atualmente, que esse momento é marcado pela articulação, numa série de práticas, de um certo tipo de discurso que, de um lado, o constitui como um conjunto ligado por um vínculo inteligível e, de outro, legisla e pode legislar sobre essas práticas em termo de verdadeiro e falso. (FOUCAULT, 2008b, p. 25).

Pode-se afirmar, e isto será posto em teste por esta análise, que aquela racionalidade desenvolvida em oposição ao absolutismo, a racionalidade que regula o Estado a partir de certa verdade inviolável na condição humana, persiste hoje no direito internacional

6 Foucault (2008a, pp. 13-21) considera a vontade de verdade um procedimento de exclusão, na ordem

(21)

público. Mas essa não é a única racionalidade identificável nos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. Em sua genealogia, Foucault menciona outra vertente do liberalismo que regula a arte de governar, uma tradição que se desenvolve a partir de outro regime de verdade, com origem na economia política. De forma surpreendente, ela também se encontra presente em discursos de direitos humanos, especialmente os relativos à liberdade de expressão.

A liberdade da tradição utilitarista

Foucault identifica a emergência, em meados do século 18, de outra forma crítica à razão de Estado, mas, diferente daquela surgida da prática jurídica, com raízes no interior das próprias práticas de governo: uma reflexão com origens na necessidade de organizar a produção e os circuitos comerciais e que teve como instrumento intelectual a economia política (então uma disciplina da filosofia moral que guiava os governantes). Ao se debruçar sobre os efeitos das práticas governamentais na organização, distribuição e limitação dos poderes sociais, teóricos de economia política formalizam a existência de fenômenos, processos e regularidades nos objetos da intervenção. Ao mexer na economia, concluem, o Estado lida com leis da natureza.

[A] economia política revelou a existência de fenômenos, de processos e de regularidades que se produzem necessariamente em função de mecanismos inteligíveis. Esses mecanismos inteligíveis e necessários podem, claro, ser contrariados por certas formas de governamentalidade, por certas práticas governamentais. Podem ser contrariados, podem ser perturbados, podem ser obscurecidos, mas, como de todo modo não será possível evitá-los, não se poderá suspendê-los total e definitivamente. (FOUCAULT, 2008b, p. 21).

De acordo com Heilbroner (1996, pp. 43-72), o filósofo moral Adam Smith foi o primeiro a formular um esquema amplo e sistemático com interesse próprio e

competição articulados para manter uma sociedade coesa, construindo uma ordem

social sobre esse entendimento. A Riqueza das Nações, publicada em 1776, veio a

contestar a noção fisiocrata de "que apenas o trabalhador agrícola produzia a verdadeira riqueza e que os trabalhadores da indústria e do comércio apenas alteravam sua forma" (HEILBRONER, 1996, p. 49), em prol da ideia, mais urbana e menos

(22)

preocupar não com o acúmulo de metais preciosos ou a nocividade do entesouramento do excedente agrícola, mas entender as leis de mercado de formação dos preços e fazer uma boa gestão de sua moeda.

O mercado, no sentido bastante geral da palavra, tal como funcionou na Idade Media, no século XVI, no século XVII, creio que poderíamos dizer, numa palavra, que era essencialmente um lugar de justiça. (...) Logo, lugar dotado de regulamentação – isso era o mercado. (...) O que devia ser assegurado era a ausência de fraude. Em outras palavras, era a proteção do comprador. A regulamentação de mercado tinha por objetivo, portanto, de um lado, a distribuição tão justa quanto possível das mercadorias, e também o não-roubo, o não-delito. (...) Esse sistema – regulamentação, justo preço, sanção da fraude

– fazia portanto que o mercado fosse essencialmente, funcionasse realmente como um lugar de justiça, um lugar em que devia aparecer na troca e se formular nos preços algo que era a justiça. Digamos que o mercado era um lugar de jurisdição.

Ora, é aqui que a mudança se produz (...). O mercado surgiu, em meados do século XVIII, como já não sendo, ou antes, como não devendo mais ser um lugar de jurisdição. O mercado apareceu como, de um lado, uma coisa que obedecia e devia obedecer a mecanismos "naturais", isto é, mecanismos espontâneos, ainda que não seja possível apreendê-los em sua complexidade, mas espontâneos, tão espontâneos que quem tentasse modificá-Ios só conseguiria alterá-los e desnaturá-Ios. De outro lado – e é nesse segundo sentido que o mercado se torna um lugar de verdade –, não só ele deixa aparecer os mecanismos naturais, como esses mecanismos naturais, quando os deixam agir, possibilitam a formação de certo preço (...), um certo preço natural, bom, normal, que vai exprimir a relação adequada, uma certa relação adequada entre custo de produção e extensão da demanda. (FOUCAULT, 2008, pp. 42-4).

A ideia de uma natural harmonia social pelo autointeresse, num ambiente de perfeita concorrência, ancorou ao mercado a formulação de uma nova razão

governamental. Se uma “verdade natural” faria o mercado funcionar sob suas próprias

(23)

Foucault (2008b, p. 60) localiza no início do século 19 a ascensão das formulações de problemas de direito público em termos do princípio de utilidade: se as trocas sociais são o movimento real que mantém a sociedade, a soberania política só deve ser exercida quando houver alguma utilidade para esse movimento. E é esse o elemento final para a razão do Estado mínimo: a prática governamental é condicionada a um valor de uso perante um sistema em que autointeresses em competição determinam o verdadeiro valor das coisas. As ações governamentais que não obedeçam a esse critério de utilidade constituem excesso de governo, recaindo na modalização do irracional, inadequado, inconveniente. O governo será útil, explica Foucault, quando ajudar a gerir os jogos de interesse.

Agora, o interesse a cujo princípio a razão governamental deve obedecer são interesses, é um jogo complexo entre os interesses individuais e coletivos, a utilidade social e o benefício econômico, entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder público, é um jogo complexo entre direitos fundamentais e independência dos governados. O governo, em todo caso o governo nessa nova razão governamental, é algo que manipula interesses. (FOUCAULT, 2008b, p. 61).

E um dos desafios dessa vertente do liberalismo, que Foucault chama de

utilitária ou radicalismo inglês, será produzir liberdade na “república fenomenal dos interesses” (FOUCAULT, 2008b, p. 63). Se, segundo seus princípios, uma harmonia

social surge naturalmente quando indivíduos buscam seus próprios interesses, as práticas governamentais devem fazer o necessário para que haja as condições de liberdade, aqui entendida como independência dos governados.

Isso nos leva a outra distinção igualmente importantíssima; de um lado, vamos ter uma concepção da liberdade que é uma concepção jurídica – todo indivíduo detém originalmente certa liberdade da qual cederá ou não certa parte – e, de outro, a liberdade não vai ser concebida como exercício de certo número de direitos fundamentais ela vai ser percebida simplesmente como a independência dos governados em relação aos governantes. (FOUCAULT, 2008b, p. 57).

(24)

diferentes interesses particulares não representem um risco ao interesse de todos. Inversamente, faz-se necessário proteger os interesses individuais contra tudo o que se revelar um abuso dos interesses coletivos. Risca-se uma fronteira que opõe um sujeito privado, que para contribuir para a sociedade deve buscar seu interesse particular, e um sujeito público, que deve ser acionado quando necessário em termos de interesse coletivo. É uma tensão central e constitutiva das práticas estatais: há sempre a insegurança do limite ser violado e a harmonia social prejudicada. Isso cria a necessidade do alerta constante e introduz uma lógica de enfrentamento e risco nas práticas sociais, um jogo entre liberdade e segurança.

Se a arte liberal de governar é uma que fundamentalmente manipula interesses, então o Estado não pode deixar de ser o gestor dos perigos e dos mecanismos de segurança e liberdade que protegem os indivíduos. Foucault (2008b, pp. 90-3) identifica três consequências da presença dessa racionalidade nas práticas de governo. Primeiro, uma cultura do perigo. O cotidiano traz ameaças que ganham narrativas próprias7: viver torna-se inseparável de uma consciência constante do perigo, pois é preciso estar sempre atento àquele interesse que possa abalar o frágil equilíbrio entre soberano e súditos. Segundo, há a extensão dos procedimentos de controle, pressão e coerção, o que o teórico social chama de dispositivos disciplinares. Se o governo deve abrir espaço para a mecânica natural dos comportamentos e da produção e não exercer influência, pelo menos em princípio, então ele fica limitado à função da vigilância sobre aquilo que é irracional, inadequado, inconveniente, um perigo à comunidade política, provocando uma normalização das práticas sociais que, quando ameaçada, terá o Estado como sua garantia. À rede de relações estratégicas para tal normalização é que se dá o nome de dispositivo. Terceiro, essa arte liberal de governar introduz, e será vítima de, crises de governamentalidade dos dispositivos disciplinares. Quando os perigos estão inflacionados – por exemplo, na presença de uma ameaça iminente ou uma revolta disciplinar –, os dispositivos passam a produzir o inverso a que se propuseram, num intervencionismo que pode ser opressivo.

7 Foucault (2008b, p. 90) cita como exemplo a emergência da literatura policial e do interesse jornalístico

(25)

Há, enfim e sobretudo, processos de saturação que fazem que os mecanismos produtores da liberdade, os mesmos que foram convocados para assegurar e fabricar essa liberdade, produzam na verdade efeitos destrutivos que prevalecem até mesmo sobre o que produzem. É, digamos assim, o equívoco

de todos esses dispositivos que poderíamos chamar de „liberógenos‟, de todos

esses dispositivos destinados a produzir a liberdade e que, eventualmente, podem vir a produzir exatamente o inverso. (FOUCAULT, 2008b, p. 93).

O impacto dessas formulações no discurso que compõe a compreensão contemporânea de liberdade de expressão pode ser verificado nos atuais sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. Esses sistemas, vinculados a alguma organização internacional, como as Nações Unidas ou a Organização dos Estados Americanos (OEA), desenvolvem os chamados padrões internacionais, que orientam a interpretação de ativistas e operadores de direito sobre os tratados internacionais de direitos humanos e contribuem para sua difusão na sociedade. Perante a OEA, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)8 é o documento básico com

efeitos jurídicos vinculantes que fundamenta o sistema de proteção interamericano, incluindo o relativo à liberdade de expressão. Mas seria limitadora uma análise desse documento vinculante, pois tais sistemas produzem comentários, estudos, declarações e jurisprudência na perspectiva de criar padrões internacionais de direitos humanos em determinados temas. Nenhum país está obrigado juridicamente a seguir essas interpretações – a não ser que o documento vinculante o faça expressamente, como é o caso das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, instrumento da Convenção Americana –, mas o detalhamento das geralmente vagas obrigações dos documentos internacionais vinculantes são formulações valiosas para aqueles que buscam o reconhecimento de um direito numa experiência particular de violação. Por ser produzido por um organismo internacional, trata-se de um discurso com um argumento de autoridade estratégico em contextos de disputa por espaços sociais, visando influenciar normativamente diferentes realidades. O uso dos "padrões

8 Ratificada pelo Brasil em 1992, quando reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos

(26)

internacionais" desloca o conflito de seu contexto específico para inseri-lo num debate moral, cosmopolita e normalizante, seguindo um saber cuidadosamente elaborado.

O sistema interamericano de liberdade de expressão

Esta análise se reclina sobre os padrões recomendados pelo sistema interamericano. No exame dos padrões de liberdade de expressão, usa-se como referência o documento "The Inter-American Legal Framework regarding the right to

freedom of expression" (o marco legal interamericano relativo ao direito à liberdade de

expressão). Compilada pelo Escritório da Relatoria Especial para Liberdade de Expressão, mecanismo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a publicação apresenta como os padrões regionais, formulados por especialistas, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pela Comissão, podem ser instrumentos de promoção da liberdade de expressão nas mãos de operadores do direito, juízes, juristas e legisladores. É um documento, portanto, de promoção e divulgação sobre como todo o conjunto formado pelo sistema interamericano se articula pela liberdade de expressão.

O documento está dividido em duas partes. A primeira se dedica ao marco legal do sistema interamericano para a liberdade de expressão e a segunda trata de como tais padrões foram incorporados nos sistemas jurídicos nacionais em 2009. Esta análise foca apenas a primeira parte, que por sua vez mantém como divisões principais: a) Importância e função do direito a liberdade de expressão; b) Principais características do direito à liberdade de expressão; c) Tipos de discurso protegidos pela liberdade de expressão; d) Limites da liberdade de expressão; e) A proibição contra a censura e restrições indiretas à liberdade de expressão pelas autoridades; f) Jornalistas e os meios de comunicação social; g) O exercício da liberdade de expressão por agentes públicos; h) Liberdade de expressão no contexto eleitoral; i) Pluralismo, diversidade e liberdade de expressão. Em seu conjunto, o documento revela as expectativas e premissas liberais do que seria um debate público democrático.

Os fundamentos da liberdade de expressão

(27)

contestação recairia na modalização do falso: a expressão de uma "virtude" comum que iguala os seres humanos; a circulação dessas expressões como a própria possibilidade para a democracia; e o exercício de todos os outros direitos fundamentais (IACHR, 2010, p. 2-4)9. Três proposições que são decisões, decisões institucionais a favor de três vontades de verdade.

Em Foucault (CASTRO, 2009, pp. 421-2), a verdade é um sistema de exclusão discursiva, sendo a vontade de verdade um procedimento voltado para conjurar os poderes e perigos do discurso, dividindo aquilo que é aceito por aquela ordem discursiva daquilo que não é. Fixam-se aquelas constâncias que devem persistir através de todas as contingências e, para isso, orientarão as técnicas e as práticas que alocam recursos e assujeitam os indivíduos. Segundo Avelino (2010), o último Foucault busca explicitar como regimes de verdade estão sempre conectados a regimes políticos, jurídicos etc. por alguma estrutura de obediência: o exercício do poder exige não somente atos de submissão, mas também atos de verdade, que garantem a adesão dos sujeitos.

Por regime de verdade, Foucault quer indicar a existência de um dispositivo da

verdade segundo o qual os discursos não apenas funcionam como verdadeiros, mas também os mecanismos, as instâncias e os modos para distinção entre o falso e o verdadeiro são definidos; os procedimentos e as técnicas para obtenção da verdade são produzidos; o estatuto daqueles que dirão a verdade é definido. (AVELINO, 2010, p. 146).

A primeira fixação de sentido na capacidade de "pensar por nós mesmos e compartilhar nossos pensamentos com os outros" (IACHR, 2010, p. 3) anuncia uma igualdade na condição humana10. As práticas comunicativas podem ser administradas por uma fórmula jurídica (o direito de liberdade de expressão) que regula a circulação

9 Todas as citações do documento são de tradução nossa.

10 Ao considerar a liberdade de expressão uma competência de produção, pode-se ficar tentado a invocar

(28)

livre e igualitária de expressão e recepção independentemente da posição relativa dos sujeitos: há certa condição humana que jamais deve ser violada. Ao compreender assim o sentido de liberdade de expressão, o sujeito é posicionado para enfrentar um antagonismo a cada experiência em que virtudes comunicativas não forem igualmente respeitadas em suas variadas formas. Este é um regime de verdade que rejeita a censura.

O sistema interamericano descreve quais seriam essas posições a serem preservadas contra a censura, as formas de expressão protegidas, que seguem em

termos de direitos (IACHR, 2010, pp. 7-10):

 direito à fala, incluindo a escolha da língua para se expressar;

 direito à escrita, também na língua escolhida;

 direito de disseminar a expressão oral ou escrita através dos meios de comunicação de sua escolha, com a intenção de comunicá-la ao maior número de pessoas possível;

 direito à expressão artística e simbólica, à disseminação da expressão artística e a acessar arte, em todas as suas formas;  direito de buscar, receber e ter acesso a expressões, ideias, opiniões e informações de todo tipo;

 direito de acessar informação pessoal em banco de dados e registros privados e públicos, com o direito de atualizar, corrigir e emendar seus dados;

 direito de possuir informação, escrita ou em outro meio, transportá-la e distribuí-la.

(29)

O revolucionário anglo-americano Thomas Paine, nos EUA de 1806, escrevia sobre como a Revolução Gloriosa, na Inglaterra de 1688, havia marcado a liberdade de imprimir, o acesso sem a exigência de autorização pelo soberano a uma tecnologia de comunicação e informação que ampliava o alcance de expressões: a prensa (LIMA, 2010, pp. 40-43). O marco trouxe aos poderes fora do Estado o protagonismo na organização dos processos comunicativos associados ao uso de tecnologias, propiciando a propriedade privada dos meios de comunicação, enquanto formulações que culminariam em uma noção de propriedade intelectual de bens simbólicos cercearam a manipulação, visibilidade e circulação de conteúdo (uma necessidade da Revolução Industrial). Esses dois "cercamentos" que fundaram a organização de nosso debate público não seriam modalizados como censura, já que não tiveram sua origem nas práticas de Estado, mas podem provocar restrições à liberdade de expressão e impactos culturais. O receio liberal em torno da independência dos governados foca bastante nos perigos que o poder estatal representa a esse acesso ao simbólico, mas tem pouco a dizer sobre as restrições de acesso originadas de outras instâncias de poder. Como será abordado na próxima seção, o sistema interamericano recomenda práticas antimonopolísticas que incidem sobre a propriedade privada das tecnologias, mas silencia quanto a temas como propriedade intelectual ou direitos autorais.

A segunda dita "função" da liberdade de expressão é a criação da condição de possibilidade da democracia: o debate publico. O sistema interamericano apresenta uma ênfase particular no projeto democrático, por motivos históricos (as ditaduras latino-americanas) e geopolíticos (a democracia dos Estados Unidos como forte referência ideológica). O artigo 4º da Carta Democrática Interamericana (2001)11 posiciona a "liberdade de expressão e de imprensa" como "component[e] fundamenta[l] do exercício da democracia", enquanto a Comissão Interamericana declarou, em ao menos duas ocasiões12 que o propósito do artigo 13 da Convenção Americana é

11 Documento não-vinculante adotado pela Terceira Cúpula das Américas, realizada de 20 a 22 de abril

de 2001, na Cidade de Québec, Canadá. A Carta foi definitivamente aprovada pelos Estados Membros da OEA durante uma Sessão Extraordinária da Assembleia Geral realizada em 11 de setembro de 2001, em Lima, Peru.

12 Nos casos

(30)

"fortalecer a operação de sistemas democráticos pluralistas e deliberativos através da proteção e promoção da livre circulação de informação, ideias e expressões de todos os tipos" (IACHR, 2010, p. 3).

Este regime de verdade está no campo de significações políticas: a escolha não foi sustentar uma liberdade de circulação simbólica, por exemplo, em prol da educação, da saúde ou das artes, mas a favor daquelas expressões que tenham uma relação com as práticas consideradas necessárias para a existência da democracia. A partir das necessidades democráticas, a livre circulação de expressões relevantes para a sociedade política é um valor atemporal, independente de contextos sociais e históricos, mas identificável pelo debate público.

Nessa perspectiva, se o exercício do direito à liberdade de expressão tende não apenas em direção à realização pessoal daqueles que se expressam, mas também em direção à consolidação de sociedades verdadeiramente democráticas, o Estado tem a obrigação de gerar as condições para garantir que o debate público não apenas satisfaça as necessidades legítimas de todos como consumidores de uma dada informação (entretenimento, por exemplo), mas também como cidadãos. Ou seja, as condições necessárias devem ser dadas para haver uma deliberação aberta, plural e pública sobre os assuntos que interessam todos nós como cidadãos de um determinado Estado. (IACHR, 2010, p. 4).

(31)

verdade social é governada por uma lógica 13 que condiciona a existência da

democracia à negação de certas práticas: esse regime de verdade organiza-se pela rejeição à possibilidade de autoritarismo na relação entre governantes e governados. A democracia, assim, é constituída a partir daquilo que a ameaça, o que cria a necessidade de limitar o poder estatal. A organização do debate público a partir das necessidades ditadas por essa oposição/ameaça pode ser verificada na concepção de ordem pública:

Em uma democracia, a legitimidade e o poder [strength] das instituições são fortalecidos [strengthened] pelo vigor [force] do debate público sobre o funcionamento daquelas, não pela supressão deste. Além disso, a jurisprudência interamericana estabelece claramente que, de maneira a impor qualquer tipo de pena em nome da defesa da ordem pública (compreendida como segurança, moral ou saúde públicas), é necessário demonstrar que o conceito de "ordem" sendo defendido não é um autoritário, mas uma ordem democrática compreendida como a existência de condições estruturais que permitam a todas as pessoas exercer seus direitos em liberdade, sem discriminação ou temor de punição como consequência. Em efeito, para a Corte Interamericana, genericamente, a ordem pública não pode ser invocada para suprimir um direito garantido na Convenção Americana, desnaturalizá-lo ou despojá-lo de seu conteúdo real. Se esse conceito é invocado como fonte de limitação aos direitos humanos, deve ser interpretado de maneira estritamente ligada às justas demandas de uma sociedade democrática que mantém em mente o equilíbrio entre interesses em jogo e a necessidade de preservar o objeto e os objetivos da Convenção Americana. (IACHR, 2010, p. 21)

A ordem entendida como gestão de interesses mantém afastada a autocracia (interna e externa) pela diferenciação do interesse público dos outros particulares. Há uma divisão do espaço social que cria um nós e um Outro: se queremos democracia, é preciso vigiar o autoritarismo. E a vigília recomendada, o ponto de vista que organiza o espaço analítico de um defensor da democracia, é aquela da gestão de interesses, o que ancora a liberdade de expressão em um modelo específico de funcionamento democrático. Isso abre a possibilidade de disputa no debate público por dois significantes vazios, pois aquele discurso que ocupar o sentido, conquistar o status de

13 Trata-se da lógica da equivalência. No caso, democracia e autocracia são opostos negativamente e

(32)

interesse público ou interesse particular pautará a democracia recomendada pelo sistema interamericano.

A terceira fixação de sentido da liberdade de expressão está em seu uso em

relação aos outros direitos fundamentais, sendo “instrumento-chave para o exercício de

todos os outros direitos fundamentais” (IACHR, 2010, p. 4). Seu papel é de acesso a

outros direitos garantidos na Convenção Americana, o que coloca a liberdade de expressão no "coração do sistema de proteção aos direitos humanos nas Américas" (Idem). Ou seja, a liberdade de expressão é o veículo de promoção dos valores morais nos direitos humanos, ao mesmo tempo em que deve ser exercida dentro do rol de significações dessa moralidade. Após dois regimes de verdade que pretendem orientar as práticas de produção da liberdade de expressão, negando a censura ou o autoritarismo, este regime incorpora tal produção específica a um programa mais amplo: a produção de todos os outros direitos humanos.

Ao definir liberdade de expressão, o sistema interamericano posiciona três verdades: uma "virtude" ou capacidade humana cujas necessidades extinguem as desigualdades no ato da comunicação para que ninguém seja interditado; uma estratégia necessária para constituir sociedades democráticas e diferenciá-las das autoritárias; e uma prática civilizatória, cuja necessidade recai precisamente na capacidade de criar contingências político-jurídicas em que os direitos humanos são invocados. Se considerarmos, para fins de análise, a liberdade de expressão um significante vazio, essas três ordens compartilham harmonicamente a hegemonia no discurso do sistema interamericano: uma antagoniza práticas de interdição, outra as autoritárias e a última expande indefinidamente a ordem discursiva dos direitos humanos, todas em prol da liberdade de expressão. Um comunicador censurado, um denunciante inconformado e um ativista de direitos humanos, por exemplo, contingencialmente passam a ter relação quando submetidos à perspectiva da liberdade de expressão, que os posiciona como seus defensores.

(33)

liberdade é produzida, ela pode ser restrita. A resposta do liberalismo e do sistema interamericano para lidar com o risco constante da negação de sua própria ordem discursiva é a gestão das condições de liberdade. Para o regime interamericano, a ameaça que divide o espaço social é a prática autoritária e sua contenção se faz pela gestão de interesses públicos e privados.

Essa arte de governo envolta em uma cultura do perigo põe em funcionamento práticas e técnicas para construir a relação entre suas verdades e os sujeitos que as praticam. Com fins de constituir uma rede de relações estratégicas que permitam a preservação e a multiplicação dos fundamentos da liberdade de expressão, o sistema interamericano traz um amplo rol de recomendações dessas práticas e técnicas, objetos de próxima seção.

Governamentalidade para um debate público democrático

O termo governamentalidade, introduzido por Foucault, visa deslocar a análise do poder para dar conta das mudanças nas formas de governar com a racionalização reflexiva do liberalismo. Com a generalização das técnicas disciplinares em direção a

uma arte de governar, “o governo das condutas é tanto um problema de autogoverno

quanto um problema de governo da condução dos outros” (SANTOS, 2010, pp. 226-7). Uma intenção é se desviar de questões ontológicas a respeito do poder e se focar em como o mesmo é exercido: revelar estruturas de obediência a um regime de verdade.

Avelino (2010) descreve duas dimensões desse tipo de análise: uma voltada para as tecnologias de segurança que fazem funcionar elementos jurídicos e disciplinares por meio de suas práticas, e outra programática, que diz respeito a programas de governo e racionalidades governamentais. Essas racionalidades, segundo Dean (apud AVELINO, 2010, pp. 145-6), são o “produto de um conjunto de práticas sociais inscritas no interior de relações de „poder-saber‟”. A governamentalidade, assim, trata das técnicas e

práticas que incidem na população de um território a ser governado a partir dos saberes instituídos nos regimes de verdade.

(34)

liberdade de expressão: uma individual e outra coletiva. Cada dimensão precisa de práticas e técnicas distintas para a desejada produção de liberdade. Mas essa interação entre os regimes de verdade sobre capacidades comunicativas e sobre democracia não produz conflito, ao contrário, um é condição para o outro.

Uma das principais consequências do dever de garantir as duas dimensões simultaneamente é que uma não pode ser afetada pela invocação da

preservação da outra como justificativa; assim, por exemplo, “alguém não pode

legitimamente recorrer ao direito de uma sociedade de ser informada honestamente para implementar um regime de censura prévia com o suposto propósito de eliminar informação considerada ser mentirosa aos olhos do censor. É igualmente verdade que o direito de disseminar informações e ideias não pode ser invocado para justificar a implantação de monopólios públicos ou privados dos meios de comunicação com o propósito de moldar a opinião

pública pela expressão de apenas um ponto de vista”. (IACHR, 2010, p. 6).

A rejeição à censura e à sobredeterminação do interesse privado (na disputa pelo sentido de interesse público) organiza como o discurso do sistema interamericano recomenda as práticas que possam dar as condições de possibilidade desse programa. Por um lado, tenta-se conciliar a necessidade de limites à liberdade de expressão com a rejeição à censura. Isso será feito pela legislação, pela limitação jurídica das práticas de governo do Estado. Por outro, cria-se uma proteção especial ao livre fluxo

na circulação de informação de interesse público, uma necessidade para a gestão de interesses. Essa proteção especial se concretiza pelo pluralismo informativo: do lado do Estado, recomenda-se a transparência das práticas de governo, e do lado dos governados, certa organização das condições de circulação das informações.

O programa de governo interamericano

Comecemos com a dimensão individual. A rejeição à censura em todas as suas formas trata de interdições por motivos econômicos (como monopólios), atos de violência e práticas de origem estatal. Para evitar tais interdições, o sistema interamericano recomenda a normalização das práticas dos representantes do Estado

(35)

procedimento de controle de produção de novos discursos, o qual Foucault chama de disciplina14.

A disciplina determina as condições que uma determinada proposição deve cumprir para entrar no campo do verdadeiro: estabelece de quais objetos se deve falar, que instrumentos conceituais ou técnicas há que utilizar, em que horizonte teórico deve inscrever-se. (CASTRO, 2009, p. 111).

A recomendação é proibir legalmente a censura prévia e incorporar certas condições ao uso, sempre de caráter excepcional, de práticas de controle de conteúdo:

De acordo com a interpretação na jurisprudência do sistema interamericano, o artigo 13.2 da Convenção requer que as três seguintes condições sejam cumpridas de maneira a uma limitação à liberdade de expressão ser admissível: (1) a limitação deve ter sido definida de maneira clara e precisa pela legislação, no senso formal e material; (2) a limitação deve servir aos objetivos legítimos autorizados pela Convenção; (3) a limitação deve ser necessária em uma sociedade democrática para servir aos objetivos legítimos perseguidos, estritamente proporcional ao objetivo perseguido e apropriada para servir tal objetivo legítimo. (IACHR, 2010, p. 24).

Discursivamente, isso ocorre pela sensibilização de alguns gatilhos, significantes vazios, que organizarão a defesa da liberdade de expressão. Ninguém deve ser impedido de se expressar, os direitos humanos devem regular a expressão e interesses não devem ser empecilho: censura prévia, discriminação e restrições “indiretas” são as

preocupações de um defensor da liberdade de expressão, que deverá ser vigilante ao surgimento de discursos e práticas que permitam a análise prévia de um conteúdo, ou a seleção de conteúdo a partir de sua origem identitária, ou ainda o uso restritivo de tecnologias de informação. Para lidar com isso, a jurisprudência do sistema interamericano elaborou um teste de três partes que organiza a produção do discurso normativo. Para uma limitação à liberdade de expressão ser legítima, i.e. aceitável pelo regime de verdade, precisa seguir a seguinte prescrição disciplinar (CASTRO, 2009, pp. 31-3):

14

Em Foucault, há dois usos para o termo disciplina, como explica Castro: “Um na ordem do saber (forma

discursiva de controle da produção de novos discursos) e outro na do poder (o conjunto de técnicas em

virtude das quais os sistemas de poder têm por objetivo e resultado a singularização dos indivíduos)”

(36)

1) As limitações não devem chegar à censura prévia, razão pela qual elas devem ser determinadas apenas através da imposição de responsabilidade subsequente e proporcional;

2) As limitações não podem ser discriminatórias ou produzir efeitos discriminatórios;

3) As limitações não podem ser impostas por meios indiretos como os proscritos pelo artigo 13.3 da Convenção Americana (abusos privados e governamentais sobre a imprensa, as frequências de radiodifusão ou sobre equipamento usado na disseminação de informação ou outro meio que impeça a comunicação e circulação de ideias e opiniões).

A estratégia de afastar a censura pelo controle interno das práticas estatais proíbe o Estado de ser um censor e o impele a governar as condições que permitam o

surgimento de “abusos”. A lista de recomendações ao Estado é significativa. O regime

interamericano recomenda que os agentes estatais sejam abertos e compreensivos a críticas e garantam um ambiente sem práticas dissuasórias à expressão – sem intimidação, agressão, perseguição, homicídio etc., com um sistema judiciário célere, independente e consciente de direitos. Qualquer reparação (nunca punição) por um ato comunicativo ocorre a posteriori, levando em conta seu contexto, por meio de uma corte não criminal que toma decisões de forma proporcional, a partir de leis claras e precisas, compatíveis com os direitos humanos e necessárias para uma democracia funcional. Tal responsabilidade deve ser atribuída em nome do respeito pelos direitos e reputações de outros ou da proteção da segurança nacional, ordem pública ou a moral e saúde públicas, o que inclui uma proteção especial para crianças e adolescentes e a rejeição à propaganda de guerra e à discriminação em todas as suas formas.

Referências

Documentos relacionados

Detectadas as baixas condições socioeconômicas e sanitárias do Município de Cuité, bem como a carência de informação por parte da população de como prevenir

submetidos a procedimentos obstétricos na clínica cirúrgica de cães e gatos do Hospital Veterinário da Universidade Federal de Viçosa, no período de 11 de maio a 11 de novembro de

O mar profundo é uma vasta região que recobre aproximadamente 70% da superfície da terra, sendo considerado ainda uma vastidão a ser explorada e estudada pelo homem. A coleção

Os interessados em adquirir quaisquer dos animais inscritos nos páreos de claiming deverão comparecer à sala da Diretoria Geral de Turfe, localizada no 4º andar da Arquibancada

Após a queima, para os corpos com a presença do sienito observou-se que os valores de densidade diminuíram (comparados às respectivas densidades a seco), já

Acreditamos que o estágio supervisionado na formação de professores é uma oportunidade de reflexão sobre a prática docente, pois os estudantes têm contato

2.1. Disposições em matéria de acompanhamento e prestação de informações Especificar a periodicidade e as condições. A presente decisão será aplicada pela Comissão e

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem