• Nenhum resultado encontrado

Controle discursivo na Confecom

A 1ª Conferência Nacional de Comunicação se insere em um contexto de experimentalismo político que vem destacando o Brasil na literatura de teoria democrática. Essa literatura trata das conferências de políticas públicas em conjunto com conselhos de políticas públicas, a partir de diversas perspectivas: por sua capacidade de agendamento de pautas de minorias (POGREBINSCHI, 2011), como um sistema que consegue integrar participação e deliberação (FARIA et al., 2012) ou ainda como instituições participativas atribuídas à Constituição Federal de 1988 (AVRITZER, 2012). Esses processos, sistemas ou instâncias têm como objetivo permitir a participação de diversos atores políticos nas várias etapas da gestão de políticas públicas setoriais, seja na determinação de seus princípios e diretrizes, na proposição de ações e metas, ou na avaliação, monitoramento e controle de seus resultados (SOUZA, 2012).

De acordo com Claudia Feres Faria, Viviane Petinelli Silva e Isabella Lourenço Lins, a concepção das conferências surgiu no governo Vargas, em 1937, “com o objetivo de facilitar o conhecimento do Governo Federal acerca das atividades relativas à saúde e de orientá-lo na execução dos serviços locais de saúde” (FARIA et al., 2012, p. 260). Embora naquele período as discussões estivessem restritas a agentes públicos, os processos posteriormente se abriram para um diálogo com a sociedade civil. Clóvis Henrique Leite de Souza ressalta a influência da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e sua mobilização social para a criação do Sistema Único de Saúde sobre os debates na Assembleia Constituinte. O contexto favoreceu para que a Constituição de 1988 garantisse formalmente “a descentralização administrativa e a incorporação da participação de cidadãos e organizações da sociedade civil na gestão de políticas públicas por meio da criação de instituições participativas” (SOUZA, 2012, p. 13), duas características do modelo de gestão do SUS. Leonardo Avritzer elabora sobre tais instituições, “IPs”:

As IPs são resultado da ação da sociedade civil brasileira durante o processo constituinte que resultou em um conjunto de artigos prevendo a participação social nas políticas públicas nas áreas da saúde, assistência social, criança e adolescente, políticas urbanas e meio ambiente. Esse padrão modificou fortemente a ideia de autonomia da sociedade uma vez que, por mais paradoxal que pareça, a sociedade civil que reivindicou a sua autonomia em relação ao

Estado foi a mesma que reivindicou arranjos híbridos com a sua participação junto aos atores estatais durante a Assembleia Nacional Constituinte. A maior parte das IPs tem a sua origem nos capítulos das políticas sociais da Constituição de 1988. Essa foi a origem das formas de participação no nível local, tais como os conselhos e as formas de participação incipientes no nível federal durante os anos 1990 (AVRITZER, 2012, pp. 10-1).

Percebe-se, assim, que a concepção das conferências de políticas públicas não parte de uma ordem discursiva liberal. Cara à concepção de democracia dessa ordem está a noção de “independência dos governados”, identificada por Foucault (2008) na tradição utilitarista do liberalismo, que introduz o jogo entre liberdade e segurança nas relações entre Estado e sociedade. Não partindo de uma relação ameaçadora, as conferências induzem à colaboração entre governante e governado. Tal perspectiva levanta questões sobre a dinâmica desses processos: será que há mesmo um confronto de ideias ou haveria a sobredeterminação das posições governamentais em detrimento da autonomia da sociedade civil?

Preocupado com essas e outras questões, Avritzer (2012) conduziu uma pesquisa de percepção como coordenador do Projeto Democracia Participativa da UFMG em parceria com o Vox Populi, em julho de 2011, com 2.200 respondentes. A amostragem incluiu todas as regiões do Brasil, espelhando estratificação de renda, escolaridade, sexo e raça do país. Nesse universo, 41,8% afirmaram ter ouvido falar das conferências nacionais e 6,5% ter participado delas. No que se refere aos pontos aqui levantados, 41,6% dos participantes em conferências relataram que não tiveram informação suficiente para participação, o que prejudica bastante o processo de deliberação. Avritzer não identifica intenção governamental nisso e atribui a falta de informação a problemas de infraestrutura de algumas áreas, o que, em 13% dos casos, faz o participante depender de documentos preparatórios elaborados para a conferência por entidades. Vale apontar a participação típica desses tipos de processo:

[A] participante típica é uma mulher em 51,2% dos casos, com quatro anos de escolaridade (26,9%) ou com ensino médio completo em 20,3% dos casos. A sua renda varia entre 1 e 4 salários mínimos (SM) em 52,2% dos casos. Assim, a primeira observação que gostaria de fazer em relação ao padrão de participação nas conferências nacionais é que ele é muito semelhante ao padrão de participação no nível local. Não são os mais pobres que participam,

mas as pessoas na média de renda da população brasileira e, em geral, com escolaridade mais alta do que a média (AVRIZTER, 2012 p. 13).

Avrizter inclui ainda uma questão sobre a dimensão deliberativa das conferências. Para 79% dos participantes, o processo de discussão é marcado pelo debate e pelo confronto de ideias. Quanto à influência do governo, a pesquisa registra a percepção majoritária de um equilíbrio entre a participação do governo e da sociedade civil, algo verificável pelo próprio histórico de conferências, que conta com derrotas importantes do governo, segundo o autor.

Com esse quadro geral voltamos à Conferência de Comunicação. A cobertura jornalística incluiu um foco em um evento convocado pelo governo, com participação restrita e previsibilidade de resultados. O conjunto de matérias, no entanto, mostrou conflitos entre governo e “grupos radicais”, sindicatos e empresas, consonante com o quadro geral sugerido pela pesquisa e questionando a previsibilidade de resultados por certa homogeneidade de participantes ou por um jogo marcado governamental. Isso abre a possibilidade de estudar o conflito no interior dessa relação colaborativa. Para compreender como a dinâmica de conflitos foi configurada no processo da Confecom, esta análise se volta para os documentos que marcaram a história do evento.

A pluralidade de sujeitos na mobilização

O resultado de conferências de políticas públicas pode ser de caráter consultivo ou deliberativo, este em geral previsto em legislação, como é o caso de conferências de saúde e de assistência social. A primeira edição de uma conferência de comunicação seria certamente consultiva, mas para acontecer precisava de um decreto presidencial com o tema e o órgão responsável pelo processo. Por outro lado, segundo Avrtizer (2012), a efetividade das conferências está vinculada a outras instâncias de participação, como conselhos de políticas públicas, que mantêm e monitoram os compromissos desses eventos. No caso da comunicação, não existe tal conselho para resguardar seus resultados. Haveria motivação para uma incidência desse nível (presidencial) para realizar um processo consultivo que sequer teria garantia de efetividade?

sobre o tema da comunicação. Na administração petista, houve uma clara tendência governamental no sentido de ampliar a participação na gestão de políticas públicas. Entre 1941, quando ocorrera a primeira, e 1988, nove conferências foram realizadas; de 1988 a 2002, organizaram-se 27 (FARIA et al., 2012). De 2003 a 2012, registraram-se 87 conferências, com a participação de mais de 7 milhões de pessoas, consideradas suas etapas municipais, livres, regionais, estaduais e nacionais, muitas delas em temas inéditos (SOUZA, 2013, p. 5). O momento político propício para se discutir coletivamente temas de políticas públicas foi considerado uma oportunidade para movimentos que há muito buscavam espaço para defender suas pautas na comunicação.

Nesse sentido, a estratégia de mobilização passou a se concentrar na convocação de uma conferência. Em 2007, as comissões de Ciência Tecnologia, Comunicação e Informática e de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados convocaram o Encontro Nacional de Comunicação: na luta por democracia e direitos humanos, que se constituiu numa articulação com diversas entidades sociais historicamente envolvidas no tema da democratização das comunicações, como o FNDC e o Coletivo Intervozes, tendo o encontro encerrado com a Carta Aberta ao Presidente Luiz Inácio Lula da Silva: por uma legítima e democrática Conferência Nacional de Comunicações21:

O modelo vigente [na comunicação] é marcado pela concentração e a hipertrofia dos meios em poucos grupos comerciais, cujas outorgas são obtidas e renovadas sem controle da sociedade e sem critérios transparentes. (...) Historicamente, as decisões relativas à comunicação no Brasil têm sido tomadas à revelia dos legítimos interesses sociais, quase sempre apoiadas em medidas administrativas e criando situações de fato que terminam por se cristalizarem em situações definitivas.

A necessidade de corrigir tais distorções históricas emerge justamente na hora em que a convergência digital torna cada vez mais complexo o processo de produção, difusão e consumo das informações. (ENCONTRO NACIONAL DE

21 Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes- permanentes/cdhm/arquivos/Carta%20Final%20do%20Encontro%20Nacional%20de%20Comunicacao% 20-%20Na%20Luta%20%20por%20Democracia%20e%20Direitos%20Humanos.pdf>. Acesso em: 6 mar. 2013.

COMUNICAÇÕES, 2007)

A referência principal no documento é a radiodifusão. Como as ondas hertzianas que difundem as emissões de rádio e TV passam por um espaço público de tamanho limitado, a exploração do espectro eletromagnético se faz pelo regime de concessão. O documento reivindica um debate em torno da renovação dessas concessões e também sobre os impactos no espectro com a convergência digital, que pode aumentar a quantidade de canais abertos na radiodifusão. Dessa maneira, com um discurso pelo debate do uso do espaço público, foi formado o movimento Pró-Conferência Nacional de Comunicação ao final do encontro.

O movimento divulgou mais um documento em 2 de dezembro de 200822, ao final de outro encontro em Brasília que reunira “66 organizações e 250 pessoas”, pressionando por uma conferência de comunicação, proposta debatida em 15 unidades da federação. Nesse documento, o escopo de discussão foi ampliado: televisão aberta, rádio, internet, telecomunicações por assinatura, cinema, mídia impressa e mercado editorial. Em 19 de março daquele ano23, uma nota oficial nos traz a lista de membros da Comissão Pró-Conferência Nacional de Comunicação:

1) FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação 2) MNDH – Movimento Nacional de Direitos Humanos

3) FENAJ – Federação Nacional dos Jornalistas

4) INTERVOZES – Coletivo Brasil de Comunicação Social 5) CFP – Conselho Federal de Psicologia

6) ABCCOM – Associação Brasileira de Canais Comunitários 7) Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados

8) Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados

9) CUT – Central Única dos Trabalhadores

22 Disponível em <http://www.fndc.org.br/arquivos/Encontro_Brasilia_dez_2008.pdf>. Acesso em: 12 Jun. 2013.

23 Disponível em <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes- permanentes/cdhm/arquivos/Nota%20Oficial%20da%20Comissao%20Pro-

10) FITERT – Federação dos Trabalhadores em Empresas de Rádio e Televisão

11) LaPCom-UnB – Laboratório de Políticas de Comunicação – Universidade de Brasília

12) ABRAÇO – Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária 13) Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – Ministério Público Federal

14) AMARC-BRASIL – Associação Mundial das Rádios Comunitárias

15) ENECOS – Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social

16) ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais,Travestis e Transexuais

17) MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra 18) ARPUB – Associação das Rádios Públicas do Brasil

19) ASTRAL – Associação Brasileira de TVs e Rádios Legislativas 20) Campanha Quem Financia a Baixaria É contra a Cidadania 21) ABTU – Associação Brasileira de TVs Universitárias

22) OAB – Ordem dos Advogados do Brasil 23) UNE – União Nacional dos Estudantes 24) CEN – Coletivo de Entidades Negras

A diversidade da lista, que ainda seria ampliada, já sinalizaria as identidades que uma futura conferência precisaria reconhecer e relativiza relatos jornalísticos que sugerem a convocação da conferência pela ação de grupos de interesse (ESTADO, 2009). O apoio de movimentos e entidades nacionais também mostrava a força política que o grupo detinha para articular sua reivindicação em um momento político propício. Em janeiro de 2009, a reivindicação desses movimentos foi reconhecida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, precisamente em um evento articulado por grupos da sociedade civil:

No Fórum Social Mundial, em Belém (PA), Lula afirmou que assinará um decreto nos próximos dias convocando o evento, para atender à reivindicação dos movimentos que lutam pela democratização do setor. “No conflito entre

grandes e pequenos, dali sairá uma proposta de comunicação mais avançada para o Brasil”, declarou Lula segundo a CUT (MOULATLET, 2009).

O decreto presidencial de 6 de abril de 2009 (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 2009, p. 2) afinal fez a convocação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, com o tema “Comunicação: meios para a construção de direitos e de cidadania na era digital”, atribuindo a responsabilidade de organização ao Ministério das Comunicações. A primeira das atribuições seria a publicação de portaria constituindo a comissão organizadora, que elabora o Regimento Interno da conferência.

A Portaria n. 18524, de 20 de abril de 2009, criou a Comissão Organizadora Nacional (CON), instância cuja duração está associada ao processo conferencial. A composição incluiu oito vagas para o Executivo25, duas para o Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado) e 16 para a sociedade civil, compreendida como:

 ABCCOM - Associação Brasileira de Canais Comunitários  ABEPEC - Associação Brasileira das Emissoras Públicas,

Educativas e Culturais

 ABERT - Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão

 ABRA - Associação Brasileira de Radiodifusores

 ABRAÇO - Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária  ABRANET - Associação Brasileira de Provedores Internet  ABTA - Associação Brasileira de TV por Assinatura

 ADJORI BRASIL - Associação dos Jornais e Revistas do Interior do Brasil

 ANER - Associação Nacional de Editores de Revistas  ANJ - Associação Nacional de Jornais

 CUT - Central Única dos Trabalhadores

24 Disponível em <http://www.mc.gov.br/portarias/26707-portaria-n-185-de-20-de-abril-de-2009>. Acesso em: 12 Jun. 2013.

25 Casa Civil, Ministério das Comunicações, Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério da Cultura, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, Secretaria de Comunicação Social, Secretaria-Geral da Presidência.

 FENAJ - Federação Nacional dos Jornalistas

 FITERT - Federação Interestadual dos Trabalhadores de Empresas de Radiodifusão e Televisão

 FNDC - Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação  INTERVOZES - Coletivo Brasil de Comunicação Social

 TELEBRASIL - Associação Brasileira de Telecomunicações Observa-se assim que a sociedade civil foi representada por organizações que mobilizaram para a conferência mais as entidades empresariais atuantes no setor de comunicação. Houve equilíbrio entre o que o Regimento Interno mais tarde dividiria como sociedade civil e sociedade civil empresarial: cada uma com oito entidades, mesma quantidade que o Executivo Federal. Esse equilíbrio identitário lançou as bases para a discussão da organização da 1ª Confecom.

A gestão de conflitos pela Comissão Organizadora

O Regimento Interno26 orienta e organiza o processo conferencial, das etapas municipais à nacional, e é desenvolvido pela Comissão Organizadora Nacional. Por meio dele, sabemos que há etapas preparatórias (conferências livres, virtual, municipais e intermunicipais) e etapas eletivas (conferências estaduais e distrital), estas capazes de eleger delegados para a etapa nacional. As conferências municipais e intermunicipais, assim como as etapas eletivas, são organizadas por e submetidas a uma comissão organizadora no nível federativo respectivo que respeita os critérios de composição e deliberação da CON, ou seja, a proporção de representantes dos três grupos identitários da CON – Poder Público (20%), Sociedade Civil (40%) e Sociedade Civil Empresarial (40%) – e a forma da votação no interior de uma comissão organizadora municipal ou estadual devem seguir o padrão nacional.

Para um trabalho com uma preocupação com a liberdade de expressão, é de particular interesse uma instância que governa a conduta dos participantes, valorizando práticas e instituindo procedimentos de quórum e votação que controlam a circulação dos discursos políticos no processo conferencial. As decisões são tomadas por maioria

26 Disponível em: <http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=72&data=03/09/2009>. Acesso em: 12 Jun 2013.

simples dos presentes, com a possibilidade da “deliberação qualificada” – quando pelo menos a metade de um dos segmentos indicar uma questão sensível em votação, a decisão só será aprovada com o aval de 60% dos presentes, com ao menos um voto de cada segmento. Trata-se de um procedimento de gestão de antagonismos no interior das comissões organizadoras. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe consideram antagonismo uma disputa em que duas ordens discursivas são inconciliáveis, representando uma a negação da outra. O mecanismo de votação e proporcionalidade permite que decisões não provoquem uma crise no conjunto de identidades representadas, impedindo de expor um segmento a decisões incompatíveis com seus valores constitutivos.

Se o sujeito é construído através da linguagem, como uma incorporação metafórica e parcial a uma ordem simbólica, qualquer questionamento dessa ordem deve necessariamente constituir uma crise de identidade27 (LACLAU; MOUFFE, 1985, p. 126).

Não se trata de imunizar as discussões para que um consenso que não conteste identidades seja formado, mas impedir que diferenças inconciliáveis impeçam o debate. A própria possibilidade de uma decisão que não reconheça a parte derrotada como interlocutora traz o risco de dissolução do espaço de diálogo, já que implica em uma ordem discursiva alheia a essa identidade. Uma preocupação de Mouffe (2009, p. 103- 5) envolve a criação de um espaço simbólico comum que consiga mobilizar paixões a partir de canais democráticos que permitam o dissenso e assegurem certa fidelidade institucional, apesar do caráter contingencial de qualquer arranjo político.

Parece ser um passo nesse sentido um coletivo capaz de, por um lado, estabelecer as regras a que se submete e, por outro, ser referência identitária para os sujeitos-conferencistas que seguem sua metodologia de debate. A acomodação da pluralidade e a diversidade de identidades durante o processo conferencial não levaria a uma crise se adotada alguma técnica de gestão de conflitos que impedisse a alienação discursiva de uma identidade representada na CON, mas sem impedir o dissenso. Como qualquer um dos três blocos de identidade (sociedade civil empresarial, sociedade civil não-empresarial e governo) poderia requisitar o processo de deliberação qualificada, decisões que ameaçassem um deles poderiam ser vetadas. A negociação

27 Tradução nossa.

de questões polêmicas, dessa maneira, seria a única forma de resolver o impasse, afastando as possibilidades de imposição da vontade de um grupo identitário.

Antes de analisar os documentos que governaram as práticas conferenciais, cabe discutir as razões pela qual a CON fracassou em manter esse espaço simbólico comum no seu próprio interior, dando vazão a antagonismos que resultaram na saída de seis entidades do processo conferencial. Para a compreensão das razões pelas quais essa estratégia não funcionou, se faz necessário um olhar mais próximo sobre quais possibilidades dispunham os atos normativos da CON para impedir que discursos saíssem de uma ordem comum.

Para essa discussão, recorre-se a instrumentos teóricos desenvolvidos por Michel Foucault em A ordem do discurso (2008a), material de transição na trajetória do autor, em que a análise da articulação dos fatos do discurso nos mecanismos do poder se faz ainda em termos do direito, não avançando completamente para a busca da intenção das técnicas e estratégias do exercício do poder (CASTRO, 2004, p. 118). Mas se sabemos que a intenção do Regimento Interno foi promover um debate sem que – nos termos teóricos aqui adotados – antagonismos fossem impedimento, a descrição dessas técnicas possíveis de exercício do poder pelo controle discursivo já é o bastante para contextualizar tal fracasso.

Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar – ou talvez o teatro muito provisório – do trabalho que faço: suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 2008a, pp. 8-9).

Busca-se aqui precisamente a capacidade analítica de avaliar a função dos procedimentos de controle discursivo e, embora se apresente de forma geral os três que Foucault desenvolve, detalham-se apenas aqueles com uma utilidade para o objeto em estudo. Trata-se de procedimentos de exclusão, de controle interno ao discurso e de rarefação.

Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos aí o jogo de três tipos de interdições que se

cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que

Documentos relacionados