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O amor como semblante de gozo*

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Academic year: 2021

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O amor como semblante de gozo*

Cassandra Dias Farias

Palavras-chave: amor, semblante, gozo feminino, novo amor.

Lacan, no início do Seminário XX – Mais, ainda – nos desconcerta com uma tirada no mínimo enigmática: “o Gozo do Outro não é o signo do amor” (1). O que Lacan estaria tentando falar acerca do amor, sentimento tão nobremente exaltado através da literatura, poesia, televisão e cinema? Estaria ele dizendo que ao termos acesso – como amantes – do corpo de nossos parceiros e aí gozarmos dele, que isso não teria nada a ver com o amor?

Lacan introduz uma tensão entre o amor e o gozo do corpo do Outro. Tentaremos avançar, mais do que tentar responder à essas indagações, porém mais ainda, no que diz respeito ao lugar ocupado pelo amor para o sujeito feminino. Sabemos que uma mulher é não toda ela submetida à ordem fálica, que algo escapa à castração, que o feminino não é passível de uma inscrição no inconsciente. A mulher, essa não existe, “ela só entra em função na relação sexual enquanto mãe” (2), enquanto joga a partida fálica. Jacques Alain Miller vai dizer que no lugar supostamente ocupado pela mulher encontra-se o vazio. Um vazio que por sua vez, é ocupado pelos semblantes, pelas máscaras, “máscaras de nada” (3)1

E ele continua: “A que chamamos semblante? Chamamos semblante o que tem função de

velar o nada. E esse véu é o primeiro semblante. E é um ato que, como testemunham a história e a antropologia, é uma preocupação constante da humanidade, velar, cobrir as mulheres. Em certo modo se pode dizer que se cobre as mulheres porque A mulher não se pode descobrir.

De tal maneira que há que inventa-la. Nesse sentido, chamamos mulheres a esses sujeitos que têm uma relação essencial com o nada”. (4)

O gozo feminino, por essa proximidade com o nada, apontaria então para um outro gozo que não o fálico, para uma outra satisfação, para o significante de uma falta no Outro: o S de A barrado. Nessa economia de gozo, que papel o amor desempenharia para o falasser feminino?

1 1 – LACAN, J. – Sem. XX – pg. 12

2 – Id ibid – pg. 49

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Algumas indicações nos orientam nesse caminho. Miller é preciso, no seminário O osso de uma análise, quando diz que “o parceiro sintoma do homem tem a forma fetiche, enquanto que o

parceiro sintoma do falasser feminino tem a forma erotomaníaca...Da mesma maneira que a Bíblia diz que o homem terá Sodoma e a mulher terá Gomorra, poderíamos crer que há uma maldição que diria que o homem terá o fetiche, e a mulher a erotomania”.(5)2

A maldição do amor. Daria um excelente romance ou um filme daqueles água-com-açúcar, onde a heroína sofre o pão que o diabo amassou em nome do amor, até ser recompensada ao final com um “E foram felizes para sempre”, garantia do término da sua busca de completude.

A esse mito, o da suposta completude, tão bem explorado pela cultura para perpetuar uma certa fragilidade feminina, Lacan relendo Freud, vem relançar a idéia de que “o amor em sua

essência é narcísico...o amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque ele ignora que é apenas o desejo de ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos dois sexos”. (6)

O amor conduzindo ao impossível da relação sexual, ao impossível dos sujeitos masculinos e femininos fazerem o amor. Mais um paradoxo de Lacan? Como é possível não haver relação sexual? Justamente porque há um obstáculo ( o falo ) entre os parceiros que impede que se goze do corpo do Outro. Na verdade do que se goza é do gozo do órgão, é sempre esse gozo autístico, mediado pelo falo. Lacan o diz: “o gozo sexual é fálico, ele não se relaciona ao Outro como

tal”.(7) O que há, portanto, é sempre fracasso sexual.

Para o falasser masculino, o que este aborda na mulher “é a causa de seu desejo, que eu

designei pelo objeto ª . Aí está o ato de amor”.(8) O amor passa então, por uma relação de fetiche,

onde a fantasia tem uma enorme importância na determinação das condições que promovem o desejo. Gozar do objeto que causa o sujeito masculino portanto, “tem sempre algo de limitado, de

circunscrito, de localizado e de contabilizável”.(9)

Para o falasser feminino, trata-se de uma outra coisa. Gozar supõe algo de uma exterioridade, algo que a própria mulher não sabe falar, apenas experimentar. Algo que retira o gozo feminino do fechamento autístico do gozo fálico, apesar de “ela está lá à toda. Não é porque ela é não toda na

função fálica que ela deixe de estar nela de todo”(10)

25 –MILLER, J. – O osso de uma análise – pg. 109

6 –LACAN, J. – Sem. XX – pg. 14 7 –Id ibid – pg. 18

8 –Id ibid – pg. 98

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Na verdade, poderíamos supor um gozo duplo ou um suplemento de gozo. Por um lado a mulher, ou melhor dizendo a mãe, que tem como objeto sua cria, e por outro, um gozo voltado para o lugar do Outro, mas um Outro furado, barrado, um Outro de falta, não um grande Outro pleno, total, absoluto. Um gozo que aproxima o sujeito feminino da incompletude, da verdade semi-dita, do nada, um gozo que traz a noção do ilimitado, do infinito, do extrapolável3

Noção essa que para Lacan é bastante próxima dos estados de iluminação que os místicos experimentam. A imagem de Santa Tereza, presente no material de divulgação dessa Jornada, ilustra fielmente o que Lacan vem apontar como gozo místico. Um gozo, ele o diz, “que apesar,

não digo de seu Falo, apesar daquilo que os atrapalha quanto a isso, eles entrevêem, eles experimentam a idéia de que deve haver um gozo que esteja mais além. É isto que chamamos os místicos”(11)

Aqueles que experimentam um gozo, outro, mas não sabem nada dele. Como as mulheres, que do seu gozo não soltam uma única palavra. No gozo dos místicos, Deus é objeto de amor e no caso do gozo feminino, o que inspira o gozo? Lacan diz que “quanto mais o homem se possa

prestar, para a mulher, à confusão com Deus, aquilo de que ela goza, menos ele odeia...”(12)

Poderíamos pensar então, que nas relações amorosas, um homem pode ocupar para uma mulher o mesmo lugar que Deus ocupa no êxtase para os místicos? Miller trabalha essa idéia sob a forma do parceiro devastação em “O osso de uma análise”. Uma devastação que confere ao parceiro de gozo do falasser feminino um efeito de deslumbramento. Assim diz ele: “O que é ser

devastado? Falamos de devastação quando há uma pilhagem que se estende a tudo, que não termina, que não conhece limites, e é em função dessa estrutura que um homem pode ser o parceiro devastação de uma mulher para o melhor e para o pior”. (13)

Reportemo-nos às grandes heroínas românticas, às Julietas, às Medeias, às Isoldas, ou mesmo à clínica de cada um, onde não é raro o sujeito feminino em análise trazer a questão do deslumbramento por um homem, o que certamente faz Lacan dizer que “não há limites às

concessões que cada uma faz para um homem: de seu corpo, sua alma, de seus bens”. (14)

O que move tudo isso, essa devastação, essa fascinação? O amor, poderíamos dizer, que faz com que uma mulher, a exemplo de Medeia, heroína da tragédia grega, “explorar uma zona

desconhecida, ultrapassar todos os limites, explorar uma região sem marcas, mais além das

3 10 – LACAN, J. – Sem. XX – pg. 100

11 – Id ibid – pg. 102 12 – Id ibid – pg. 120

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fronteiras”.(15) É o amor que justifica todos os atos, que parece ser crucial na vida do sujeito

feminino, questão a ser atravessada nas análises, verificável inclusive, nos depoimentos de passe. E o que é o amor para uma mulher? Poderíamos falar em duas vertentes do amor: a do ter e a do ser. O amor do lado do ter se inscreve no lado do registro fálico, pois o que está em jogo é o que o outro tem. Já o amor do lado do ser, pelo contrário, aproxima-se da inscrição S de A barrado, pois trata-se do que o outro não tem e que como tal, dá assim mesmo.4

Nesse sentido, o amor por um homem se coloca para uma mulher em dois planos: o homem que tem fálicamente, mas que “secretamente”, como nos diz Miller, a esse mesmo homem é preciso faltar, “é preciso fundamentalmente, que o parceiro seja A barrado, aquele ao qual falta

alguma coisa e que essa falta faz falar, lhe faz falar”. (16)

O amor seria então, condição para o gozo da mulher? Esse gozo que bordeia o nada, em sua íntima relação com o inominável, com o infinito, com o Outro? Seria essa experiência insuportável de ser vivida sem um semblante? Algo que pudesse mediar isso que a palavra, que o significante não aborda, algo que só é possível de inscrição por meio do signo do amor?

Miller aponta dois axiomas que certamente nos ajudarão a prosseguir:

1 – “para amar é preciso falar” – como amar é dar o que não se tem, é através da palavra que isso se presentifica, pois falando o sujeito oferece sua falta-a-ser. Certamente, justifica-se aí a grande necessidade que as mulheres têm de que o homem fale com elas ou sobre elas.

2 – “para gozar é preciso amar” – a mulher goza por amor e através da fala. O amor introduz-se no circuito, veiculando o gozo do sujeito feminino, fazendo-se semblante desse gozo ao qual a palavra não tem acesso, a não ser as palavras de amor.

Na direção do tratamento, é isso que há de ser atravessado do lado do falasser feminino. Se para o falasser masculino a fantasia representa a pedra no meio do caminho da análise, a erotomania constitui o desafio último de sua aventura analítica.

A princípio, a saída de análise se dá, quando o sujeito modifica sua relação com o sintoma que antes o fazia queixar-se e esse sintoma adquires um outro estatuto, o do “bem-dizer”, como nos diz François Leguil. E o que seria o sintoma do bem-dizer? Seria mais precisamente, o sujeito assumir

415 – MILLER, J.A.-De mujeres y semblantes – pg. 84

16- MILLER, J. A. – O osso de uma análise – pg. 110

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uma verdade fundamental: “que seu sintoma satisfaz um gozo, satisfaz algo”(17) e poder consentir nesse gozo antes clandestino, antes contrabandeado.

Saber como fazer com seu sintoma é também reconhecer o incurável, é ter acesso ao impossível, o que certamente, possui uma relação muito estreita com a posição feminina em conexão ao S barrado. A posição do analisante ao fim da análise seria uma posição feminina, ainda que possível de ser experimentada por homens ou por mulheres. Sobre isso, Miller vai dizer que:

“Seguramente o mais típico, o ideal do passe, se busca a nível de A barrado, porém há que dizer que isso é do lado feminino e que Lacan privilegiou a saída de análise do lado feminino, assim como definiu a mesma posição do analista em afinidade com a posição feminina”(18)

Porém e o amor como semblante ao gozo? Haveria ao final da análise, uma modificação do estatuto do amor enquanto semblante? Deixaria o amor de ser condição ao gozo feminino?

É certo que uma mudança aí se opera. Lacan vai falar de “um amor sem limites”, ao final do seminário XI – Os quatro conceitos – “um amor fora dos limites da lei”(19). Ele encerra assim esse seminário e nos deixa a questão em aberto: o que significa pensarmos ao fim de uma análise, o amor não mais como semblante de gozo para o falasser feminino e sim nessa perspectiva do sem limites?

Não é possível esgotarmos aqui a complexidade desse sentimento (o amor), motor das mais variadas paixões humanas, responsável por guerras, uniões, encontros e desencontros, tragédias e que continua a nos inquietar, fazendo-nos interrogar, assim como reconhecer nossa limitação em falar sobre algo que talvez os poetas o façam melhor.

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