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Abrir espaço à metamorfose e à transmutação profundas

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Academic year: 2021

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Abrir espaço à metamorfose

e à transmutação profundas

Daniela Velho

A forma como, em geral, se encara a questão da relação dos homens com os animais não humanos e com a natureza é fruto de visões políticas, filosóficas e religiosas decisivas que se foram impondo ao longo da história e encontramo-nos, nos dias de hoje, assim como nos encontrámos no passado, limitados pela influência e impacto que têm a todo o momento na nossa vivência quotidiana. Apesar da ideia relativamente generalizada de que o homem é superior a todos os restantes seres porque provido de uma racionalidade única e, como tal, possuidor do direito de dispor de uma forma livre de tudo quanto existe, na perspectiva de que o que existe é para o servir, é inegável que as preocupações, quer ecológicas, quer pelo estatuto dos animais, têm crescido exponencialmente e provocado nos últimos tempos debates cada vez mais acesos e impactantes.

Assim, se por um lado assistimos nos dias de hoje a uma exploração cruel e sem precedentes dos animais e da natureza, fruto de uma sociedade de consumo cada vez mais exigente, impiedosa e voraz, assistimos, por outro, a um positivo e frutuoso florescer de uma certa preocupação ética que se vai impondo paulatinamente mas, crê-se, de forma irreversível.

Torna-se cada vez mais evidente a importância de transcender o radicalismo antropocêntrico centrado em paradigmas de superioridade da espécie, autonomia e razão triunfante que ainda governa as nossas visões do mundo e onde a bioética, enquanto ciência transdisciplinar e dinâmica em busca de novas abordagens éticas para as questões da humanidade (que são cada vez mais as

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questões de tudo e todos) tem o papel decisivo e pioneiro de desbravar o terreno onde renovadas e frutuosas contribuições possam referenciar o comportamento do homem perante os seus semelhantes, numa nova, inclusiva e não discriminadora relação de humanidade.

Nestes tempos de mudança assiste-se ao aumento da consciencialização da crise global instalada que é fruto das crises humana, ecológica e de relação com os animais, todas elas dialogantes e interdependentes, e ao emergir de uma revolução de paradigmas com a imposição de novos modelos que respondem às novas exigências éticas de comunidades cada vez mais informadas, esclarecidas, cooperantes, solidárias e compassivas, de novos hábitos e fortes convicções e que integram esta nova dinâmica evolutiva tão aberta e consciente quanto inevitável e irreversível.

Mais do que nunca se impõe uma reformulação dos princípios e deveres éticos e jurídicos que se adeque a uma nova inteligência civilizacional e que é acompanhada e promovida por um debate intenso e vibrante sobre o tratamento ético das restantes formas de vida que connosco partilham o espaço planetário.

No que toca à situação específica dos animais assiste-se também a um florescimento dos estudos dedicados à causa, que propõem diferentes abordagens quanto à necessidade, âmbito e amplitude da consideração do estatuto moral ou jurídico do animal e que têm tido uma importância decisiva para a abertura e ampliação da discussão sobre o tema e para a sua inclusão no quadro das modernas preocupações éticas.

Contudo, de certa perspectiva, os esforços feitos por alguns dos pensadores nesta área, de particularização e construção de complexos modelos de pensamento que visam justificar (ou não) uma atitude mais ética do homem em relação ao animal parecem, por vezes,

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limitar uma compreensão integrada da realidade contribuindo para tornar, apenas, mais sofisticada a nossa ignorância sobre a riqueza desse mundo fenomenológico, afastando-nos cada vez mais da nossa preciosa e essencial animalidade e consequente compreensão natural e instintiva do mundo.

Torna-se, ainda, crucial que não esqueçamos algumas das nossas mais óbvias limitações no que toca à percepção do mundo do qual somos parte integrante. Assim, além da já referida influência antropocêntrica que domina, em geral, o nosso modo de pensar o mundo (o homem no centro de tudo, tudo existindo para o servir), há que ter especial preocupação com as tendências antropomórficas no tratamento da questão animal.

Mesmo no âmbito da defesa da causa animal é muito frequente que nos deixemos apanhar na teia das construções antropomórficas, abrindo a nossa empatia apenas aos seres que connosco parecem partilhar de forma mais inequívoca algumas das características que mais admiramos em nós próprios. E, por isso, lutamos para englobá-los numa esfera de moralidade e juridicidade que determinamos não ser extensível a outros seres com características distintas. Como se o valor dos animais pudesse alguma vez estar subordinado à semelhança com a condição humana ou, dito por outras palavras, como se os seres vivos fossem mais dignos de consideração quanto mais se aproximassem das formas de vida tradicionalmente consideradas “superiores”, neste caso a nossa.

Essa será, de uma certa perspetciva, mais uma forma de arrogância especista, embora feita não já entre homens e outras espécies, mas entre diferentes espécies.

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Caberá, assim, questionar como podemos nós de uma forma sensata e intelectualmente honesta continuar a pensar e a agir como se ocupássemos o topo da “Cadeia do Ser” num mundo de incontáveis miríades de seres viventes, cujo conhecimento e compreensão profundos não podemos na verdade alcançar, em virtude das inúmeras limitações de que somos portadores na nossa condição de seres humanos.

Apresenta-se como imperativo ético não fazer depender a integração dos seres num espaço que propicie o direito ao acolhimento dos seus interesses, da constatação e comprovação do grau de sofisticação dos seus estados de consciência, como parece ser forte tendência mesmo entre aqueles que procuram de alguma forma dignificar a condição animal. Por um lado, porque, como acima se referiu, isso significaria utilizarmos a condição humana como parâmetro para aferição do grau de consideração a dispensar aos restantes seres, o que se mostra necessariamente limitado. Por outro lado, porque qualquer tentativa que se faça de compreensão de outros seres, nos moldes em que atualmente o fazemos, tem necessariamente uma natureza frágil e meramente transitória, susceptível de refutação e reformulação tal como todas as interpretações subjectivas que se fazem sobre a realidade e os fenómenos.

A este respeito considera-se ser irrealista pretender alcançar todo o significado ou conteúdo da consciência do outro, seja ele que outro for, se o fizermos ignorantes dos inúmeros filtros mentais, emocionais e sensoriais que possuímos, não só os comuns à nossa espécie, como os nossos próprios enquanto indivíduos. Ou seja, pode, com toda a probabilidade, não ser possível descrever o mundo visto pelos olhos de um animal por impossibilidade nossa de o apreender em toda a sua significação ou mesmo de o descrever por palavras, ainda que pudesse ser por nós apreendido.

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Parece ser cada vez mais incontornável a necessidade de o homem se ver a si próprio, pelo menos numa certa dimensão daquilo que é, como um habitante do planeta e do cosmos a par de tantos outros que com ele convivem, mas onde todos merecem um respeito e um reconhecimento de dignidade que transcende as fronteiras da espécie e dir-se-ia mesmo quaisquer fronteiras que sejam fruto de atribuição de um valor em função de um qualquer parâmetro de aferição de valores arquitectado à escala humana.

A visão que temos do mundo e dos seres, em nosso entendimento, deverá privilegiar a universalidade daquilo que é comum a todos e não a especificidade das características do homem.

É assim indispensável que tenhamos uma visão integrada e uma consciência da interdependência de tudo, reconhecendo a existência de um valor inerente das coisas que subsiste por si e em si independentemente do entendimento que dele possamos ter.

Resta-nos pugnar pela necessidade de uma abordagem holística das questões humanitárias, animais e ecológicas em que a sustentação e preservação do habitat natural se mostra do interesse de todos e onde o homem, reconhecendo a sacralidade de toda a vida com a qual mantém uma ligação de interdependência, busca harmonizar-se com a natureza e com os animais não-humanos numa relação de aceitação, respeito e cooperação.

Assim, e em termos de intervenção activista, consideramos já não ser possível manter apartados movimentos que lutam por estas causas essenciais, mas que muitas vezes se autocondenam quando optam por ocupar campos de batalha parcelares numa causa que é necessariamente global porque tudo quanto existe coexiste e tudo quanto vive convive em total interdependência.

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Parece-nos então que, por exemplo, não se poderá lutar pela diminuição das alterações climáticas, pelas florestas, rios e oceanos, contra a perda da biodiversidade e da vida selvagem, se não se lutar simultaneamente pela dignidade dos animais humanos e dos não-humanos, porque o que está realmente em causa, se dermos oportunidade a nós próprios de olhar para esta realidade de uma forma integrada, é o futuro do Planeta com todos os elementos que o compõem.

No que toca à consideração que nos merece a causa animal, não falamos apenas da necessidade impreterível e inadiável de suster as consequências altamente devastadoras que, por exemplo, a pesca ou produção agropecuária brutalmente intensivas têm para a sobrevivência desta casa que tão compassivamente nos acolhe. Falamos acima de tudo no respeito, apreço e estima que nos merecem os nossos parentes não humanos que connosco partilham os mais belos frutos que a natureza generosamente distribui, sem nos deixarmos dominar, porque detentores do monopólio da força e do poder, por aquilo que de mais brutal e predatório existe em nós.

Por último, não podemos deixar de enaltecer o profundo potencial amoroso, compassivo e transformador que reside no âmago de cada ser humano.

Neste sentido, e sem pretender subalternizar a importância de outras formas de luta que visem a indispensável mudança das mentalidades por um mundo melhor e que, a nosso ver, devem ser geridas adequada e concertadamente, destacamos a importância fundamental de uma profunda mudança interior se realmente almejamos contribuir para uma significativa mudança dita exterior na medida em que esta tem, necessariamente, a sua origem em tudo aquilo que cada um de nós pensa, diz e faz e que tem repercussões inconcebíveis em tudo aquilo que nos rodeia.

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Por outro lado, a nossa sociedade tecnológica e materialista está longe de conseguir responder de forma cabal às grandes questões éticas que cada vez mais se colocam ao nível do comportamento humano perante o outro. Pelo contrário é, a maior parte das vezes, fonte de agudização da situação de grave crise em que já nos encontramos.

Em resposta a esta grave carência da sociedade moderna assiste-se actualmente a um revisitar da sabedoria das grandes tradições contemplativas da humanidade que nos propõem formas de redescobrir aquilo que de mais essencial e profundo existe em nós e que se repercute, dentro de uma visão de interdependência, no bem de todos os seres com quem nos encontramos profundamente conectados.

Por contraposição ao ruído frenético e muitas vezes exasperante quase sempre presente nas nossas vidas, o homem busca e reconhece a importância da existência de espaços de silêncio onde possa usufruir, finalmente, da companhia de si próprio, do redescobrimento da sua verdadeira natureza e da comunhão profunda que pode descobrir com tudo.

A possibilidade de pacificação e tranquilização do estrondo mental constante, que esvazia as nossas vidas de sentido, surge-nos como a resposta possível que há tanto tempo buscamos sem sucesso nas promessas impossíveis de concretização de sonhos que jamais o poderão ser pela busca exterior porque residem, na verdade, apenas e só, no âmago de cada ser.

A incapacidade que a maior parte das vezes temos de pensar e de agir de forma compassiva, ponderada e serena é um dos maiores males com que convivemos nos nossos dias e de consequências indescritíveis para todos e tudo o que connosco interage. A adoção

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de comportamentos fúteis, automatizados e insensibilizados por parte do homem condena não só o próprio homem, como os animais e a natureza à extinção.

Face ao imenso poder que temos de decisão sobre o nosso próprio futuro e sobre o futuro do outro, torna-se imperativo ético responsabilizarmo-nos pelas consequências nefastas da nossa desconexão com o mundo e que se traduzem nos actos mecanizados, cruéis e destrutivos que todos os dias praticamos, nomeadamente quando decidimos o que comemos e bebemos, como nos vestimos e calçamos, como nos entretemos, como trabalhamos, como ganhamos e onde gastamos, que tipo de produtos utilizamos e, enfim, qual o papel que decidimos interpretar, através de todas as escolhas que fazemos, no imenso palco do mundo.

Vislumbrar um futuro diferente é, em nosso entender, ter a coragem de abrir espaço à metamorfose e à transmutação profundas, saindo dos nossos lugares de aparente controlo e conforto, largando destemidamente as peles gastas com que insistimos em nos cobrir e assumindo plenamente aquilo que de mais genuíno, íntegro e amoroso existe em nós e que, através dos nossos pensamentos, palavras e acções, poderemos generosamente oferecer ao mundo, para o bem de todos.

Referências

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