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TESTEMUNHAS SILENCIOSAS

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TESTEMUNHAS

SILENCIOSAS

Desde o seu surgimento, em 1827, Passo Fundo passou

por mudanças que resultaram no desenvolvimento atual da

cidade. Por detrás das paredes, ainda que velhas, existe

muita história, escrita por cimento, concreto e tijolo.

Os prédios históricos de Passo Fundo – oficiais ou não –

contam a história da cidade, como se fossem testemunhas

silenciosas, trazendo consigo recordações de tempos que não

se repetem. Para entender um pouco da história da cidade a

partir das edificações que a compõe, é preciso voltar 18

décadas e reencontrar as experiências vividas nesta terra

desde Cabo Neves. TESTEMUNHAS SILENCIOSAS é o Caderno

Especial de aniversário dos 88 anos do Jornal O Nacional.

Parte das informações foi retirada dos livros “Passo

Fundo, presentes da memória” de Fernando Miranda e Ironita

Machado da Editora MM Comunicação Ltda e “Páginas da

Belle Époque Passo Fundense”, de Marco Antônio Damian e

Heleno Alberto Damian, além dos documentos encontrados no

Arquivo Histórico Regional. Os cinco primeiros textos foram

publicados, originalmente, no Portal do Núcleo Experimental

de Jornalismo da Agecom UPF.

Caderno Especial de Aniversário - 88 anos - Jornal O Nacional - Passo Fundo, 19 de junho de 2013

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Desde o seu surgimento, em 1827, Passo Fundo passou por mudanças que resultaram no desenvolvimento atual da cidade. Por detrás das paredes, ainda que velhas, existe muita história, escrita por cimento, concreto e tijolo. História de um povo, história de uma época, história de uma cidade. Histórias e experiências que, ao longo do tempo, moldaram a sociedade passo-fundense.

Dentro das memórias de pessoas que fazem ou fizeram parte da história da cidade se encontram lembranças e vi- vências capazes de retratar épocas de povoamento, desen- volvimento e modernização. Sim, os prédios históricos de Passo Fundo – oficiais ou não – contam a história da cidade, como se fossem testemunhas silenciosas, trazendo consigo

Além do concreto

“Entre outros exercícios de

espírito, o mais

útil é a história.”

(Cayo Salústio Crispo)

recordações de tempos que não se repetem. Em 1827 o primeiro habitante de Passo Fundo, Manoel José das Neves, Cabo neves, foi presenteado com terras para construir sua estância e abrigar a família. Perto da atual Praça Tamandaré se instalava a origem da população passo-fundense e a origem da cidade. Mais tarde, 1857, o povoado recebe título de município. Foi necessário que as edificações dessem o rumo da cidade: estação férrea, prefei- tura, lojas, armazéns. Através das pedras Passo Fundo tornava- -se grande.

A arquitetura da cidade desenhou seu desenvolvimento. Por entre as paredes de cada prédio instalado nas ruas passo-fun- denses, hospedam-se capítulos de uma biografia já conhecida, mas que, por vezes, é encoberta de poeira. Para Eduardo Knack, mestre em História é “a partir da ideia de patrimônio que se pensa a ideia de cidade” e, ainda, é a partir da valorização de tal patri- mônio que se aprende a valorizar a própria cidade. “As pessoas não valorizam aquilo que não conhecem”, completa o historiador. Da Praça Tamandaré à Cidade Nova, Passo Fundo construiu uma história para ser contada.

Para entender um pouco da história da cidade a partir das edifi- cações que a compõe, é preciso voltar 18 décadas e reencontrar as experiências vividas nesta terra desde Cabo Neves.

Genese

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Quarta-Feira, 19 de junho de 2013

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- Toma estas terras. Leva tua família e teus escravos. Constrói tua es-

tância.

Não foram estas as palavras. O sentido foi este.

- Vai para esta terra, protege o território dos índios e estabelece morada. Nada – a não ser mato, um rio e índios – havia aqui quando os primeiros tropeiros escolheram Passo Fundo como rota para as feiras de Sorocaba. Foi então que o cabo Manoel José das Neves recebeu, em 1827, um pe- daço de terra da Comandância Militar de São Borja e fundou a Fazenda Nossa Senhora da Conceição Aparecida. No lugar onde hoje está a Praça Tamandaré, o primeiro homem branco a habitar esta cidade construiu o início da povoação. A instalação da primeira fazenda e, logo após, de pequenas construções foi o primeiro passo para o surgimento, enquanto cidade, da Capital do Norte do Estado.

A Praça Tamandaré, outrora Praça da Matriz – palco de invasões à fazenda de Cabo Neves – presenciou a população passo-fundense ser dizimada na Revolução Farroupilha, se reerguer, se reestruturar, ser ele- vada ao nível de cidade e, hoje, transformar-se em cenário para passeios de fim de tarde.

Três anos depois, em 1830, Joaquim Fagundes dos Reis foi enviado a

Genese “A memória se estende,

simultaneamente,

sobre várias épocas”

(Proust)

Passo Fundo para ser a primeira autoridade: comissário da nascente povoação. Os 419 habitantes – atraídos para o local possivelmente pelo solo fértil – passaram a integrar em 1833, o 4º Distrito de Cruz Alta. O povoado desenvolvia-se em torno de atividades agrícolas e, logo, viu- -se a necessidade de erguer outra edificação: uma igreja. As terras, no topo de uma coxilha, doadas pelo cabo Manoel das Neves, e onde, hoje, está a Catedral Nossa Senhora Aparecida, é o local onde, há 177 anos erguia-se a capela destinada à adoração de Nossa Senhora da Conceição.

A partir da igreja, era o início da afirmação de Passo Fundo enquanto cidade.

Ao redor da pequena capela instalaram-se, aos poucos, novos mo- radores que, com o passar do tempo, tornaram-se responsáveis pelo desenvolvimento urbano, social e comercial do centro da cidade. Além de pedaços de terra e algumas mercadorias para vender ou trocar, o povo passo-fundense tinha, agora, um prédio onde abrigar a sua fé. No mesmo ano foi construído, nas dependências da capela, o primeiro cemitério. Os dois, capela e cemitério, testemunharam o início e o fim da vida de homens e mulheres cujos nomes estampam as placas das ruas da cidade.

No final do século XIX, tanto capela quanto cemitério, mudam de en- dereço. A pedra angular da primeira igreja de Passo Fundo é transferida para a atual Rua Uruguai, em frente à Praça Tamandaré. A Igreja Matriz passa a ser chamada de Igreja Nossa Senhora da Conceição e o local onde os fiéis aguardavam o início da missa tornava-se, de fato, a Praça Tamandaré. Na coxilha, local anterior de sua construção, é erguida a Ca- tedral Nossa Senhora Aparecida. O cemitério é transferido para o Bairro Vera Cruz, mais afastado da nascente população. O desenvolvimento de Passo Fundo torna-se natural e irrepreensível. E são as edificações, testemunhas silenciosas de um crescimento, que adaptaram-se à nova realidade como alguém que se acomoda para ouvir uma história.

Em 1835, no entanto, tal desenvolvimento estanca. Ecos de uma re- volução chegam aos ouvidos e bocas dos habitantes do povoado. Sim, era a Revolução Farroupilha que se achegava em solo passo-fundense e convidava homens e mulheres a tornarem-se maragatos ou chiman- gos. Como aconteceu em grande parte do estado gaúcho, Passo Fun- do teve sua população dizimada. No povoado, que antes contava com quase 500 habitantes, ao fim da Revolução – em 1843 -, restavam 60 moradores.

1830

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Os gregos diziam que a Fênix – ave com tons de dourado e ver- melho – ao fim de sua vida entrava em uma autocombustão que a destruía. Não definitivamente. Passado algum tempo, a Fênix se reerguia das próprias cinzas e, como se jamais tivesse encontrado a morte, nascia novamente para a vida.

Tal qual a Fênix, Passo Fundo se reergueu de sua própria tragé- dia. Se antes, 500 moradores construíram capelas, praças e deram início às relações comerciais e sociais, os 60 restantes – sobrevi- ventes de uma revolução cujas lembranças se encontram até hoje na história do povo gaúcho – elevaram um povoado ao nível de freguesia e, mais além, emanciparam-se.

Talvez tenha sido o espírito chimango ou, até mesmo, uma vin- gança – positiva.

- Mataram nossos habitantes, mas não matarão nossa cidade. Não mataram. Passo Fundo, hoje, está em constante desenvol- vimento e a cada dia se expande – econômica, social e territorial-

Fenix “A cidade se faz mais

cidade quando os

sujeitos sentem-se

parte dela”

(Eliara Levinski)

moeda no povoado.

- Faço saber a todos os habitantes e mais pessoas de comércio, que de hora em diante deverão receber toda a moeda circulante de papel do Império.

A resolução atingiu não somente o comércio, mas toda a sociedade. Cresciam as relações, o território e o poder do povo. A independência da ci- dade, ainda pequena, começava a dar os seus primeiros passos. A circulação do dinheiro nas mãos dos passo-fundenses modificou o pensamento e incutiu em cada cidadão a ideia de liberdade comercial e social, capaz de criar uma cidade com potencialidades desenvolvidas, com capacidade para abrigar – em seu território e em sua política – habitantes independentes de convenções de outro município, preparados para criar a própria cultura.

Na década que se seguiu, Passo Fundo cresceu. De freguesia, foi emancipado. Tornou-se município. Um grande passo para uma cidade que também seria grande.

1840

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5

A formação de uma cidade se dá vagarosamente. Uns poucos se ache-

gam num pedaço de terra, constroem morada e vida. Outros tantos cons- troem relações um pouco adiante. Logo, tais relações se estreitam e as distâncias diminuem. Nasce um povoado. Uma aglomeração. Um pe- queno e talvez imperceptível sinal do futuro. Quem poderia imaginar que Cabo Neves, ao escolher o terreno da Praça Tamandaré para construir sua estância em 1835, daria início a uma cidade que, hoje, abriga quase 183 mil habitantes?

Foi em janeiro de 1857. Trinta anos depois da chegada de cabo Ne- ves, Passo Fundo está pronta para voar sozinha. Deixando a cidade de Cruz Alta e optando pela independência, Passo Fundo foi emancipada e governada pela Constituição de 1824. Organiza-se o poder Legislativo, e a Câmara de Vereadores fica sob a presidência de Manoel José de

1850

“Os nomes das ruas nao sao

apenas sinais para a cidade,

mas sinais da cidade”

(Priscila Ferguson)

Araújo. Junto dele, Joaquim Fagundes dos Reis, Antônio de Mascarenhas e Manoel da Cruz Xavier decidiam o futuro da Vila que logo seria cidade. Questões econômicas, políticas e administrativas levaram à emancipação da cidade. O povoado que caiu sob o fogo da Revolução Farroupilha foi capaz de se reerguer e chegar a um boom de desenvolvimento para a época. A liberdade foi necessária.

As veias carregam o sangue que bombeia o coração e dá a vida – o ca- minho levando à existência. Tal qual, as ruas foram levando Passo Fundo a uma existência concreta. Às vezes estreitas, de difícil acesso, mal traçadas. Em meio às construções, estradas de terra, de mato ou de pedra estendiam- -se e levavam a um futuro logo ali. A principal das ruas, a atual Av. Brasil, foi chamada de Rua das Tropas e, logo depois, Rua do Comércio. Ali, o coração da cidade. À época da emancipação, eram sete as ruas nominadas de Passo Fundo. Rua 7 de agosto, em homenagem à liberdade do município. Rua 20 de Setembro, em homenagem ao estado. Aos poucos, cada rua ganhando um nome, uma identificação, uma caracterização.

Prédios foram erguidos, comércios iniciados, raízes foram firmadas so- bre a terra onde, outrora, bandeirantes e tropeiros pisavam – a fim de levar o charque gaúcho para as bandas de São Paulo. A arquitetura da cidade, seu patrimônio físico e cultural tornaram Passo Fundo polo educa- cional, de saúde, cultural e religioso.

Emancipada, Passo Fundo construiu sua própria história.

O caminho da liberdade

s s

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POLÍTICA

Nos prédios históricos de Passo Fundo, além de todo o concreto que pesa nos muros e paredes, encontra-se a vida. Vida essa que retrata um povo enraizado na perseverança e na luta por espaço, personalidade e in- dependência.

Herdada de Cabo Neves, a terra – que era de passagem – tornou-se a morada de um povo que é o próprio Rio Grande. O início, em torno da crença, cede espaço para a morte – de pessoas e de esperança – causada pelo confronto farroupilha. A cidade se reergueu e, de pé, expandiu-se. As primeiras ruelas da cidade tornaram-se o caminho para a construção da his- tória passo-fundense. E, então, o título de cidade pequena era igualmente pequeno para o que se tornava Passo Fundo.

1860. Adécada inicia com tensões políticas e geográficas no país e no continente. A América do Sul se prepara para ser palco de uma guerra san- grenta que matou mais de 100 mil homens. Brasil, Argentina e Uruguai, ou a Tríplice Aliança, combateram contra as forças paraguaias. O motivo era físico e se encontrava nas frágeis fronteiras não definidas – ou não aceitas. Francisco Doratioto, historiador, relata que a guerra, por si só, é um jogo e, em especial, na Guerra do Paraguai “não há ‘bandidos’ ou ‘mocinhos’, como quer o revisionismo infantil, mas sim interesses”.Ao fim, o lar é o destino.

O caminho para o lar, no entanto, foi interrompido. Dois escravos vol- tavam da batalha quando, ao chegarem às terras onde hoje fica o atual distrito do Pulador, uma pequena estatueta de São Miguel Arcanjo os im- pede de continuar. Providência divina, acaso, sorte. Independentemente da interpretação, o caminho tomou rumo diferente e o destino que, antes, era o lar tornou-se a construção de uma capela. Nas terras de Bernardo Cas- tanho Rocha, ergue-se a primeira paróquia, que, fugindo dos ares urbanos, direcionava-se para o povo do campo. Construída de pau-a-pique e com telhado de capim, a sua simplicidade é preservada até hoje.

Atualmente, um domingo do mês é destinado à celebração da missa na Capela de São Miguel. Cerca de 20 fiéis comparecem e refazem o traje- to percorrido pelos escravos precursores. Caminho esse que se confunde com a história de Passo Fundo, cidade que se desenha através do desen- volvimento das relações humanas que nela crescem. Para Ironita Machado e Fernando de Miranda, autores do livro Passo Fundo, presentes da memó- ria, “os fragmentos do passado podem ainda ser apreciados na arquitetura (…) que resiste à passagem do tempo”.

Passo Fundo cresceu. Naquela época, desenvolveu-se no sentido oes- te, distanciando do berço onde Cabo Neves decidiu firmar morada. Pelas mãos de escravos, a imagem de São Miguel possibilitou que parte da cida- de se tornasse livre. Hoje, reformada e tombada como patrimônio cultural, a capela é o foco da fé. Cerca de 15 a 18 mil cristãos seguem o destino da- queles que voltavam da guerra rumo ao lar. Desta vez guiados pela crença.

A escravidao

que liberta

1860

“Há pelo menos

duas maneiras de

nós abordarmos uma

cidade. Existe a

cidade superficial,

racionalista, aquela

onde triunfa a linha

reta… (e) Existe uma

outra abordagem da

mesma cidade, que

é aquela da cidade

subterranea, da cidade

da memória”

(Olgária Matos)

s

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CIDADE || 7

Depois de emancipada, Passo Fundo cresceu. A nova capela proporcionava um crescimento além de qualquer delimitação pré-estabelecida. Não havia um sentido ou um destino para a cidade: movida pela sua crença – religiosa, social ou mercadológica – a população encontrava no chão, motivos para firmar morada - pouco a pouco, um a um, cada morador fazia dessa terra, a sua.

Estagnada pela Guerra do Paraguai, a economia da cidade se firmava, em 1870, na criação de gado e produção de erva-mate. Além dos escravos que vol- tavam para o lar, quae dois mil homens participaram da guerra. Entre eles, Coronel Chicuta que chegou ao município com o título de herói. Hoje, o nome ganha uma das ruas da cidade. O fato é que nem mesmo a guerra parou Pas- so Fundo.

A primeira capela, construída na gênese da cidade, se achava, agora, em ruínas. O desenvolvimento continuou migrando para o oeste e, vagarosamen- te, surgia os primeiros traços do Boqueirão. Caminhavam pelas ruas e dese- nhavam a personalidade do município cerca de três mil habitantes. As ruas – ainda de chão batido – abrigavam edificações baixas, mas que acolhiam: sem portões ou grades, a porta era um convite.

Um destes que fez da sua porta a acolhida de um povo foi Guilherme Morsch. Por volta de 1872, encontrou na então Rua do Comércio – atual Av. Brasil – um motivo para aqui ficar. A Casa Morsch é uma das principais construções do final do século XIX que ainda restam em Passo Fundo. É a representatividade de uma década que buscava evoluir. Enquanto todas as edificações eram baixas, a Casa se destaca pelo

O lar que abriga

a história

1870

“De uma cidade,

nao aproveitamos as

suas sete ou setenta

maravilhas, mas a

resposta que dá às

nossas perguntas”

(Ítalo Calvino)

porão alto, uma tipologia nova no país e que – arquitetonicamente – a eleva. Tombada como patrimônio histórico em 1953, a Casa Morsch é mais que um amontoado de pedras. É um prédio capaz de contar a história de uma década e, mais que isso, um prédio que relembra um passado cujas raízes estão na acolhida. Knack destaca que “o patrimô- nio histórico e cultural pode ser importante na medida que preserva um pouco da particularidade de cada cidade em um mundo cada vez mais global”. Passo Fundo tornava-se, aos poucos, global. A década de 1870 chegava ao fim e anunciava um tempo de mudanças. Logo, a Proclamação da República, em 1888, dava os primeiros indícios de que o crescimento não estancaria.

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Não havia iluminação. Nas noites mais escuras, qualquer passo nas ruas de barro despertavam uma cidade que lutava para dormir. Além dos passos, o caminhar dos touros anunciava a passagem dos tropei- ros. Noite por noite, o silêncio e a angústia. A população pressentia mudança e por ela ansiava.

Eram apenas três estradas, na época: de Lagoa Vermelha, de Nono- ai e de Botucaraí. O transporte era com a ajuda de animais; mula ou cavalo. Hoje, a viagem de quatro horas que leva à capital, na época, a cavalo, demorava sete. Do Distrito de Carazinho, apontava um mensa- geiro, a cavalo. Chegava a notícia: O Brasil era, agora, uma República. Na cidade, nada de homenagens, monumentos ou praças rebatizadas. Um ar de liberdade, apenas.

Antes disso, por volta de 1883, a cidade começava a construir o Clu- be Amor à Instrução – primeiros indícios de preocupação com a educa- ção da população e, ainda, de organização hierárquica. Ali, em meio a materiais de uma construção inacabada, amantes da leitura se reuniam para discutir textos e encontrar formas de letrar a população. O pré- dio, concluído apenas em 1889, passou a abrigar o Clube Dramático Passo-Fundense, o Fórum e a Seção de Eletricidade da Intendência da cidade. A cultura nascia na cidade. Organizavam-se as primeiras peças teatrais – ainda que pobres e simplistas. A nova organização do país permitia que, pouco a pouco, a cidade formasse a sua personalidade e encontrasse nos seus prédios, abrigos para as ideias.

Mais tarde, por volta de 1893, serviu ainda para aquartelamento de tropas durante a Revolução Federalista. Cinquenta anos depois, na dé- cada de 1940, o prédio tornou-se a Câmara de Vereadores. Em 86, foi reformado, ganhou palco e espaço para a platéia; nascia o Teatro Mú- cio de Castro. Hoje, juntamente com os prédios do Museu Histórico Re- gional – que também abrigou a Intendência Municipal - e da Academia

Ares de liberdade

1880

Passo-Fundense de Letras - antigo Clube Pinheiro Machado -, integra o Complexo Cultural Roseli Doleski Pretto. A sua estrutura, bastante antiga, pode ser considerada, segunda a Secretária de Planejamento, Ana Paula Wickert “a primeira de qualidade estética diferenciada em relação às outras casas da cidade”. Ela acrescenta, ainda: “A solução estética fez uso de referências historiscistas para a composição arqui- tetônica, tais como rusticação, cunhais, frisos, platibanda com recortes e uma marcante janela em arco de ferradura com referência árabe”.

O surgimento do prédio no espaço urbano remonta a situação da própria sociedade: “Geralmente associamos os grandes edifícios que marcam o cenário urbano de Passo Fundo a uma ideia de sofisticação própria da nossa sociedade contemporânea”, explica Knack. A cidade, que beirava os cinqüenta anos, crescia e levava consigo a população.

A capela, antes em ruínas, se erguia, aos poucos, para virar uma Catedral. Comerciantes – de todas as áreas do estado – viam no mu- nicípio uma oportunidade de crescimento. A virada do século chegava e trazia a renovação das estruturas que forma capazes de, em poucos anos, moldarem os mapas da cidade.

A cidade é como um íma.

Ela atrai, aproxima, reúne

as pessoas. É lugar de

passagem, mas também de

encontros e trocas culturais

(Passo Fundo, presentes da memória)

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Passo Fundo cresceu. As batalhas que enfrentou – seja a que dizi-

mou a população ou a que possibilitou a apresentação das primeiras peças de teatro – a tornaram grande. As capelas, o cemitério, o comér- cio, os primeiros teatros – tudo contribuiu para que, no fim do século, Passo Fundo recebesse o título de médio porte e desse os primeiros passos para se tornar, então, centro econômico do norte do estado. O caminho traçado apontava uma estrada sem fim.

A expansão urbana, que até então rumava para oeste, parou. O ca- minho, agora, era outro: os primeiros pregos capazes de segurar os tri- lhos da estrada férrea Santa Maria- Passo Fundo, mudaram o destino da cidade. O povo escolhia, agora, o leste. A futura Estação Ferroviária garantia: Passo Fundo vai ser grande. A construção, iniciada em 1893, foi atrasada pela Revolução Federalista que opôs, nos campos de ba- talha, republicanos e federalistas.

Estrada para

o futuro

1890

Quatro mil e quinhentos homens, seis horas de com- bate, duas ideias e um destino a ser traçado. Mara- gatos e pica-paus armados confundem-se em meio a uma luta que resulta em quase 1.000 mortos. No lugar onde hoje é o Distrito de Pulador, os restos de uma revolução que ensanguentou o Rio Grande do Sul entre 1893 e 1895. De um lado, os federalistas, que buscavam

“libertar o Rio Grande do Sul da tirania de Júlio Prates de Castilhos”; do outro, republicanos, que buscavam defender a instalação da República. Contrários, cavalgaram rumo ao combate.

No Distrito de Pulador, a batalha mais sangrenta da revo- lução dizima combatentes. O sangue pelo campo, as armas espalhadas, os corpos pelo chão. Quem sobreviveu escondeu- -se nos campos próximos. Em menor número, os maragatos sofreram perdas decisivas para a continuação do movimento revolucionário. Enfra- quecidos, anunciaram a paz depois de um ano e contribuíram, de forma definitiva, para a consolidação da República e da política atual. Em 1898, então, a cidade ganhava uma nova construção; as pessoas uma nova noção de tempo. A Estrada Férrea, projetada pelo engenheiro João Teixeira Soares e construída sob a chefia do Comissário de Construção Marcelino Ramos, foi inaugurada com festa. Sobre os trilhos viajam pessoas, mas, também, a própria economia da cidade. Chegavam, todos os dias, rastros de um futuro prestes a se construir.

Houve um tempo em

que minha janela

se abria sobre uma

cidade que parecia

ser feita de giz.

(Cecília Meirelles)

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O século XX deu seus primeiros sinais com o anúncio de mudanças. A Estrada Férrea, construída em frente ao Parque da Gare e, hoje, desati- vada, propôs a Passo Fundo uma reviravolta estrutural. Transferiam-se prédios e migravam as pessoas.

O início foi de adaptação: com a República devidamente instalada, era o momento de afirmar seu poder político. Em 1909, Gervásio Lucas Annes, propôs a renomeação de grande parte das ruas da cidade. Sur- giam, assim, as ruas Silva Jardim, Benjamin Constant e Tiradentes. O propósito era de incutir a história no cotidiano passo-fundense.

Antes disso, ainda em 1902, o cemitério – localizado perto da atual Catedral – foi transferido para a Vera Cruz – ponto mais afastado da cidade, para que pudesse ser feita a urbanização da parte central de Passo Fundo. Eduardo Kanck destaca importância de se compreen- der os processos históricos que envolvem as mudanças na estrutura da cidade: “é preciso entender que sozinhos os prédios não nos contam nada. É importante entender porque determinados espaços são consi- derados importantes a ponto de serem tombados, considerados histó- ricos, bem como por quê determinado estilo arquitetônico foi priorizado enquanto outros forma colocados em segundo plano”, comenta.

As mudanças pelas quais a cidade passou no início do século – e que possibilitaram transformações vistas, hoje, pelas ruas – foram causadas quase que exclusivamente pela chegada de um novo meio de transporte.

Despertar de

um século

1900 “A cidade é a mais

poderosa máquina

simbólica do mundo

moderno” (Beatriz Sarlo)

Sim, a Estrada Férrea foi capaz de emoldurar uma época de Passo Fundo: por ela, o comércio tomava novas proporções, a cultura se estabelecia como aspecto essencial e chegavam os rumores de uma era de inovações.

Os anos 10 trazem a Belle Époque a Passo Fundo. Atrasada. Mas, ain- da assim, bela.

Anos 10: inovacao,

modernidade e crescimento

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Na luz que ilumina a rua, o sinal: a modernidade chegava à cidade. A

querosene - que dava força ao lampião – foi substituída pela eletricidade que, aos poucos, apontava os caminhos que Passo Fundo percorria. A rede telefônica, instalada nessa época, traz novo sentido à comunicação; encurta distâncias, aproxima pessoas. O primeiro banco – fruto do comér- cio – se instala em uma das esquinas e traz consigo a possibilidade de estabilidade. Cinema, hotel, prefeitura: tudo, na cidade, ajuda a construir uma paisagem, de fato, urbana.

Em 1914, já éramos 4.500 habitantes em 500 hectares. Pela primeira vez, a urbanização atingia os extremos da cidade e era capaz de construir uma ponte entre o Boqueirão e o Rio cuja cidade carregava. Ao longo de toda a via férrea, se instalaram pessoas que foram dando vida à cidade. Entre praças e ruas, nasciam as primeiras escolas, o primeiro cinema e o primeiro banco.

Knack acredita que se pode “olhar para o conjunto de bens tombados enquanto documentos, fontes de informação sobre a cidade e sobre seu estilo arquitetônico”. Para ele, “podemos pensar nas relações políticas a partir da Intendência Municipal, por exemplo, podemos pensar no de- senvolvimento econômico do início do século XX no Rio Grande do Sul a partir da estação férrea”. É possível, segundo ele, pensar na história da cidade ao olhar para um prédio. Aqueles construídos no ano 10, por exemplo, remontam uma época onde a única alternativa era crescer.

Todo o pioneirismo dos anos 10 trouxe, também, diversidade. Em 1912, 24 membros da Igreja Metodista deram início ao culto de uma fé que, antes, não chegava na cidade. Seis anos depois de sua chegada, era preciso a construção de um templo. Surge, na esquina da renomeada Av. Brasil – antiga Rua do Comércio – o prédio, que hoje conserva seu aspec- to original, capaz de acolher outra fé, outra crença.

Anos 10: inovacao,

modernidade e crescimento

1910

“A história é emula do

tempo, repositório dos fatos,

testemunha do passado,

exemplo do presente,

advertencia do futuro”

(Miguel de Cervantes)

A diversidade na fé só aconteceu pela diversidade de pessoas que aqui se instalavam. Comerciantes, consumidores e pequenos empresários fi- xavam morada e exigiam, aos poucos, lugares onde pudessem estabilizar a vida. Na Av. Brasil, surge outro deles. O primeiro banco, Banco da Pro- víncia, inicia suas atividades em 1912. A economia, em constante cresci- mento, possibilitou a construção de uma sede própria – em 1922 – onde, hoje, é o atual Banco Itaú, (imagem acima).

Dos fundos de uma sala para o Colégio Elementar: onde, hoje, está o Círculo Operário, funcionava, em 1911, o atual Colégio Protásio Alves. Mais tarde, na década de 20, a escola ganha novo prédio e torna-se, a representatividade da educação na cidade.

Também em 1911, as salas do Cinema Pathé são inauguradas. Em constante mudanças de local, o cinema atraía a atenção dos moradores. Por volta de 17, passou a se chamar Cinema Brazil e se instalou, defini- tivamente, na Rua Moron, em frente à Praça Marechal Floriano. Segun- do o livro Páginas da Belle Époque Passo Fundense, de Marco Antonio Damian e Heleno Alberto Damian, o primeiro filme exibido na cidade foi Ladrões de Igreja. Mais tarde, no auge do desenvolvimento, chega a ter oito cinemas

As inovações da década de 10 servem como um prenúncio do que logo viria. Nas próximas década, Passo Fundo se torna referência econômica e, aos poucos, cultural.

s s

>

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A partir da década de 20, o processo de urbanização foi acelerado. Nas

extremidades da cidade, construíam-se loteamentos de grande porte. Era o início dos bairros. De um lado, o Bairro Petrópolis ganhava espaço. Do outro, o Bairro Cruzeiro se desenvolvia. Próximo ao cemitério surgia o Bairro Vera Cruz. De 500 hectares, Passo Fundo passa a abrigar quase 900. A cidade se expande, os mapas se alargam.

No início da década, em 22, se inicia a construção do quartel – hoje Patrimônio Histórico. A decisão veio do Governo Federal. O Ministro da Guerra, quando desembarca em solo passo-fundense, vê na cidade, em ple- no desenvolvimento, um espaço potencial de proteção ao país. Em agosto do mesmo ano a construção se inicia. Hoje desativado, o prédio conserva seu aspecto original e abriga repartições das secretarias municipais.

Em 25, a comunicação começa a tomar forma. Surge jornal de circu- lação mais antiga e duradoura da cidade. Refletindo a própria socieda- de, O Jornal O Nacional nasce de um momento de afirmação política e crescimento comercial. Surge pelas mãos de Herculano Annes, Theófilo Guimarães, Americano Araújo Bastos e Hiran Bastos. Na década de 40, no entanto, é adquirido por Múcio de Castro, jornalista e ex-deputado es- tadual. A trajetória do jornal ajudou a formar a cidade que se desenvolvia nas raízes da comunicação por aqui feita.

Em 1927, uma parte da Praça Tochetto é doada ao Colégio Elementar.

Urbanizacao

Acelerada

1920

Surge a Escola Protásio Alves, (imagem acima). O prédio, imponente, era o retrato de uma sociedade que crescia e primava pela educação. Prova disso é o surgimento do Instituto Educacional: com arquitetura romana, conservada até hoje, lembra os templos da história antiga. Em meio à colunas e escadarias, o intelecto de uma cidade.

O banco – aquele que nasceu como alternativa comercial - conquistava outra sede. Ambos os prédios são capazes de contar a história da déca- da e de representar educação e economia. Seja pela arquitetura que se desenvolve e marca época ou por aquilo que abrigaram durante os anos, a estrutura de pedra e cimento ganha vida: a década de 20, ao mesmo tempo que precede a Revolução de 30, representa o povo ganhava, a cada dia, maior independência.

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s

(14)

“A estrada de ferro, quase único meio de vencer as distâncias, para seguir em direção ao alvo dos revolucionários, tem em Passo Fundo seu ponto principal de passagem, sendo necessária uma adesão completa das forças aqui sediadas para dar livre trânsito aos bravos gaúchos” (Arquivo particular da Professora Delma Rosendo Gehm, retirado do livro Passo Fundo, Presentes da Memória)

As palavras acima vieram da caligrafia de Oswaldo Aranha, en- dereçadas para Dr. Vergueiro, líder político na cidade. Na década passada, o quartel fora instalado. Ironicamente ou não, nos anos

1930

As ruas da

Revolucao

“A forma de uma cidade

muda mais rápido,

infelizmente, do que

um coracao mortal.”

(Charles Baudelaire)

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O povo recebia as tropas no centro da cidade

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30 ele seria essencial para a tomada de poder de Getúlio Vargas.

Aos poucos, os prédios públicos da cidade foram tomados: o telé- grafo ocupado por Vitor Graeff, a Companhia Telefônica por Arthur Lângaro. O Intendente Guezzi guardava a estrada e Rui Vergueiro a Cadeia Municipal. Passo Fundo tornava-se outra.

Em 14 de outubro, Vargas passa por aqui. Segue viagem para Pon- ta Grossa e de lá, ganha o governo. No mundo, a tensão aumen- ta. Depois de passar pela Primeira Guerra Mundial, há o prenúncio

de uma segunda. As explosões que atingiram o mundo, levaram, também passo-fundenses. Um destes, Fredolino Chimango – hoje, nome de um estádio da cidade. As experiências por aqui vividas re- montam à memória do homem e à memória da própria cidade.

Memória essa que traz à tona a construção de um prédio que servia como fuga de uma realidade hostil. Surgia, no fim da década de 30, o Cassino da Maroca. Inaugurado apenas em 1941, a sua construção é do fim da década anterior. O Cassino perpassa as dé- cadas: na de 30, nasce; em 40 dá voz à personagens como Maroca e Maria Bigode; em 50 perde espaço e encontra na Ditadura Militar de 60 um novo uso.

As noites, no Cassino da Maroca, trazem memórias de uma década onde o brilho e a ostentação ganharam Passo Fundo. Roletas, jogos, salão de danças, shows, restaurantes. Passar por Passo Fundo e não encontrar a Rua XV de novembro era inadmissível. Homens da cidade e homens que apenas passavam por aqui: todos queriam encontrar a diversão que a casa proporcionava. Na década de 40 encontrou seu auge – o fim da guerra possibilitava a passagem e o encontro com centenas de homens.

O fim veio em 1946. Depois de alugar o lugar, o brilho se perdeu. Em 1957, perto de comemorar o centenário da cidade, surgiu a campanha para que a casa saísse do meio urbano. Era o prenúncio da censura. Quando esta chegou, a casa serviu como abrigo do DOPS e, ali, no lugar onde, antes, havia diversão, agora, havia tortura e denúncia.

Hotel Nacional, em 1928, e Hotel Glória, em 1927, eram os principais expoentes de um serviço que tomava forma. Os prédios, um em frente ao outro, ofereciam abrigam, hoje, restaurante e casa noturna. Na épo- ca, eram capazes de representar uma cidade que, há muito, abrigava visitantes. A década inicia com uma Revolução cujo Passo Fundo é essencial e se acaba em meio à guerra. O progresso exige luta. Com Passo Fundo, não foi diferente.

A população, enfrente ao jornal O Nacional, conferia as notícias da revolução

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Enquanto as noites da década de 40 eram vividas no Cassino da Maroca, o cotidiano da cidade seguia. O fim da guerra se anunciava e, ainda que vivendo a Ditadura Militar, a década de 40 proporcio- nou, culturalmente, um avanço.

Um projeto diferenciado. Uma nova ideia. Um novo formato. No início de abril de 1940, na Sede do Grêmio Passo-Fundense de Le- tras, era inaugurada a primeira Biblioteca Pública da cidade. Mais tarde, em 1976, Arno Viuniski, estagiário da secretaria de Obras e Viação, da prefeitura de Passo Fundo, pensou em um prédio que pudesse, além de abrigar os livros, incentivar a leitura.

Deu certo. Em 1982, a Rua Moron tornou-se o seu lar. Em 2002, recebeu o nome de seu primeiro criador. Abandonada durante muito tempo, a Biblioteca Pública Municipal Arno Viuniski, um dos espa-

Mudanca

anunciada

1940

“A história do mundo é,

essencialmente, história

de ideias.” (H. G. Wells)

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ços mais importantes da cidade, foi, finalmente, reformado e, atu-

almente, abre as portas para a população. O espaço, que está sen- do melhorado desde outubro do ano passado, foi reestruturado em função do leitor e atinge, agora, as novas normas de acessibilidade e segurança.

A inovação que, na década de 40, a Biblioteca Pública carrega- va, não aconteceu de forma isolada. A professora de Arquitetura e Urbanismo da Imed, Liliany Schramm da Silva explica que a “arqui- tetura modernista, em Passo Fundo, teve suas primeiras manifesta- ções na década de 40”. Ela comenta as que as principais mudanças arquitetônicas representam, também, a modernidade que a época encontrava: “Em um contexto até então historicista, começaram a aparecer edificações em estilo Art Déco, também denominadas pro- to-modernistas. Empregando cada vez menos ornamentos, estas

obras utilizavam elementos como revestimentos em mica e saca- das curvas, possuindo referências navais. Um dos exemplos mais marcantes é a ampliação do Clube Caixeral em 1947, pelo arquiteto João de Cesaro”.

Além da Biblioteca, também surge os primeiros sinais da constru- ção do Turis Hotel, inaugurado em 1954, e que aponta a verticaliza- ção da cidade que passa a ocorrer a partir da metade do século XX. Os limites da cidade já não eram suficientes para o crescimento que ela enfrentava. Uma nova forma de se estender era preciso. A própria Catedral Nossa Senhora Aparecida passou por tal mudança. Para chegar na configuração atual, em 1949, (imagem) a primeira fase de sua reforma foi concluída. Aos poucos, ganhava o céu.

E a década de 50 retrata, justamente, isso: era chegado o momen- to de Passo Fundo conquistar o alto.

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Crescimento

Vertical

1950

“A cultura de um

povo é o seu maior

patrimonio Preservá-

la é resgatar a

história, perpetuar

valores, é permitir

que as novas

geracoes nao vivam

sob as trevas do

anonimato.”

(Nildo Lage)

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Desde a década de 10, Passo Fundo assumiu a li-

derança da região Norte do Estado, em termos de educação e saúde. Culturalmente, cinemas e te- atros eram a base do entretenimento. A cidade já tem forma e personalidade. Os ajustes chegavam aos poucos. A nova década marcou a metade do século e fez Passo Fundo ir longe. Desta vez, ver- ticalmente.

O Hospital São Vicente de Paulo, atuante desde 1918, chegava nos anos 50 com a autoridade dos grandes. Acompanhando o crescimento da cidade, o HSVP, ao lado do Hospital da Cidade, cujas ativida- des remontam a mesma época, cresceu. Ainda as- sim, a cidade precisava de mais um espaço de saú- de. Surgia, então, em 1952, o Hospital Municipal Dr. César Santos. Beneficente, o Hospital foi construído durante toda a década e passou a atuar, de forma contínua, nos anos 60. Hoje, conta com 88 leitos - divididos em 4 postos de enfermagem, destinados a pacientes do Sistema Único de Saúde e convênios particulares e realiza cerca de 3 mil atendimentos por mês.

Do mesmo modo que a saúde precisou de uma nova alternativa, a fé exigiu um novo modo de pensar. A Igreja Assembleia de Deus já exercia suas atividades na cidade desde 36, mas foi só em 50 que o prédio atual foi construído. Junto à Rua Moron, o colorido se destaca. Em uma construção repleta de geometria, outra crença é abrigada.

Por fim, o Turis Hotel é o marco de uma década onde os prédios começaram a ganhar o alto. Surgem, aos poucos, as primeiras edificações de dois ou três an- dares. Era um anúncio: mais tarde, na década de 80, os apartamentos ganhariam a cidade. “quantas edifi- cações magníficas foram derrubadas para ceder lugar aos arranha-céus, que, por sinal, tornaram-se símbolos do progresso econômico”, comenta Knack. Ele comple- ta: “Os prédios de apartamentos nascem na esteira da derrubada de espaços de sociabilidades populares nas grandes capitais, símbolos de um país que encontrava sua modernidade nos anos 1950.”

O hotel e, mais tarde, o surgimento do Cine Teatro Pampa foram edificações que, em sua inauguração, movimentaram a cidade e motivaram a movimentação de toda a região. As cidades vizinhas queriam conhecer o moderno hotel e as poltronas do cinema.

Cem anos de independência davam à cidade inde- pendência para crescer. Os moradores já não se lem- bravam que outrora o local era apenas uma passagem. Parecia que, aqui, desde sempre, o destino estava tra- çado: representar a história de um povo cujas raízes estão nas lutas diárias.

Equilibrista Alex, entre a Catedral e o Turis.

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Se não havia lembrança de um passado rústico, havia a memória de um povo que caminhou por chão batido e buscou o que construiu. Dos primeiros comércios à moderna Universidade, a década de 60 consolida a cidade.

Primeiro de maio de 62. Um dos acontecimentos mais esperados dos últimos tempos. Ao lado do Turis Hotel surgia “a mais luxuosa casa de espetáculos do interior do estado”. O Cine Teatro Pampa era a modernidade e o glamour que Passo Fundo exigia. Entre autoridades políticas e eclesiais, o empreendimento teve a bênção para começar a funcionar. Eram cerca de dois mil lugares e uma tela: nela passaram Ja- mes Dean em seu último filme, Assim caminha a humanidade de 1956, e Teixeirinha, em O gaúcho de Passo Fundo, de 1978. No palco, Nelson Gonçalves e Ângela Maria. Por fim, o sucesso.

Em 1968, o fogo quase destrói o que, na época, era o prédio de maior circulação da cidade. Restaurado, voltou a ser ativado apenas dois anos mais tarde, com a exibição de Planeta dos Macacos. Em 95, 23 anos depois de sua inauguração, um adeus: filmes não seriam mais exibidos - As Diabólicas, estrelado por Sharon Stone, foi o úl-

Educacao

e cultura

tarde, somente formaturas ou eventos. E, em 2006, a demolição. Hoje, no local onde Passo Fundo viu o mundo, um estacionamento.

Ao lado da instalação de fábricas, a educação se potencializou. Em abril de 1968, Costa e Silva, presidente de um Brasil cujo Ato Institucio- nal nº 5 assolaria em dezembro, assinou um decreto de reconhecimen- to oficial da Universidade de Passo Fundo. Direito, Economia, Odonto- logia, Agronomia, Comunicação e Artes eram os cursos oferecidos. O primeiro local de funcionamento é o atual Campus 3. Em salas de aula que, por vezes, eram improvisadas, a Universidade chega, hoje, aos 48 anos e 22 mil alunos.

Passo Fundo se depara com surtos populacionais a partir do fim da década de 40 e que seguem até 1970. Somente uma cidade não era capaz de abrigar tanta gente. Marau, Tapejara, Ciríaco, David Canabarro, Ibiaçá, Sertão e Victor Graeff - frutos de um desenvolvimento acelerado. Além de novas cidades, “com o crescimento populacional, temos o cresci- mento das periferias da cidade” destaca Eduardo Kanck.

Surgem as periferias, os bairros se estreitam, o centro permanece valori- zado. O crescimento não estanca, não dá trégua. O desenvolvimento econô-

1960

s

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“A história é testemunha

do passado, luz da verdade,

vida da memória, mestra da

vida, anunciadora dos tempos

antigos.” (Cícero)

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Basegio

A partir dos anos 70 o crescimento da cidade se dá de forma ines- perada. Os apartamentos, tímidos dede a década de 50, conquistam espaços cada vez mais caros na cidade. O comércio ganha o centro e as moradias passam a circundar a cidade. A construção civil, que nos últimos anos sofreu um boom, lá em 70, ajudava a cidade a dar os pri- meiros passos para o desenvolvimento imobiliário.

Os anos 80 trouxeram o implante oficial do divórcio na constituição brasileira. A nova possibilidade separou centenas de famílias passo- -fundenses. A procura por novas moradias cresceu drasticamente. As casas não eram mais suficientes. Os apartamentos transformaram, de- finitivamente, a paisagem urbana.

Os anos 90 intensificaram a procura: estudantes à procura da Univer- sidade foram liberados para morar sozinhos; surgem as kitnets, repú- blicas ou prédios estudantis. A cidade ganha um ar jovial e é inundada de prédios que carregam consigo dezenas de apartamentos.

As construções não param e seguem a arquitetura vertical que a ne- cessidade impõe. A chegada do novo milênio traz grandes redes de supermercado e shoppings para a cidade. Em 1998, o Bella Città Shop- ping Center ganha o centro da cidade. Lojas, restaurante, cinema: tudo em um mesmo local cria uma nova visão de entretenimento na cidade. Hoje, depois de uma expansão em 2009, são 110 lojas e uma Torre/ Hotel anexada à edificação. Pouco depois, surge o Bourbon Shopping que, contrariando a tendência, é uma construção horizontal.

Para Eduardo Knack é, exatamente, a falta de um representante es- pecífico que é capaz de retratar as últimas décadas: “Eu creio que não precisamos de um único prédio para abordar o próprio processo de

1970,1980, 1990, 2000

Representatividade

aleatória

verticalização iniciado nos anos 1950. Seria interessante pensarmos nos vazios, nas edificações que sucumbiram ao progresso e a especu- lação imobiliária como símbolos desse processo”, comenta. Ele acredita que as possibilidades que o mundo, hoje, carrega – tais como tecnologia, internet e facilidade de comunicação – também marcam o patrimônio: “vi- vemos em mundo que tem o movimento, a rapidez como marca de sua temporalidade, um mundo onde o agora, o presente, tem um peso muito grande. As intensas transformações urbanas que continuam marcando as cidades contemporâneas são apenas um reflexo, um efeito, dessa reali- dade”, conclui.

O crescimento da cidade a tornou capital do norte gaúcho, terra de gente boa. A tornou pólo econômico, político e cultural. Referência de saúde e educação. Lugar para onde migram estudantes e trabalhadores que juntos proporcionam, aos poucos, o surgimento de uma nova cidade.

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156 anos: um povo,

uma história

Por volta de 1827, organizar uma cidade podia parecer uma ideia inconcebível. A receita parecia simples: uns poucos se ajuntam, se faz uma igreja, se tem um líder, se troca mercadorias. Um século e meio depois a história faz dessa idéia original inaplicável.

Organização, planejamento, idealização. Depois disso, a concreti- zação. Hoje, a receita é essa. A cidade de Passo Fundo cresceu tão drasticamente que foi capaz de gerar outros municípios e esses ainda outros. Mas ainda há o que crescer: a organização possibilitou o sur- gimento de um novo pedaço de chão que aos poucos vai ganhando moradas. O Bairro Cidade Nova é o que o nome diz: um bairro que visa ser uma nova parte de Passo Fundo.

O novo formato de vivenciar a história é, para Knack, o retrato da necessidade da cidade: “O Bairro traduz a necessidade de crescimento da cidade para áreas até então pouco exploradas pelo mercado imo- biliário”. A tradição, no entanto, permanece: “É interessante notar com alguns traços do passado permanecem marcantes. As propagandas sobre o bairro, por exemplo, associaram esse novo espaço com o futu- ro, até com a expressão capital do planalto - expressão que surge nas primeiras décadas do século XX e é muito utilizada para fazer referên- cia a Passo Fundo como uma cidade progressista, moderna”, comenta.

De fato, a cidade cresce, mas não esquece daquilo que a formou. Ao todo, o Cidade Nova tem uma are de 817.000 metros quadrados, disponíveis para comercialização, e distribuídos em 41 quarteirões. O projeto do loteamento foi feito de acordo com o plano diretor de Passo Fundo e, desde sua origem, prevê áreas de ocupação comercial, mista e residencial. A intenção é que o local tenha área de lazer, com uma praça central e espaço para construção de Shopping Center.

A migração da urbanização parece ocorrer em forma de círculo. Lá em 1827, a cidade dava seus primeiros passos, se constituía enquanto lugar para fixar morada. De início, guiados pela capela, os homens que

2010

Uma nova cidade

decidiram aqui ficar rumaram a oeste.Depois, a linha férrea impulsio- nou uma urbanização que a contornou e povoou o lado leste da cidade. Hoje, ao que tudo indica, é o Cidade Nova que define o rumo do cres- cimento de uma cidade que ainda caminha.

“Se queres prever

o futuro, estuda o

passado“ (Confucio)

(23)

Quarta-Feira, 19 de junho de 2013

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Contar uma história não é uma tarefa tão fácil quanto parece. Entre

uma lembrança e outra, as memórias se entrelaçam e constituem o que há de mais íntimo no homem. E, aí, não bastam as fotos, não bas- tam os relatos. Uma cidade, enquanto memória e lembrança, se cons- trói de história, sim, mas, mais ainda, de história observada, tocada, sentida. Uma cidade se faz daquilo que ela apresenta, no dia a dia, por entre ruas e calçadas.

Em um prédio, a história política da cidade se apresenta. Em outro, toda a trajetória educacional pode ser contemplada. No meio de uma praça, o monumento explica as raízes de uma sociedade. Sim, os pré-

156 anos: um povo,

uma história

“A História é vital para

a formacao da cidadania

porque nos mostra que para

compreender o que está

acontecendo no presente é

preciso entender quais foram

os caminhos percorridos pela

sociedade.” (Boris Fausto)

dios de Passo Fundo são história. Assim como aqueles que a habitam.

“a preservação do patrimônio permite uma relação mais íntima dos estudantes, e dos habitantes da cidade, com parte de sua história”, comenta Eduardo.

Cabo Neves, aquele que primeiro escolheu este chão, talvez não ima- ginasse a sua longitude; talvez não sonhasse com cidade ou freguesia; talvez não vislumbrasse um futuro longe de guerra. Mas houve. Houve uma fuga daquilo que destruiu a cidade e dizimou sua população para encontrar abrigo naquilo que a constrói e reconstrói a cada dia.

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FOTO: FABIANA BELTRAMI/NExJOR FAC-UPF

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