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Sentido sem referência no contexto do projeto logicista de Frege

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Sentido sem referência

no contexto do projeto logicista de Frege

Resumo

No artigo médio “Über Sinn und Bedeutung” (1892), Frege ofe-rece uma nova proposta de resolução do problema da diferença de valor cognitivo entre sentenças das respectivas formas “a=a” e “a=b”, que repousa sobre a introdução, por parte do mesmo, de uma nova dimensão semântica, distinta dos meros sinais linguís-ticos e daquilo pelo que eles estão. Essa introdução se manifesta na assunção fregeana de que a atribuição de um nome próprio a um objeto é mediada por uma descrição associada ao mesmo ou de que nomes próprios ordinários são termos singulares de referência indireta. Ademais, no mesmo artigo, Frege amplia a sua clivagem do conteúdo semântico de nomes próprios também para expressões insaturadas e sentenças. Nesse mesmo artigo, Frege estipula que um sentido não assegura uma referência e que, portanto, um nome próprio, embora tenha um sentido associado a ele, pode não referir. Ademais, ao admitir que o sentido e a referência de uma sentença são formados composicionalmente, tão cedo algum constituinte do sentido da sentença não refira, a mesma não possui valor-de--verdade. Em “On Denoting” (1905), Russell critica os resultados da abordagem do artigo supracitado, acusando-o de violar o Princípio do Terceiro Excluído, ao admitir que hajam sentenças, bem-for-madas, com sentido, porém, sem valor-de-verdade. Por exemplo, se, em uma sentença singular, o nome próprio que seria o sujeito da mesma, não refere. Russell sugere, como alternativa, sua Teo-ria das Descrições. Na presente comunicação, tentaremos mostrar que, malgrado o artigo de 1892 deixar Frege sujeito às críticas de Russell, as definições do operador “\” (§11), de pensamento (como a expressão das condições nas quais uma sentença denota o Verda-deiro, §32) e uma observação acerca da noção de função (§8) nas “Grundgesetze der Arithmetik” (1893), texto que encarnaria tecni-camente o projeto logicista de Frege, ao barrarem tanto formação de nomes próprios sem que a descrição associada a eles seja satis-feita com unicidade quanto a formação de sentidos distintos para sentenças com as mesmas condições de verdade, preservam o Prin-cípio do Terceiro Excluído assim como escapam à introdução de quaisquer elementos psicológicos ou mentalistas em sua semântica.

1. Introdução: Begriffsschrift e a noção de conteúdo conceitual

O projeto logicista de Frege de fundamentação da aritmética a partir de leis puramente lógicas dependia, em vários aspectos, da apresen-tação de uma linguagem formal (Formelsprache) que exibisse, de forma rigorosa e precisa, a pura forma do pensamento1 enquanto

1 Aqui tomaremos como sinônimos, no contexto da filosofia de Frege os termos

“pensa-mento” e “proposição”.

Elliot Santovich Scaramal

Mestrando pela UFG

Palavras-chave

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uma atividade semântica e não psicológica2. Dado este instrumento, poderíamos, então, através de um método de prova (ou, leibni-zianamente, um calculus ratiocinator), atestar se a verdade de um dado pensamento poderia ser inferida a partir de sua mera forma3, independentemente do seu conteúdo particular ou do significado de seus constituintes, ou seja, analiticamente conforme a terminologia introduzida em Die Grundlagen der Arithmetik4

(1884).

Com isso, Frege é levado a passar, de maneira articulada ao seu projeto geral, por um processo de explicitação da forma lógica ou da estrutura interna disso que ele então chamava conteúdo judi-cável (urteilbarer Inhalt), o que deveria ser levado a cabo por um processo posteriormente chamado de análise5. Esse projeto de ex-plicitação da forma do pensamento mediante a sua tradução para uma linguagem formal, com o qual Frege havia se comprometido, envolveria tanto um aspecto exclusivo quanto um aspecto rigo-rosamente inclusivo: Por um lado, essa notação deveria excluir de seu escopo tudo o que em sentenças da linguagem ordinária dissesse respeito à mera interação entre interlocutores6. Por outro, ela não deveria deixar nenhum elemento relevante ao seu escopo subentendido ou implícito.

Dada a introdução destas duas condições pelas quais pode-se le-var a cabo a expressão do conteúdo de sentenças da linguagem ordinária sob a notação da Begriffsschrift, de pronto, pode-se con-cluir que, primeiramente, seriam eliminados todos os elementos contextuais dessas sentenças, próprios da interação entre falante e ouvinte. Esse é o caso, por exemplo, das expressões indexicais, cujo estatuto semântico seria melhor tratado apenas na investiga-ção rudimentar acerca de indexicais puros (como “Eu” e expressões temporais tensed, que compõem sentenças ordinárias que expres-sam implicitamente as determinações temporais [Zeitbestimmun-gen] da proposição correspondente) no ensaio tardio de Frege: Der Gedanke (1918). Expressões essas que, segundo os argumentos de John Perry (1997), introduziriam sérios problemas na semântica de Frege, em especial, acerca da distinção entre sentido e referência aplicada a sentenças, em que Frege não poderia manter simultane-amente que “modo de apresentação” (Art des Gegebenseins) seja o definiens exclusivo de “sentido” (como veremos adiante) e que o

2 “O que nos faz tão inclinados a aceitar tais visões errôneas é que definimos a tarefa da

lógica como a investigação acerca das leis do pensamento, ao passo que entendemos por essa expressão algo no mesmo nível que as leis da natureza”. (FREGE, Logik, 1979, p. 18, tradução nossa)

3 Prefácio, Begriffsschrift.

4 “Se, em trilhando esse caminho [de encontrar a prova da proposição e segui-la de

vol-ta às verdades primitivas (Urwahrheiten)], nele forem pressupostos apenas as leis lógicas (die logische Gesetze) e definições, então tem-se uma verdade analítica.” (FREGE, Gl., §3, tradução nossa).

5 A estratégia fregiana para efetivar o que é chamado processo de análise (uma

decom-posição) do pensamento, provém da matemática e, mais precisamente, da álgebra: a noção de função. Frege em Função e Conceito (1891) parecia ver seu processo de análise como uma continuação radical de um curso de ampliação da noção de função. Curso pelo qual não apenas o domínio de substituição das variáveis aumentaria (“império romano”, “hidrogênio” e “César” e nomes em geral passariam a ser expressões que satu-rariam funções), como aquilo que designamos por função também (como funções ordiná-rias nominais tais quais “a capital de x” e até predicados como “x é mais leve que CO2” e

“x conquistou a Gália”).

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sentido de uma sentença sejam suas condições de verdade (o que também será posteriormente elucidado nessa comunicação)7. Em segundo lugar, a expressão do conteúdo de sentenças ordinárias na Begriffsschrift leva em consideração tudo e estritamente aquilo com o que o falante que enuncia um token da sentença, ao enunciá--lo, se compromete. Ou seja, todo e apenas o conteúdo apofântico que o falante pressupõe8 e que pode ser traçado como uma conse-quência possível semântica daquilo com o que ele se comprome-te, a esse conteúdo restrito, Frege denomina conteúdo conceitual (begrifflicher Inhalt). Como nota Kremer (2010), essa restrição se dá em um contexto de prova da validade de proposições porque o conteúdo conceitual explicita “somente aquilo que é relevante para a inferência”9, i.e., somente aquilo que é necessário para inferirmos ou tomarmos como verdadeira a proposição em questão.

Dessa maneira, Frege parece ter sucesso em construir uma semân-tica, ao menos no que toca à proposições tomadas como um todo independentemente da análise de seus constituintes internos com-pletamente anti-mentalista, ou seja, que não faz apelo a qualquer elemento mental para a interpretação de seus sinais e sequer pres-supõe a existência de qualquer sujeito ou estrutura mental, aspecto que acompanha a recusa enérgica de Frege ao psicologismo. O sentido de uma proposição, ao menos no que toca ao que pode ser expresso na linguagem formal da Begriffsschrift é constituído ex-clusivamente pela explicitação de suas pressuposições, as quais são tudo aquilo que pode ser traçado como uma consequência possível semântica do comprometimento com a verdade da sentença corres-pondente à proposição em questão.

2. O artigo médio de 1892: uma nova dimensão semântica e a irrestrição do Princípio de Composicionalidade

2.1. Nomes próprios ordinários ou termos singulares

No entanto, Frege, após a publicação da Begriffsschrift, ainda exer-gava um problema em sua semântica, no que concerne, em espe-cial, à suposta incapacidade de excluir uma certa arbitrariedade em que culminaria a interpretação de sentenças de identidade da forma “a=b” como regras metalinguisticamente estabelecidas que prescre-vem a intersubstitutividade entre os sinais relata, de modo que essa interpretação fosse vista por Frege como insatisfatória para expli-car as diferenças de valor cognitivo entre sentenças das respectivas formas “a=a” e “a=b”. No artigo médio Über Sinn und Bedeutung (1892), Frege oferece uma elegante e razoável resolução desse pro-blema, que repousa sobre a introdução, por parte de Frege, de uma nova dimensão semântica, distinta dos meros objetos concretos que usamos linguisticamente, os sinais gráficos ou sonoros, e os objetos pelos quais eles estão. Essa introdução se manifesta na assunção

7 Perry, 1997, p. 488: “Para manter a identificação entre pensamento e sentido intacta,

Frege deve nos prover de um sentido completante [completing sense], mas então sua interpretação acerca de demonstrativos se torna implausível”.

8 FREGE, 1967, p. 5: “Seu primeiro propósito [da Begriffsscrhift], portanto, é o de [...]

apontar toda pressuposição que tente se infiltrar sem ser notada”.

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fregeana de que a atribuição de um nome próprio a um objeto é intermediada por uma descrição geral associada ao mesmo ou, o que o mesmo, de que nomes próprios ordinários são termos singu-lares ou designadores de referência indireta, posição notoriamente denominada de Descritivismo.

Esse movimento, tomado por Frege para resolver o que já foi desig-nado pelos nomes de “paradoxos da identidade” por Burge (1977) e Mendelsohn (2005) ou “Frege’s Puzzle” por Salmon (1986), foi cha-mado por Michael Beaney (1996) de splitting of content, uma gem ou bipartição do conteúdo semântico. No entanto, nessa cliva-gem, há uma manifesta prioridade lógica de um dos dois elementos constituintes do conteúdo semântico de uma expressão linguística (até então nomes próprios ordinários ou termos singulares): os nomes próprios lidam primeiramente com descrições conceituais e, portanto, com predicados, expressões insaturadas (expressões funcionais) de primeira-ordem cuja imagem são algum valor-de--verdade ( o que Frege chama seu sentido, Sinn), e só então, uma vez que essa descrição satisfaz uma determinada propriedade de segunda ordem (a saber, satisfação com unicidade), o nome próprio em questão está pelo objeto que satisfaz tal descrição (o que Frege chama sua referência, Bedeutung).

2.2. Sentenças

Entretanto, no artigo de 1892, Frege se compromete com a expan-são da sua clivagem do conteúdo semântico de sinais para outras expressões da linguagem, a saber, tanto expressões insaturadas, ex-pressões funcionais ordinárias e predicados (das quais não nos ocu-paremos aqui) quanto outras expressões saturadas, i.e. sentenças. Frege admite de antemão que uma sentença lida com um conteúdo semântico que é chamado o pensamento (Gedanke), mas à respeito desse resta ainda saber a qual dos dois níveis semânticos resultan-tes da clivagem o mesmo pertence. Para responder essa questão, Frege parece lançar mão de dois argumentos para defender uma de suas teses mais exóticas e impalatáveis, a saber: a tese de que ao passo que o pensamento é o sentido expresso por uma sentença, sua referência é seu valor-de-verdade e que sentenças são nomes que estão por objetos, seus valores-de-verdade.

Para decidir a questão levantada, Frege leva a cabo seu primei-ro argumento através das seguintes premissas, a saber, de que (i) conforme dita sua análise funcional da linguagem, uma sentença é uma expressão composta pela articução entre um sujeito e um predicado lógico e (ii) o que Mendelsohn chama o Princípio de Composicionalidade aplicado paralelamente ao sentido e à referên-cia de um sinal, ou seja, que ambos os níveis semânticos operam composicionalmente10. Uma sentença, portanto, só tem o seu senti-do determinasenti-do pelos sentisenti-dos senti-dos seus constituintes intra-propo-sicionais, assim como a existência de sua referência demanda que os mesmos constituintes também tenham referência11. Frege então acrescenta que aparentemente aquilo que uma sentença tem se e

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somente se todos os seus consituintes intra-proposicionais têm referência é o seu valor-de-verdade.

O segundo argumento de Frege apela para uma premissa inspira-da em Leibniz (embora a mesma pareça se aplicar de forma mais razoável apenas para sinais intra-sentenciais) segundo a qual, em sua formulação mais geral, dois sinais se referem ao mesmo se po-demos substitui-los salva veritate. Frege adiante parece argumentar que não só se pudermos substituir um determinado nome próprio por um outro em qualquer sentença mantendo o valor-de-verdade da mesma, eles são correferenciais ou se pudermos subtituir um predicado por outro em qualquer sentença mantendo o valor-de--verdade da mesma eles são coextensivos, mas também se substi-tuirmos uma sentença inteira por outra (inobstante eventuais sen-tidos distintos) mantendo o seu valor-de-verdade, ambas também são correferenciais, uma vez que aquilo que inobstante tais substi-tuições se mantém para que o valor-de-verdade seja mantido é o próprio valor-de-verdade da sentença1213.

2.3. Sentido sem referência

No artigo de 1892, logo após introduzir sua nova dimensão semân-tica para nomes próprios como medida para solucionar o problema da diferença de valor cognitivo entre sentenças de identidade das formas “a=a” e “a=b” a qual chamou “sentido” e que definiu cano-nicamente como o modo apresentação (Art des Gegebenseins), Fre-ge afirma que a associação de um sentido a um sinal, embora uma condição necessária não é uma condição suficiente para assegurar uma referência para o mesmo sinal. Assim, Frege daria espaço para o que foi popularizado na literatura secundária como “nomes va-zios”. Tal afirmação parece introduzir uma incoerência com a defi-nição canônica de sentido, como nota Makin (2010):Uma vez que “apresentar” é uma relação parece um contrassenso afirmar que possa haver um modo de apresentação sem que nada seja apresen-tado. Como Makin mesmo apresenta o problema:

Uma vez que não há referente dificilmente poderia haver uma maneira pela qual o referente é apresentado, um “modo de apresentação de um referente” não pode ser considerada a no-ção definidora de sentido em geral – há sentidos para os quais essa caracterização não se aplica (Frege’s Distinction Between

Sense and Reference, 2010, p. 152, tradução nossa).

A admissão de nomes próprios com sentido e sem referência por parte de Frege é o fio condutor para os problemas posteriormente apresentados por Russell em seu On Denoting 1905. Dado o Prin-cípio do Composicionalidade aplicado a referências que estipularia que uma expressão complexa bem-formada tem referência se e

12 BEANEY, 1996, p. 158.

13 Uma outra via de argumentação, embora não presente no artigo de 1892 é essa

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somente se seus constituintes também tem, tão cedo algum cons-tituinte do sentido da sentença não refira, a mesma também não possui referência e, portanto, não possui qualquer valor de verdade. Esse é o tratamento dado a sentenças ficcionais no artigo se por essas entendemos principalmente sentenças singulares cujo nome próprio que figura como sujeito, embora tenha um sentido que assegure (juntamente como o sentido dos outros constituintes pro-posicionais) o sentido da sentença como um todo, não refira.

3. As críticas de Russell no On Denoting de 1905

Em 1905, já posteriormente à publicação dos dois volumes das Grundgesetze der Arithmetik de Frege, Russell apresenta críticas às semânticas de Meinong e Frege acerca de expressões denotativas ao passo que o mesmo advoca sua Teoria da Descrições segundo a qual expressões denotativas são sentenças quantificadas. Rus-sell, em uma de suas críticas, acusa Frege de violar o Princípio do Terceiro Excluído, ao admitir que hajam sentenças, bem-formadas e com sentido, porém, sem valor de verdade. Por exemplo, se, em uma sentença singular, o nome próprio que seria o sujeito da mes-ma, não refere. Na semântica alternativa de Russell, o que corres-ponderia a um termo singular de referência indireta seria uma sen-tença que afirma a satisfação e a unicidade de satisfação de uma descrição geral, de modo que, caso a mesma não seja satisfeita, a sentença, como um todo, é simplesmente falsa.

Muito se discutiu já na literatura secundária acerca de o quanto as críticas de Russell no On Denoting de fato afetam a semântica de Frege. Geach (1959), por exemplo, defendeu que essas críticas eram em muito irrelevantes e inócuas à semânticas de Frege. Tentaremos defender adiante que as críticas de Russell, embora incisivas esta-vam por muito atrasadas quando feitas: seguindo parte da leitura de Blackburn & Code (1978) e Manser (1985), assumimos que elas re-velam, sim, sérios problemas acerca do tratamento dado à distinção entre sentido e referência no artigo de 1892. No entanto, defende-mos que o tratamento da mesma distinção no primeiro volume das Grundgesetze der Arithmetik, publicado em 1893, é completamente imune a essas mesmas críticas e pode inclusive ser considerado um precursor mais refinado da Teoria das Descrições de Russell, princi-palmente se considerarmos como essa é aplicada no primeiro volu-me dos Principia Mathematica14

de Russell e Whitehead.

4. As Grundgesetze der Arithmetik de 1893

„ Die Grundgesetze der Arithmetik“ consiste no texto que encarna de um ponto de vista técnico e detalhado o projeto de fundamen-tação da aritmética que Frege se comprometeu a levar a cabo, a saber, demonstrar como sem quaisquer lacunas inferenciais e sem

14 O sinal “\” é usado por Frege em §11 nas suas Grundgesetze der Arithmetik como

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quaisquer pressuposições não explicitas que as proposições da arit-mética são formal e perfeitamente deriváveis apenas de leis primi-tivas da lógica e definições. Não foi senão com uma boa justifica-tiva que, à despeito do paradoxo que gerava, formulado um tanto quanto sofridamente por Russell em 1902, o texto foi chamado por Dummett em Frege’s Philosophy of Mathematics (1991) a magnum opus15

de Frege. Nos comprometeremos a mostrar mediante duas vias como a semântica das Grundgesetze é imune ao problema posteriormente levantado por Russell acima mencionado, a saber, a violação do Princípio do Terceiro Excluído que provém da admis-são de termos singulares (com sentido) e sem referência, ao seguir em parte o tratamento dado às descrições definidas nas Grundlagen e no artigo médio “Über Begriff und Gegenstand”, também de 1892.

4.1. Condições de uso do operador “\”

A introdução da legitmidade linguística de nomes próprios ordiná-rios sem referência repousa sobre a admissão de que a condição de associação de um sentido a um nome (simples) “a” é suficientemen-te satisfeita por “ޯx Px <-> x=a” ou, no caso de descrições defi-nidas (ou nomes complexos), de que a conversão de uma descrição geral “P” em uma descrição definida “o P”, um termo singular de referência indireta, é suficientemente satisfeita pelo uso singular vinculado à descrição ou da pretensão de singularidade por parte do falante, independentemente da verdade da proposição “፲x(PxᏉ ޯx(Py ->(x=y)))”, ou seja, da instanciação do conceito e da sua cláusula de singularização. Essa admissão vai contra a corrente dos requerimentos que Frege estipulava para o uso do artigo definido conectado a um conceito para formar uma expressão saturada que está por um objeto, uma vez que um conceito ordinariamente de-veria ser antecedido de um artigo indefinido. Como podemos ver nestas duas passagens:

Inteiramente diferente disso é a definição de um objeto a partir de um conceito, sob o qual o mesmo cai. A expressão “a maior fração própria”, por exemplo, não tem conteúdo, uma vez que o artigo definido requer [erhebt] que se refira [hinzuweisen] a um objeto determinado. [...] No entanto, quando se quer me-diante esse conceito um objeto determinado, que cai sob ele, é antes necessário mostrar duas coisas: 1. Que um objeto caia sob esse conceito. 2. Que apenas um único objeto caia sob ele. Agora uma vez que já a primeira dessas sentenças é falsa, en-tão a expressão “a maior fração própria” é sem sentido

[sinn-los]. (Grundlagen der Arithmetik, §74, nota, tradução nossa). ‘O número 4 não é nada outro que o resultado da adição de 3 e 1’ o artigo definido antes de ‘resultado’ só é aqui logicamente justificado, caso seja admitido: 1. Que haja um tal resultado. 2. Que não haja mais do que um. Só então essa conexão de palavras [Worterverbindung] designa um objeto e deve ser tomada [aufzufassen] como um nome próprio. (Über Begriff

und Gegenstand, p. 204, tradução nossa).

Similarmente, Frege, na notação das Grundgesetze, mais precisa-mente em §11, introduz o seu correspondente formal para o artigo definido. Esse operador, embora não propriamente definido, têm suas condições de uso perfeitamente estipuladas. A barra diagonal

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(“\”) se aplica à variável de uma função conceitual P(x) para con-verter a expressão insaturada em questão em um termo singular de referência indireta “\x. Px”, mas esta só é uma expressão bem--formada segundo as regras de formação da linguagem em ques-tão uma vez satisfeita a condição de que o curso-de–valores ou a extensão do conceito ser unitária, ou seja, que só haja um ele-mento pertencente à mesma.Portanto, um sinal só seria um termo singular legítimo se sua aribuição de denotação for intermediada por uma descrição conceitual que é satisfeita com unicidade ou, traduzindo para o vocabulário introduzido em “Uber Sinn und Be-deutung”, um sinal só é um nome próprio se ele tiver o sentido de um nome próprio e, tendo esse sentido, ele há de ter referência.

4.2. Definição de “Função” e a Teoria da Definição de Conceitos no Volume II das Grundgesetze

Em §8, Frege esclarece uma nova nota característica para o que ele chama “função”. Não mais apenas expressões que envolvem pelo menos uma expressão que simplesmente indique indefinidamente (unbestimmt andeutet) argumentos16, viz., uma variável, a qual ex-plicita que a função é incompleta (unvollständig), insaturada (un-gesättigt) ou uma expressão que demanda complementação (ergän-zungsbedürftig) para que constitua alguma expressão bem-formada. Para que se atribuia a alguma expressão o estatuto de uma função requere-se imprescindivelmente também que a mesma tenha uma imagem ou um valor determinado para qualquer argumento (sendo esse argumento um nome que denote um objeto).

A partir de uma particularização dessa exposição geral do conceito de função, segue-se a doutrina da definição conceitual em §56-67 do segundo volume das Grundgesetze, uma vez que conceitos não são senão funções cujas imagens são valores-de-verdades, doutri-na segundo a qual “não deve haver nenhum objeto em relação ao qual a definição deixa em dúvida se o mesmo cai sob o conceito”17. Dessa maneira, dado um conceito monádico ou poliádico, um valor-de-verdade deve estar determinado para qualquer objeto que saturar sua ou suas variáveis. Portanto, uma vez que não temos, conforme foi acima mostrado termos singulares em referência e todo termo geral se saturado com qualquer termo singular forma uma proposição com um valor-de-verdade determinado, não pare-cem haver meios de violação do Princípio do Terceiro Excluído.

4.3. Definição de “Pensamento”

Ademais, para mostrar que a semântica da linguagem das Grund-gesetze de Frege, além de inteiramente imune às críticas de Rus-sell é também inteiramente destituída de elementos psicológicos e mentalistas sugerimos a maneira como é definida a noção de pensamento. Como vimos anteriormente, no artigo “Über Sinn und Bedeutung”, Frege outorgou ao pensamento o estatuto de sentido expresso por uma sentença completa ou modo de apresentação ao nome do seu valor-de-verdade. Todavia, em §32, Frege

comple-16 FREGE, Funktion und Begriff, pp. 5-6.

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menta a essa definição de pensamento, ao declarar que o mesmo não é senão as condições pelas quais a sentença em questão denota o verdadeiro.

“O sentido desse nome – o pensamento – é o pensamento de que essas condições são satisfeitas”. Dessa maneira, o sentido de uma sentença não passa senão a ser uma descrição completa das si-tuações que caso sejam o caso tornam a mesma verdadeira ou fazem com que a mesma denote o Verdadeiro. É custoso não notar como essa definição de pensamento retoma a noção de conteúdo conceitual. Se a abordagem do sentido de uma sentença no artigo de 1892 oferecia um apelo ao entendimento de um sujeito, como interpreta Dummett, o qual oferece resistência em levar a sério a noção de conteúdo conceitual na Begriffsschrift sugerindo uma estranheza em “creditá-lo com uma teoria rival”18, a abordagem oferecida nas Grundgesetze parece completamente destituída das mesmas pressuposições.

5. Conclusão: O que resta do artigo de 1892?

À parte da incoerência entre a definição canônica de sentido e a tese de que é possível haver expressões com sentido e sem refe-rência, a abordagem do artigo de 1892 parece introduzir um novo interessante insight no estatuto da linguagem. A admissão da pos-sibilidade de expressões com sentido e sem referência faz patente que o estatuto singular atribuído a um termo depende inteiramente dos falantes e não de como está o mundo que torna verdadeira ou falsa certas condições de satisfação de um determinado conceito: uma termo é singular simplesmente se ele desempenhar o papel de um nome próprio (steht für einen Eigenname19

) ou se o usar-mos como se ele fosse singular (em algumas línguas naturais, por exemplo, se conectarmos a uma descrição P um artigo definido) independentemente de a descrição associada a ele ser satisfeita com unicidade ou mesmos de sabermos disso. Embora interessante, con-forme defendemos, esse insight teve de ser abandonado em prol do projeto logicista de Frege de fundamentação da aritmética, o qual, em uma estratégia radical de erradicação do psicologismo, lançou mão da tese da auto-suficiência da linguagem.

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Anais do seminário dos estudantes de pós-graduação em filosofia da UFSCar 2014 10a edição ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 Bibliografia

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