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Resumo: analisamos algumas imagens simbólicas no livro de Êxodo buscando descrever a relevância dos símbolos para a vida do homem e a crise da iconodulia

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Virgínia Macêdo de Souza Silva**

Eunice Simões Lins Gomes***

Resumo: analisamos algumas imagens simbólicas no livro de Êxodo buscando descrever a relevância dos símbolos para a vida do homem e a crise da iconodulia. A pesquisa é descritiva e qualitativa. Como resultado parcial, temos a importância do símbolo como mediador entre o homem e sua realidade.

Palavras-chave: Êxodo. Simbolismo. Imaginário. Iconodulia. Iconoclastia.

Neste artigo procuraremos analisar, a partir da teoria geral do imaginário de Gilbert Durand, as imagens simbólicas que compõem a narrativa do livro de Êxodo, livro do Antigo Testamento das escrituras judaico-cristãs, especificamente os capítulos que tratam da saída dos israelitas do Egito até a passagem pelo Mar Vermelho.O nosso objetivo consiste em descrever qual a relevância do símbolo para o homem, e o que pode causar, em uma cultura, a prática da iconoclastia.

Não temos, contudo, a pretensão de esgotar todos os significados das imagens, nem de analisar todas as causas da iconoclastia, e sim levantar os sentidos de acordo com a teoria estudada, como também descrever as principais causas que tenta- ram “anestesiar” a imaginação e desestabilizar o uso dos símbolos. Esperamos, portanto, que nosso estudo proporcione uma reflexão sobre quais práxis estamos O IMAGINÁRIO DOS SÍMBOLOS

EM ÊXODO E A CRISE DA ICONODULIA*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 25.11.2011.

Aprovado em: 04.01.2012.

** Docente dos ensinos fundamental e médio da Rede Pública Estadual. Graduada em Letras pela UFPB. Pesquisadora do grupo GEPAI. E-mail: vimasilva2008@gmail.com

*** Docente na graduação e pós-graduação em Ciências das Religiões PPGCR-UFPB. Líder do grupo de estudo e pesquisa em antropologia do imaginário-GEPAI. http://gepai.yolasite.com/emaileuni- ceslgomes@gmail.com

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desenvolvendo em busca de um sentido para a nossa vida, sobre a necessidade que a imaginação impõe, uma vez que

a imaginação é uma função da mente. Só através da imaginação o homem pode dar sentido ao mundo. Para tanto ele procura agir procurando criar significado. Para que a criação ocorra, é preciso imaginar (PITTA, 2005).

“É preciso imaginar” para que o racionalismo imposto pela ciência e o funcionalismo trazido pelo avanço tecnológico não continuempromovendo a insensibilidade nas relações “de criatura para criatura”, como aconteceu na chamada Idade Moderna (entre os séculos XV e XVIII), conforme Vicentino (2000, p. 172):

Em muitos aspectos, o mundo moderno constituiu uma negação do mundo medieval [...].

Foi um período de consolidação dos ideais de progresso e de desenvolvimento, que reforçou o pensamento racionalista e individualista, valores burgueses que iriam demolir o universo ideológico católico-feudal (VICENTINO, 2000).

Assim, essa mudança ideológica levou o homem a sobrepor a razão à fé: o logocentris- mo ao teocentrismo. O desejo de ascender ao céu ao desejo de ser feliz aqui e agora; o anseio de realizações materiais e não espirituais. ParaDurand (1995):

A razão e a ciência apenas unem os homens às coisas, mas o que une os homens entre si, no nível das felicidades e penas cotidianas da espécie humana, é essa representação afetiva porque vivida, que constitui o império da imagem.

O desprezo pelo símbolo teve como uma das consequências a crise da imaginação, que foi suplantada pelo racionalismo positivista: cogito, ergo sum (Penso, logo existo), dizia Descartes. Para ele o corpo era o objeto de estudo da ciência e a mente era o objeto da reflexão filosófica.

A vontade de conhecer toda a realidade pela explicação da ciência deixou a mente do homem moderno vazia da presença do Sagrado; eleeliminou o mito ou mini- mizou o seu papel.

Contudo, segundo Pitta (2005), no século XX, com os estudos sistemáticos do imaginá- rio, no Ocidente, quando, em 1950, Bachelard fundou a Société de symbolisme em Genebra com uma proposta de interdisciplinaridade, e, em 1967, Durand, discípulo de Bachelard, fundou o Center de Recherchessurl’imaginaire, em Chambéry, na França, os estudos do imaginário se multiplicaram e, aos poucos, vem promovendo um avanço com relação à busca de respostas de qual seja o sentido da vida por meio das imagens, do símbolo.

Bachelard demonstrou com sua obra que a organização do mundo – ou seja, as relações existentes entre os homens, entre os homens e a terra, entre os homens e o universo – não é o resultado de uma série de raciocínios, mas a elaboração de uma função da mente (psí-

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quica) que leva em conta afetos e emoções. Nessa perspectiva, ele coloca algumas ideias básicas: que o símbolo permite estabelecer o acordo entre o eu e o mundo; que os quatro elementos (terra, água, ar e fogo) são os “hormônios da imaginação (PITTA, 2005, p. 16).

Assim, o Imaginário dos Símbolos em Êxodo e a Crise da Iconodulia pretendem descrever um caminho que chegue à compreensão de uma das causas da crise das represen- tações religiosas. Para tanto, percorreremosa metodologia da pesquisa descritiva, bibliográfica com abordagem qualitativa, e com base na hermenêutica proposta por Gilbert Durand, buscando o acervo reunido nas obras, pois, de acordo com Gil (1999), a pesquisa bibliográfica diz respeito ao conjunto de conhecimentos humanos reunidos nas obras. Tem como base fundamental conduzir o leitor a determinado assunto e à produção, coleção, armazenamento, reprodução, utilização e comu- nicação das informações coletadas para o desempenho da pesquisa. A pesquisa realizou-se a partir de material já publicado, constituído principalmente de livros.

Para tanto, iniciaremos contextualizando o livro de Êxodo e, na medida em que formos descrevendo os fatos narrados, iremos identificando, a partir da teoria do ima- ginário, as imagens que remetem aos símbolos estudados no regime diurno e no noturno das imagens e, ao mesmo tempo, teceremos algumas considerações sobre a importância do uso dos símbolos e as dificuldades trazidas pela icono- clastia à vida do homem.

A importância deste artigo vincula-se à possibilidade de despertar o estudo do imagi- nário que é:

um sistema organizador de imagens, cujo papel fundador é o de mediar a relação do ho- mem com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Essa função fantástica do imaginário acompanha os empreendimentos mais concretos da sociedade, modulando até a ação social e a obra estética. A mitologia é primeira em relação a qualquer metafisica, mas também ao pensamento objetivo (GOMES, 2010, p. 10).

Passemos, portanto, ao estudo do livro selecionado:

CONTEXTUALIZAÇÃO

Os tradutores gregos deram o nome Êxodo ao livro, que significa “saída”. O livro abrange um período de cento e quarenta e cinco anos, e pode ser dividido em três partes principais: a libertação de Israel do Egito; a jornada até o Sinai e a manifestação da vontade de Deus para com seu povo, principalmente na legislação do Sinai.

O livro foi escrito por Moisés e faz parte do Antigo Testamento das escrituras judaico-cristãs.

Com quarenta capítulos, dos quais trabalharemos apenas quatro, os quais retratam certa iconodulia – aqui vista não como um “culto prestado à imagem” literalmente,

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mas como certa abertura ao símbolo presente na vida dos israelitas, cujo objetivo era a evocação da presença de Deus. Iniciaremos a partir do décimo segundo capítulo do livro, cujos fatos nos introduzirão à análise propriamente dita. O fato marcante foi à instituição da primeira páscoa por Deus. Os israelitas seriam libertados do jugo de quatrocentos e trinta anos dos egípcios sobre eles. Moisés, enviado por Deus para libertar os israelitas dessa escravidão, tentou por várias vezes persuadir Faraó a deixar que o povo saísse livremente, mas Faraó não permitiu e por isso o povo fugiu daquela nação.

Antes, porém, Deus instruiu como deveria ser a fuga: após a sua páscoa – Pessach (do hebraicoפסח, ou seja, passagem), também conhecida como Páscoa judaica, é o nome do sacríficio executado em catorze do mês de abibe (mais tarde chamado Nissan) segundo o calendário judaico e que precede a festa dos pães asmos (Chag haMatzot). No calendário gregoriano, o mês de abibe corresponde amarço-abril.

Geralmente o nome Pessach é associado a esta festa também, que celebra e recorda a libertação do povo de Israel do Egito, conforme narrado no livro de Shemot (Êxodo).

Os elementos ditados por Deus para o alimento pascoal foram: um cordeiro ou cabrito sem mácula, macho de um ano, que deveria ser sacrificado à tarde; o seu san- gue deveria ser passado nas umbreiras, e na verga da porta, nas casas em que o comessem. A carne deveria ser comida à noite, assada no fogo, com pães asmos (sem fermento) e com ervas amargosas. O animal deveria ser comido totalmente assado no fogo e se houvesse sobra deveria ser queimada. Para participar desta ceia, os israelitas deveriam estar com os lombos cingidos, os sapatos nos pés, e o cajado na mão, e deveriam comer apressadamente: assim foi a páscoa do Senhor, conforme lemos em Êxodo (cap. 12, vs. 11). Procederemos, portanto, à análise simbólica do livro selecionado:

O Imaginário dos Símbolos em Êxodo

Antes de iniciarmos a análise simbólica, é importante conceituar imaginário e símbolo:

o imaginário, segundo Durand (apud PITA, 1995, p. 2), “é um conjunto de imagens e de relação de imagens que está no pensamento do homo-‘sapiens’

sendo o grande denominador que arruma os procedimentos do espírito huma- no”. E o símbolo,

na psicanálise junguiana graças à noção de arquétipo, [...] é concebido como uma síntese equilibradora através da qual a alma individual se une a psique da espécie e oferece solu- ções apaziguadoras aos problemas apresentados pela inteligência da espécie (DURAND, 1993, p. 102).

Esse equilíbrio produzido pelo símbolo corrobora a ideia exposta por Teixeira (2006, p. 218) quando diz que “o universo humano é simbólico e só é “humano” na

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medida em que o homem atribui sentido as coisas do mundo”. A linguagem simbólica vai encontrar na religião um campo fértil para se desenvolver. Uma vez que

a religião é um sistema de símbolos que age para instaurar atitudes e motivações fortes, onipresentes, duráveis, mediante a elaboração de conceitos relativos a uma ordem geral da existência, e que reveste tais conceitos de um sentido de positividade que faz com que tais atitudes e motivações apareçam como as únicas reais (GEERTZ, apud FILORAMO E PRANDI, 1999, p. 219).

Compreendendo a importância do símbolo para a religião, Geertz ainda afirma que

“a função do antropólogo é decodificar a linguagem religiosa, que por sua própria natureza utiliza o cognoscível para significar o incognoscível último”

(GEERTZ apud FILORAMO E PRANDI, 1999, p. 220). Os símbolos são uma das questões-chave da pesquisa antropológica no campo das religiões.

Os símbolos sagrados funcionam

para satisfazer o ethosde um povo – o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo e seu temperamento estético e moral – e sua visão de mundo – a imagem que têm de como as coisas são na sua fina atualidade, suas ideias mais compreensíveis de ordem [...] os símbolos religiosos formulam uma congruência básica entre um estilo de vida específico e uma metafísica específica, e, ao fazer isto, sustentam-se uns aos outros com a autoridade emprestada de cada um (GEERTZ apud USARSKI, 2007, p. 82).

“Afunilando” ainda mais a questão dos símbolos religiosos, trataremos dos símbolos na Bíblia que, segundo Girard (1997), podem ser reduzidos a quatro experiências absolutamente fundamentais. Primeiro a consciência de um transcendente que se manifesta; segundo a necessidade de incubação do útero; terceiro a consciência de ser atacado por forças obscuras; a necessidade de elevação e de autopercepção.

A consciência de um transcendente que se manifesta acontece no rito de passagem da páscoa. Deus orienta o povo a comer da páscoa (passagem) para se preparar para a saída do Egito, e ele se manifesta ainda por meio dos acontecimentos posteriores. Segundo Arnold van Gennep os ritos de passagem são todos aqueles em cujo centro está a mudança de um estado. Há os ritos de passagem tempo- ral, espacial e os que dizem respeito à passagem do ser humano para um novo estado (HOCK, 2010, p. 152).

Na saída do Egito, os israelitas mudaram de território – rito espacial – e foram para o deserto. Eles estavam deixando tudo para trás e de certa forma houve uma morte naquela passagem: a morte dos costumes absorvidos naquela cultura.

Mas aquela passagem iniciada com a páscoa não foi isenta de conflito, ela foi acompanhada por uma “dramatização ritual angustiante”, pois os israelitas deveriam comer apressadamente e após obedecer às instruções dadas por Deus, puderam ouvira angústia do choro de mães e pais. Uma vez que Deus começara

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a agir permitindo que o “anjo da morte” procedesse aquilo para o que ele fora ordenado: a morte dos primogênitos.

Gennep (apud HOCK, 2010, p. 153)afirma que os ritos de passagem consistem em três fases: separação – transformação – inserção.

Na fase da separação é realizada simbolicamente a morte da antiga existência, o desaparecimento do estado antigo; a transformação é acompanhada por uma dramatização ritual frequentemente caótica e angustiante; a inserção, finalmente, acontece no âmbito de práticas rituais que visam consolidar novamente a comunidade e fundá-la como um todo, de modo novo e diferente.

Esses ritos de passagens e suas respectivas fases embasam também a discussão que desejamos levantar neste artigo, ou seja, a importância da iconodulia, como contraponto à iconoclastia, uma vez que as práticas rituais que visam consolidar a comunidade são realizadas por meio deimagens e símbolos.

Abordando os regimes das imagens e as estruturas do imaginário, Durand (apud PITTA, 2005, p. 22) afirma que “cada imagem – seja ela mítica, literária ou visual – se forma em torno de uma orientação fundamental, que se compõe dos sentimentos e das emoções próprios de uma cultura, assim como de toda experiência indi- vidual e coletiva.” Ele afirma que as imagens se distinguem por seu significado fundamental, e as reagrupa em dois regimes: o diurno e o noturno, sendo este o que une os opostos, harmonizando-os; e aquele o que divide o universo em opostos (alto/baixo, bem/mal etc) e é caracterizado pela luz, que permite as distinções pelo debate.

A teoria de Durand favorece a compreensão do texto bíblico, cujo campo semântico é rico em imagens e símbolos. Por esta razão, é possível afirmar que o uso de símbo- los, que é a expressão do imaginário, é imprescindível ao ser humano, pois os símbolos desvelam o que está oculto e é indizível por palavras ou sentimentos.

Isto posto, acreditamos que os símbolos pascais remetem à mudança, à transformação.

Após a morte do cordeiro e a aspersão do seu sangue nas ombreiras e na verga da porta:“e tomarão do sangue e pô-lo-ão em ambas as ombreiras e na verga da porta, nas casas em que o comerem. E naquela noite comerão a carne assada no fogo, com pães asmos; com ervas amargosas a comerão” (Êxodo cap. 12, vs. 7 e 8), o “anjo da morte” entrou nas casas onde não havia o sangue e os primogênitos, filhos dos egípcios, foram mortos.

E aconteceu, à meia-noite, que o Senhor feriu todos os primogênitos na terra do Egito, desde o primogênito de Faraó, que se assentava no trono, até ao primogênito do cativo que estava no cárcere, e todos os primogênitos dos animais (Êxodo 12, 29).

No regime diurno, na teoria do imaginário, a noite,“em que se escondem todos os peri- gos”, simboliza a angústia. O perigo da morte foi concretizado nessas imagens, que mostram a morte de pessoas e de animais.

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As imagens do alimento pascoal (cordeiro assado, ervas amargosas, pães asmos), que foi transformado no estômago, que, segundo a estrutura mística do imaginário, é um centro de espiritualidade íntima; a “transubstanciação” da matéria consistiu em energia durante a fuga. Pois o povo estava diante da “angústia existencial e da morte”, e precisava do alimento para conseguir escapar (DURAND apud PITTA, 2005, p. 29, 33).

Há uma hipótese de que “existe uma estreita concomitância entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representações simbólicas”. De fato, Durand estabelece um paralelo entre os gestos correspondentes aos reflexos dominantes básicos do ser humano e as representações simbólicas. Assim é que [...] ao reflexo de deglutição, equivale às imagens de interiorização, descida, harmonização, contemplação, diz Pitta (2005).

A transformação pela interiorização do alimento encoraja os israelitas a peregrinarem no deserto. Mas eles não estavam sozinhos, eles tinham o cuidado do seu Deus:

durante o dia colocava uma nuvem para evitar o sol causticante do deserto;

esta mesma nuvem foi posta atrás dos israelitas para separá-los do exército de Faraó: “e o Anjo de Deus [...] se retirou e ia atrás deles; também a coluna de nuvem se retirou de diante deles e se pôs atrás deles [...] de maneira que [...]

não chegou um ao outro” (Êxodo, cap 14, vs. 19 e 20).

Os símbolos diairéticos do regime diurno são caracterizados por uma lógica da antítese, na qual prevalecem as intenções de distinção e análise. Nas imagens que lemos, a nuvem separava e era “escuridade para aqueles (o exército de Faraó) e para estes (os israelitas) esclarecia a noite” (Êxodo, 14, 20). “Trata-se da separação cortante entre o bem e o mal, a transcendência está sempre armada”, diz Durand (apud PITTA, 2005, p. 28).

Os israelitas contavam também, à noite, com uma coluna de fogo para iluminar o caminho e aquecer as noites frias do deserto. Aquecidos pelo fogo, os israelitas adquiriam um ânimo novo para prosseguir a sua jornada rumo à libertação. “E o Senhor ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem, para guiá-los pelo caminho, e de noite numa coluna de fogo, para alumiá-los [...]” (Êxodo 13, 21). Na epistemologia bachelardiana, o fogo que “aquece e reconforta [...] sugere o desejo de mudar, de apressar o tempo [...]. O fogo é uma renovação” (BACHELARD, 1994, p. 25).

Nessas imagens, percebemos a importância da simbologia da nuvem e da coluna de fogo, parece-nos que o Deus do Antigo Testamento aceitava o símbolo como mediador entre o homem e o transcendente. Confortados e renovados seguem o seu destino. Contudo, atrás deles ainda estava o exército de Faraó furioso e que desejava matar o povo que deixara um rastro de morte causada pelas pra- gas enviadas por Deus àquela nação. “E os egípcios perseguiram-nos, todos os cavalos e carros de Faraó, e os seus cavaleiros, e o seu exército” (Êxodo 14, 9). À frente não havia caminho, apenas o mar.

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Então disse o Senhor a Moisés: por que clamas a mim? Dize aos filhos de Israel que mar- cham. E tu levanta a tua vara, e estende a tua mão sobre o mar, e fende-o, para que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco. [...] Então Moisés estendeu a sua mão sobre o mar, e o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite; e o mar se tornou em seco, e as águas foram partidas. E os filhos de Israel entraram pelo meio do mar em seco: e as águas foram-lhes como muro à sua direita e à sua esquerda (Êxodo, cap.

14, vs. 15, 16 e 21).

Com relação à simbologia dessas imagens que representam o ritual de passagem da escra- vidão para a libertação, destacamos, de acordo com a hermenêutica durandiana a feminilidade da água que remete à figura materna que se abre para deixar passar através do seu ventre os filhos sofredores, que teriam um “renascimento social”.

Em contraposição, com relação ao exército de Faraó que morreu afogado ao retorno das águas, estas representam “o útero devorador, habitat privilegiado das forças más” (GOMES, 2011, p. 130). A convergência das imagens: o útero que protege e o que devora. No regime noturno, a água é mater, mãe do mundo.

A análise simbólica realizada até aqui no contexto de êxodo deixa evidente a impor- tância de cada imagem que cooperou em todos os momentos de passagem dos israelitas como indivíduos e como grupo social. Os símbolos pascais e aqueles do deserto mediaram às dificuldades próprias de cada fase pelas quais passou aquela nação desde a sua fuga até a vitória final.

Assim, com o resultado da análise sobre o conjunto das imagens, percebemos que apontam para a importância do símbolo como mediador entre o homem e a sua realidade.

Mesmo na cultura judaica monoteísta cujo símbolo evoca a adoração a Deus, o sentido religioso é repassado de geração a geração. É uma cultura extrema- mente persistente, devido à grande capacidade de manter vivas as tradições, sua religião, costumes, e o grande milagre da preservação da língua e, também, da linguagem simbólica, mesmo durante o longo tempo da última diáspora, cerca de 1870 anos, em que os judeus estiveram dispersos pelo mundo.

A CRISE DA ICONODULIA

Estamos vivenciando um momento de crise: os ritos de passagem do século XX para o XXI, e nesse processo de mudança queremos destacar a crise das instituições religiosas, que foi iniciada ao longo do processo de constituição da Moderni- dade que culmina no século XIX com a dissolução do feudalismo que marcou o enfraquecimento progressivo do poder das igrejas cristãs.

No contexto conturbado de mudanças estruturais, dá-se paralelamente o processo de secu- larização da cultura e da sociedade. Reorganizam-se, em um processo bastante complexo, as relações entre religião e sociedade. Uma nova visão de mundo e da condição humana na história exprime uma profunda mudança das mentalidades (USARSKI, 2007, p. 99-100).

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As descobertas de novos territórios, a criação da imprensa que possibilitou a ampla difusão dos conhecimentos, a ação do homem sobre a natureza foram algumas das causas que fizerem do homem agente atuante sobre o curso da história e não Deus, as cujas leis eternas o homem deveria se submeter.

A exaltação do homem moderno diante de suas realizações e desse novo poder levou- o a conceber a ciência como o único conhecimento possível e o método das ciências da natureza o único válido; o cientificismo foi estendido a todos as áreas da atividade humana. Este clima, no século XIX, foi favorável ao desen- volvimento do pensamento positivista, que teve Augusto Comte como principal representante.

Esse raciocínio distanciou cada vez mais o homem do Sagrado, o que, também, inviabili- zou o uso do símbolo por aquela geração.A crise da iconodulia na modernidade que “sentiu a tentação de se edificar sobre uma experiência e uma razão sem mediações”, diz Mardones (2006). A razão substituiu a fé. O mundo já não era mais governado por leis fundamentais; o homem podia controlar o ambiente manipulando a natureza para o conforto dele. Não apenas o símbolo foi deixado de lado, mas o próprio mito foi sendo desacreditado e o logos ganhava crédito.

Quando essa racionalização e essa tecnicização da sociedade redundaram na Revolução Industrial do século XIX, os ocidentais já confiavam tanto no progresso incessante que, ao invés de ir buscar inspiração no passado, viam a vida como uma intrépida marcha rumo ao futuro, a conquistas sempre maiores (ARMSTRONG, 2001, p. 83).

A iconoclastia da cultura ocidental teve duas raízes, segundo Durand (apud MARDO- NES, 2006): a Bíblia, porque havia a proibição das imagens de escultura “Não farás para ti imagem de escultura, [...] não te encurvarás a elas, nem as servirás:

porque eu sou o Senhor teu Deus [...]” (Deuteronômio 5.8-9). E o pensamento grego, especialmente aristotélico, porque potencializou o método científico baseado na experimentação e na lógica.

Esse racionalismo sem a mediação simbólica, presumivelmente, criou um sentimento ambíguo na mente moderna, um sentimento de angústia e também de poder, sendo este que conduziu o homem moderno a desfechos sangrentos; como, por exemplo, a 2ª Guerra Mundial(1939-1945), marcada por um número significante de ataques contra civis, incluindo o Holocausto.

A experiência de desumanização e barbárie de uma modernidade que produziu, literalmente, montanhas de cadáveres colocou em xeque a racionalidade dessa lógica. Se ela produz tanta necrofilia, é sinal de que alguma infecção a aflige (MARDONES, 2006, p. 9)

Essa “necrofilia” produziu uma cultura laica, não-eclesiástica, racional e científica, que combateu o imaginário religioso e fez da representação dos anseios mediados pelo símbolo idolatria. Perdeu-se o sentido da iconodulia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em meados do século XX a maioria dos ocidentais achava que a religião nunca mais desempenharia um papel de destaque nos acontecimentos mundiais, diz Arms- trong (2001). No entanto, contemplamos, na pós-modernidade, um crescimento inquestionável do fenômeno religioso, uma vez que, presumivelmente, o logo- centrismo não correspondeu às expectativas de dar ao homem um sentido para a sua vida, pois, até então, a valorização do ter sobrepunha-se ao ser; isso pode ter levado o homem ao recrudescimento da busca pelo Sagrado.

As ideologias da Idade Moderna, que produziram a morte da esperança e “tanta ne- crofilia” é, neste século presente, colocada em xeque quando o vazio deixado por ela levou o homem a repensar a necessidade do Sagrado em sua vida, da necessidade do símbolo e do mito, este que é

a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas ma- nifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais das ciências e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito (DURAND apud ALMEIDA, 2011, p. 23).

Assim, o sentido da existência do homem e até a própria ciência surgem do mito, pois é nos devaneios do imaginário que surgem novas ideias traduzidas no progresso tecnológico. Mas, principalmente, a imaginação traz à mente humana o desejo pelo Sagrado e pelo transcendente e contribui para um sentido apaziguador da vida.

Se por um lado o racionalismo positivista tentou suplantar o imaginário, a pós-moderni- dade, este século em que estamos vivendo, está aos poucos trocando o símbolo pela imagem virtual. O consumismo alarmante:

O homo virtualis, que vive da permuta consumista, não tem que imaginar ou evocar nada;

somente assimilar as sensações que o rodeiam (MARDONES, 2006, p. 19).

Essa constatação nos leva a pensar que a imagem produzida de forma tão real acabará trazendo um vazio às mentes humanas. Tudo já está posto, a realidade não precisa ser desvelada.

Será que o embotamento dos sentidos pela visão total da realidade, e a assimilação das sensações não produzirão uma psique doentia capaz de elaborar um novo método para destruir aqueles que “incomodam” a sociedade? É preciso estar atentos aos novos valores, ao “império da visão” que quer desacreditar o símbolo.

Uma consequência disso é o perigo dos “olhos mortos”, ou seja, aquilo que se vê sem refletir; a imagem que tem como intenção primeira desencadear o consumis- mo, que leva o homem a engolir sem digerir, ou seja, sem analisar se aquilo é verdade ou mentira, se é bom ou mau, necessário ou desnecessário.

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O consumismo pode provocar a estagnação do homem diante da miséria do outro;

deixando-o paralisado e sem ação ante as atrocidades como aconteceu durante a 2ª Guerra Mundial. A “anestesia” da imaginação pode nos impedir de enxer- garmos a realidade, que, apesar de todo avanço tecnológico, ainda não erradicou a miséria, na qual tantos ainda estão aprisionados. Como bem descreve Manuel Bandeira neste poema-denúncia – o bicho:

Vi ontem um bicho Na imundície do pátio,

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão.

Não era um gato.

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Indignado ante a condição de miserabilidade do homem, o poeta animaliza-o mostrando com isso que o homem na condição sub-humana age igualmente a um animal:

não seleciona nem cheira o alimento antes de mastigá-lo, mas o engole com voracidade. É preciso olhar o outro para que ele volte a se humanizar.

A despreocupação com o ser pode também ter sido uma das causas do momento de crise pelo qual as instituições religiosas estão passando. Não há mais um discurso equânime dentro da própria religião; a ética religiosa está perdendo espaço para o consumismo que empurra o homem a buscarna fé uma“receita mágica” para solucionar seus problemas.

Se essa nova ética religiosa perdurar não poderá desconstruir o discurso lógico- racional, o logocentrismo, herança da Idade Moderna, a qual produziu a crise do imaginário e da iconodulia. Durand (1998) define o imaginário no Ocidente como aquele constituído por um “iconoclasmo endêmico”.

Por tudo isso, fechamos nossas considerações com as palavras de Mardones (2006): “a tarefa é recuperar o símbolo, a vida que palpita nele, como maneira de revitalizar a cultura e a sociedade, a religião e a vida de fé. Sem um enérgico

‘ágio simbólico’ não há futuro nem para a cultura nem para a religião ocidentais”.

THE IMAGINARY OF THE SYMBOLS IN

EXODUS AND THE CRISIS OF THE ICONODULIA

Abstract: we analyze some symbolic images in the book of Exodus trying to describe the relevance of the symbols to man’s life and the iconodulia crisis. The research

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is descriptive and qualitative. As partial result, we have the importance of the symbol as mediator between man and it’s reality.

Keywords: Exodus. Symbolism. Imaginary. Iconodulia. Iconoclasm.

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