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Sertão de Ariano Suassuna - família e poder: uma leitura

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CDU 869.0(81)

SERTÃO DE ARIANO SUASSUNA -FAMÍLIA E PODER; UMA LEITURA

Vernaide Wanderley Eugênia Menezes

Este texto foi produzido a partir da pesquisa Identi-dade do Sertão Brasileiro, um estudo interdisciplinar utili-zando referenciais teóricos da Geografia (Percepção do Meio Ambiente); da Lingüística (Análise do Discurso) e uma abor-dagem - sócio-antropológica da Identidade. O objeto de estu-do - o sertão brasileiro - foi captada através de quatro categorias de análise: a natureza, a família, o poder e a re-ligião/sobrenatural que, transcendendo-se numa visão holísti-ca, compuseram o quadro explicativo das múltiplas relações dos atores dessa área interiorana.

Obras literárias de Ariano Suassuria (O Rei Degolado ao Sol da Onça Caetana), de Euclides da Cunha (Os Sertões) e de Guimarães Rosa (o conto Campo Geral, da obra Manuel-zão e Miguilim) constituíram a fonte dos dados utilizados. O presente trabalho enfoca a análise das categorias Família e Poder na obra de Suassuna, que, sob a ótica da classe pri-vilegiada, retrata o sertão da Paraíba envolvido no tumulto da Revolução de 1930.

A Familia representada por Suassuna assume impor-tância fundamental para a compreensão da narrativa. O subs-tantivo sangue permeia toda a obra, colorindo "sonhos" e Pesquisadoras do Departamento de Ciências Geográficas do Ins-tituto de Pesquisas sociais - Fundacão Joaquim Nabuco.

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Sertão de Ariano Suassuna - família e poder: uma leitura

"realidades", como constatamos no discurso de Dom Pedro Dinis Quaderna, o Decifrador - o Quaderna, personagem principal e narrador:

( ... ) às vezes, eu tenho dificuldade de sair desse estranho mundo de sonhos cheios de sangue pa-ra voltar à realidade cotidiana. E é por isso, afi-nal, que, às vezes, despertando desses sonhos, sinto na boca um gosto de sangue ( ... ) (77) Embora, num primeiro momento, possamos associar o sangue apenas às questões de morte, e o é com freqüência, ele significa muito mais - a vida de Quaderna foi traçada e testamentada pelas famílias que lhe deixaram um legado de sangue, através do qual seus atos presentes e futuros foram definidos:

-- Entretanto, mais talvez do que de ser um - Ser-tanejo, ( ... ) o gosto de sangue do sonho, vem da minha "sina" de Garcia-Barreto e de Quader-na, um descendente, portanto, de velhas famílias e velhos sangues sertanejos, dos quais se acumu-lou um estranho testamento de afetos e rancores ancestrais, dívida de sangue a cobrar e a pagar, heranças de ódios e lealdades inalienáveis. (77/ 78)

Observamos que o conteúdo desse legado é tecido, basicamente, por princípios opostos: afetos e rancores; dí-vidas a cobrar e a pagar; ódios e lealdade e mesmo velhas e velhos, para família e sangue, respectivamente. Esse o san-gue das velhas famílias, de quem nasceu Quaderna, identi-ficado com a vida e a morte, o bem e o mal - "( ... ) desde menino, foi diante dessas encruzilhadas de fogo que eu vivi, atraído e fascinado: a Vida e a Morte; a Mulher e a Sina; Deus e o Demônio; o Mundo e a Cinza" (87). Um sangue do qual ele se orgulha: "Por isso, Sr. Corregedor, desde meni-no, tive a orgulhosa consciência de que meu sangue era talvez impuro, mas não era, de forma nenhuma, um sangue comum". (86)

Na verdade, considerando-se a realidade sertaneja, não era um "sangue comum": Quaderna pertencia à classe dos donos de terra e chefes políticos; pertencia à Aristocracia do Couro - detentora do poder político e econômico -; 138 cad. Est. Soc. vI 8, n. 1, p. 137-160. ian./iun., 1992

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Vernaide Wanderléy e Eugênia Menezés

pertencia ao "Reino do Cariri do Nordeste", fazendo parte não da plebe, mas da "corte". E, pelo sonho "monárquico" do autor, cria-se a possibilidade de Quaderna remontar sua ancestralidade, mesclada de diversos sangues, é verdade, mas, inconfundivelmente, povoada de inúmeros títulos de no-breza:

Nesses momentos, sinto, sempre, as duras fisiono-mias dos meus ancestrais sertanejos: Dom João Ferreira-Quaderna, o Execrável; Dom Manuel Gar-cia-Barreto, Barão do Cariri; Dom Pedro Antônio Vieira dos Santos; Dom Pedro Alexandre Quader-na; Dom Pedro Sebastião Garcia-Barreto; e outros e outros. (78)

E esse sonho, esses títulos, perseguem ou seguem in-corporados a Quaderna, mesmo quando, mais tarde, já iden-tificado com o seu Povo, tenta (re)construir seu Império cas-tanho, o Império do Brasil, com sua bandeira e seu escudo, misto de República popular e República aristocrática:

De modo que assim foram criados os três escu-dos e as • três bandeiras ( ... ) sendo então funda-das i na casa de Clemente, a República Popular do Brasil, comunista; na casa de Samuel, a aristo-crática República Unitária do Brasil, integralista; e sendo restaurado, na minha, o Império do Brasil. Eu o sonhava adaptado ao novo Brasil que, apesar de tudo, ia surgindo: ( ... ). (60)

Como se vê, o Império castanho de Quaderna, o Decifrador, é uma fusão da República Unitária de Samuel com a República Popular de Clemen-te. (58)

É importante ressaltar a amplitude da conceituação dos Chefes das "velhas famílias" - eles detêm não somente o poder familiar, mas, também, o poder político, isoladamente ou associados a outras famílias, de ancestrais comuns ou não, possuidoras desse poder. Esse entrelaçamento de famí-lias dá origem à formação de verdadeiros clãs, com seus códigos de honra, acordos ou desacordos, com facções adversas, norteados pela luta política, que vai desencadean-do uma teia de relações demárcadesencadean-dora desencadean-do território de cada cacE Est. Soc, v. 8, ii. 1, p. 137-160, Ian./jun., 1992 139

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Sertão de Ariano Suassuna - família e poder: uma leitura

clã, como se pode ver através do diálogo entre dois mem-bros da família Villar, uma das poderosas do lugar:

- Olhe, Major Jocelyno, eu vou para essa reunião porque meu Pai mandou: sou contra qualquer acor-do com a família Pessoa! (...

- Homero, não fale assim não, meu filho! ( ... ) Nós dois estamos indo para a fazenda dos Garcia-Barrettos, que sempre foram aliados dos Dantas, dos VilIar e dos outros donos-de-terra sertanejos em nossa luta contra os Pessoas e os comercian-tes da Capital! (16)

Com a descrição de uma das famílias, o autor nos per-mite analisar algumas questões relativas ao preconceito só-cio-moral e de cor:

O último, o Maior Zorobabel. vinha acompanhado de perto por seus dois filhos bastardos. Benedito e Aldelgício, que o seguiam nos calcanhares, co-mo dois cachorros-de-fila. (10)

Embora o adjetivo bastardo possa indicar uma descen-dência mestiça, o que se comprova também pelo trecho sub-seqüente da mesma página, no contexto apresentado ele se reveste de valores sócio-morais pejorativos. A oração expli-cativa - que o seguiam nos calcanhares, como dois cães-de-fila - mostra a posição "sub-humana" que os filhos de uma união "não legalizada" assumem na estrutura familiar ser-taneja. pelo menos nas famílias donas do poder nas três pri-meiras décadas do século, onde se situam os acontecimentos narrados.

A associação estabelecida com a cor também se faz de forma depreciativa, uma vez que a família em questão ti-nha "duas liti-nhagens, uma loura e godo-nórdica e outra mo-rena, a mais bruta"; o Pai dos "bastardos" era da última li-nhagem, a morena; e a mãe descendia dos índios Cariris.

O aposto a mais bruta, para a linhagem morena, en-tendido como forma depreciativa em relação à linhagem lou-ra, talvez seja insuficiente para se afirmar a existência de um preconceito de cor, Ele também pode transmitir a idéia de uma linhagem mais nativa, ligada à descendência indígena mais que a negra, considerandose a ocupação sertaneja -140 cad. Est. Soc. v. 8. n. 1, p. 137-160, ian./iun., 1992

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Vernaide Wanderley e Eugênia Menezes

ou, ainda, à menos culta. No entanto, em duas passagens da obra o preconceito fica explicitamente caracterizado: as famílias importantes não deveriam se "misturar" com pes-soas de posição 'inferior" na escala racial e sócio-econômi-ca; como também, as de cor mais escura tendiam a procu-rar pessoas brancas para se "clarear"; comprovemos nos textos:

a. - Casado estaria eu, se meu Pai tivesse con-cordada! - disse João Dantas ( ... )

— Ela é escura demais para um Dantas! - Disse o Doutor Sinhozinho ( ... ) - Pode ser boa como for; para sua mulher, não serve! Nem eu entendo essa atração esquisita que você tem por mulheres de cara talhada e lábios grossos, morenas demais, com sangue índio, ou negro, ou cigano, sei lá! (34) b. - Mas em Quaderna, a predominância é ibéri-ca e ibéri-cariri, ele ainda passa, ainda vai, como ma-meluco-castanho e sertanejo! - insistiu Samuel, implacável no seu racismo. - Em você, Clemen-te, apesar do cabelo "bom" e dos olhos agatea-dos, a predominância na cor da pele, é do escu-ro! Assim, o que você é, mesmo, é um Negescu-ro!

Isso prova somente que sou mais brasileiro do que Ouaderna!

- Mais brasileiro não, mais negro! É por isso que, (...) você se casou com uma mulher albina (..) - (...) Deixe em paz a minha vida particular (...) casando com uma branca, eu estaria, talvez, so-mente procurando me clarear até o castanho dos Tapuias, cor na qual, como já disse, há de se es-tabilizar a raça brasileira! (57)

Ao longo de todo o texto, porém mais especificamen-te no Folheto II, Suassuna se preocupa com as questões étnicas; com a formação da Raça sertaneja/brasileira. É lá, no sertão, que toda a raça humana se origina, fruto de inces-tos e metamorfoses de deuses e animais:

* O negrito das citações corresponde a itálico no original.

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Sertão de Ariano Suassuna - família e poder: uma leitura

Assim, como resultado desses incestos e meta-morfose; surgiram os primeiros homens e mulhe-res, os Tapuios e Tapuias-Cariris, antepassados dos nossos índios de cara de pedra, dos astecas, maias, incas e toltecas, e, portanto, geradores pri-meiros de toda a Raça humana. (11)

Acreditamos que o autor recorre a esse 'sonho fan-tástico", do sertão convertido em Paraíso primeiro, para in-dicar a particuaridade de nossa formação étnica e entender o processo de esculturamento ou como vão sendo modela-dos os barros e pedras, sob a proteção do divino, para a com-posição das gentes do Sertão/Brasil - seu lugar e espaço, respectivamente. Em última instância, para entender a iden-tidade do nosso Povo, de características tão próprias. Esse Povo, surgido daquela "( ... ) raça Cariri de tapuios castanhos e bronzeados, errantes pela caatinga sertaneja. homens e mulheres de cor parda e negros cabelos corredios L.J" (11112); "misturados depois à segunda geração de marujos godo-ibéricos e celtárabes" - já cruzada com "Negros Por-tugueses. índios, Tupis, Espanhóis e Judeus Cristãos-Novos". (12) -, que chegou ao sertão "procurando terras e pastagens para nelas situar seus gados e rebanhos". (12)

A paisagem sertaneja, coberta de pedras e luz ence-guecedora, servindo de pouso a gentes de cores distintas e lugares diversos, deu origem a uma Raça castanha, a um Sertão/Brasil castanho. O adjetivo castanho converte-se, em toda a narrativa, num símbolo do Sertão de Quaderna, do Sertão de Suassuna. do Sertão do Povo Sertanejo - Povo com letra maiúscula, como é usual na obra, traduzindo a im-portância daquela gente que ali se formou.

Os relacionamentos interfamiliares eram definidos pe-lo sangue e pelas lutas políticas, constituindo verdadeiros clãs, como vimos anteriormente. Mas, numa análise isolada da estrutura familiar, alguns aspectos merecem destaque.

As figuras de maior realce, em toda a obra, são as masculinas - ousamos afirmar que, ao nível da família, é "um livro masculino", de feitos e heróis masculinos, com seus chefes de família citados freqüentemente; pais poderosos/fi-lhos obedientes. Nesse cenário, o poder familiar, sempre as-sociado ao político, vai sendo "transferido" de geração a geração, desde que os prováveis sucessores ajam no senti-142 cad. Est. Soc. v. 8, n. 1, p. 137-160, ian./iun., 1992

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Vernaide Wanderley e Eugênia Meneze

do de seguir a orientação paterna, isto é, mantenham a obe-diência em todos os níveis, inclusive na escolha das moças com quem queriam casar:

Mas meu Pai não quer que isso aconteça: por isso me mandou, eu obedeci, e vim! Vou proteger vo-cê ( ... ) assim como meu irmão Clodoveu vem pro-tegendo o Doutor Félix Dantas, também a pedido de meu Pai! Mas eu lhe digo uma coisa: nem eu nem Clodoveu estamos de acordo com meu Pai nisso! (19)

Como vemos, nesse primeiro texto, os filhos estavam em desacordo com o pai, no que se refere ao mérito da or-dem dada, no entanto, não se rebelavam. A construção da oração — "( ... ) me mandou, eu obedeci e vim!" — com au-sência de complemento verbal, sugere a falta de espaço pa-ra a contpa-ra-argumentação dos filhos.

- Muito bem! — disse o Doutor Sinhozinho, com intenção deliberada. — Pois quando o poder vier a cair na mão dos Dantas, os Dantas devem estar preparados para transmitir a Chefia, de pai a fi-lho e de fifi-lho a neto.

- O que o senhor quer dizer com isso, meu Pai? — Você sabe melhor do que eu, João! Quando seu Avô morreu, passou a Chefia da nossa família a meu irmão Manuel, o mais velho. Manuel não ti-nha filhos e morreu logo depois, de modo que a Chefia veio para mim. Se você não casar ficará sem filhos e eu não poderei passar a Chefia a vo-cê como é meu desejo!

— Casado estaria eu, se meu Pai tivesse concor-dado! (34)

- O Doutor Sinhozinho falava sob ameaças, e o que po-deríamos concluir disso?

a) para que o Poder fosse exercido pela geração se-guinte, era preciso que eia assegurasse, pelo casamento, sua descendência: "se você não casar ficará sem filhos e eu não poderia passar a Chefia para você ( ... )";

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Sertão de Ariano Suassuna - família e poder: uma leitura

b) o casamento deveria estar de acordo com a esco-lha paterna: "- Casado estaria eu, se meu Pai tivesse con-cordado!";

c) o preconceito de cor se reafirma e, por extensão, o social; o Dr. Sinhozinho não concordava porque a moça escolhida pelo filho era: "{. ..) escura demais para um Dan-tas!". (34)

Essas famílias sertanejas cheias de Poder, sobre os fi-lhos e sua genté, tinham seus códigos de honra e um deles merece registro: o da hospitalidade; estavam se-more prontas a receber, educadamente, pobres e ricos, aliados e oposito-res políticos:

E esse GarciaBarreto ao menos nos recebe? -indagou João Pessoa ( ... )

- ( ... ) não se preocupe não, vamos ser bem re-cebidos pelo Garcia-Barreto. Ele é homem auste-ro, ríspido e inflexível, mas prometeu ao nosso amigo Coronel José Pereira que nos recebia. Co-mo sertanejo, ele é hospitaleiro e segue os códi-gos de honra de sua terra: na casa dele, uma vez admitido, você não é mal recebido de jeito ne-nhum! (11)

A importância do elemento masculino, na obra de Suas-suna, tem em Quaderna a sua maior representação. Como homem, ele é personagem principal e narrador dos aconteci-mentos, e a morte prematura do Pai e Padrinho, associada a outras mortes, faz com que seu universo de referências

se-a, quase todo, povoado de figuras de homens/heróis. A vida e a morte de meu Bisavô, do meu Avô, do meu Pai e de meu Padrinho, marcaram meu san-gue para sempre ( ... ) (85)

É a poderosa presença do sangue de meu Pai e de meu Padrinho, marcada pelo signo e pela ban-deira sangrenta de sua morte, a me compelir e im-pelir para o alto, para o fogo do Sol. (86)

No que pese serem o Pai e o Padrinho as figuras mais marcantes para Quaderna, a representação que ele faz dos dois se diferencia - ...meu Padrinho podia ser o dono 144 cad. Est. Soc. v. Br n. 1, p. 137-160. ian.fiun., 1992

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Vernaide Wanderley e. Eugênia Menezes

das terras sertanejas, mas o dono do Rio era meu Pai". —; então, a primeira liga-se às lembranças "doces" e a do Pa-drinho associa-se à austeridade e ao perigo. O texto seguin-te elucida o exposto;

Mas, de meu Pai mesmo ( ... ) eu só lembro de-pois ( ... ) tempo em que surge também, em minha vida e na minha lembrança, a figura austera, peri-gosa e assinalada de meu Padrinho (. ..) Nos três primeiros anos de minha vida, lembro-me de meu Pai em cinco ocasiões; meu Pai sentado numa re-de, embalando-se, e tendo-me a mim sentado em sua perna; meu Pai comigo e com meu Padrinho, à margem do Riacho das Piranhas e do Riacho Acauhan ( ... ); meu Pai tirando frutas de carnaú-ba com uma pedrada e meu Pai em pé na calcada de pedra ( ... ), olhando lá longe ( ... ) com uma expressão bela, triste e sonhadora no rosto. Fora daí, é só meu Pai com meu Padrinho (..) (94/95) Quaderna esforça-se para manter essas imagens "do-ces", ou "míticas" do Pai - "Voltava então os olhos para o rosto de meu Pai, e via-o como um santo ou um profeta, cercado por um halo de luz". (97) Mas, pertencendo às fa-mílias poderosas daquele Reino do Sertão, além do político e econômico, seu pai detinha o Poder familiar, pois era tam-bém; "dono de todos nós - seus filhos". É Quaderna quem diz no texto:

( ... ) e voltou-me nítida, à memória, a imagem de meu Pai, daquele homem de cara enérgica e lim-pa, dono das maravilhas, dono dos • cavalos, dono de todos nós — seus filhos .- (. .

E tudo aquilo era mais sagrado ainda, (...) por-que ele olhava era para os lados do Rio (.. 4; Rio estranho ( ... ) e do qual meu Pai também era do-no: como era, e é ainda, ( ... ) — dos gados, das cabras e das pastagens, dos rifles, das pedras e dos punhais, do mato, das caatingas e do sol do sertão. (99)

Assim, sendo dono de todo o sertão, era, por dedução, dono da casa e "proprietário" de todos, mulher e filhos. Cad. Est. Soc. v. 8, n. 1, p. 137-160, jan./iun., 1992 145

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Sertão de Ariano Suassuna — família e poder: uma leitura

• Enquanto o Pai assume proporções de um santo,

pro-feta, príncipe; proporções de um Deus, senhor de tudo e de

todos, as figuras femininas têm pouca representatividade na obra de Suassuna — já ousamos dizer que ela é um "livro masculino".

No entanto, considerando-se , a estrutura familiar de Quaderna, os elementos femininos de maior destaque são a Mãe e a Tia Filipa; sendo a Mãe comparada à Virgem Maria: A Virgem chamava-se Maria, como nos ensinava Tia Filipa, nas lições de catecismo; e como o no-me de minha Mãe era também Maria, eu ligava tu-do aquilo a ela, à sua pele alva e fresca, às suas mãos abençoadas (,.4; mãos que eu nunca es-queceria, mesmo depois da morte dela, tão brutal e inesperada; ( ... ) corri seus dedos ao mesmo tempo perfeitos, fortes e delicados ( ... ; mãos ale-gres, suaves, tristes, sonhadoras e valentes (. . (103/104)

Esses adjetivos, empregados aqui para as mãos, são possivelmente os que definiriam a Mãe de Quaderna: perfei-ta, forte, delicada, alegre, suave, triste, sonhadora e valente; podendo ser completados por mansa e corajosa: "( ... ) e ape-sar da mansa bravura que ela sempre teve em sua alma de mulher corajosa (..4" (81)

Essa coragem, atribuída à Mãe, aparece após a morte do Pai, e também a presença dela na narrativa — a morte do chefe de família obriga a mulher do sertão, com filhos pequenos, a assumir o comando da família. A partir daí, ela é capaz de enfrentar a todos, inclusive, a Polícia, quando te-ve sua casa invadida por soldados.

A Tia Filipa era mais valente do que a Mãe — "Tia Fi-upa, mais valente e, por isso mesmo, mais prudente ( ... " (125) — e aparece na vida de Quaderna como substituta da •Mãe, quando esta o "abandonou"; torna-se responsável por sua educação e, principalmente, pelos ensinamentos religio-sos e correções das dúvidas de fé.

Completando o elenco de mulheres da vida familiar de Quaderna, embora ele fale pouco, mas de forma profunda e cheia de significados. surge Severina — possivelmente a ba-bá, figura importante na vida de qualquer criança, especial-mente na da criança sertaneja, pois, no sertão, as rela-ções de trabalho na casa, entre empregado e patrão, ainda são permeadas de laços de afeto. Assim era Severina: mis-146 cad. Est. Soc. v. 8, ri. 1., p. 137-160, ian./iun., 1992

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Vernaíde Wanderley e Eugênia Menezes

to de babá, mãe e mulher - aquela que deixou o rastro de seus olhos verdes na vida de Quaderna, e a sensação de colo macia e aconchegante.

Passamos, a seguir, a enfocar um outro ângulo da nos-80 objeta: o Poder, que, em Suassuna, pode ser analisada mediante duas vertentes: a familiar, já vista antes, na qual a

'sangue" torna-se responsável pela vida e destino das pes-soas; e, pelas vivências afetivas que possibilita, vai tecendo um dos fias mais resistentes que compõem o elo de cada um com o seu lugar - e a vertente político-econômica.

Essas vertentes se entrelaçam e se confundem de tal forma na abra, que dificultam análises isoladas. Haja vista a configuração dos diversos "Clãs" a partir de relações in-terfamiliares - famílias consangüíneas e/au as que se agre-gam a elas -. em torno de objetivos econômicos e políticos, e que passam a compor o que poderíamos chamar de micro-territórios: identificados por seus códigos de sangue e honra, acordos e desacordos políticos. E, numa visão mais amplia-da, esses microterritórios se agregam e se configuram num grande Partida do Território-Sertanejo dos Senhores-de-terra, em disputa pelo poder, com o Partido do Território-Urbano, dos Comerciantes e Funcionários Públicos da Capital.

Velamos isso nos dois trechos seguintes:

a. Ora, será entre estas sete famílias perigosas - os VilIar, Garcia-Barretos, Dantas, Quadernas, Suaranas, Pereiras e Pessoas - que vai se cen-tralizar a guerra sertaneja dos vinte anos que se seguem, com o Partido fidalgo-popular, sertanejo e verde-azul dos Dantas de um lado, e o Partido negro-vermelho, republicano, positivista e burguês dos Pessoas do outro. (15)

b. Desde 1889, com a proclamação da República, o Brasil vem se dividindo em dois Partidos! Aqui na Paraíba, o dos Dantas e Garcia-Barretos, ver-de-azul, é formado pelos Senhores-de-terra, unidos ao Povo que trabalha no campo. O dos Pessoas, negro-vermelho, é formado por comerciantes e fun-cionários públicos da Capital. (16)

No início do texto a., estão explicitadas as seis famí-lias sertanejas - VilIar, Garcia-Barreto, Dantas, Quaderna, Suarana e Pereira -, co-responsáveis pelos acontecimentos Cad. Est. Soc. v. .8, n. 1,p. 131-160, .Ian./ i un ,, 1992 147

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Sertão de Ariano Suassuna - família- e poder: uma leitura

políticos do Sertão, e, mais adiante, reunidas no Partido dos Dantas. Esse fato se repete no texto b., quando elas se apre-sentam agrupadas no Partido dos Dantas e Garcia-BarretOs, o que vem confirmar o processo de aglutinação dos "Clãs/ Microterritórios/Paflido", exposto anteriormente.

A partir da motivação desses textos complementados por outros, alguns aspectos do Poder poderão ser abordados na obra de Suassuna. Vejamos inicialmente, como eram vis-tos os acordos políticos pelas duas facções envolvidas na disputa:

A. Facção Sertaneja - homens do campo - Olhe. Major Jocelyno, eu só vou para essa reu-nião porque meu Pai mandou: sou contra qualquer acordo com a família Pessoa! (...

- Homero, não fale assim não, meu filho! Eu sou seu primo, mas sou homem mais idoso, é como se fosse seu tio! Já estou velho e conheço o mundo ( ... ) Vamos assistir ao batizado do menino Siné-sio ( ... ) Que mal existe nisso?

- Que mal existe? ( ... ) esse batizado é somente pretexto para a reunião em que vai se tratar da tal "conciliação política" dos Sertanejos com a famí-lia Pessoa, acordo que é uma desmoralização para meu Pai (16)

- Homero, se acalme! Em Política, a gente tem que ceder muita coisa e engolir muito sapo! (17) - Homero, ( ... ) É muito melhor um acordo ruim do que uma briga boa! (18)

B. Facção Urbana - comerciantes e funcionários públicos

- Que é isso, João? - indagou Carlos Pessoa lovialmente. - Não está contente com a perspec-tiva de acordo, não?

- Acordo? Que acordo? - retrucou João Pessoa, sombrio. - Diga, antes, humilhação e desmora-lização para os Pessoas, Carias! Pedirmos uma en-148 Cad. Est. Soc. v. 8, n. 1, p. 137-160, jan./jun.. 1992

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Vernalde Wanderloy e Eugênia Menezes

trevista a nossos piores inimigos, os Dantas e os Garcia-Barretos (...

- Calma, João! Calma, meu primo! - disse Car-los Pessoa, bem-humorado. - Em Política é as-sim mesmo, ganha mais quem mais espera! Você parece que não está entendendo: Tio Epitácio viu que, agora, do jeito que as coisas estão, o melhor que ele tem a fazer é contemporizar! (37)

Em que pese os textos serem fragmentos do discurso de facções distintas, eles apresentam semelhança, no mo-mento em que os analisamos sob a perspectiva dos "menos experientes" e "mais experientes" em política:

- os "menos experientes" se utilizam dos mesmos substantivos - desmoralização e/ou humilhação, do Pai ou da Família - para explicar as conciliações ou acordos polí-ticos com os opositores.

A. ( ... ) "conciliação política" dos Sertanejos com a família Pessoa, acordo que é uma desmo-ralização para meu Pai!

B. ( ... ) Que acordo? ( ... ) - Diga, antes, humi-lhação e desmoralização para os Pessoas ( ... ) - a argumentação dos "mais experientes" objetiva a conquista do Poder Político; assim, apresentam um discurso "moderado", 'conciliador", e dele pode-se extrair algumas máximas sobre o fazer político.

A. (.4 Em Política, a gente tem que ceder mui-ta coisa e engolir muito sapo!

É muito 'melhor um acordo ruim do que uma briga boa!

B. Em Política é assim mesmo, ganha mais quem mais espera! ( ... ) o melhor que ele tem a fazer é contemporizar!

Retomando os textos "a" e "b", citados no início das análises desta categoria, consideremos alguns "recortes" pa-ra observarmos como o Partido dos Senhores-de-terpa-ra enten-dia sua Aliança com o Povo.

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Sertão de Ariano Suassuna - famílià e odeh uma leitura

a. ( ... ) o Partido fidalgo-popular, sertanejo verde-azul dos Dantas de um lado ( ... ) (15) b. ( ... ) o dos Dantas e Garcia-Barretos, verde-azul, é formado pelos Senhores-de-terra, unidos ao Povo que trabalha no campo. (16)

- Então, que categoria é essa denominada Povo, na obra de Suassuna, que se alia ao Partido fidalgo-popular dos Dan-tas e Garcia-Barretos? E também aos Pessoas na Capital?

• Deixemos que suas personagens respondam:

- E o povo, Homero? Você fala contra o acordo, mas se esquece de que, se houver luta, quem mor-re é o povo!

- O povo está conosco, Major Joselyno ( ... ) E além disso eu me importo, lá, com o povo? O povo vem aí, atrás de mim, olhe! - disse Homero apon-tando o grupo moreno de seus cabras entrançados de cartucheiras, e que ouviam, impassíveis, a dis-cussão. (19)

Assim, Homero, personagem importante desse diálogo, mostra o Povo, sempre atrás dos chefes: "um grupo moreno de seus cabras entrançados de cartucheiras, e que ouviam, impassíveis, a discussão". Esse Povo, na realidade, sabia ape-nas ouvir, impassível, porque em toda a narrativa ele não tem voz; todos os diálogos se estabelecem entre as facções de-tentoras do Poder. Ao chegar a vez do Povo, é Quaderna, personagem central/narrador da obra, quem fala por ele:

Era o Povo que surgia ali então - cerrado, enig-mático, ajoelhado numa súplica mansa mas altiva, dilacerado pela injustiça secular, martirizado e ten-tando sempre, por entre sua grosseria -e abandono, se alçar ao Divino. Ali no Sertão, limitara-se até agora a se unir ao Partido político dos Senhores-de-terra, para, assim, dar expressão a sua força cega, as suas explosões de revolta extraviada. Na cidade, unir-se-ia aos Pessoas, na luta destes em favor da Burguesia e contra os Senhores-de-terra. ( ... ) e terminava sempre pagando a verda-deira quota de sangue. Até quando permaneceria assim? (38)

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Vernaide Wanderley e Eugênia Menezes

Utilizando-se de uma linguagem carregada de adjetivos, que comove, Suassuna/Quaderna consegue elucidar essa ca-tegoria sem voz, o Povo: cerrado, enigmático, ajoelhado, di-lacerado, martirizado, tentando se aproximar do Divino por impossibilidade de exercitar suas potencialidades de homens reais, livres; e. tendo, como única alternativa de identidade, mesmo suicida, aliar-se, no campo ou na cidade, à luta dos que sabiam por que e para onde a disputa os conduzia. Nes-se processo, muitas vezes, convertiam-Nes-se em meros satélites da luta política, recebendo o cognome de "cabras" -homens armados, que compõem a leva de agregados das fa-mílias poderosas, oferecendo a vida para salvar as dos Che-fes, em troca do soldo que garantisse a sobrevivência de suas famílias -, como bem ilustra Quaderna:

Não tinham nada a ver com a Política paraibana, ( ... ). Apenas as circunstâncias da vida, Li. os tinham aproximado daquela família importante, da qual dependiam suas casas, sua comida, suas fa-mílias, enfim, suas vidas, agora despedaçadas ali, daquela maneira extraviada e anônima. (47) De forma alegórica, através da passagem de "Carcará e do Bem-te-vi" (30/31), o autor representa a luta desiqual que se observava (ou se observa?) naquele Sertão/Paraíba! Brasil, entre os Poderosos - grupos político-econômicos fortes, do campo e da cidade - e o Povo, formado por agre-gados e oprimidos.

Os Poderosos acham-se representados no Carcará. "nascido para despedaçar e preparado para isso por heran-ça e direito de posse - o faminto comedor de pássaros e sangrador de cabritos e cordeiros novos", e caracterizado pelos adjetivos: grande, feio, sombrio, rico e cruel. Por sua vez, o Povo encontra-se no Bem-te-vi, "simples comedor de frutas e insetos", com as seguintes qualificações: tranqüilo, pequeno, de asas curtas, deselegante, popular, pobre, sem armas especiais, sem garras, sem bico duro e acerado.

Os Poderosos, por herança e direito

de posse,

eram donos de terras, animais e gentes. E o que restava ao Povo, destituído de legados de sangue e de direitos? Aliar-se ce-gamente aos Poderosos, como vimos anteriormente? Ou criar formas estratégicas de contra-atacar o poder, levando em conta a astúcia e a tenacidade para sobreviver ao combate, como no exemplo do Bem-te-vi?

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Sertão de Ariano Suassuna - família e poder: uma leitura

O Bem-te-vi começou a desnortear o Carcará, pri-meiro porque não fugia, depois porque seu tenaz estilo de combate era grosseiro e primário (... o Bem-te-vi volteou-o, colocou-se por cima dele e começou a esvoaçar dese lega ntemente em tor-no do sua cabeça, dando-lhe pequenas bicadas em sua nuca empenachada e orgulhosa. Era um com-bate feio mas tenaz. ( ... ) Aquela resistência in-comodava-o, aquele tipo de luta envergonhava-o um pouco, a ele privilegiado rico, habituado às co-modidades do poder e da riqueza. ( ... ) E logo o Carcará começou a dar guinadas com a cabeça, tentando escapar às bicadas fracas mas constan-tes do Bem-te-vi, bicadas que nunca o matariam. mas que importunavam e envergonhavam. E afinal ele terminou por fugir - importunado, desdenho-so, mas batido. (30/31)

Entre os pólos da disputa pelo Poder - Senhores-de-terra e Burguesia Urbana - vimos como se processava a Aliança com o Povo; em outro plano, resta comentar a Alian-ça com o Exército.

Enquanto o Povo se unia aos Chefes para "dar expres-são a sua força cega, a suas explosões de revolta extravia-da", transformando-se em aliados pobres, anônimos e depen-dentes, a Aliança com o Exército era disputada pelas fac-ções políticas e considerada decisiva para a vitória. Vejamos um trecho que elucida e dá margem a comentários sobre o tema:

- Meu Pai, está na hora de nós tomarmos o po-der, na Paraíba! ( ... ) No Brasil e em toda a Amé-rica Latina, o Exército é a única força política de-cisiva. É o único Partido político capaz de realizar a independência e a grandeza da Nação, por ser o único armado, o único que dispõe de chefes ca-pazes, de unidade, hierarquia e disciplina. (.. Assim, agora, no momento brasileiro, se o Exér-cito ficar conosco, vencemos nós. Se ficar com os Pessoas, vencem eles. (32)

Essa era a visão de Quaderna sobre o Exército, nas primeiras décadas nas quais centra os acontecimentos que narra: um Partido político armado, composto por chefes ca-152 cad. Est. Soc. v. 8, n. 1, , p. 137-160, ian./iun., 1992

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pazes e disciplinados, do qual surgiria a salvação da Paraíba! Brasil/América Latina - uma "Salvação Militarista". E com esse sonho libertário, tendo como Messias o Exército, a luta política terminaria por abdicar dos acordos e transformar-se em luta armada, havendo o "sacrifício" apenas do Povo, que "terminava sempre pagando a verdadeira quota de sangue" (38). Mesmo assim, o sonho de salvação permanecia: "Até quando o Exército permitiria que o Pais e o Povo ( ... ) fos-sem dilacerados peias facções?" (38). Argumentação fala-ciosa, a nosso ver, uma vez que a facção apoiada pelo Exér-cito conquistaria definitivamente o Poder, mesmo sendo pela via indireta da intervenção militar no Estado. Dessa forma, o Povo continuaria subjugado aos Senhores do Território Ser-tanejo ou aos Senhores do Território Urbano.

- E se a luta política virar luta armada? ( ... ) - Se houver luta armada, tanto melhor para nós, meu Pai, e tanto pior para os Pessoas! Porque, com a luta, o Exército terá motivo para fazer in-tervenção federal na Paraíba, e o Estado cai de vez na mão do Coronel Rego Barros, dos Dantas e dos Garcia-Sarretos! (34)

Ao lado dessa saída unicamente militarista para o Ser-tão/Brasil/América Latina - com o Poder, no Sertão, já as-segurado aos Senhores-de-terra -, Quaderna passa a so-nhar com o Poder monárquico, já comentado por ocasião das análises da Família; restaura, em sua casa, a sede do Impé-rio do Brasil. Para a composição deste, seriam convocados todos os brasileiros que, por força do ideário religioso, se uniriam ao Povo castanho, o Povo sertanejo, e ao Exército E quem seria o Imperador? Quaderna?

( ... ): não um Império mofado e encasacado, mas uma imensa fraternidade do Povo castanho, com todos os Brasileiros convocados "a serviço", ves-tidos de cáqui e mescla azul numa média da nos-sa pobreza honrada, e unidos aos Soldados em torno do nome sagrado de Deus. (60)

Em muitas passagens, o substantivo sonho é utilizado por Suassuna, que, a partir dele, nomina as posições privi-legiadas. com as quais Quaderna se identifica. Mesmo que Çad. Est. Soc. v. 8, n. 1, p. 137-160, ian./lun., 1992 153

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ele seja "um cruzamento de Rei e de Palhaço"; e diga: "(... a parte que talvez venha a me salvar seja a (...) do Palha-ço de circo-pobre que sou eu". (73)

Identificado nessa posição privilegiada - que lhe foi conferida, "a priori", pelo legado de sangue dos "nobres" do Sertão - Ouaderna se vê não apenas como um- Impera-dor, mas também como o Gênio da Raça Brasileira, ou como um segundo Cristo do seu lugar.

O perigo será o depoimento de amanhã, pois é Sex-ta-Feira da Paixão, dia em que Cristo foi crucifica-do! - disse Maria Safira, e eu estremeci, porque pela primeira vez me ocorria o fato de que eu es-tava vivendo três dias de Paixão, como acontece-ra ao sertanejo-judaico, Jesus Cristo, no Sertão da Judéia ( ... ). (61)

Destituídas do Poder Político, perseguidas pelo Gover-no (facção contrária), pela Igreja e pelo Exército (antigos aliados), restava às famílias sertanejas, donas dõ terra, rei-vindicar o Poder do nome, o orgulho de pertencer a determi-nadas linhagens:

(...) Parece que ainda estou ouvindo a voz ama-da de minha Mãe dizer para meu irmão mais ve-lho: - "Esses miseráveis pensam que vamos nos humilhar? Manuel, meu filho, puxe aí o canto: pa-ra mostpa-rar a essa gente quem somos nós e quem é seu Pai, vamos todos cantar o hino do Sertão, o Hino de Princesa!" (121)

Por esses textos podemos visualizar dois aspectos do Poder: 1.9) a forma pela qual a facção dominada "afugenta" o inimigo, utilizando-se do nome da família, mesmo de ma-neira implícita - para mostrar a essa gente quem somos nós e quem é seu Pai --, e da força de um símbolo - o hino do sertão, o Hino de Princesa, que remete a sentimentos patrió-ticos, ao espaço/Brasil, e reforça a idéia da consciência que aquelas famílias tinham do seu lugar; 2.9) e a forma arbitrá-ria da perseguição política, estendendo seus tentáculos a to-dos os familiares to-dos Chefes políticos, o que pode ser ratifi-cado neste trecho - "Agora, o ambiente estava se tornan-do cada dia mais ameaçatornan-dor e carregatornan-do: a Polícia Militar

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queria sangrar os Garcia-Barretos e Quadernas' - e os Gar-cia-Barretos e Quadernas éramos nós". (121)

Finalizando essas análises, podemos dizer que o Po-der político, em Suassuna, é exclusivamente masculino. Mas, no seu Reino de homens políticos e poderosos, donos de ter-ras, gentes e animais, o autor, através de uma representação simbólica, concede um poder maior - o Poder divino da Mor-te - a uma figura feminina: à Moça Caetana. A sedutora de homens, que, por metamorfose, se transforma na Onça "vermelha e alada da morte": "( ... ) divindade sertaneja dia-bólica e tapuia, vê tudo o que deseja, por mais longe que esteja a pessoa, por mais distante que se encontre o lu-gar". (9)

Sob a ótica da visão de mundo de cada autor, talvez a que se faça conhecer primeiro, em nossa pesquisa. e de forma mais clara, sela a de Suassuna. Essa suposição, no entanto, implica o conhecimento das origens do personagem central e narrador da obra, Quaderna: descendente de che-fes políticos e donos de terra. Possuía um sangue incomum, uma ancestralidade composta de diversos sangues — recria-da em diferentes tempos, e atualizarecria-da de forma mítica -, mas povoada sempre de significativos títulos de nobreza. Além de decifrador e poeta, era, principalmente, o descen-dente direto do dono "dos gados, das cabras e das pasta-gens, dos rifles, das pedras e dos punhais, do mato, das caatingas e do sol do sertão".

É com essa visão de mundo, forjada pelo destino do sangue, que Ouaderna/Suassuna se debruça sobre a paisa-gem/espaço do sertão. E através do poder mágico da lite-ratura - ou das metamorfoses da Onça Caetana ('?) -, o personagem-narrador vai nos apontando pedras; bichos; gen-tes; lutas e divindades, para nos mostrar que aquela realida-de é também, e alternadamente, o território/lugar realida-de quem o fez e viveu, e dos que lá permanecem.

Na maioria das vezes, Suassuna descreve a relação homem/natureza associando-a ao macrocosmos. Transforma os nomes -de alguns elementos em nomes próprios, e atribui-lhes um caráter sagrado, fazendo-os portadores do Bem e do Mal - dualidade primitiva que permeia toda a obra. Cons-trói, até certo ponto, uma relação mágica/fantástica, na qual o homem pasma diante do grandioso. Com isso, ele permite ao sertão romper os seus limites e transcender-se, para uni-versalizar-se. O mesmo acontece quando ele converte aque-la terra em Paraíso, e faz dos Tapuios e Tapuias-Cariris os Cad. Est. Soc. v. & n. 1, p. 137-160, lan./iun., 1992 155

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"geradores primeiros de toda a Raça humana". Proclama. assim, um sertão universal; aponta uma paisagem/espaço, dando-nos a idéia de liberdade e movimento. Mas, paralela-mente, ele volta à segurança, à pausa, ao seu sertão locali-zado, ao seu território/ lugar. Pois, quando as "divindades cariris se ajuntavam carnalmente", gerando bichos e a Raça humana, "no começo imemorial dos tempos" - e sempre sob o olhar da Onça Caetana, com o poder da Morte e do Destino -, "Era, quase sempre, no tempo das chuvas, que tais coisas aconteciam". No tempo das chuvas: época ansio-samente esperada pelo sertanejo da Paraíba, cansado do "sertão velho", o dos grandes estios. As coisas acontecem no "sertão renascido" -, quando a vegetação rebrota, em verde e flores, as aves e os homens migrantes retornam, os rios e açudes transbordam e pacificam as pessoas.

Da mesma forma que o sangue simboliza - além de morte/tragédia -, essencialmente, herança e direito de pos-se dos poderosos, a palavra sonho associa-pos-se a posições pri-vilegiadas, com as quais Quaderna se identifica. Nas passa-gens onde isso ocorre, constatamos também uma alternância de sertões. Sonhos grandiosos permitindo ao personagem-narrador ultrapassar os limites do seu território: vestido no manto e coroa de um Imperador; escudado em fardões e co-roado como o Gênio da Raça Brasileira; usando a roupa sur-rada, mas divina, do "sertanejo-judaico, Jesus Cristo". Esse último refletindo também a religião dominante do seu lugar, a católica. E, desse universo onírico, mágico, de autoridade e poder, ele retorna mais uma vez ao seu canto. Retorna e nos mostra o lado pobre, alegre, e também triste, do seu território/ lugar, através do palhaço e do circo. Considera-se um híbrido de Rei e de Palhaço, mas afirma: "a parte que talvez venha a me salvar seja a do Palhaço de circo-pobre que eu sou".

Olhando essa parte do Brasil, de coloração "castanha" (cor-símbolo da terra de Quaderna e de seu povo), ousaría-mos afirmar, sem desconsiderarousaría-mos outras, que as relações interfamiliares - em torno de objetivos políticos e econômi-cos, originando verdadeiros "clãs" - apresentam-se como a vertente mais significativa para caracterizar o que chamamos de território/ lugar; nesse caso, situado temporalmente nas três primeiras décadas do nosso século. Esses "clãs" de-marcam diversos microterritórios, agregando-se e desagregan-do-se nas disputas políticas, quer selam entre eles próprios, quer sejam para derrubar o inimigo comum do sertão: os re-156 cad. Est. Soc. v. 8, n. 1, p. 137-160, ian./iun., 1992

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presentantes das forças políticas da Capital. Então, temos a configuração do Grande Partido do Território-Sertanejo contra o Grande Partido do Território-Urbano.

Se diagnosticamos essa vertente acima como a mais importante na demarcação do território sertanejo, por outro lado, encontramos na vertente do Sobrenatural a possibilidade maior de o sertão espacializar-se e universalizar-se. Isso ocor-re quando Suassuna incorpora o Sobocor-renatural ao cotidiano, conferindo poderes sagrados a elementos da natureza, e en-contra nessa última vertente, entre outros, o mito da Morte. Ratificando a alternância dos sertões, processo constante na obra, vemos que esse mito universal se corporifica num ani-mal típico das matas sertanejas: a onça.

Assim era (ou permanece?) o sertão de Quaderna/Suas-suna: castanho, pedregoso, espinhento, porém reluzente; po-bre nos estios prolongados, porém verde e renascido pelas chuvas. Habitado e sendo construído por importantes donos e chefes poltticos, com seus feitos de homens-heróis, na convivência com o Povo; este, misterioso e dilacerado, mas leal aos seus chefes, mesmo sem saber para onde a luta de-les o levava. Território/lugar/sertão, observado e transmu-tado pelo sagrado, especialmente pela onça alada da Mor-te. E, nesse clima quase fantástico, o Povo exercitava suas rezas e suplicava a Deus e à Virgem Maria, entre presságios, visões, superstições e lendas, desenhando o perfil sincrético de sua religiosidade sertaneja, nordestina e profundamente brasileira.

Também paisagem/espaço/sertão, assim considerados por tudo isso, e através dos vôos mais afoitos de Ouader-na/Suassuna, perseguindo o sonho, o poder, a beleza, a feiú-ra; tentando universalizar nas fendas e silêncios de sua fic-ção/poesia aquele pedaço de terra: dele, nosso, e do Brasil.

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