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Manual do Vermelho : um resgate analítico-experimental do pigmento Vermilion e dos pigmentos vermelhos medievais através da antiga alquimia da pintura a óleo  

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

MARCIO ALEXANDRE PULGA

MANUAL DO VERMELHO:

UM RESGATE ANALÍTICO-EXPERIMENTAL DO PIGMENTO VERMILION E DOS PIGMENTOS

VERMELHOS MEDIEVAIS ATRAVÉS DA ANTIGA ALQUIMIA DA PINTURA A ÓLEO

CAMPINAS 2016

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MARCIO ALEXANDRE PULGA

MANUAL DO VERMELHO:

UM RESGATE ANALÍTICO-EXPERIMENTAL DO PIGMENTO VERMILION E DOS PIGMENTOS

VERMELHOS MEDIEVAIS ATRAVÉS DA ANTIGA ALQUIMIA DA PINTURA A ÓLEO

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Artes Visuais

Dissertation presented to the Institute of the University of Campinas in partial fulfillment of the requirements for the degree of Master in Fine Arts

ORIENTADOR: PROF. DR.º HAROLDO GALLO ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO

ALUNO MARCIO ALEXANDRE PULGA, E ORIENTADO PELO PROF. DR. HAROLDO GALLO.

CAMPINAS 2016

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Aos grandes alquimistas Theophilus, Plínio, Cennini, Thompson, De Mayerne, Winsor (William), Merrifield, Eastlake, Doerner, Laurie, Toch, Stout, Gettens, Maroger, Reynolds, Church, Mayer, Kirby, Gottsegen, Fels, Groen, de Boer, Carlyle, Bucklow, Boon, Spurgeon, Clarke, Elkins, O´Hanlon e Ferrari.

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AGRADECIMENTOS

Para minha mãe Maria, meus avós Dirce e Lorenzo, minha esposa Luciana e meus filhos Julia, Vito e Larissa.

Aos professores Prof. Dr. Haroldo Gallo, Prof. Dr. Ernesto Boccara, Prof. Dr. Fernando Amed e Prof. Dr. Marcos Tognon.

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“Quando ouvi o sábio astrônomo;

Quando as provas, as fórmulas, foram arranjadas em colunas diante de mim;

Quando foi-me mostrado tabelas e diagramas, para somar, dividir e mensurar;

Quando eu, sentado, ouvi o astrônomo, palestrando sob muito aplauso no auditório;

Quão súbito, inesperadamente, fiquei entediado e cansado;

Até que saí, como quem escapa, vagueando sozinho; Na mística umidade da brisa noturna, e ocasionalmente; Olhando as estrelas em perfeito silêncio.”

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RESUMO

A análise panorâmica dos pigmentos vermelhos usados entre os períodos da antiguidade e do renascimento servem como pano de fundo para uma investigação mais detalhada do pigmento vermilion, compreendendo sua etimologia, história e suas características físicas e simbólicas. Objetivou-se compreender seu contexto para posteriormente reproduzir seu método de fatura através de experimentos práticos. A história do pigmento mostrou-se intimamente ligada à de outros pigmentos vermelhos, tornando praticamente impossível uma definição precisa de sua etimologia. Receitas de seus métodos de fatura extraídas de manuais e tratados de pintura da antiguidade, assim como estudos recentes, foram organizadas e usadas como guia. Foi possível identificar simbolismos ligados aos conceitos de transformação e transcendência do hilemorfismo medieval, denotando ao vermilion o status de símbolo do processo criativo. Esse contexto apresentou fértil terreno de matéria prima simbólica durante a idade média e certamente pode continuar a ser usado como matéria conceitual em processos pictóricos contemporâneos. Testes práticos do processo de fatura do pigmento foram realizados, concluindo que as diretrizes contidas em receitas históricas não são tão precisas quanto as mais recentes, apresentando parâmetros insuficientes ou vagos demais, resultando em matéria com apenas transformação parcial em vermilion. A consulta de estudos mais recentes mostrou-se fundamental para obter resultados de matéria transformada em vermilion com diversas tonalidades, compreendendo desde vermelhos escuros violetados até vermelhos claros alaranjados. O processo mostrou-se de difícil controle, apresentando certa imprevisibilidade de resultados. A notação Munsell do vermelho mais intenso resultante dos experimentos práticos é 10.0R 5/14, o código Pantone é 2349U relativamente similar a algumas tintas industriais modernas que fazem uso de sulfeto de mercúrio (vermilion) em sua composição. A degradação do pigmento é resultado da contaminação de substâncias halógenas, tornando o pigmento foto sensível, portanto, uma problemática isolada. A possibilidade de evitar a lavagem do pigmento durante seu processo de fatura pode contornar essa problemática. A experiência de produção desse material histórico revelou potencial para propulsionar produções no âmbito das artes visuais.

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ABSTRACT

On this study, a broad analysis of the red pigments used through antiquity and the renaissance was the background to a deeper investigation on the pigment vermilion, including ethimology, history and symbolic and physical characteristics. First, a broad comprehension of the historical context of the pigment and later, the method of production. The history of the pigment is deeply connected to the history of other pigments, showing almost impossible to precisely define his ethimology. Recipes of the production method from treatises and painting manuals from antiquity, and recent studies as well, were organized and used as a guide. It was possible to identify symbolisms of transformation and transcendence from medieval hilemorphism, giving vermillion´s status of symbol of the creative process. This context presented a fertile ground for symbolic matter during the middle age and certainly can be used as conceptual matter on contemporary painting process. Practical experiences on the production method of the pigment were conducted, concluding that the directions on historical recipes are not as clear as the recent ones, with insufficient or too vague parameters, obtaining matter only partially transformed into vermilion. Consulting the most recent studies was fundamental to obtain a larger amount of matter transformed into vermilion with diferent colors, from dark violet reds to bright orange red. The process showed difficult to control, presenting certain imprevisibility on the results. The Munsell notation for the brightest red obtained is 10.0R 5/14, Pantone code is 2349U, relatively similar to some industrial colors made today with mercury sulphide. The lightfastness of the pigment is the result of contamination by halogens substances, making the pigment photo-sensible. The possibility of avoiding washing the pigment during the production process could be the answer to this problem. The experience of producing a historical material revealed potential to influence productions inside the visual arts sphere.

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ÍNDICE 1. INTRODUÇÃO ... 12 1.1. OBJETO DE ESTUDO ... 12 1.2. JUSTIFICATIVA E CONTEXTUALIZAÇÃO ... 12 1.3. OBJETIVOS ... 16 1.3.1. Objetivos Gerais ... 16

1.3.2. Objetivos Específicos (Vermilion) ... 16

1.4. HIPÓTESES ... 17 1.5. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ... 23 1.6. DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA ... 24 2. ALQUIMIA ... 27 2.1. RITO E MAGIA ... 27 2.2. FERTILIDADE E SEXUALIZAÇÃO ... 28

2.3. FERREIROS E SACRALIDADE DOS METAIS ... 29

2.4. APROTO-CIÊNCIA E O RACIONALISMO... 32

2.5. PURIFICAÇÃO E REDENÇÃO ... 34

2.6. TRABALHO INTERNO E EXTERNO ... 37

2.7. TEORIA DOS QUATRO ELEMENTOS ... 41

2.8. HILEMORFISMO ... 44

2.9. DECLÍNIO ... 46

3. OS VERMELHOS TRADICIONAIS ... 47

3.1. ETIMOLOGIA DO VERMELHO ... 47

3.2. OS PIGMENTOS VERMELHOS TRADICIONAIS ... 49

3.2.1. Ocres ... 49 3.2.2. Sinópia ... 52 3.2.3. Terra de Siena ... 54 3.2.4. Sangue de Dragão ... 56 3.2.5. Mínio ... 59 3.2.6. Cinabro ... 65 3.2.7. Kermes ... 71 4. O PIGMENTO VERMILION ... 81 4.1. HISTÓRIA ... 81 4.2. DA FISICALIDADE DA COR ... 87

4.2.1. Comparação com outros Vermelhos ... 87

4.2.2. Conclusão Etimológica ... 89

4.2.3. Impermanência ... 92

4.2.4. Métodos de Fatura: Seco e Molhado ... 94

4.2.5. Estágios do Método Seco: Metacinabro (Ethiops) e Alfacinabro ... 95

4.2.6. Adequação das Partículas: Maceragem e Pulverização ... 96

4.3. DOS SIMBOLISMOS DA COR ... 97

4.3.1. O Enxofre ... 97

4.3.2. O Mercúrio ... 99

4.3.3. Simbolismos da União Enxofre/Mercúrio ... 101

4.3.4. Proporção Hilemórfica ou Simbólica ... 103

5. REPRODUÇÃO DO PIGMENTO ... 110

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5.1.1. Compositiones Variae (Codex Lucensis 490 ou Lucca MS) ... 111

5.1.2. Mappae Clavicula... 112

5.1.3. De Diversis Artibus (Schedula Diversarium Artium – Teófilo) ... 113

5.1.4. Libro de Como si Facem as Côres (Hayvin MS ou MS de Parma 1959) ... 114

5.1.5. Liber Diversarum Arcium (Montpellier MS) ... 115

5.1.6. De Coloribus Faciendis (Saint Audemar MS) ... 116

5.1.7. Segreti per Colori (Bolognese MS - 165) ... 117

5.1.8. Il Riposo ... 119

5.1.9. Manuscrito de Bruxelas (Brussels MS) ... 119

5.2. PROCEDIMENTOS DE FATURA MODERNOS ... 120

5.3. REPRODUÇÃO ... 122

5.3.1. Carvão Sem Controle de Aquecimento ... 123

5.3.2. Carvão e Termômetro de Mercúrio ... 126

5.3.3. Carvão e Termômetro Digital ... 129

5.3.4. Chapa Aquecedora, Termômetro Laser e Olhas ... 132

5.3.5. Chapa Aquecedora, Termômetro Laser e Frascos de Vidro ... 135

5.3.6. Chapa Aquecedora, Termômetro Laser e Olhas (Review) ... 138

6. FATURA DA TINTA ... 140

6.1. VEÍCULOS ... 140

6.1.1. Óleo de Linhaça Prensado a Frio... 140

6.1.2. Fatura do Óleo de Sol ... 143

6.2. DISPERSÃO ... 145

6.3. RESULTADOS E PROPRIEDADES ... 147

7. CONCLUSÃO ... 155

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Objeto de Estudo

Os pigmentos vermelhos usados entre os períodos da antiguidade tardia (VII) até aproximadamente a alta renascença (XV), serão usados como pano de fundo contextual para uma análise mais detalhada do pigmento vermilion. Analisa-se suas características físicas e simbólicas:

origens, história, etimologia, simbologias, propriedades corpóreas1 e cromáticas, permitindo estabelecer relações entre essas propriedades e os conceitos metafísicos e proto-científicos da

alquimia, abordados de modo panorâmico.

Posteriormente, estuda-se pormenorizadamente as receitas e seus processos de fatura, mais precisamente o processo a seco, culminando numa reprodução do material numa experiência

prática. Essa experiência forneceu material analítico físico, na forma do pigmento histórico,

permitindo uma identificação visual precisa e científica do pigmento autêntico, identificando-o através dos sistemas Pantone e Munsell.

Esse estudo não tem como objeto de estudo o processo molhado de fatura do vermilion, a análise do modo como essas cores eram usadas em obras do período, sua função estética formal num campo pictórico, os aspectos perceptivos da cor vermelha, as teorias ou a psicologia das cores ou os pigmentos vermelhos anteriores a antiguidade (pré-história) ou após o renascimento.

1.2. Justificativa e Contextualização

1.2.1. Arqueologia Pictórica e os Materiais como Obra

Praticamente todos os pigmentos da antiguidade identificados com algum tipo de problema de permanência cromática foram substituídos por cores sintéticas2. O pigmento vermilion é um exemplo, tornando-se um material consideravelmente raro, praticamente estranho ao pintor contemporâneo. Esses pigmentos obsoletos foram substituídos por novas cores. Esses novos substitutos, possuem características cromáticas similares, sendo em quase todos os casos, mais duráveis e menos tóxicos3. É importante lembrar que a permanência ou durabilidade de uma cor não se resume apenas a uma dualidade permanente ou impermanente, mas caso de uma gradação de permanência, possuindo níveis intermediários e complexos. O mesmo pode se dizer sobre a classificação de toxidade desses materiais.

1 Pastosidade, alastramento, cobertura, opacidade, transparência, e outras propriedades reológicas.

2 Ver Tabela 15, contendo o resultado de pesquisa sobre as tintas industriais que usam o pigmento vermilion

autêntico, e não um substituto moderno, em suas formulações.

3 Embora os substitutos mais recentes do vermilion sejam atóxicos, como os orgânicos sintéticos, o vermilion foi

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É claro que a substituição de materiais de pintura tóxicos por materiais menos perigosos, ou até atóxicos, é uma prática desejável, assim como a substituição de cores com permanência duvidosa por outras duradouras. Mas é inegável que o obsoletismo industrial acaba, por outro lado, prestando um serviço as avessas para a salvaguarda da história dos materiais e dos processos pictóricos, pois dificulta a formação de memória do material. A discussão sobre toxidade não é o foco desse estudo. Mas, é válido lembrar que materiais tóxicos oferecem riscos praticamente nulos quando manipulados de maneira adequada.

A questão da permanência, no entanto, é de especial interesse nesse caso, sendo que, ao que tudo indica, é justamente essa característica que tornou o vermilion obsoleto. No entanto, os pigmentos impermanentes eram amplamente usados no passado, devido o desconhecimento de substitutos mais permanentes. Os defeitos eram conhecidos, mas abraçados. Em alguns casos, contornados de alguma maneira. Em muitos casos, os substitutos mais duráveis, ou menos tóxicos, são substâncias que apesar de similares em alguma característica, como por exemplo, a cor, podem mostrar grandes diferenças em outra propriedade, como por exemplo, transparência, sub-tom, temperatura, secagem, entre outros. Portanto, ganha-se por um lado, mas perde-se em outro. Dessa forma, alguns materiais com propriedades muito particulares podem acabar sendo substituídos por substâncias não tão interessantes da perspectiva formal ou processual para o artista. Além disso, muitos desses materiais passaram por centenas de anos em uso, construindo uma memória que é parte intrínseca do grande panteão simbólico e histórico da pintura. Quando a indústria substitui um material tradicional por um novo, sua história é lentamente esquecida, assim como o conhecimento empírico de seu uso.

A grande maioria dos artistas naturalmente aceitam as inovações da indústria, que por sua vez possui algum interesse comercial na inserção desse novo produto. A substituição de um material sempre oferece algum ângulo conveniente ao fabricante, quase nunca ao artista. O material que é substituído por alguma novidade entra na lista de obsoleto, primeiramente desaparecendo das prateleiras e lentamente caindo em desuso, juntamente com sua história e simbologias adquiridas através do tempo, história que muitas vezes atravessou oceanos, construída em diferentes períodos e por diferentes culturas, passada de geração em geração, formando a aura de determinado pigmento. Os novos materiais, por demais jovens, possuem significantes que se limitam a indicar uma simples novidade, um fruto de nosso tempo e de uma tecnologia recente, que ainda há de adquirir alguma significação. Em suma, tornou-se comum, por conta de uma perspectiva comercial, o abandono de materiais repletos de história. Os artistas geralmente investem nesses substitutos muitas vezes por ignorarem a história e o uso dos materiais tradicionais, esses, conhecidos hoje apenas por historiadores e conservadores dedicados. Todos os pigmentos vermelhos analisados nesse estudo são materiais que ajudaram a formar a história da pintura clássica, com uma longa e pesada carga

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história. Cada uma dessas cores possui sua importância na narrativa que ilustra a história do vermilion.

A cor denominada vermilion remonta a antiguidade clássica, um pigmento com uma história de pelo menos 2600 anos, possivelmente mais antiga. É importante que o artista saiba que absolutamente qualquer material pictórico tradicional, principalmente os pigmentos, compreendem muito mais do que uma mera informação visual ou tátil a ser usada num suporte adicionando informação matérica, como sua cor ou textura. Cada material também oferece um repertório simbólico e de indícios históricos.

Por trás da história dos materiais residem inúmeras narrativas que conservam o contexto ontológico de determinados períodos e culturas. Tanto as origens do material como o modo ou o período no qual foi usado foram responsáveis por definir associações que brotam na mente do artista e do observador que conhecem parte de sua história. É por esse motivo que dissecar cada pormenor da história de um pigmento, resina ou óleo vegetal se faz importante: é um resgate de dados ontológicos que permitem estabelecer novas relações com obras pictóricas, e por que não, novos rumos criativos. Esse resgate, sendo de especial interesse aos pintores que desejam desenvolver um diálogo com a arte do passado e a herança alquímica da pintura, enaltece em sua poética um discurso autorreferente (a pintura que trata sobre pintura), assim salvaguardando as tradições pictóricas arcaicas e a história da tecnologia dos materiais. O uso de um material histórico implica na conservação de nossa história, é uma oportunidade para redescobrir caminhos que são geralmente deixados de lado, principalmente quando um material secular é rotulado como obsoleto pelo interesse das grandes indústrias.

Os manuais e publicações sobre materiais artísticos comumente suprimem ou ignoram as informações aprofundadas sobre a autossuficiência e a artesania dos artistas e ateliês do passado, como por exemplo, sobre a fatura manual de tintas e pigmentos. Nos melhores casos, esses dados são vistos de forma superficial. Grande parte disso é em função de nossos hábitos imediatistas e do consumismo contemporâneo, um ciclo vicioso: as lojas oferecem produtos “melhores”, convenientemente prontos para o uso, e o artista, geralmente “sem tempo”, abraça essa conveniência, confiando cegamente nos fabricantes. É possível que os artistas tenham perdido os parâmetros necessários para se julgar o que significa qualidade. O abandono das práticas de construção de materiais artesanais, isto é, aqueles feitos pelas próprias mãos do artista, prática que formava e desenvolvia um conhecimento muito específico, representa a transferência do conhecimento de fatura do artista para a indústria. Note que, os industriais, raramente são artistas embrenhados em processos pictóricos, especialistas em poéticas e práticas artísticas ou nas propriedades formais que interessam aos pintores.

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O desinteresse do artista sobre esse conhecimento é um dos motivos pelos quais os manuais e livros de pintura praticamente evitam falar sobre os métodos de produção artesanal. Os autores certamente estão cientes de que seus leitores ignoram ter capacidade de faturar seus materiais ou sequer cogitam essa possibilidade pois não lhe é conveniente, o padrão é o consumo de um produto pronto, industrializado. Em verdade, o grande público sequer sabe da disponibilidade da venda de pigmentos em lojas de materiais artísticos, pois sequer conhece os ingredientes mais básicos para se faturar uma tinta: veículo e pigmento.

Parte do resgate pretendido por essa pesquisa é fruto do que poderia ser chamado de uma

arqueologia pictórica acerca dos materiais, um termo cunhado por nós ao longo do percurso

acadêmico, refere-se ao ato de recuperar e organizar os detalhes históricos de um material obsoleto ou em vias de se tornar obsoleto. Esse resgate, vem principalmente da necessidade de se conhecer intimamente todos os processos na tentativa de dominar o antigo conhecimento artesanal. Além de uma ferramenta para salvaguardar a história da tecnologia pictórica, o conhecimento ganho dessa pesquisa possibilita uma certa independência dos materiais industriais, mesmo que isso signifique abrir mão da “conveniência” dos materiais prontos, um preço baixo a se pagar quando se tem em retorno um conhecimento outrora esquecido.

Outra faceta interessante dessa arqueologia está na possibilidade de que essa investigação propulsione novos caminhos práticos e conceituais dentro das artes visuais, estabelecendo diálogos diretos com a produção, pois baseiam-se num fértil terreno de símbolos e significantes contido na história desses materiais. Essas simbologias, implícitas na superfície do pigmento, agregam ao discurso poético enriquecendo o processo criativo, a obra e sua fruição. Quando o artista em processo pesquisa e entende o contexto de um material, cria-se um arquivo imagético e de significantes passíveis de influência no modo como o material é usado. Quando se tem consciência do contexto histórico do azul ultramar produzido com lápis lazuli4, a postura e intenção do artista no modo como pretende usar esse material certamente é diferente de quando faz uso do azul ultramar feito com um pigmento sintético comum, começando pelas óbvias diferenças, como por exemplo, sua exorbitante diferença de disponibilidade no mercado e custo5. O mesmo pode ser dito de uma outra infinidade de materiais históricos, como é o caso do vermilion. A pesquisa do fazer pictórico, que inclui a história dos materiais, pode fazer muito mais do que agregar: pode ser um ponto de partida, ou a linha principal, que guia toda uma produção.

4 Pedra semi-preciosa azulada usada amplamente no oriente para criação de obras de arte.

5 O Azul Ultramar sintético (PB29) é usado amplamente na indústria de tintas, enquanto o azul ultramar legítimo só

pode ser adquirido sob encomenda em cinco lojas no mundo todo (Zecchi, Robert Doak, Michael Harding, Natural Pigments ou Kremer). Também pode ser feito no ateliê com pedras de lápis lázuli importadas do Afeganistão, caso o artista tenha conhecimento do complexo e demorado processo de fatura.

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Como conclusão, justifica-se o estudo pormenorizado de um material obsoleto como um resgate de parte da autenticidade de um material em particular, uma espécie de postura processual que preza por um nível histórico e por que não científico de autenticidade. Embora esse presente estudo sobre vermelhos compreenda apenas um grupo de pigmentos, apenas uma pequena contribuição a um “todo” infinitamente mais amplo, é de certa maneira, um meio de conservação de um patrimônio cultural, não de uma obra física, mas de hábitos e posturas processuais, assim como da

história desses materiais.

Além disso, no caso específico do vermilion, a organização de dados que defina suas características torna-se pertinente devido à falta de fontes que apresente essas características de modo visual e qualitativa em termos científicos: essa definição pode servir de auxílio aos artistas como um guia visual e descritivo com a cor do pigmento indexada pelos sistemas Pantone e

Notação Munsell, para identificar com exatidão suas características visuais e corpóreas. Esse guia

visual poderá servir como interface aos artistas interessados em usar ou estudar as propriedades cromáticas desse tradicional e histórico pigmento.

1.3. Objetivos

1.3.1. Objetivos Gerais

Uma análise panorâmica da história, origens, etimologia, simbologias e características físicas dos pigmentos vermelhos usados nos períodos da antiguidade tardia (VII) até aproximadamente a alta renascença (XV) assim como uma análise panorâmica do pensamento alquímico como forma de contextualização para melhor explorar as relações entre o pigmento vermilion e os conceitos alquímicos dos períodos em questão.

1.3.2. Objetivos Específicos (Vermilion)

Resumo dos indícios simbólicos do pigmento vermilion;

 Organização de receitas da fatura do pigmento dos períodos citados;

 Produzir e registrar um experimento prático de reprodução dos métodos de fatura;  Produzir amostras de tinta a óleo usando o pigmento resultante;

 Identificar as características formais e plásticas do pigmento vermilion, sendo elas:

matiz, valor, temperatura, sub-tom (tint6), pastosidade, transparência/opacidade, brilho, tempo de oxidação (secagem);

6 Tint (Sub-tom): Clarear uma cor adicionando uma cor mais clara; adição de branco a uma cor; cor original misturada

a uma tinta branca. O procedimento possibilita o entendimento cromático de como a cor original se comporta misturada a tintas mais claras, mostrando suas tendências cromáticas secundárias ou sub-tom. Como exemplo: alguns

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 Comparar as diferenças entre o vermilion produzido na experiência prática com as tintas industriais feitas com sulfeto de mercúrio (vermilion).

 Identificação cromática do pigmento a partir dos sistemas Pantone e Notação Munsell.

1.4. Hipóteses

As hipóteses estão divididas entre conceituais e operacionais. Elas são explicadas em detalhes nos itens 1.4.1, 1.4.2 e 1.4.3., e de forma pontual e objetiva, abaixo:

 Conceitual: A prática da fatura dos materiais e do conhecimento alquímico representa mudanças fundamentais no processo de pintura contemporâneo?

 Conceitual: O uso de materiais sintéticos, do ponto de vista formal, poético e processual, são um distanciamento da autenticidade?

 Operacional: Quais os graus de diferença possíveis de se atingir quando variamos alguma operante empregada no processo de fatura do pigmento vermilion?

 Operacional: As operantes apresentadas nas receitas medievais são adequadas para processar vermilion?

 Operacional: Existem diferenças físicas entre o vermilion reproduzido nesse estudo e as tintas feitas com sulfeto de mercúrio disponíveis no mercado?

 Operacional: Qual a cor do pigmento vermilion produzido na experiência prática desse estudo, segundo as diretrizes Pantone e notação Munsell?

1.4.1. Hipótese Conceitual: A Fatura dos Materiais

Acerca das questões processuais, que interessam aos profissionais aplicados na área das Artes Visuais, questiona-se: as práticas da fatura dos materiais, aliadas ao profundo conhecimento

alquímico das substâncias empregadas na pintura, incluindo suas histórias de origem e simbologias,

podem trazer mudanças fundamentais ao processo de pintura contemporâneo?

Em outras palavras, quais as mudanças na postura do artista acerca de seus materiais e por que não, acerca de seu processo e poética, quando o mesmo faz uso de materiais gerados desde o início dentro do ateliê, por suas próprias mãos, e não comprados prontos numa loja de materiais artísticos?

vermelhos, direto do tubo, parecem iguais, mas a medida que mistura-se ambos com branco, vemos que um tende mais para o laranja e o outro para o rosa.

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1.4.2. Hipótese Conceitual: Autenticidade

As teorias da conservação, oficializadas através de diretrizes transcritas nos documentos chamados cartas de restauro7, padronizam o modus operandi da conservação de nossos

monumentos e obras de arte, objetivando a todo custo preservar a autenticidade e integralidade física das obras. Parte dessa discussão, exposta nas obras de Françoise Choay8 (CHOAY, 2001), gira não somente em torno do questionamento sobre a validade e a eficácia desses métodos, mas como sobre a necessidade de uma definição mais clara de autenticidade9, questionamento que permite uma pertinente relação a esse estudo.

No campo do restauro pictórico atual, as tintas usadas para intervir numa obra restaurando os setores afetados pelo tempo devem possuir cores e propriedades que não serão apagadas pelo tempo e obrigatoriamente de fácil remoção, isto é, não permanentes. A prática tem as seguintes preocupações: a facilidade de remoção no material impede que qualquer profissional faça intervenções definitivas, isto é, que não possam ser retiradas no futuro. A permanência10 deve estar somente na intensidade das cores empregadas ou na estabilidade dos materiais que permanecerão nas áreas retocadas. O material de conservação ou restauração deve ter características imutáveis enquanto permanecerem na obra, mas devem ser impermanentes no sentido de não afetarem a obra de forma irreversível. É claro que o objetivo e a preocupação central dos conservadores nesse caso é não afetar o “estado original” da obra, empregando materiais de fácil remoção, permitindo que a qualquer momento “volte-se a trás”, assim obtendo suas condições anteriores e originais.

Essa resolução coloca a problemática de autenticidade de modo muito bem resolvido dentro da área de conservação: a originalidade do material não é primordial, mas sim sua aparência e propriedades de remoção. Por outro lado, é interessante pensar que, os materiais aplicados em uma restauração são substâncias de naturezas diferentes aquelas usadas no passado, não correspondendo a aquelas usadas no período o qual a obra foi pintada originalmente.

Mas, quando deslocamos as questões de autenticidade para a área dos processos de pintura, dentro do mérito que cabe somente aos artistas, é possível considerar uma outra perspectiva.

Para criar-se uma obra, é necessário um processo. As escolhas dos materiais são parte intrínseca e inseparável do processo pictórico. Desde a escolha do tamanho e tipo do suporte, sua

7 Dentre elas, as Cartas de Atenas (1931-33), Carta de Veneza (1964) e a Carta do Restauro (1972). Todas disponíveis

em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/226.

8 Françoise Choay (França, 1925): Historiadora do urbanismo e arquitetura. Professora de urbanismo, arte e

arquitetura da Université de Paris.

9 Autenticidade no âmbito da conservação e restauro, quanto a questão de métodos de conservação invasivos que

alteram e maculam a autenticidade dos monumentos, estruturas, esculturas, pinturas, etc.

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imprimação11, a escolha de quais marcas de tintas serão empregadas, as cores disponíveis na paleta, a temática a ser pintada e finalmente chegando ao processo de execução, que após longo período, voltará a exigir novas escolhas do artista: necessidade de proteção, tipo de verniz a ser aplicado, etc. Há uma infinidade de decisões e escolhas que edificam a obra. Se quaisquer uma dessas escolhas fosse diferente, teríamos certamente uma obra diferente. Essas escolhas começam muito antes do artista ter alguma ideia do que irá pintar e posteriormente, já munido com sua paleta, uma nova enxurrada de decisões: a escolha de uma cor a ser colhida pelo pincel, ou com qual pressão essa cor será arrastada na tela, entre muitas outras. Algumas dessas decisões podem parecer demasiadamente simples, tomadas em uma fração de segundos, para aqueles alheios ao processo, mas cada passo define-se como uma escolha, que somadas, resultariam num banco de dados interminável, caso registrássemos cada uma dessas decisões. Por trás desses milhares de escolhas que regem a fatura de uma obra, há um conhecimento técnico12.

Os alquimistas referiam-se a alquimia como a “a grande arte”, arte não no sentido como conhecemos hoje, pois esse conceito ainda não existia, mas no sentido de “a grande artesania” ou “a grande técnica”. Note que, a expressão está diretamente relacionada com a manipulação e o conhecimento pragmático dos materiais. O conhecimento ou o saber artístico, isto é, a artesania ou

tékhne13 é o que dá forma a esses objetos. O pintor articula esse conhecimento perambulando no âmbito da fisicalidade das substâncias e muitas vezes no âmbito contextual e histórico14 desses materiais, determinando essas escolhas. Nas significativas palavras de James Elkins15:

Para um artista, uma pintura é tanto a soma de ideias quanto memórias borradas do arrastar da tinta, aspirar gases, escorrer óleos, limpar pincéis, esfregar, diluir e misturar. Pensamentos pré-verbais misturados a conceitos nomeáveis[...] [...]as memórias dos materiais não são comumente parte do que se diz sobre uma pintura, e isso é uma falha em sua interpretação

(ELKINS, 2000, p. 2, tradução nossa).

11 Prática de cobrir o suporte com uma “base” feita a partir de alguma mistura que dê cobertura para o suporte. Na

antiguidade, geralmente uma mistura de cola animal com gesso crê. Hoje, geralmente usa-se uma aplicação de gesso acrílico. No brasil, a grande maioria dos pintores usa na verdade algumas demãos de tinta acrílica de parede, um hábito duvidoso do ponto de vista da conservação, sendo que o material não é desenvolvido para perdurar.

12 Mesmo que ínfimo, o conhecimento técnico é indispensável para que a obra perdure ou que a menos seja realizada

sem dificultar ou anular o processo.

13 Tékhne: do grego, conhecimento do artesão, artesania ou arte.

14 A aplicação e uso do pigmento Azul Ultramar, por exemplo, era empregado nos mantos das Maddonas, por causa

de seu simbolismo vinculado a pureza, mas também pela sua raridade ou dificuldade de obtenção, isto fazia dele um pigmento de altíssimo custo, sendo usado também no lugar do ouro.

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A descrição de Elkins ilustra de maneira precisa os tipos de “articulações mentais” usadas para manipular os materiais de pintura. Esses pensamentos operam juntamente com o conhecimento das propriedades desses materiais: transparência, opacidade, densidade, cobertura, alastramento, fluidez, compatibilidade com outros pigmentos, permanência, temperatura cromática, tamanho de partícula, elasticidade, toxidade, raridade, modo de preparo, quantidade e uma infinidade de informações que invadem a mente do artista em processo, todas associadas a propriedades dos materiais. Essas articulações, são a prima matéria dos processos.

Esse conhecimento técnico específico também inclui outras propriedades menos óbvias, como os significantes dos materiais, isto é: suas origens, história, contexto e cargas simbólicas. Portanto, a grosso modo, as escolhas dão os rumos estéticos e conceituais do processo, moldam sua estrutura física e sua aura de obra de arte, essas qualidades comandam a postura do pintor diante do uso do material: o material pictórico, e seus significantes, definem o processo e o que a obra é.

As recentes gerações de artistas parecem mais interessadas nos procedimentos clássicos de pintura do que os artistas das gerações influenciadas pelo modernismo e pela arte conceitual, ou

anti-arte. Aparentemente há um novo renascimento das modalidades que contam com esse

conhecimento técnico mais específico, como a pintura figurativa naturalista, deixando de serem vistas como territórios que chegaram a um esgotamento. A prova disso é o ressurgimento de ateliês16 neoclássicos, que operam de modo paralelo as faculdades e universidades, oferecendo instrução baseada nos princípios do antigo academicismo, no pragmatismo técnico que tem como principal meio a manipulação dos materiais e a representação da natureza de forma fidedigna, um naturalismo baseado em mimetismo. Na década de oitenta e setenta o número de escolas com esse tipo de instrução era substancialmente menor17.

Muitos desses jovens artistas, interessados em redescobrir esse conhecimento, acabam usando como principal fonte de informação livros que exploram uma temática comumente chamada de “os

segredos dos Velhos Mestres”. Essas publicações, com relativa abundância no mercado18,

16 Alguns exemplos são: Florence Academy of Art, Angel Academy of Art, Studio Incamminati, Charles Cecil Studios,

ARA (Academy of Realist Art), New Masters Academy, Los Angeles Academy of Art, Grand Central Atelier, Saint Petersburg Imperial Academy of Art, entre muitos outros. O uso do termo “academia”, presente em quase todos os

nomes revela muito sobre a proposta dessas escolas.

17 Algumas instituições européias e poucas outras nos EUA, onde, ainda assim, os cursos não tinham o objetivo de

permanecer completamente enraizados nos fundamentos estritamente técnicos, para obter resultados de alto nível naturalista, ou realista, o que é o caso desses novos ateliês, ou “academias”.

18 Um famoso exemplo disso é a publicação de Joseph Sheppard, “Como Pintar como os Velhos Mestres” (How to

Paint Like the Old Masters), Watson-Guptill, 1983. Oferece exemplos em “passo a passo” de como pintar na “maneira”

de vários mestres, e apesar das pinturas serem bem executadas, não dispõem de fundamentação que ofereça fatos científicos para cada uma das técnicas apresentadas. Os métodos são uma idealização moderna de como chegar a um resultado estético semelhante, mas não historicamente ou cientificamente preciso.

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apresentam meios de simular a maneira19 de determinados mestres. São geralmente escritos e editados por pintores fora do âmbito acadêmico, e por conta disso, apesar de possuírem boa experiência empírica em técnicas de pintura, compreendem um conhecimento geralmente destituído de método científico ou provas factuais que atestam a autenticidade desses supostos procedimentos usados na antiguidade.

O artista que deseja se envolver seriamente na reconstrução detalhada dessas técnicas, da forma mais autêntica possível, quando se apoia nessas publicações de natureza extra acadêmica deve esperar somente uma aproximação romantizada dos processos da antiguidade, um meio que apenas assemelha-se a estética final de um determinado modus operandi, mas não per se. Dessa forma, o artista pesquisador interessado nessa pesquisa, deve usar como principal meio de estudo, pesquisas de cunho científico, ou correr o risco de um afastamento da autenticidade.

Assim como os conservadores e restauradores preocupam-se com a questão da autenticidade dos monumentos e objetos artísticos, não deveriam os artistas comprometidos em reconstruir esses processos, considerar a busca de métodos com maior precisão científica, primando por um caminho mais autêntico? O pintor que deseja alcançar uma estética ou atmosfera parecida com aquelas das pinturas de Rembrandt Van Rijn deve usar materiais modernos, ou deve procurar ao invés disso, correspondentes mais próximos aos materiais originais usados pelo Mestre?

É fundamental que o pintor pesquisador questione seus objetivos e estabeleça quais os níveis desejáveis de autenticidade em sua pesquisa, processo ou obra. No caso de uma pesquisa que almeja a reconstrução histórica-científica, só lhe resta uma única opção: o apoio em pesquisas validadas no âmbito acadêmico, isto é, deixar a esfera das especulações e do genérico e obter a maior aproximação possível da autenticidade desses métodos, incluindo uma definição assertiva sobre os materiais originais, diga-se, autênticos.

Quando um artista necessita de uma imersão processual que bebe na fonte dos Velhos Mestres, ele deve se questionar: quão próximo a verdadeira técnica de particular escola ou artista gostaria de me aproximar? E, o que seria de fato autêntico, para o caso dessa escola ou artista em particular? No evento do artista decidir que deseja fazer uso das técnicas e dos materiais mais autênticos possíveis, até que ponto é válido, por exemplo, o uso de materiais modernos que apenas simulam aqueles usados na escola em questão? Somente uma “similaridade” cromática entre o pigmento original e um substituto moderno pode ser considerado autêntico suficiente? Para um artista em processo, que almeja estudar e simular uma técnica específica, é necessário fazer uso de exatamente

19 Frases como “alla Rembrandt” ou “alla Caravaggio” são comumente usadas para se referir a uma maneira de pintar

ou a atmosfera geral das obras com “determinados estilos”. Denominar obras como “caravaggescas” ou “rembranescas” é um costume muito usado em inúmeras línguas.

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os mesmos materiais usados pelo pintor estudado? Se a escola de pintura analisada, ou pintor em particular, costumeiramente preparava seus materiais, é válido usar materiais produzidos por máquinas industriais e simplesmente ignorar o fato de que antes, cada artista produzia seu próprio material? O uso de um material similar, mas não exatamente igual, não representa um distanciamento da autenticidade?

Choay (ibid, 2001) discute a problemática de autenticidade e a adequação do uso de materiais empregados na conservação de monumentos históricos. Numa pesquisa científica de artes visuais, onde o artista pesquisador tem a pretensão de alcançar a estética plástica dos antigos métodos, usando os mesmos materiais de pintura, não seria pertinente comparar e analisar as diferenças, nesse contexto, entre materiais modernos substitutos e materiais autênticos? Além disso há de se avaliar a questão do processo em si: quais as diferenças não somente estéticas e expressivas, mas as diferenças de pensamentos, hábitos e posturas processuais, entre os artistas que usam materiais prontos (industriais) e aqueles que se envolvem na produção artesanal de materiais históricos?

1.4.3. Hipótese Operacional: O Vermilion e suas Receitas

Hipóteses referentes as questões processuais, de natureza prática, relacionadas as problemáticas de nosso experimento de reprodução do pigmento vermilion:

 As receitas medievais apresentam inúmeras diferenças em suas operantes: o tempo de cozimento, a temperatura de aquecimento, a proporção entre os ingredientes, o formato do frasco, entre outras. Quais as consequências no produto final (o pigmento vermilion) quando aplicamos essas diferenças processuais? Quais as variações cromáticas do vermilion resultante de receitas com diferenças nas operantes? Em outras palavras: quais os graus de diferença possíveis de se atingir quando variamos alguma operante empregada no processo de fatura?

 As obras de Clarke e Mello nos advertem que as proporções entre os ingredientes para gerar o pigmento vermilion, usadas na maioria das receitas medievais, são na verdade uma metáfora hilemórfica, uma espécie de poesia alquímica, inserida nas receitas para indicar que os elementos precisam estar em harmonia, portanto, as proporções não funcionam na prática. Com o experimento prático, será possível discernir se essa proporção simbólica é adequada para a fatura do pigmento? Portanto, pergunta-se: nenhuma das proporções hilemórficas apresentadas nas receitas é capaz de processar vermilion? Nenhuma das receitas apresenta as proporções corretas?

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 Há diferenças físicas (cor, transparência, cobertura, secagem) entre o pigmento gerado através dessas receitas e as tintas industriais feitas a base de sulfeto de mercúrio?

1.5. Procedimentos Metodológicos

O método consistiu em primeiramente organizar e sistematizar as informações sobre os vermelhos tradicionais em ordem cronológica e posteriormente organizá-los em dois principais assuntos: etimologia e características físicas. Após a confecção de um texto organizado e compreensivo sobre a etimologia e as características dos pigmentos em questão, baseado numa bibliografia em ordem cronológica, organizou-se as receitas encontradas nos tratados e manuscritos de pintura dos períodos em questão sobre o processo de fatura do vermilion. A pesquisa sobre os fundamentos alquímicos foi organizada e delineada separadamente, levando-se em consideração a necessidade de abordar a alquimia pelas perspectivas da história, da psicologia e das artes visuais.

O método operacional para investigar as receitas a serem usadas no experimento prático consistiu em separá-las e organizar cada operante contida nos procedimentos para testando os diferentes parâmetros. Posteriormente, uma análise dos estudos mais recentes acerca desses processos foi usada como uma comparação dos operantes das receitas históricas.

As cores resultantes dos experimentos foram identificadas através dos sistemas Pantone e

Munsell, para a definição teórica da cor e o registro fotográfico comparativo com outras tintas

industriais a base de sulfeto de mercúrio usados para a criação de um exemplo ou guia visual. A definição quanto ao uso de ambos sistemas de identificação ocorreu devido aos diferentes hábitos processuais entre o campo de conservação e restauração nacional e internacional. A maioria das pesquisas, artigos e teses de conservação brasileiras que necessitaram de precisão cromática fazem uso do sistema Pantone como ferramenta de precisão, enquanto os artigos e pesquisas estrangeiros fazem uso quase que exclusivamente do sistema de Notação Munsell. Não foi possível encontrar textos que explicassem a preferência dos pesquisadores e profissionais brasileiros pelo método de comparação com o guia Pantone. É provável que o alto custo do livro de Munsell e a inexistência de material Munsell traduzido para o português explique a escassez de uso desse sistema no Brasil. Vale notar que o sistema Pantone é de entendimento praticamente imediato e intuitivo, enquanto para colocar em uso o sistema Munsell é fundamental uma pesquisa sobre as aplicações e uso do método no campo das artes visuais, sendo necessário a leitura de longas explanações teóricas ou pelo menos um livro introdutório, o qual não há versões em português disponíveis no mercado. Não faz parte do escopo desse estudo uma análise de suas diferenças ou a discussão de quais sistemas é o mais indicado.

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1.6. Discussão Bibliográfica

Como primeiro passo, inúmeras publicações20 sobre pigmentos vermelhos, contendo textos dos períodos da antiguidade, passando por toda a idade média até o alto renascimento foram submetidas a uma leitura analítica. Após uma organização bibliográfica, classificamos as obras e organizamos por ordem de importância as mais úteis para a elucidação das questões levantadas.

A bibliografia mostrou-se incrivelmente ampla, esclarecedora quase que em absolutamente todas as dúvidas ou impasses que surgiram. É uma prova de que grande parte das questões acerca do vermilion foram estudadas e respondidas, revelando um lúcido material bibliográfico. As obras científicas mais antigas que tratam sobre os contextos históricos dos vermelhos são de Sir Charles Lock Eastlake21 (EASTLAKE, 1847), Mary Merrifield22 (MERRIFIELD, 1849), e Daniel

Thompson23 (THOMPSON, 1956), pilares fundamentais da história das técnicas e dos materiais

artísticos, pesquisadores que praticamente iniciaram o campo de estudos da tecnologia e da história dos materiais. Obras ainda atuais, com incrível material em prosa acerca de mitos e lendas de pigmentos e materiais da antiguidade clássica. Ainda sobre o contexto histórico desses pigmentos, os espanhóis Aglio e Moya (AGLIO; MOYA, 2003) proveram um panorama recente sobre a história dos vermelhos tradicionais, sobretudo do vermilion, absolutamente completo e preciso, servindo como um ponto de partida organizado e compreensivo.

A obra e pesquisa de Clarke (CLARKE, 2001a), mostrou-se um impressionante guia, organizando manuscritos arcaicos sobre pintura, essencial para compreender de modo geral o conteúdo dos manuscritos europeus sem necessariamente passar por todo o trabalho de procurar uma cópia (geralmente rara) para somente depois descobrir que determinado manuscrito não contribuía para essa pesquisa. Sem esse guia detalhado e organizado, não seria possível colocar em

20 Há abundante informação sobre a cor, em obras de todos os períodos, mas o maior número de receitas para a

fatura do pigmento se concentra principalmente em manuscritos da baixa e alta idade média. Já no Renascimento, o pigmento era tão popular que Cennino Cennini, em sua obra de 1400, Il Libro dell´Arte nem se dá o trabalho de descrever seu processo de fatura, devido a grande “disponibilidade”, tanto de receitas, quanto do próprio material, no mercado.

21 Sir Charles Lock Eastlake (1793-1865), Plymouth, Inglaterra. Pintor, poliglota, tradutor e escritor. Eastlake foi

presidente da Royal Academy of Art e escreveu duas importantes (e extensas) obras sobre a tecnologia e as técnicas de pintura da antiguidade. Escreveu cinco livros sobre a tecnologia dos materiais artísticos. Também é lembrado por sua tradução da Teoria das Cores de Goethe.

22 Mary Philadelphia Merrifield (?-1889), Inglaterra. Escreveu seis livros sobre a tecnologia dos materiais artísticos,

uma dessas publicações, em dois volumes, permanece como um dos pilares fundamentais da história dos materiais artísticos, pesquisa fomentada e bancada pela coroa britânica.

23 Daniel Varney Thompson (1902–1980), Inglaterra. Foi historiador da arte, tradutor e professor de Harvard e do

Courthald Institute. É comumente lembrado como o tradutor da versão definitiva em inglês para o tratado Il Libro

dell´Arte de Cennino Cennini. Thompson reproduziu inúmeras experiências e receitas do tratado para que pudesse

compreender melhor a obra e assim, traduzí-la satisfatoriamente. Escreveu 18 obras relacionadas a tecnologia dos materiais de pintura, principalmente dos períodos da antiguidade e da idade média.

(25)

perspectiva a ordem, conteúdo e a relevância dos manuscritos. Além disso, foi fundamental para entender a real disponibilidade dessas obras: quais foram publicados, datas de publicação e as línguas para os quais foram traduzidos.

Foram de grande valia, para análises científicas sobre a funcionalidade química e física do pigmento vermilion, as pesquisas de Nöller (NÖLLER, 2013), Roy (ROY et al., 1993) e para o experimento prático, os excepcionais estudos de Melo (MELO et al., 2013) e de Miguel (MIGUEL et al., 2011). A pesquisa desses portugueses, é hoje, a mais completa e compreensiva sobre o vermilion como material químico dentro das artes visuais, a reprodução prática desse estudo teria sido um fracasso sem o conteúdo pertinente dos portugueses. As pesquisas mais antigas, de Bell (THOMPSON, 1956, p. 98), Toch (TOCH, 1911) e Gettens (GETTENS; FELLER; CHASE, 1972), e serviram de sustentação para as pesquisas citadas acima, tornaram-se habituais fontes consultadas. A história e os conceitos alquímicos tomaram forma através das obras de Burckhardt (BURCKHARDT, 2006) e de (JUNG, 1990). Enquanto o primeiro trata do tema a partir de uma visão espiritual, quase esotérica, o segundo mostrou-se útil por sua visão que analisa a alquimia pela perspectiva da psicologia e pela sua analogia com o inconsciente humano. A obra de Mircea Eliade (ELIADE, 1979) provou-se como uma das mais importantes para esse estudo, contribuindo com um entendimento profundo dos primórdios dos ritos mágico-religiosos que se desenvolveriam naquilo que conhecemos hoje como alquimia.

A obra de Francoise Choay (CHOAY, 2001), voltada a conservação e arquitetura, foi de extrema valia para acrescentar indagações acerca da conservação e da salva guarda do patrimônio, mas principalmente, para suscitar reflexões pertinentes a definição de autenticidade dentro das artes visuais.

Os conceitos de espiritualidade e sacralidade no fazer artístico, mais precisamente na pintura, que estão automaticamente relacionados aos simbolismos alquímicos do vermilion, foram escritos tomando como base as obras de Bucklow (BUCKLOW, 2009) e James Elkins (ELKINS, 2000). Podemos dizer que todos os conceitos ontológicos por trás do constructo24 desse estudo, apoiaram-se nessas obras esapoiaram-senciais: elas foram a espinha dorsal da preapoiaram-sente disapoiaram-sertação.

Estabelecendo-se um entendimento mais amplo da bibliografia, foi possível discernir quais as reais dificuldades para a análise e apresentação pormenorizada do assunto. O maior desafio, em primeiro lugar, mostrou-se na análise e compreensão das receitas do processo de fatura do vermilion, pois as mesmas revelaram-se vagas, nos obrigando a testar várias proporções entre os ingredientes, assim como nos basear em estudos mais recentes sobre a aplicação prática dessas

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receitas, única solução encontrada para viabilizar um processo de fatura mais assertivo. É um ponto pertinente a ser discutido mais adiante.

Um problema menor resultou na impossibilidade de discernir se certas receitas eram na verdade cópias originárias de outros textos mais antigos ou se de fato foram escritas no período no qual o documento foi datado. Além disso, houve inconveniências, num pequeno número de textos raros e de difícil acesso, pois era necessária a obtenção de suas versões originais, no caso, em latim e

grego25. O objetivo era concluir o estudo etimológico conferindo quais foram os termos usados

originalmente e não em suas versões para o inglês. Felizmente, a grande maioria dos textos continha uma reprodução de suas páginas originais, acompanhados de uma versão para o inglês, ou, eram uma versão do inglês contendo notas acerca dos termos originalmente usados, em apenas um dos textos26 não foi possível o acesso a sua versão original.

Outra dificuldade estabeleceu-se na compreensão da definição dos nomes, isto é, na própria compreensão etimológica acerca dos pigmentos vermelhos. Há uma enorme imprecisão quanto ao uso desses termos nos manuscritos analisados, um mesmo termo era usado para diferentes pigmentos, em outros casos, uma mesma substância possuía vários nomes distintos, sobretudo no período medieval. Originalmente, essa dissertação possuía o objetivo de estudar exclusivamente o pigmento vermilion. No entanto, essa última problemática da bibliografia histórica fez necessário organizar e incluir a história de outros pigmentos vermelhos como um pano de fundo contextual para possibilitar maior clareza sobre o vermilion, sendo que, sua etimologia, história e características físicas confundem-se com outros pigmentos vermelhos dos períodos estudados.

25 Algumas traduções adaptam o nome da cor para um termo mais contemporâneo, tornando-se imperativo examinar

os textos em suas línguas originais para identificar com máxima precisão o uso original dos termos.

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2. ALQUIMIA

Nesse capítulo define-se de modo panorâmico e cronológico os principais conceitos filosóficos que moldaram a alquimia. Fundamental para contextualizar o leitor sobre os simbolismos associados aos pigmentos e no modo de racionalização dos artesãos e alquimistas medievais acerca das origens dos materiais. Essas associações são notáveis no processo de fatura dos pigmentos a serem analisados nesse estudo, particularmente nas simbologias associadas ao vermilion.

2.1. Rito e Magia

Mircea Eliade27 define que durante a pré-história, as civilizações não faziam distinção entre matéria e espírito. Isto é, o homem tinha dificuldade em definir o plano espiritual, ou extraordinário, do plano matérico, ordinário. Objetos poderiam ser considerados sagrados ou enviados pelos deuses dependendo de como o homem compreendia ou racionalizava suas características físicas, geralmente, a falta de explicação ou compreensão era o motivo dessa sacralização ou dessacralização28 do objeto. Não somente os objetos estavam passíveis de serem considerados como

algo mágico, sagrado ou profano, mas também as ações e acontecimentos, assim como os fenômenos naturais inexplicáveis.

Assim nasceram os rituais sacerdotais, ações mágicas, frutos da falta de distinção entre matéria e espírito. Os rituais eram ações mecânicas que serviam como gatilhos para acionar mudanças físicas e espirituais em substâncias, fenômenos naturais e até mesmo no espírito contido na matéria, seja ela animal ou mineral. O autor cita que para as civilizações que utilizavam amplamente essa prática, o rito era um meio de acesso a uma certa interligação entre todas as coisas, era o nascimento do conceito de magia: o poder humano de acionar mudanças na realidade através de rituais (ELIADE, 2001, p. 35).

Burckhardt relata um pensamento parecido quando escreve que o rito nasceu da ideia de que o homem primitivo acreditava numa profunda relação entre as forças do universo e a alma humana (BURCKHARDT, 2006, p. 13). Fica claro, nos estudos de ambos autores, que a ritualística primitiva são os primeiros passos do homem em direção ao existencialismo e a criação de dogmas. Conceitos importantes para a construção do simbolismo por trás do vermilion.

27 Mircea Eliade (1907-1986), romeno, naturalizado norte-americano. Historiador, linguista, filósofo e filólogo,

especialista na história das religiões ocidentais e orientais.

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2.2. Fertilidade e Sexualização

O rito torna-se então uma maneira de controlar tudo aquilo que de alguma forma é fundamental para a vida humana, uma ferramenta para garantir a sobrevivência. Os rituais estavam comumente ligados a necessidade de agradar ou roubar o poder das forças sobrenaturais que tornavam férteis a terra e davam condições para a proliferação da vida. Os ritos ajudavam nas atividades mais importantes para a sobrevivência do homem: a atividade agrícola, responsável pela subsistência, e também na atividade reprodutiva, o rito funcionando como uma ação de fertilidade, melhorando o ato sexual, protegendo o ventre feminino e outras ações que de alguma maneira garantia o desenvolvimento de seus descendentes, a continuidade da espécie. Os ritos ligados as atividades da caça certamente tinham como função principal fertilizar a possibilidade do sucesso de captura de animais, assim como os rios, mares e as nuvens, que traziam a chuva. É através do rito que o sacerdote tornava melhores as chances de fecundidade em tudo aquilo que gerava a vida, garantindo a sobrevivência.

Dessa forma, a preocupação com a fertilidade deu origem a necessidade de definir com gêneros, classificando através da sexualização tudo aquilo que se possa imaginar: as plantas, os minerais, os fenômenos naturais, os astros, os objetos utilitários, as ações, os atos e etc. (ELIADE, 1979, p. 31)

Figura 1 Quatro representações do Feminino (Vênus) Fonte: http://goo.gl/f2k79U, 2016.

A classificação por gênero para tudo aquilo que rodeia o homem possui um importante papel na simbologia do vermilion, como será visto adiante. O planeta (natureza) era classificado como do gênero feminino. Essa antiga associação, que milhares de anos mais tarde tornar-se-ia o termo

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rochas, metais e minerais como fetos, gerados nas entranhas ou útero (grutas e cavernas) da terra. (ibid, p. 35)

[...] as galerias das minas e as cavernas são assimiladas ao útero da Terra-Mãe, tudo o que jaz no ventre da Terra está vivo, ainda que no estágio de gestação. Em outras palavras, os minérios extraídos das minas são, de certo modo, embriões: crescem lentamente como se obedecessem um ritmo temporal diferente dos animais e vegetais – mas nem por isso deixam de crescer, pois ‘amadurecem’ nas trevas lúricas. [...](ibid, p. 35)

Essa concepção embriológica desenvolve-se, explicando que os minérios e metais mais comuns estão no começo da gestação, enquanto os mais nobres e raros estão no fim da gestação. Isso implica no tanto no conceito de gestação quanto no de purificação: a natureza melhora a condição dos materiais, amadurecendo-os: o chumbo desenvolve-se para se ferro e o ferro para tornar-se ouro, um metal perfeito, já maduro. Portanto, fica implícito que a natureza possui um plano de melhoria da matéria, ela naturalmente desenvolve um plano de evolução para os metais, em outras palavras, ela “tende a perfeição” (ibid, p. 34).

2.3. Ferreiros e Sacralidade dos Metais

O ferro compreendia um material praticamente desconhecido a grande parte das tribos nômades das civilizações proto-históricas. Um material incomum, estranho, que não pertencia a esse mundo ou ao universo familiar. Por isso, as armas e objetos forjados a partir dessa matéria extraordinária carregavam uma aura de objeto ou força sagrada. A importância da tecnologia de fundição do ferro rendeu-lhe a fama de ser a responsável pela vitória da civilização. Durante o período em que a humanidade descobriu a tecnologia da forja, aqueles que a dominavam certamente tinham um grande prestígio mágico-religioso, detentores de um conhecimento muito especial. (ELIADE, 1979, p. 22)

Burckhardt29 acredita que o homem pré-histórico comum associava a extração ou manipulação de minérios impuros como atividades possíveis somente a aqueles que tinham o “[...] controle das

forças caóticas da natureza,[...]” e que para controla-los era necessário “[...] conquistar todos os impulsos escuros e irracionais da alma” (BURCKHARDT, 2006, p. 13, tradução nossa), isto é:

uma atividade possível somente a homens que retinham um conhecimento mágico-religioso, verdadeiros xamãs, que conheciam a existência de uma unidade entre o interior humano e o

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cosmo30. Esses sacerdotes conseguiam manter um canal de comunicação com o criador ou as forças da natureza: o ferreiro, em ordem para moldar e controlar o metal, necessitava de um conhecimento extraordinário, um conhecimento mágico.

Figura 2 Gravura de Ferreiro (aprox. 1700). Fonte: http://goo.gl/hwMgey, 2016.

Para Burckhardt, controlar as propriedades do fogo transmutando-os em novas formas, moldando aquilo que antes era amorfo, significava dominar a resistência exercida pela ordem caótica da natureza, e por isso, compreendia uma atividade sagrada, aquele que o fazia era uma espécie de instrumentista e sacerdote. Um conceito análogo é descrito por Eliade como a

cosmização dos territórios desconhecidos, isto é, tornar familiar o desconhecido, organizar aquilo que nos é caótico, uma intenção de consagração feita pelos primeiros metalúrgicos (opus cit, p. 35).

Essa ligação entre atividade técnica comandando a esfera do espiritual também está relacionada com a metalurgia dos metais nobres, como o ouro e a prata, que eram associadas ao sol e a lua (BURCKHARDT, 2006, p. 13). Manipular e moldar esses metais era um meio de controlar o poder desses astros, tornando essa atividade em algo sagrado, miraculosamente exercendo alguma

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influência sobre eles, uma prova de que o ferreiro ou metalúrgico detinha conhecimento e poderes incomuns.

Para essas civilizações pré-racionalistas, “[...] a chegada da metalurgia não foi uma simples

invenção, mas uma revelação” (ibid, p.13, tradução nossa). Para Burckhardt esse é possivelmente o

primórdio de uma relação entre a matéria (metais) e o existencialismo (plano espiritual) que fariam papel fundamental na alquimia e principalmente na leitura dos simbolismos implícitos no processo de fatura do vermilion.

Desta forma, assim como a agricultura necessitava de rituais sagrados de fecundidade, o mesmo acontecia para a mineração e a metalurgia. O ferreiro, assim como a Terra-Mãe, fazia o papel de

genitor. (ELIADE, 1979, p. 41) O homem colaborava com a natureza, ajudando-a a cumprir sua

finalidade e alcançar seu ideal. O ferreiro acelerava o ritmo de maturação, de certa forma o homem “substituía o tempo”. (ibid, p. 43) Assim como a enxada é a principal ferramenta da agricultura, na metalurgia, é o forno, que desmancha os metais. Ele tem o papel de um útero artificial, onde o metal completa sua gestação.

Por configurar-se como um útero artificial, uma maneira de enganar os deuses, necessitava da ajuda de ritos, tabus, rezas e precauções: os ferreiros submetiam-se a abstinência sexual, pois deveriam estar puros para a manipulação dos embriões da Terra-Mãe, as mulheres não eram permitidas nas proximidades do forno, além de outros ritos, superstições e tabus. (ibid, p. 48) Eliade relata a importância do forno em diversas culturas proto-xamânicas e volta a questão da fertilidade: como precaução para que a forja fosse bem sucedida, oferecia-se um sacrifício de criação ao forno: sacrifício material ou simbólico, de sangue, ou de um ser vivo, para animar a operação a ser concretizada. Há aqui, o conceito de transferência de uma vida, para que o forno cumpra seu papel adequadamente (ibid, p. 51).

O ferreiro e o oleiro controlam o fogo, que é o agente da transmutação, a manifestação de uma força mágico-religiosa que pode mudar o mundo operando a passagem da matéria de um estado para outro. (ibid, p. 62) Forjando ferramentas, o ferreiro disponibiliza meios para aprimorar a agricultura, a pecuária, a arquitetura, a defesa e a milícia da tribo. A importância dessa atividade e desse conhecimento é fundamental para a fertilidade, a sobrevivência e o desenvolvimento humano. O conhecimento desse fazer criou toda uma mitologia da arte e da técnica, o poder de materializar substâncias amorfas em objetos funcionais significava conhecer fórmulas mágicas que permitiam inventá-los, a posse de um segredo de fabricação e construção. (ibid, p. 79) O prestígio dessa atividade, reflete-se inclusive em deuses ferreiros31, assim como nos deuses que portavam armas mágicas forjadas por ferreiros míticos: eram as ferramentas mágicas desses ferreiros

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