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3. OS VERMELHOS TRADICIONAIS

4.3. D OS S IMBOLISMOS DA C OR

4.3.4. Proporção Hilemórfica ou Simbólica

As simbologias e analogias relacionadas ao processo de fatura do pigmento vermilion são complexas e numerosas. É possível que todos os artesãos e compiladores de manuais e tratados medievais tivessem plena consciência de todas essas simbologias? Segundo Bucklow, as possibilidades são grandes, pois é justificada pela enorme quantidade de receitas para produzir vermilion em tratados medievais, explica: “A totalidade da beleza do vermilion era um segredo dos

artistas, mas um segredo que eles queriam partilhar, daí as numerosas (e desnecessárias, de um

ponto de vista estritamente material) receitas e experimentos.” (BUCKLOW, 2009, p. 225,

tradução nossa). O que Bucklow quer dizer, é que, entre todas as receitas para produzir pigmentos encontradas em manuscritos antigos, as receitas de vermilion são as mais comuns e abundantes. Portanto, o autor sugere que isso indica uma necessidade, desejo ou esforço de veicular uma mensagem.

Um outro possível indício pode estar nas proporções entre os ingredientes mercúrio e enxofre, contida nessas receitas: ela carregaria um simbolismo numérico (BUCKLOW, 2009, p. 91). Assim como há uma linguagem alegórica e altamente simbólica nos textos voltados para a alquimia, o mesmo acontece nas receitas de vermilion encontradas nos tratados de pintura da antiguidade consultadas para esse estudo. Qualquer artista que porventura queira faturar o pigmento levando em termos literais as quantidades descritas nas receitas, descobrirá que as proporções contidas nas receitas não são as mais adequadas para produzir o pigmento. Segundo Bucklow, as proporções oferecidas nessas receitas não estão em conformidade com as proporções usadas pela química

moderna para a produção de sulfeto de mercúrio. Há indícios de um significado espiritual para

esses números com o intuito de mostrar uma simbologia.

É necessário embrenhar-se no pensamento medieval, que nesse caso, usa dessa codificação numérica para esconder conceitos existencialistas-teológicos. Podemos encontrar algumas pistas desse pensamento medievo num texto de Santo Agostinho, que revela a sutil simbologia nas relações numéricas encontradas em obras artísticas do período: “[...] artistas, que fazem objetos

materiais de todas as formas, usam os números em seu trabalho. Então, se você procura a força que move a mão dos artistas, serão os números” (BUCKLOW, 2009, p. 92, tradução nossa). O

mesmo tipo de pensamento medieval, que procura fazer relações místicas e simbólicas com a matemática pode também ser encontrado no oriente próximo, como na obra de Jabir ibn Hayyan181 e na de Teófilo, que divaga sobre a matemática: “o mistério do ritmo, pelo qual os poderes da alma

podem ser influenciados”..

É necessário compreender que essas simbologias embutidas nas relações entre os números partiam da premissa que a matemática podia ser vista como um dos meios de se entender a

construção divina do universo. É uma linha de pensamento que revela traços de um proto- iluminismo. As proporções ideais para a fatura do vermilion não foram consideradas pois a lógica

por de trás dessas medidas reside no hilemorfismo: os números foram “calculados” levando-se em consideração duas importantes premissas, ou “lógicas”:

Em primeiro lugar, a forma e matéria devem se unir de forma a criar um equilíbrio, ou uma

harmonia. Portanto, há necessidade de uma união de pesos iguais, caso contrário, não haveria

equilíbrio.

Em segundo, é necessário pesar esses elementos para descobrir qual a proporção ideal para equilibrá-los. Os pensadores alquimistas (matemáticos, astrônomos e estudiosos das ciências naturais) consideravam o peso como uma qualidade. Portanto, aplica-se alguns conceitos da teoria

dos quatro elementos, pois assim como todos outros elementos químicos, o mercúrio e o enxofre

possuem correspondentes na tabela periódica medieval: os elementos da matéria182. Eles são essencialmente compostos pelos elementos água (mercúrio) e fogo (enxofre). Nos tratados alquímicos, a água é “duas vezes mais pesada” que o fogo, portanto, temos um elemento mais pesado do que outro, nos dando dois pesos diferentes. Portanto, se a água é duas vezes mais pesada do que o fogo, para criar uma combinação harmônica entre os pesos (qualidade), seria necessário o

dobro de fogo para equilibrá-los, tornando a mistura balanceada, ou, como diria Teófilo, para

encontrar um ritmo perfeito entre eles.

Em alguns textos alquímicos, a receita para equilibrar ou igualar os elementos de fogo e água é aproximadamente “dezoito para oito” (18:8), ou aproximadamente “dois e um quarto para um” (2

1⁄4:1), arredondando para uma proporção de 2:1. Essa proporção simbólica é fundamental para que

“[...] cada parte do fogo (enxofre) tenha um parceiro de água (mercúrio)”. (BUCKLOW, 2009, p.

93).

Desse modo, as receitas que obedecem essa proporção simbólica, ou hilemórfica, sempre terão

maior quantidade de enxofre (fogo) e menor quantidade de mercúrio (água). Conclui-se que

proporção “dois para um” (2:1) encontrada na grande maioria das receitas, é a simbólica: a união harmoniosa de “partes iguais” entre os dois elementos (BUCKLOW, 2009, p. 94).

Essa alegoria simbólica pode ser considerada como uma poesia numérica que nos dá uma pista sobre a necessidade de harmonizar ou equilibrar os ingredientes, a intenção de sugerir aos leitores que é necessário estabelecer um equilíbrio ou harmonia entre os elementos da natureza para que seja possível desvendar seus segredos.

Desse modo, a proporção funcional, do ponto de vista da química moderna, não faz sentido nessas receitas. Se as proporções ideais para fazer vermilion não são reveladas nessas receitas, quais seriam elas? Os detalhados artigos de Melo (MELO et al., 2013), Miguel (MIGUEL et al., 2011), Nöller (NÖLLER, 2013) e Clarke (CLARKE, 2001b) são os mais recentes no campo e tornaram-se essenciais para a obtenção de parâmetros científicos recentes. Acerca das proporções entre mercúrio e enxofre descritas nas receitas da antiguidade e da idade média:

[...] os procedimentos descritos em tratados são regularmente obscuros, incompletos ou fazem uso de grande excesso de enxofre [...] o controle da temperatura será crucial. [...] uma moagem de quantidade equimolar183 de enxofre e mercúrio num almofariz de ágata184 e pistilo185[...]

[é] um passo crucial (ibid., p.211, tradução nossa).

[...] sempre que a maceração entre o mercúrio líquido e o enxofre sólido não fora completada efetivamente, a reação foi malsucedida [...] é importante evitar o contato direto do pote com as chamas (ibid., p. 212, tradução nossa).

Portanto, torna-se claro que a grande maioria das receitas antigas trazem a proporção

simbólica, que não é a ideal para o processo de fatura. O estudo de Melo baseia-se num manuscrito

específico (Livro de Como se Fazem as Cores), que em contrapartida a todos os outros, faz uso de uma proporção em maior concordância com a proporção química ideal: 2.267 kg de mercúrio e 453 gr de enxofre. Isto quer dizer que a proporção é aproximadamente de cinco partes para uma (5:1). Clarke, em 2001, publicou dois estudos sobre o vermilion. Em um deles, define parâmetros similares ao de Melo, acerca da proporção entre os ingredientes:

A proporção estequiométrica186 para fazer vermilion é 200.6 de mercúrio para 32.06 de enxofre, por peso, embora em termos práticos o excesso de mercúrio seja desejável, portanto uma proporção prática seria cinco ou seis partes por peso de mercúrio para uma de enxofre, ou por volume 4 para 1 (CLARKE, 2001b, p. 175, tradução nossa).

Clarke, em seu segundo estudo, cita dessa vez que a proporção ideal seria “seis para um” (6:1) por peso, aproximadamente seis partes de mercúrio para uma de enxofre (CLARKE, 2001a), exatamente a mesma proporção citada por Melo, definindo-se então como proporção química ideal.

Analisando as proporções contidas nos manuscritos e comparando-as com as proporções usadas nos estudos recentes, a diferença mais notável é de fato, como Melo observa: nas antigas receitas consultadas há quantidades muito maiores de enxofre quando comparadas aos parâmetros modernos. Melo, em seu experimento cita que a proporção usada para sua reprodução do pigmento

183 Quantidade igual de moléculas. 184 Rocha de textura lisa.

185 Instrumento ou ferramenta em forma de bastão ou pilão, usado para para moer substâncias num invólucro

(almofariz).

186Estequiometria.: 1. investigação e determinação quantitativa das relações entre reagentes e produtos numa reação química; estequioquímica. 2. p.ext. proporção dos elementos químicos num composto (p.ex., H2O).

foi “1.047 g. de mercúrio e 0.1674 g. de enxofre” (MELO et al., 2011, p. 290), exatamente como a proporção de 6:1 citada por Clarke.

Figura 48 Jan Van Eyck, "O Casamento de Arnolfini", 1450. Fonte: https://goo.gl/GgwW8H, 2016.

O manuscrito Montpellier (receita 172) e o manuscrito De Diversis Artibus (Teófilus), apresentam maior quantidade de mercúrio do que outras receitas, a proporção simbólica de 2:1. E apenas uma das cinco receitas do manuscrito Bolognese (receita 179) apresenta maior quantidade de mercúrio, mas nenhuma dessas três últimas possui proporção próxima aquelas sugeridas nos estudos de Clarke e Melo. De fato, a única receita usada nesse estudo que possui as proporções ideias é aquela contida no mesmo manuscrito usado por Clarke e Melo, o Livro de Como se Fazem

as Cores.

Para organizar nossa conclusão sobre as proporções, preparamos uma tabela com as proporções usadas em cada uma das receitas para entender quais usavam as proporções baseadas em simbolismos numéricos:

Tabela 6 Comparação das proporções enxofre/mercúrio. Fonte: Nossa, 2016.

As receitas grifadas em cinza escuro são os únicos com maior quantidade de mercúrio. As receitas grifadas em cinza claro sugerem uma proporção de simbologia numérica hilemórfica e as receitas grifadas em branco sugerem a mesma quantidade entre os dois ingredientes (1:1). Dentre quinze receitas, sete mostram o uso da proporção simbólica.

Outra observação a ser levada em consideração, como veremos mais tarde no estudo de Clarke, é que mesmo as receitas que invertem a proporção simbólica, usando maior quantidade de mercúrio que enxofre, são consideradas hoje como receitas que levam enxofre em excesso. Como vimos anteriormente, a proporção ideal seria “seis para um” (6:1) por peso, aproximadamente seis partes de mercúrio para uma de enxofre (CLARKE, 2001a).

Portanto, do ponto de vista moderno, isto é, da química, todas as receitas consultadas para esse estudo fazem uso de proporções com excessiva quantidade de enxofre. As únicas exceções sendo a receita número 181 do manuscrito Bolognese, que é a segunda com a menor quantidade de enxofre, compreendendo 1.360 kg de enxofre e 360 gr de mercúrio, uma proporção de (1:3 ¾) e aquela com menor quantidade sendo o Libro de Como se Fazem as Cores. Motivo pelo qual Melo, Miguel e Clarke escolheram essa receita para proceder com seu experimento prático.

Acerca do uso da proporção simbólica, faz-se a pergunta: o uso dessa simbologia numérica é realmente prova da consciência do uso de uma linguagem alquímica recorrente, aliada ao desejo de transmitir uma mensagem simbólica aos leitores ou simplesmente o ato mecânico de copiar, ipsis

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