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Igreja de São Francisco (Ordem Terceira) de S. Paulo

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Academic year: 2021

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PARECER 

Assunto: “Igreja de São Francisco (Ordem Terceira), no Município de São Paulo. Estado de São Paulo”.   Processo Nº 593‐T‐59 ‐ Nº Protocolo 01458.000278/2013‐02  Interessado: Arquivo Central do IPHAN – Seção Rio de Janeiro ‐ RJ      Mário de Andrade, após alguns meses à frente dos trabalhos de organização do Serviço  do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em São Paulo, elabora um primeiro relatório sobre  os  bens  arrolados  até  então  no  território  paulista  e  nele  apresenta  nomeadamente  o  seu  parecer  sobre  São  Benedito  e  São  Francisco  –  irmandades  originariamente  organizadas  no  interior da Ordem Primeira – como Igreja franciscana, situada paredes‐meias ao Convento de  S. Francisco, onde se instalou a Faculdade de Direito de S. Paulo. A maneira como se refere às  organizações  religiosas  nos  dá  a  impressão  de  tratar  as  duas  igrejas  –  a  conventual  e  a  das  irmandades  de  S.  Benedito  e  S.  Francisco  de  Assis  –  como  se  fossem  um  só  e  único  templo.  Todavia,  a  menção  aos  dispositivos  arquitetônicos  internos  nos  leva  imediatamente  a  identificá‐los  àqueles  só  encontrados  na  igreja  da  Ordem  Terceira  (especialmente  pelo  zimbório  localizado  na  abóbada  central  da  capela  de  planta  poligonal1),  afastando  assim  qualquer hesitação que possamos ter quanto a identidade do templo a que está a descrever ao  Diretor Geral do Serviço, Rodrigo Mello Franco de Andrade.2 Foi, entretanto, taxativo em seu  julgamento:  É uma das poucas relíquias coloniais existentes na cidade de S. Paulo, com  interessantes dispositivos arquitetônicos internos, e boa talha nos altares. Merece  tombamento imediato. 3 (Grifo nosso)  Apesar desse peremptório juízo o tombamento não ocorreu.   Os documentos constantes no processo 593‐T‐59 por sua vez demonstram o interesse  do  mencionado  diretor  geral  em  dar  sequência  aos  procedimentos  necessários  ao  acautelamento  ainda  que  já  houvesse  decorrido  mais  de  vinte  anos  da  recomendação  de  Mário de Andrade. Salientam‐se na correspondência nele reunida o relatório apresentado pelo  arquiteto Edgard Jacintho da Silva (também subscrito pelo fotógrafo Hermann Hugo Graeser e  o  arquiteto  Armando  Rebollo),  em  14.01.1959,  e  a  declaração  do  arquiteto  Paulo  Thedim        

1 TIRAPELLI, Percival – Igrejas Paulistas – Barroco e Rococó, S.P., Ed. UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 

2003. 

2 “São Paulo Sexta Região Primeiro Relatório enviado pelo Assistente Técnico á Diretoria do S.P.H.A.N.” 

(16/outubro/1937)  in  MÁRIO  DE  ANDRADE:  cartas  de  trabalho.  Correspondência  com  Rodrigo  Mello  Franco de Andrade (1936‐1945). MEC.SPHAN próMemória. Brasília.1981 p. 81. 

3  O  teor  inteiro  da  identificação  da  igreja  por  Mário  de  Andrade  é  o  seguinte:  São  Benedito  e  São  Francisco  /  Igreja  franciscana,  situada  paredes‐meias  ao  Convento  de  S.  Francisco,  onde  se  instalou  a  Faculdade de Direito de S. Paulo. O Convento de S. Francisco foi fundado aproximadamente em 1644. Em  1772 foram eretas na igreja do convento as irmandades de S. Benedito e S. Francisco de Assis. O aspecto  atual,  com  leves  modificações  ulteriores  que  não  o  prejudicaram,  data  de  11  de  setembro  de  1788.  É  uma  das  poucas  relíquias  coloniais  existentes  na  cidade  de  S.  Paulo,  com  interessantes  dispositivos  arquitetônicos internos, e boa talha nos altares. Merece tombamento imediato. Faltam fotos. 

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Barreto, mencionada em ofício do mesmo diretor geral ao chefe do então 4º Distrito, Dr. Luís  Saia,  em  15.01.1962,  solicitando‐lhe  manifestação  definitiva  acerca  da  conveniência  do  tombamento.  

Compulsando  a  documentação  desse  período  nos  arquivos  de  São  Paulo,  reunida  na  pasta  da  referida  igreja  (MNT00418),  localizamos  tão  somente  os  originais  mencionados  da  correspondência acima – o que nos leva a supor que a chefia do distrito, contrariando juízo do  já  falecido  assistente  técnico,  não  a  reconhecia  com  as  qualidades  que  justificassem  seu  tombamento.  

Relendo  os  documentos,  verificamos  que  o  caso  da  Terceira  franciscana  fora  tratado  pelos  citados  arquitetos  dentre  outras  igrejas  por  eles  examinadas.  Além  desta  igreja,  o  arquiteto  Edgard  Jacintho  da  Silva  visitou  também  a  Terceira  do  Carmo  paulistana  –  sobre  a  qual era de opinião de que no seu caso a medida protetiva devia se restringir ao forro pintado,  que  por  sua  vez  era  objeto  de  outro  processo  constituído  e  igualmente  dependente  de  manifestação final (Processo Nº 586‐T‐58).4  

  A menção a esta igreja carmelitana nos é de utilidade pois nela encontramos subsídios  que  nos  permitem  também  analisar  a  pendente  questão  de  tombar  ou  não  a  igreja  franciscana, visto serem contemporâneas e encerrarem uma mesma problemática. No caso da  carmelitana,  o  fato  dela  ser  o  único  elemento  a  restar  de  um  belo  e  harmonioso  conjunto  arquitetônico,  constituía  aos  olhos  dos  técnicos  do  IPHAN,  não  só  ao  paulista  como  aos  cariocas Edgard Jacintho da Silva e Paulo Thedim Barreto, razão já suficiente para desaboná‐la,  perda  que  era  agravada  pelas  deformações  e  acréscimos  que  sofreu  em  sua  configuração  original.  

Mas havia as pinturas de seus forros, especialmente analisadas por Mário de Andrade:  grandiosa  obra  de  pintura  do  mulato  Padre  Jesuíno  do  Monte  Carmelo5  (e  recentemente  restaurada  pelo  IPHAN  com  recursos  do  Monumenta).  Neste  caso  não  havia  dúvida;  o  tombamento  era  consensual  e  se  impunha  pela  importância  do  pintor.  Mas  como  tombar  apenas  as  pinturas?  A  medida  acabou  sendo  protelada,  o  processo  restou  dentre  aqueles  inconclusos, como o da presente igreja franciscana. E o restante de sua ornamentação interior,  também  de  nada  valia?  Aparentemente  era  produto  contemporâneo  às  pinturas.  As  talhas  carmelitanas  por  sua  vez  eram  inferiores  à  qualidade  das  apresentadas  pela  Terceira  franciscana.  Mas  a  imaginária  de  ambas  as  igrejas  denunciava  qualidades  inegáveis;  algumas  de procedência portuguesa.  

      

4  A  respeito  deste  último  processo  (Processo  Nº  586‐T‐58),  tivemos  ocasião,  quando  ingressamos  no 

quadro técnico da Regional paulista, de estuda‐lo minuciosamente, elaborando Parecer conclusivo em  06.05.1988  enviado  a  coordenadora  geral  Dora  Alcântara,  favorável  entretanto  somente  ao 

tombamento restrito da igreja carmelitana, circunscrito ao edifício primitivo e sua frontaria faturada em 

cantaria  de  pedra  e  sem  os  anexos,  compreendendo  todo  o  seu  acervo  artístico  interior  coetâneo  às  pinturas  de  Padre  Jesuíno  do  Monte  Carmelo  –  objeto  de  unânime  reconhecimento  dos  técnicos;  parecer que,  submetido  a  análise  técnica  da  Coordenadoria  de  Proteção,  enfrentou  polêmica  questão  sobre  o  caráter  e  dimensão  do  tombamento  que  só  foi  superada  no  Conselho  do  IPHAN  com  o  memorável parecer do Professor Augusto Carlos da Silva Telles, de 26.08.1996. 

5 ANDRADE, Mário de – PADRE JESUÍNO DO MONTE CARMELO. Publicação 14. DPHAN. Rio de Janeiro. 

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Todavia  a  questão  mais  problemática  a  enfrentar  era  a  concernente  ao  valor  arquitetônico  propriamente  dos  monumentos,  e  que  não  se  resumia,  como  queriam  os  técnicos que assessoravam o diretor geral, às perdas e adulterações por ventura sofridas por  ambas  as  igrejas,  mas  à  sua  expressão  estilística  manifestamente  diversa  de  tudo  quanto  houvera  de  mais  característico  até  então  na  São  Paulo  Colonial.  Como  veremos,  era  exatamente essa a questão de fundo a distinguir o posicionamento dos arquitetos. 

Tratava‐se, primeiramente, de apreciar a questão numa perspectiva mais abrangente  que, grosso modo, percorre todo o século XVIII estendendo‐se ainda por duas décadas do XIX,  e representam esses monumentos exemplares de um interlúdio entre as expressões artísticas  próprias  dos  dois  primeiros  séculos  de  colonização  –  tanto  da  arquitetura  civil  como  da  religiosa (embora, além das moradas e capelas bandeiristas, seiscentistas, e da capela jesuítica  de São Miguel (1622), muito pouco se conheça efetivamente sobre exemplares anteriores ao  XVIII,  sobre  tudo  urbanas,  a  não  ser  as  “casas”  de  Santana  do  Parnaíba,  de  origem  rural,  restauradas por Luís Saia) – até o surgimento de novas manifestações que só irão surgir com o  revigoramento da economia e da sociedade paulista, após ultrapassar a fase açucareira, cuja  prosperidade  inseriu  a  Capitania  de  São  Paulo  nos  quadros  da  Economia  Colonial,  mas  não  deixou  exemplares  íntegros  à  posteridade,  até  iniciar‐se  um  novo  período  que,  a  sobrepujando, configura‐se  com a organização da monocultura do café no vale do rio Paraíba,  onde  embora  ainda  perseverasse  o  uso  da  taipa  de  pilão6,  era  zona  de  confluência  de  influências  regionais  (mineiras  e  cariocas),  daí  figurar  como  seu  melhor  representante  um  conjunto  vigoroso  e  pioneiro  de  arquitetura  produtiva  –  a  Fazenda  Pau  d’Alho  –,  complexa  unidade de beneficiamento de café que, ao se conservar relativamente íntegra, possibilitou a  restauração de todas as suas edificações que associam a pedra argamassada ao pau‐a‐pique,  conformando todo o conjunto produtivo.  

Mas,  durante  todo  esse  longo  intervalo  de  tempo,  o  que  surgiu  realmente  como  novidade no panorama paulista, e sobre tudo na cidade de S. Paulo, reformulando‐a em certa  medida, foi notadamente o que sucedeu, a partir de meados do séc. XVIII, às principais igrejas  e  capelas  das  irmandades  mais  ricas  que  promoverem  grandes  reformas,  e  mesmo  novas  e  vultosas obras de edificação, sob inspiração estilística renovada. 7 

Assim, ao examinarmos a questão sob essa perspectiva mais larga, vamos nos deparar  com  um  juízo  do  chefe  do  4º  Distrito,  tornado  público  somente  em  publicação  de  1963,  expresso no texto Quadro Geral dos Monumentos Paulistas,8 no qual encontramos por fim, e 

bem  explicitada,  a razão  porque  era  contrário  ao  tombamento  não  somente  desta  igreja  franciscana como de outros monumentos paulistanos coetâneos:  As construções e instalações que cobrem o desenvolvimento regional desde  1765 até 1834 não explicitam partidos capazes de representar uma preferência  coletiva ou representam a repercussão de soluções abstratas impostas ao sabor das  circunstâncias, como é o caso de algumas residências urbanas e das construções         6 A taipa de pilão só começará a deixar de ter a preferência dos paulistas a partir de meados do século  XIX.  7 Vale salientar que o fenômeno não se verificou somente na Capital, ocorrendo igualmente em outras  importantes Vilas paulistas, tanto litorâneas como do interior.  8 Depois também publicado no livro MORADA PAULISTA.S. Paulo. Perspectiva. Debates: 63. 

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  religiosas, ou estão irremediavelmente marcadas pela insubstância que procede da  pobreza e da dependência.   Luís Saia, rigoroso na análise, tomava‐as como produtos despatriados. E cita também  como exemplares próprios desse período a capela do Pilar (Taubaté) e a capela jesuítica de S.  Miguel, reformada então por Frei Mariano da Conceição Veloso,   que trouxe das Minas Gerais o apego pelo adobe, técnica geralmente discrepante na  área paulista, e nas construções religiosas executadas em São Paulo, em Mogi das  Cruzes, Jacareí, Itu, Sorocaba, Taubaté, Santos, etc. e cuja inconsistência estilística  apenas faz eco à própria inconsistência econômica que persegue este período da vida  paulista. Para concluir: Isto explica a ausência do esplendor plástico, tão característico  do século XVIII, e tão exuberante em Minas Gerais, na Bahia, no Rio de Janeiro e  Pernambuco.9  Com esta avaliação depreciativa remete a eventual preservação desses monumentos a  uma  articulação  política  em  que  estava  empenhado  pessoalmente  visando  a  criação  de  um  órgão  estadual  –  estratégia  que  acabaria  logrando  êxito  com  a  formação  do  Conselho  de  Defesa  do  Patrimônio  Histórico,  Artístico,  Arqueológico  e  Turístico  de  São  Paulo  (CONDEPHAAT),  cinco  anos  depois  (22  de  outubro  de  1968),  no  qual  iria  figurar  entre  seus  conselheiros, e onde procurará ditar suas diretrizes gerais, promovendo os tombamentos dos  monumentos  de  valor  regional10,  bem  como  estabelecer  os  primeiros  programas  de  levantamento dos monumentos passíveis de tombamento entre outras atividades.  

      

9  SAIA,  Luís  –  Quadro  Geral  dos  Monumentos  Paulistas:  E  prossegue  a  análise  argumentando:  Um  confronto  mais  detido  entre  a  arquitetura  religiosa  de  Minas  e  São  Paulo  do  século  XVIII  revela  que  abundava naquela o que faltava às construções paulistas: aquela riqueza proveniente da fartura do ouro  e  da  nitidez  das  teses  coletivas  de  instalação.  Às  matrizes  mineiras  do  século  XVIII,  ricas  como  as  de  Sabará e Antonio Dias, se opõem as matrizes paulistas, mais pobres do que propriamente severas, como  as de Porto Feliz e Taubaté; às igrejas Terceiras mineiras, vigorosas e decididas na sua formulação e na  sua  definição  plástica,  como  as  franciscanas  de  Ouro  Preto  ou  São  João  Del  Rey,  se  opõem  as  igrejas  paulistas apoucadas e pobres, sem pretensão de representar coisa alguma que não fosse uma proteção  governamental,  interessada,  mas  pífia,  e  o  natural  fervor  religioso  da  população  da  época.  Enquanto  nessa  época,  em  Minas,  as  construções  religiosas  têm  uma  retaguarda  armada  numa  forma  gregária  bem  definida,  carregada  de  intenções  e  com  grande  vivacidade  no  plano  da  emulação,  em  São  Paulo  representam um empenho do governo e do clero, ambos tentando aparentar vitalidade, sobretudo um  desesperado esforço da população em luta contra a pobreza e a insolubilidade da vida coletiva falta de  substância econômica. in MORADA PAULISTA.S. Paulo. Perspectiva. 2012. Debates: 63. pp. 45‐46.  10 A “Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco” teve processo aberto no CONDEPHAAT em 1971, 

sob  número  00041/71,  e  seu  Tombamento  só  irá  ocorrer  com  a  Resolução  16  de  19/4/82,  sete  anos  após a morte de Luís Saia. (Publicação do Diário Oficial Livro do Tombo Histórico: inscrição nº 335, p.  166, p. 38, 06/05/1982, com o histórico seguinte: A Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco da 

Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, foi inaugurada em 11/9/1787. Em 1676, frei  João de São Francisco, comissário dos terceiros, iniciou a construção da capela da Ordem Terceira, que  durou décadas, até ser ampliada e se tornar uma igreja independente. Na fase final das obras, decidiu‐se  que  a  fachada  seria  um  prolongamento  da  igreja  conventual  e  que  a  antiga  capela,  com  planta  octogonal,  seria  transformada  em  transepto.  A  técnica  construtiva  utilizada  é  a  taipa  de  pilão  com  embasamento  de  pedra.  O  seu  interior  encontra‐se  bem conservado,  com  vários  retábulos  laterais  em  talhas  de  estilo  rococó.  A  cúpula  octogonal  ostenta  pinturas  do  final  do  século  XVIII  e,  em  outras  dependências, trabalhos do mesmo período. Abriga, ainda, na Capela de Nossa Senhora da Conceição, o  antigo retábulo executado por Luiz Rodrigues Lisboa, entre os anos de 1736 e 1740.) 

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Hoje, porém, quando volto ao conjunto dos monumentos desprezados e verifico que  mesmo  assim  alguns  acabaram  recebendo  a  acolhida  do  IPHAN  (as  citadas  capelas  do  Pilar/Taubaté e São Miguel/S. Paulo; e outras como as Carmos de Mogi das Cruzes; a Matriz e  a de Na. Sra. do Carmo de Itu) enquanto outro, que nem havia sido citado entre os desvalidos,  já há muito tinha recebido acolhida, e desde os primeiros anos de trabalho do órgão federal de  preservação: a igreja e convento da Luz, tombados em 1943. E o que há de mais interessante a  observar neste monumento é que este último, que nem fora citado pelo chefe do 4º Distrito, é  o  que  reúne  todas  as  características  que  desabonavam  a  todos.  E  ainda,  é  o  que  melhor  corresponde  à  conceituação  utilizada  para  desqualifica‐los:  ausência  de  partido  capaz  de  representar  uma  preferência  coletiva,  fruto  somente  do  empenho  do  governo  e  do  clero¸  e  opção por soluções abstratas impostas ao sabor das circunstâncias.  

Mas,  se  esta  mereceu  a  proteção  do  IPHAN,  porque  não  as  demais?  Teria  se  conservado  com  maior  integridade,  sem  sofrer  perdas  consideráveis  nem  acréscimos  descaracterizantes em sua unidade primitiva? Deixemos isso de lado e assinalemos apenas a  razão  ou  as  razões  porque  a  chefia  do  4º  Distrito  não  se  manifestara  sobre  a  igreja  dos  Terceiros  franciscanos,  assim  como  a  sua  parceira  dos  frades  capuchinhos,  sobrestando  a  decisão  de  acolhe‐las  ou  não  dentre  os  monumentos  nacionais  em  vista  de  seus  planos  futuros: ausência de esplendor plástico, produtos apenas de empenho do governo e do clero e  adoção de soluções abstratas impostas ao sabor das circunstâncias.  

Era este o entendimento do diretor. A Terceira franciscana, como as demais, produto  de uma época indistinta, pobre e sem vitalidade, carente de espírito gregário.  

A  historiografia  paulista  vem  contraditando  a  visão  de  decadência  da  economia  do  período,  com  estudos  importantes  sobre  a  lavoura  açucareira  que  precedeu  em  aproximadamente um século a cafeeira no interior e que teve seu centro dinâmico na região  de Itu e, mais recentemente, sobre as atividades mercantis que interligaram São Paulo a outras  regiões da Colônia, desvendando uma vitalidade antes apenas suposta no interior da Economia  Colonial. 11  

Luís  Saia,  aliás,  em  um  segundo  texto,  este  de  1967,  dá  já  uma  interpretação  algo  diferente, distinguindo o último quartel do século XVIII como um período de maior vitalidade,  resultado  não  só  do  influxo  das  ações  governamentais  (criação  de  cidades,  abertura  de  estradas,  melhoramentos  dos  serviços  públicos)  mas  principalmente  da  expansão  da  lavoura  açucareira, sobrepujando as condições de atraso que haviam perseguido a região em seguida à  descoberta das minas de ouro. E é sobre esse novo quadro econômico que reconheceu um 

 movimento de renovação estilístico que atingiu as igrejas paulistas.12  

      

11 Marco inicial dessa revisão (no plano metodológico sobre tudo) foi o livro O Antigo Sistema Colonial, 

de  José  Roberto  do  Amaral  Lapa.  Editora  Brasilense.  1982,  e,  anteriormente,  no  plano  propriamente  historiográfico,  o  estupendo trabalho  da  Profa.  Maria  Thereza  Schorer  Petrone  ‐  A  lavoura  canavieira 

em São Paulo, DIFEL, 1968. 

12  SAIA,  Luís  –  A  Arquitetura  em  São  Paulo  in  São  Paulo,  Terra  e  Povo.  (Org.  Bruno,  Ernani  Silva)  Ed. 

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  Foi – diz enfaticamente – o tempo das reformas e das reconstruções. ... Tanto  na cidade de São Paulo, onde se constrói o Recolhimento da Luz e são reformados os  edifícios religiosos e substituídos altares e santos, como nas cidades do interior (Itu,  Sorocaba, Mogi das Cruzes, Jacareí, Taubaté) como em Santos. E acrescenta: Salvo os  casos de São Miguel, Embu, Capela do Pilar de Taubaté, onde as reformas profundas  não conseguiram desfigurar o resistente arcabouço primitivo, todas as demais igrejas  da capitania, novas ou antigas, se rendem a uma espécie de simulação de esplendor  plástico oitocentista [sic] que tanto em Minas Gerais como no Nordeste e no Rio de  Janeiro ganhavam legitimidade e pertinência face à maior expressão econômica e à  maior importância política que desfrutavam tais centros. (Grifo nosso) 

Embora  reflitam  as  igrejas  paulistas  desse  período  uma  superação  do  estágio  decadente anterior (agora circunscrito à primeira metade do século XVIII), no seu entender a  renovação  atingida  não  consegue  alcançar  a  mesma  legitimidade,  pertinência  e  esplendor  atingidos à mesma época pelos centros mais dinâmicos e ricos. 

É também perfeitamente perceptível nas palavras de Luís Saia um certo lamento pelas  perdas  irreversíveis  que  esse  movimento  de  renovação  acarretou  em  relação  ao  patrimônio  urbano  formado  anteriormente  na  antiga  Vila  de  São  Paulo  de  Piratininga.13  O  que  havia  de 

mais  antigo,  da  primeira  metade  daquela  centúria  ou  mesmo  quem  sabe  restos  ainda  do  segundo século de colonização em S. Paulo, bem como nas demais vilas do planalto, perde‐se  então irremediavelmente. Matrizes, igrejas conventuais e paroquiais foram objeto de amplas  reformulações entre meados do século XVIII e início do XIX. E não só em termos de Arquitetura  como  de  Artes  integradas.  O  que  poderá  ter  sobrevivido?  De  certo  algumas  imagens?  Das  talhas seiscentistas (do tipo das capelas de Vuturuna e da de Santo Antonio), tudo deve ter ido  de roldão, substituídas por outras de estilo “novo”.  Há, no entanto, a registrar a força da taipa de pilão como sistema construtivo básico  no planalto paulista, que é mantida para estruturar as construções desse período, sejam nas  novas edificações sejam nas de reforma e ampliação dos espaços originais, civis ou religiosos,  por vezes associada à pedra argamassada que serve de alicerce às paredes que por sua vez se  erguem a partir de trabalhos de cantaria de pedra, como portais ou arcos, de onde sobem as  paredes  de  taipa  revestidas  com  tijolos  que  permitem  ainda  o  aplique  de  elementos  de  cantaria de pedra nas seções superiores de seus frontispícios – como na da mencionada igreja  do convento da Luz, solução também utilizada nas igrejas das Ordens 1ª e 3ª tanto do Carmo  como de São Francisco, na Capital. 

Cabe observar sobre essas últimas que no caso das igrejas conventuais tratavam‐se de  reformas  com  ampliações  dos  espaços  originais  e  fatura  de  novas  fachadas;  porém  as  das  Ordens Terceiras foram edificações inteiramente novas, realizadas em função do crescimento        

13 “renovação” aliás que teve um momento precursor significativo, ainda nos recuados anos iniciais dos 

setecentos (e que corresponde à elevação da Vila de S. Paulo à condição de Cidade) quando os jesuítas  reformam pela segunda vez a decaída igreja do Colégio de S. Paulo e, patrocinados por duas senhoras da  nobreza  paulistana,  erguem  a  primeira  torre  de  igreja  construída  toda  em  pedra  –  assinalando  desse  modo  uma  principiante  inovação  no  cenário  dominado  ainda  pela  simplicidade  plástica  própria  do  sistema construtivo vigente da taipa de pilão. Ver a respeito: JESUÍTAS E BANDEIRANTES – História, Arte  e Arquitetura Coloniais in https://sites.google.com/site/resgatehistoriaearte/  

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e  enriquecimento  das  respectivas  irmandades;  essas  deixam  os  espaços  originais  que  ocupavam  no  interior  das  igrejas  conventuais  –  as  chamadas  capelas  fundas  –  para  então  construir capelas de proporções muito maiores ao lado das conventuais recém reformadas. O  histórico  da  Capela  de  Santa  Teresa  da  V.O.T.  do  Carmo,  que  elaboramos  para  subsidiar  o  processo de seu tombamento reconstitui bem todas as etapas de sua construção,14 o qual irá 

inspirar os Terceiros Franciscanos a realizarem projeto semelhante. 

A  construção  do  conjunto  da  Luz  (igreja  e  convento)  é  coetânea  a  essas  igrejas  carmelitanas  e  franciscanas  e  faz  uso  dos  mesmos  recursos.  Teve  porém  uma  sorte  melhor:  conservou  a  sua  unidade  compositiva,  a  despeito  de  algumas  modificações  que  sofreu  ao  longo do tempo. Sorte que a fez merecer do Chefe da 4º Distrito manifestação em prol de sua  preservação.15  

Não quis o destino premiar as comunidades carmelitana e franciscana de S. Paulo com  a mesma sorte. Esta última teve o convento transformado em Faculdade de Direito ainda no  início do século XIX, adaptado seus espaços interiores à nova função e finalmente reformulada  a  sua  fachada  simples  em  monumental  composição  no  ano  de  1930  –  projeto  do  escritório  Severo  Villares;  já  a  carmelitana  perdeu  metade  do  conjunto  original,  isto  é,  todas  as  edificações  da  Ordem  Primeira  (convento,  igreja  e  torre),  restando  somente  a  igreja  dos  Terceiros, esta por sua vez lesionada profundamente com diminuição significativa no corpo da  igreja  devido  ao  alargamento  da  rua  do  Carmo  e,  depois,  ainda  mais  adulterada  com  a  construção da fachada lateral da igreja e dos edifícios anexos.16 

A rigor, a maioria das igrejas, senão a sua totalidade, tiveram ao longo da história suas  características  originais  alteradas,  em  menor  ou  maior  grau.17  O  problema,  porém,  não  se 

restringe  a  sua  integridade,  mas  à  maneira  como  nos  posicionamos  frente  a  essa  questão;  maneira  que  varia  em  conformidade  com  as  opiniões  mais  ou  menos  fundamentadas  em  critérios objetivos, sejam de ordem ideológica ou científica, sejam de outras ordens quaisquer  –  embora  geralmente  acabemos  por  constatar  existir  uma  certa  mistura  ou  sobreposição  dessas ordens.  

      

14 A construção teve duas etapas: 1ª: de 1746 a 1758, com a edificação de todo o corpo da igreja em 

taipa de pilão; 2ª etapa: 1772‐1778, edificação do frontispício em cantaria de pedra alinhado à torre e  igreja  da  Ordem  Primeira,  configurando  um  partido  arquitetônico  inteiramente  novo  que  despertou  inclusive o interesse de Mário de Andrade como veremos adiante. 

15 “por se tratar do único edifício paulistano realmente defensável do ponto de vista do Serviço”. Ofício 

de Luís Saia a Rodrigo M. F. de Andrade, de 20 de julho de 1943. 

16  A  esse  respeito  escreveu  o  prof.  Augusto  Carlos  da  Silva  Telles  no  citado  Parecer  de  26.08.1996:  estamos de acordo com os que consideram impossível a preservação fragmentada da Igreja da Ordem  Terceira  do  Carmo;  por  outro  lado,  a  feição  atual  das  frontarias  laterais  e  posterior  não  apresenta  qualquer interesse, seja como obra histórica, seja como solução arquitetônica contemporânea: Trata‐se  de  uma  obra  comum  dos  anos  trinta  e  quarenta,  de  uma  arquitetura  comercial,  projeto  de  firma  construtora, entendendo então que para solucionar o impasse cumpririam as três frontarias e mais os  acréscimos existentes à direita da igreja a função de “entorno” (Processo Nº 1.176‐T‐85). 

17  Mesmo  obras  recentes  por  vezes  recebem  alterações.  O  exemplo  contemporâneo  é  a  Catedral  de 

Brasília  que,  no  projeto  original,  tinha  previsto  vitrais  transparentes,  trinta  anos  depois  ganharam  colorido com a artista Marianne Peretti, em tons verde e azul em contraste com os pilares brancos e o  piso  de  mármore  da  igreja.  Neste  caso,  embora  tombado,  recebeu  a  aprovação  do  arquiteto  Oscar  Niemeyer, e o Conselho do IPHAN teve que rever os termos do ato. 

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Vimos,  a  partir  dos  textos  de  Luís  Saia,  que  a  questão  para  ele  residiria  na  origem  mesma dessas igrejas, na época em que surgiram, vale dizer no contexto histórico de que são  produtos, e também e mais precisamente na concepção estilística em que se apoiam, ou para  sermos  mais  fiéis  ao  seu  entendimento,  na  falta  de  uma  concepção  estilística  própria  e  não  necessariamente na integridade do monumento.18 

Como devemos enfrentar hoje todo esse conjunto de problemas?  

Neste  ponto,  prefiro  recorrer  uma  vez  mais  a  Mário  de  Andrade.  Este  quando  ainda  realizava  os  primeiros  levantamentos  dos  monumentos  paulistas  em  carta  a  Rodrigo  Mello  Franco de Andrade apontou para o que considerava o problema geral de S. Paulo o qual partia  de uma, àquela altura, inelutável constatação. Nada por aqui poderia se equiparar às   maravilhas espantosas, do valor das mineiras, baianas, pernambucanas e paraibanas  em principal.  Mário de Andrade formula então o que deveria servir de mote a todos os trabalhos de  preservação a serem desenvolvidos em terras paulistas, onde devia prevalecer o primado da  história ao da beleza artística:    A orientação paulista tem de se adaptar ao meio: primando a preocupação  histórica à estética.   Para adiante melhor esclarecer, especificando as questões e os rumos a tomar:   Sob o ponto de vista estético, mais que a beleza propriamente (esta quase não  existe) tombar os problemas, as soluções mais características ou originais.19   

Essas  as  razões  porque  o  critério  em  São  Paulo  teria  de  ser  preferentemente  o  histórico,  sem,  todavia,  ser  o  único,  isto  é,  ter  primazia  sobre  os  aspectos  estéticos,  sem  desconsiderá‐los, tomando‐os tal como surgiram e nas condições em que foram produzidos.  

Mário invertia, desse modo, os termos da análise, condicionando o valor histórico (no  sentido  de  “ser  a  condição  de”)  ao  valor  arquitetônico  dos  monumentos,  sem,  contudo,  desprezar os elementos ou os aspectos artísticos, para os quais tinha especial interesse. Mais  do que procurar maravilhas semelhantes às das regiões mais ricas, identificar e tombar sobre  tudo  o  pouco  que  restou  seiscentista  ou  setecentista  no  território  paulista,  com  especial  atenção  aos  problemas,  as  soluções  arquitetônicas  mais  características  ou  originais,  consistindo esses objetos de estudo a merecer a melhor das atenções, em face dos problemas  de  aplicabilidade  técnica  que  tiveram  de  ser  superados  através  das  soluções  encontradas  à  época em que foram concebidos, e hoje passíveis de serem reconhecidos pela investigação e  análise. 

      

18 Fosse este o único critério, a morada do Sítio Santo Antonio por exemplo não teria sido tombada e 

muito  menos  reconstituído  o  edifício  primitivo,  só  possível  a  partir  das  prospecções  dos  alicerces  de  taipa ainda preservados sob a casa do barão de Piratininga, quando Luís Saia desenvolveu os trabalhos  de restauração, incluindo os da capela também bastante arruinada. 

19  Carta  de  Mário  de  Andrade  a  Rodrigo  Mello  Franco  de  Andrade  de  23‐V‐37.  MÁRIO  DE  ANDRADE:  cartas de trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936‐1945). MEC.SPHAN  próMemória. Brasília.1981. 

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Sem  o  propugnar  expressamente,  Mário  de  Andrade  indicava  um  caminho  estritamente  técnico  de  avaliação,  ao  tomar  o  monumento  como  objeto  passível  de  análise  tanto sob o aspecto histórico como artístico (arquitetônicos inclusive, visto serem concebidos e  executados  em  conformidade  com  determinados  parâmetros  estéticos),  para  cuja  compreensão passa necessariamente pela sua decomposição, tanto formal como material.  

Método que utilizava na atividade de crítico de Arte, a exemplo das obras dos pintores  e  escultores  modernistas  e  mesmo  anteriormente  com  as  de  Aleijadinho20,  da  mesma  forma 

como faria depois com as pinturas de Padre Jesuíno do Monte Carmelo e de José Patrício da  Silva Manso.21 Interessava‐lhe sobremodo o artista, moderno ou tradicional, sob o prisma de 

sua ação social ou coletiva, o contexto em que concebe e produz a obra de arte, as condições  em  que  produzia,  enfim  o  panorama  histórico  e  cultural  no  qual  atuava,  interessando‐se  no  mais das vezes sobre aspectos psicológicos, vivenciais dos artistas analisados.  

Esse é outro viés do trabalho a que se propôs realizar já desde o tempo de organização  do Serviço em São Paulo: efetuar o levantamento dos artífices coloniais, projeto que submeteu  à  aprovação  do  diretor  geral,  e  que  consistiria  em  recolher,  ele  próprio,  dados  biográficos  sobre os artistas, quer paulistas quer aqueles por ventura vindos de fora, e sobre os produtos  do trabalho que realizavam ou criavam – as obras de arte, os monumentos – o que implicava  em pesquisas e fichamento de livros, revistas, documentos, etc. que ele próprio se propunha a  realizar.22  

O  monumento  assim  encarado,  como  obra  artística  lato  sensu,  tem  redimensionado  seu  conteúdo  em  aspectos  diversos  e  não  exclusivamente  os  de  sua  expressão  arquitetônica  que, todavia, não deixa de levar em conta especialmente quando essa se lhe apresenta com  alguma distinção. É o que o levou a constatar de singular nos conjuntos carmelitanos coloniais  paulistas. E sobre os quais logo chama a atenção do Diretor, expondo que, ao ler   obra inédita de P. Pratt ... pude fazer uma observação de algum interesse a  respeito da arquitetura tradicional carmelitana, pelo menos no Brasil. Dela fiz         20 ANDRADE, Mário de – A arte religiosa no Brasil. Revista do Brasil. Vol. 14. nº 54. 1920.  21 ANDRADE, Mário de – PADRE JESUÍNO DO MONTE CARMELO. Publicação Nº 14. SPHAN. MES. Rio de  Janeiro. 1945.  22 Carta de Mário de Andrade a Rodrigo Mello Franco de Andrade de 7‐III‐41 [Mário de Andrade acabara  de retornar a São Paulo, depois de permanecer cerca de três anos no Rio de Janeiro, quando a escreveu  e da qual extraio o trecho seguinte]: Ainda não conversei com o Luiz Saia sobre isso, nem examinei como  estão sendo feitos os fichários daqui. ... Quanto à pesquisa de artistas paulistas ou que aqui trabalharam  provavelmente  usarei  o  mesmo  processo  que  emprego  para  os  meus  fichários  particulares,  que  me  parece mais rápido e de fácil consulta. Consiste em numerar pela ordem os livros, revistas, documentos  pesquisados e na ficha retirada da leitura botar apenas esse número, em romano o número do tomo se a  obra  tiver  vários  volumes,  e  em  seguida  o  número  da  página.  A  pesquisa  fica  fácil  recorrendo  à  bibliografia numerada que abre o livro das fichas ou o compartimento do fichário. ... Mais importante  me parece regularizar os livros por ler, pra que as pesquisas daqui não coincidam com as daí, com perda  de  tempo.  ...  Principiei  pela  Revista  do  Arquivo  Municipal  mas  vou  atacar  concomitantemente  os  Inventários, as Atas da Câmara, a revista do Instituto [Histórico e Geográfico Brasileiro, bem como o de 

São Paulo] me descansando de uma leitura, noutra. Até segunda‐feira cairei duro nesse trabalho. [Dois  meses depois, dá conta dos trabalhos já realizados e pede orientação acerca do fichamento de Autos de  Inventários e Testamentos de artífices, bem como dos objetos de arte, dos “casos mais característicos”,  etc.  e  arremata]:  Peço  apenas  a  você  me  sugerir  mais  coisas  que  queira.  Acho  que  a  obtenção  de  um 

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  participação ao dr. Lúcio Costa. Trata‐se do curioso dispositivo, tão bem exemplificado  nas duas Carmos de Santos, nesta 6ª. Região, das igrejas Primeira e Terceira serem  construídas como corpos gêmeos de um mesmo edifício, com uma torre só fazendo de  corpo central. Esse era o dispositivo das Carmos, de S. Paulo, e das de Angra dos Reis.  Não posso garantir ainda se este curioso partido é exclusivamente carmelitano, nem se  só é observado no Brasil, e nesta região central do país. Mas julgo fornecer a V. Sª um  problema por solucionar.23  

Como  se  vê,  Mário  de  Andrade  reitera  o  postulado  inicial,  atento  à  identificação  dos  problemas,  e  ao  estudo  [d]as  soluções  mais  características  ou  originais  do  patrimônio  da  região.  

Preferimos,  pois,  aqui  também  reafirmar  essas  perspectivas  de  trabalho,  não  porque  nos  sintamos  capazes  de  realiza‐las  igualmente,  mas  para  tê‐las  como  norte  a  direcionar  as  tarefas que desenvolvemos no IPHAN de São Paulo, dentre as quais sobressaem o estudo e a  pesquisa, pressupostos à elaboração de juízo de valor que ora nos é solicitado.  

De  modo  que  ao  atentarmos  para  este  último  problema  apontado  por  Mário  de  Andrade  –  o  dispositivo  das  Carmos  –,  este  tornou‐se  para  nós  objeto  de  especial  interesse  quando efetuávamos pesquisas na documentação da Ordem Terceira de S. Paulo, subsidiando  o  tombamento  das  pinturas  de  Padre  Jesuíno  nela  localizadas,  e  pudemos  então  verificar  o  momento  de  sua  criação:  surgiu  exatamente  com  a  construção  desta  igreja  (à  época  denominada simplesmente capela de Santa Teresa da V.O.T. do Carmo da cidade de S. Paulo),  em  1758,  não  ainda  em  sua  configuração  final,  visto  que  construído  em  taipa  de  pilão,  compondo  naquele  momento  (com  a  igreja  da  Ordem  Primeira  ao  seu  lado  e  também  com  frontaria  de  taipa)  a  configuração  digamos  “primitiva  do  conjunto”,  sem  os  adereços  que  a  cantaria de pedra lhe acrescentará depois.24 (A imagem mais próxima que penso corresponder  à composição alcançada pelas Carmos paulistanas, em 1758, seria a das Carmos de Mogi das  Cruzes depois das obras de restauro que resgataram suas fachadas originais, lisas, ainda sem  os elementos de ornamentação aplicados nos anos iniciais do século XIX.25) Anos depois, com a 

reforma  e  ampliação  do  conjunto  arquitetônico  da  Ordem  Primeira,  os  Terceiros  paulistanos        

23 MÁRIO DE ANDRADE: cartas de trabalho. ... p. 155. Rodrigo Mello Franco de Andrade, porém procura 

animar  Mário  de  Andrade  a  outra  tarefa  que  considerava  de  muito  maior  importância:  o  estudo  das  pinturas do mulato Jesuíno Francisco de Paula Gusmão – o Padre Jesuíno do Monte Carmelo –, sobre  quem havia se interessado desde os primeiros levantamentos realizados em 1937, figura destacada pela  literatura histórica entre os artífices coloniais paulistas. Mário a partir daí, irá dedicar‐se especialmente  ao padre mulato, e deixa de lado a “fichagem” dos artífices.  24 Sem, no entanto, abandonarem a pequena capela que possuíam no interior da igreja conventual que  sobreviverá, inclusive, à destruição da igreja conventual em 1928, permanecendo por cerca de 30 anos  ainda quando, ao ser demolida, o IPHAN promoveu o desmonte de seu forro em vista da possibilidade  de nele haver uma pintura mais antiga, por debaixo da atual de 1922. Este é hoje conhecido pelo nome  de forro da “Capela Esquecida” que corresponde exatamente à antiga capela funda da Ordem.  25 E acrescenta Danielle Manoel dos Santos Pereira: a construção [da igreja da Ordem 3ª] foi realizada  entre os anos de 1776 a 1782, porém a conclusão das obras de ornamentação interna levaria mais 36  anos, sendo os últimos andaimes retirados por volta do ano de 1818. in O CONJUNTO CARMELITA NA 

FORMAÇÃO  DO  PATRIMÔNIO  DE  MOGI  DAS  CRUZES.  Terceiro  Colóquio  Íbero‐Americano. PAISAGEM  CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO ‐ DESAFIOS E PERSPECTIVAS. Belo Horizonte maio de 2014. 

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promovem  a  substituição  de  sua  frontaria  por  uma  nova  (1772‐1776),  alinhando‐a  à  torre  e  igreja da Ordem Primeira, e fazendo uso igualmente da galilé em arcos de cantaria de pedra tal  qual a dos frades, o que veio a dar origem a um partido arquitetônico singular, harmonioso e  belo26 –  partido que, por sua vez, será  também adotado pelas  comunidades  carmelitanas  de 

Santos  e  de  Mogi  das  Cruzes.  Constituiria  um  “partido  carmelitano  paulista”  não  fosse  a  ocorrência  do  mesmo  nas  cariocas  de  Angra  dos  Reis.  Todas,  contudo,  pertenciam  a  uma  só  Província, a de Santo Elias. 

Ora, porque  nos estendemos acerca  desse dispositivo das Carmos quando estamos  a  tratar de uma igreja franciscana?  

Olho  para  a  capa  de  uma  volumosa  Publicação  da  DPHAN27  que  conta  exatamente  a  história  desta  igreja,  e  o  que  vejo?  A  foto  que  a  ilustra  (de  Militão  Augusto de Azevedo ‐ 1862) e percebo que os Terceiros  franciscanos  de  S.  Paulo  se  interessaram  por  adotar  partido semelhante.   

Eles,  tal  como  os  carmelitanos,  tinham  desde  1676  uma  capela  funda  na  igreja  conventual,  que  se  tornaria  cem  anos  depois  muito  acanhada  frente  ao  número  cada  vez  maior  de  Irmãos,  razão  porque  expuseram  aos  frades,  em  Mesa  Redonda  de  22  de  outubro de 1783, a necessidade de construir uma nova,  os quais reconhecendo e   atendendo a angustura, e pequenez da sua Capela assentaram de unânime  consenso o fazerem demolir a existente, e fabricar outra mais ampla, e capaz, aonde  possam com desafogo exercitar os atos anexos a seu Instituto, e louváveis costumes,   estabeleceram em comum acordo e no mesmo ato a maneira como deveria ser construída:  intentando [quer seja: com a intenção de] ... que a nova Capela seja fundada  emparelhando com a Igreja do nosso Convento, e formando para a frente dela  semelhante perspectiva, mediante entre hum, e outro edifício o espaço de vinte e oito  palmos de parede a parede. 28 (Grifo nosso) 

Partido  que  se  revelará  senão  igual,  muito  próximo  ao  dos  carmelitanos,  ainda  que  inspirado  neste,  com  a  diferença  de  que  o  dos  franciscanos  não  tem  a  torre  em  meio  aos  templos, mas colocada entre o convento e a igreja da Ordem Primeira, a qual complementa a        

26  Desenho  de  Thomas  Ender  retrata  fielmente  o  partido  então  obtido.  Pode‐se  vê‐lo  reproduzido  no 

histórico que elaboramos para o tombamento da igreja da Ordem Terceira in Capela de Santa Teresa da  Venerável Ordem Terceira do Carmo da Cidade de São Paulo. p. 11. Arquivo IPHAN/SP. 

27  ORTMANN,  Frei  Adalberto  ‐  História  da  Antiga  Capela  da  Ordem  Terceira  da  Penitência  de  São  Francisco em São Paulo, Publicação Nº 16. Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. MES. 

Rio de Janeiro. 1951. 

28  RÖWER,  Frei  Basílio  O.F.M.  –  PÁGINAS  DE  HISTÓRIA  FRANCISCANA  NO  BRASIL.  Ed.  Vozes  Ltda. 

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bela  composição  de  sua  frontaria,  elevando‐se  um  patamar  acima  do  frontão  da  igreja  em  arremate singelo e gracioso, ladeado por dois grandes pináculos.  

A  igreja  dos  Terceiros,  por  sua  vez  construída  ao  lado,  e  que  aparenta  ter  maior  largura29,  prolonga  a  composição  assim  formada,  fazendo  uso  de  elementos  decorativos  faturados  igualmente  em  cantaria  de  pedra,  a  qual  aplicada  também  no  coroamento  de  sua  portada  obrigou  a  cimalha  a  elevar‐se  discretamente  acima  da  linha  originada  na  igreja  conventual,  sem,  contudo,  comprometer  a  harmonia  do  conjunto  e  lhe  serve  para  assinalar  sua individualidade no concerto arquitetônico. Porém, visto na atualidade, o conjunto quase se  desfaz em continuidade em razão do edifício complementar dos Terceiros não o acompanhar  em  altura,  quebrando  em  parte  a  perspectiva,  embora  conserve  os  mesmos  elementos  decorativos  nas  esquadrias  das  portas  e  janelas.  Todavia  se  atentarmos  bem  ao  conjunto  original  –  com  o  edifício  primitivo  do  convento  ainda  a  figurar  inteiro  na  composição  –  recompõe‐se  o  equilíbrio  do  partido  assim  concebido  na  última  quadra  dos  setecentos.  Os  edifícios franciscanos expressavam desse modo clara intenção estética que, por sua vez, revela  a unidade de comunhão espiritual entre as comunidades. 

Sem  ser  uma  réplica  do  partido  carmelitano,  teve  obviamente  nele  inspiração,  ao  alinhar  os  edifícios  todos  do  conjunto,  colados  parede  a  parede,  fazendo  igualmente  uso  da  cantaria  de  pedra,  com  as  cimalhas,  especialmente  a  superior  (também  chamada  à  época  cimalha real) a acentuar a perspectiva pretendida.   

Outras diferenças importantes: só uma fez uso da galilé – a da Ordem Primeira, aliás  dispositivo mais típico e tradicional da arquitetura conventual franciscana. E também com três  arcos  faturados  em  pedra  de  cantaria.  Já  a  igreja  da  Ordem  Terceira  tem  uma  só  portada  central,  embora  mais  larga  com  acessos  na  fachada  para  os  seus  corredores  laterais,  todos  faturados  em  cantaria  de  pedra,  e  da  mesma  forma  as  janelas  do  pavimento  superior.  A  comunidade  franciscana  optou  em  suas  respectivas  igrejas  por  arrematar  seus  frontispícios  diferentemente da carmelitana, ambas com frontões de feições mais modernas, mais ao estilo  rococó, embora distinguidos.   

Na  verdade,  as  construções  franciscanas  valeram‐se  dos  mesmos  recursos  utilizados  pelas demais igrejas construídas ou reformadas à época: estrutura do corpo das igrejas todo  em  taipa  de  pilão,  com  suas  frontarias  faturadas  em  associação  ao  tijolo  (revestimento)  que  permitiu a aplicação da cantaria de pedra.  

Fizeram igualmente uso do mesmo artífice que fora contratado pelos carmelitanos – o  ex‐escravo do Mestre santista Bento de Oliveira, já por essa altura alforriado e que já alcançara  também a condição de Mestre. Joaquim Pinto de Oliveira era o seu nome de batismo; Tebas, o 

      

29  Aparenta  somente,  pois  se  observarmos  bem,  a  torre  integra  o  frontispício  da  igreja  da  Ordem 

Primeira e assim a sua fachada alcança a mesma dimensão da dos Terceiros, ao mesmo tempo em que  confere  a  mesma  amplitude  de  espaço  interior.  Pode‐se  observar  ainda  que  a  igreja  dos  Terceiros  repetia a planta dos Terceiros carmelitanos, com a adição dos corredores laterais que aumenta o espaço  interior e proporciona externamente a mesma impressão de largueza e horizontalidade ao edifício. 

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apelido.30 Além da fatura de elementos do frontispício terá provavelmente contribuído para a  construção do zimbório no transepto da igreja, onde se localizam pinturas realizadas à mesma  época por renomado artista sobre o qual falaremos adiante.  

Essas informações, todas elas evidenciam propósitos levados a efeito à época, dentre  as  quais  se  destacam  os  projetos  arquitetônicos  aqui  citado,  isto  é,  construções  que  se  realizaram  naquele  último  quarto  do  século  XVIII  devido  ao  empenho  das  comunidades  carmelitanas e franciscanas da cidade de S. Paulo. No caso desta última, ora em análise, restou  maior  número  de  elementos  que  o  constituiu,  ausente  tão  somente  o  convento  –  não  por  destruição  como  ocorreu  com  o  carmelita,  mas  por  desfiguração  causada  pela  mudança  de  função que a revestiu posteriormente com uma fachada. Porém, o núcleo do partido – as duas  igrejas, alinhadas e irmanadas pela nova estética que a cantaria de pedra lhes proporcionou –  preservou‐se intacto, figurando como um verdadeiro documento colonial no centro histórico  da cidade, resistindo bravamente às transformações que ocorrem em seu entorno.31   Essa é a razão porque entendemos se deva estudar que a proteção pretendida não se  limite a um só elemento desse conjunto arquitetônico religioso, estendo‐a a igreja da Ordem  Primeira, num só processo se possível.  *  Aquele propósito de Mário de Andrade de efetuar, através da leitura de livros, revistas  e documentos, o levantamento dos artífices atuantes em São Paulo, revelar‐se‐ia tarefa difícil  não  só  a  ele  como  posteriormente  a  tantos  outros  que  intentaram.  As  causas  que  explicam  essa dificuldade são muitas mas podem se reduzir a duas somente: a perda irremediável dos  acervos documentais, sejam públicos sejam particulares (das organizações da igreja, secular e  regular  inclusive),  e  a  penosa  tarefa  de  garimpar,  do  pouco  que  restou,  os  registros  que  efetivamente atestam a presença desses artífices, pois houve períodos em que os responsáveis  por  tais  apontamentos,  eram  generosos  nas  informações,  em  outros  pelo  contrário  econômicos,  resumidos  ao  máximo,  ou  nem  sequer  registrados.  Daí  propugnarmos  sempre  pelas ações de preservação e habilitação da documentação dessas instituições.32 

      

30  A  respeito  de  Tebas,  ver  Nuto  Santana  em  São  Paulo  histórico  (Aspectos,  Lendas  e  Costumes).  S. 

Paulo. Departamento de Cultura da Pref. Mun. de S. Paulo. 1937. V. 1. Ver também artigo TEBAS – Vida  e Atuação na São Paulo Colonial in https://sites.google.com/site/resgatehistoriaearte/, de nossa autoria. 

31 Interessante o comentário de Percival Tirapelli: O Largo de São Francisco é o único que preserva feição  colonial,  apesar  das  reformas.  Sua  iconografia  fotográfica  é  rica,  desde  Militão  Augusto  de  Azevedo  (1837‐1905),  em  1862.  As  transformações  do  largo  são  constantes:  a  fachada  do  convento,  a  nova  Faculdade de Direito em estilo neocolonial de 1937, o monumento a José Bonifácio, o Moço; ao fundo, a  Escola  Armando  Álvares  Penteado  em  linhas  arquitetônicas  austríacas  e,  por  fim,  os  edifícios  neocoloniais  que  ladeiam  o  conjunto  colonial  franciscano  das  igrejas  das  ordens  primeira  e  terceira.  E 

sobre o partido:  A aparência atual resulta de reformas efetuadas em fins do séc. XVIII, constituindo o 

mais  belo  conjunto  colonial  de  S.  Paulo,  ao  lado  do  Mosteiro  e  Igreja  da  Luz  (os  dois  conjuntos  apresentam nítidas afinidades estilísticas. São Paulo Artes e Etnias. UNESP/ Impr. Oficial. S. Paulo. 2007. p. 80.  32  Atualmente,  a  política  correta  (pensamos  nós)  é  a  de  se  promover  a  preservação  desses  acervos, 

incluindo  os  das  corporações  religiosas,  estejam  ou  não  tombados  os  templos.  Pois,  como  a  Arte  no  período Colonial era sobretudo consubstanciada nas igrejas, ricas e pobres, é na sua documentação que  se  poderá  resgatar  informações  sobre  os  artífices  e  as  obras  que  nelas  realizaram,  como  pretendia  Mário de Andrade. Aliás, quando cuidamos do tombamento da igreja dos Terceiros Carmelitanos de S.  Paulo, incluímos o arquivo documental da Ordem. 

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Da  mesma  forma  ocorre  no  caso  presente  da  igreja  dos  Terceiros  franciscanos.  Podemos,  todavia,  ainda  nos  valer  dos  dados  disponibilizados  acerca  dos  artífices  que  participaram  das  obras  tanto  de  edificação  como  de  ornamentação.  O  estudo  realizado  por  Frei Adalberto Ortmann sobre essa igreja está documentado tão detalhadamente quanto lhe  foi  possível  coletar  nos  livros  de  Atas  e  de  Receita  e  Despesas,  com  transcrição  de  inúmeros  registros de deliberações da Mesa Administrativa da Ordem e de lançamentos de pagamentos  efetuados a artífices e a fornecedores dos materiais utilizados, trabalho árduo que realizou a  ponto de nos parecer obra encomendada ao Autor para subsidiar processo de acautelamento  ou  mesmo  possíveis  obras  de  conservação  e  restauro  futuras.  História  da  Antiga  Capela  da  Ordem  Terceira  da  Penitência  de  São  Francisco  em  São  Paulo  é  o  título  da  publicação,  aliás,  levada a efeito pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1951.33 Todavia,  apesar da extensa documentação, não satisfez nem mesmo ao próprio Autor.  

Mesmo  assim  vamos  a  ela.  E  primeiramente  para  constatar  uma  ausência  esperada.  Não há na relação dos artífices que atuaram na Terceira franciscana registro da presença do  mulato Jesuíno Francisco de Paula Gusmão – confirmando o fato de ter esse pintor dedicado  praticamente quase toda a sua arte a representar os santos e doutores da Ordem carmelita, a  exceção das telas da sua igreja de N. Sra. do Patrocínio e as da Matriz de Itu. Vemos, isso sim, a  presença de José Patrício da Silva Manso e que Frei Ortmann tratou apenas como o pintor José  Patrício.34  Este,  depois  de  atender  a  convocação  do  Bispo  Dom  Manuel  da  Ressureição  de  pintar o magnífico painel do forro da Matriz de Itu (1786‐1790), já de retorno a cidade de S.  Paulo, em 1791, o encontramos na Terceira franciscana, contratado para representar a subida  de São Francisco num carro de fogo ao céu, bem como outros painéis grandes da capela‐mor.  

No  ano  seguinte  mais  77$240  réis  ainda  de  resto  a  receber  desses  painéis.  Importâncias muito pequenas tendo em vista a dimensão das obras de pintura realizadas que,  todavia, englobavam ou deviam englobar as pinturas do zimbório que lhe são atribuídas pelos  especialistas em Pintura Barroca Paulista. Ganho bem mais expressivo deve ter auferido com  os trabalhos que realizou na capela da Senhora da Conceição.   Em 1793 Frei Ortmann apurou no livro correspondente que foi pago  A José Patrício com que se ajustou todo o dourado da capela‐mor e retábulo,  dando ele todo o ouro e tintas, e só obrigada a Ordem a fazer andaimes por preço e  quantia de 600$000 rs.         33 ORTMANN, Frei Adalberto – op. cit.   34 E que Mário de Andrade supõe ter desempenhado papel equivalente ao de mestre daquele quando  esteve em Itu pintando o Mistério da Purificação – e que para muitos constitui a sua pintura de maior  esplendor artístico, sua obra‐prima – e possivelmente os painéis das paredes laterais da capela‐mor da  Matriz. Este mesmo painel recebeu recentemente atenção de profissionais especializados em restauro,  removendo as grossas camadas escurecidas de verniz, reavivamento de cores e dourados que o fizeram  resplandecer tal qual foi executado. Por esse painel e mais o douramento e pintura do retábulo mor da  matriz recebeu um conto e duzentos mil réis, dinheiro considerável à época. 

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Talvez  tenha  também  redoirado  o  retábulo  feito  cinquenta  anos  antes  (1736/40),  entalhado, de acordo com Frei Ortmann, por Luís Rodrigues Lisboa – então o único entalhador  existente em São Paulo.35 

Se era esse o quadro na primeira metade do século XVIII, poucos artífices disponíveis  para  realizar  os  trabalhos  artísticos,  as  coisas  parecem  mudar  de  meados  do  século  adiante.  Cresce  aos  poucos  o  número  de  profissionais  não  só  na  Capital  como  nas  principais  Vilas  da  Capitania.  Nem  todos,  porém  gozaram  do  mesmo  prestígio.  Pelas  tarefas  que  foram  contratados  a  realizar  nas  igrejas  pode‐se  perceber  duas  categorias:  o  artista  propriamente  dito e o artesão, o que era capaz de criar e produzir obra de Arte e o que executava serviços  artísticos menores e mais simples execução. E dentre os primeiros, parece que alguns apenas  passaram  por  aqui,  executando  um  ou  outro  trabalho,  e  quase  não  deixaram  rastos  de  sua  presença.36  

Outros  alcançaram  grande  prestígio  e  foram  disputados  pelas  principais  corporações  religiosas.  Neste  caso  estava  José  Patrício  da  Silva  Manso.  Não  houve  naquelas  décadas  derradeiras  do  século  XVIII  dourador  mais  competente  do  que  ele,  não  obstante  a  sua  excelente qualificação como Pintor que justificara a manifesta preferência de Dom Manoel da  Ressurreição para pintar o forro da Matriz de Itu.   José Patrício continuou a prestar seus serviços de pintor e dourador a Ordem Terceira  franciscana nos anos seguintes, ao menos até 1797 quando ainda recebe 100$000 réis do que  se devia ao pintor.  Porém antes, no tempo ainda de escassez de artífices, Frei Ortmann aponta a presença  do pintor Caetano da Costa Coelho, executando grandiosas e deslumbrantes pinturas na igreja  quando essa era ainda apenas uma capela funda na igreja conventual (entre 1732 e 1743).  

Outras  mais  existiam  nesta  antiga  capela  em  1756,  e  em  grande  número,  painéis  e  pinturas de parede na capela‐mor, no corpo da igreja, na sacristia, e no consistório37, mas não  foi possível precisar seus autores.38  

Houve também a participação do pintor João Pereira da Silva que sabemos ter pintado  também para os Terceiros do Carmo, por essa mesma altura. Como não era ainda costume aos  pintores,  tanto  nesta  como  em  época  anterior,  assinar  as  obras  que  realizavam,  ficamos  na         35 O entalhador Luís Rodrigues Lisboa filiou‐se à Ordem Terceira de São Francisco e nela fez sua profissão  em primeiro de janeiro de 1745. Ocupou os cargos da Mesa em 1748 e 1752, de presidente zelador em  1745 e o de secretário em 1755, vindo a falecer aos 18 de novembro de 1761. Conf. Ortmann, op. cit. p.  66.  36 Assim pode ter ocorrido com o entalhador Bartholomeu Teixeira, recentemente descoberto por nós. 

Ver  artigo  Entalhador  do  retábulo  da  Matriz  revela‐se  em  inventário  do  mecenas  da  Itu  Colonial  in 

CADERNOS DO PATRIMÔNIO DE ITU. Prefeitura da Estância de Itu – Secretaria de Cultura. Ano 1 – Nº 1  – 2015. pp. 16‐21.  37 Ortmann – op. cit. p. 81.  38 Diz Frei Ortmann a esse respeito:  Os ... documentos são redigidos em termos tão vagos e indecisos  que não permitem, com certeza incontestável, atribuir‐lhes painéis determinados. / Quanto ao tema ou  conteúdo das pinturas falam apenas de seis painéis da Paixão, quatro dos novíssimos e um do fundador  da  ordem,  este  pintado  no  teto  do  consistório.  ...  Afora  destas  onze  pinturas,  sabemos  que  em  1756  havia ainda no corpo da igreja, seis ou oito painéis. ... op. cit. p. 83. 

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  dependência de quem os contratava para conhecermos seus nomes (embora não tivessem em  conta os contratantes a importância que seus registros teriam no futuro). Vê‐se, por exemplo,  o pagamento feito ao pintor mais afamado de então, o preferido do bispo Dom Manuel, tanto  na Terceira Franciscana como na Terceira carmelitana, lançado apenas José Patrício nos livros  de despesa. Da mesma forma, vimos ocorrer na Terceira do Carmo com Jesuíno Francisco de  Paula  Gusmão,  nos  anos  1796‐1798  quando  pintou  os  forros  de  madeira  da  igreja  inteira,  desde a capela‐mor até o coro; por esse imenso trabalho encontramos alguns poucos registros  de pagamento efetuados a Jesuíno apenas.39  

Frei  Adalberto  Ortmann  enumera  todos  os  painéis  da  igreja,  em  cada  uma  das  localidades onde se encontram, descrevendo‐os e nomeando‐os de acordo com os temas ou  personagens  representados,  buscando  identificar  seus  possíveis  autores.40  Tal  descrição 

poderá ser de utilidade quando tratarmos do efetuar o inventário de todo o acervo artístico da  Ordem,  incluindo  retábulos  e  alfaias,  pressupondo  que  se  obtenha  aprovação  para  o  seu  acautelamento.  

Destaque especial merece desde já o retábulo da capela de Na. Sra. da Conceição que  apresenta,  de  acordo  com  o  Historiador  de  Arte  Percival  Tirapelli,  qualidades  que  o  diferenciam, confeccionado em estilo Joanino, de  

talha erudita com anjos atlantes sustentando colunas salomônicas, anjos assentes  sobre volutas, ampla camarinha com trono escalonado e, no coroamento sobre o lambrequim,  primorosa tarja com motivos florais.41 

Aponta  ainda  o  mesmo  historiador  dois  elementos  estranhos  à  arte  franciscana  propriamente  dita  e  hoje  integrados  a  Igreja  dos  Terceiros:  o  altar  de  São  Miguel  e  a  porta  principal  da  igreja,  ambos  originários  da  segunda  das  quatro  igrejas  do  Mosteiro  de  São  Bento.42  Não  deixam  de  ser  fatos  controversos,  todavia.  De  tal  modo  que,  na  contabilidade  artística dessa igreja, se por um lado a incorporação desses elementos pôde creditar mais valor  documentário ao seu acervo ornamental, por outro concorreu contrariamente à sua unidade  conceptiva original.43  

      

39 É o caso de se pensar se teria havido outras formas de remuneração aos trabalhos de pintura por ele 

executado  a  Ordem.  Hospedagem,  alimentação,  estudos  que  fazia  então  para  o  sacerdócio  com  os  frades, quem sabe até mesmo aulas de música com André da Silva Gomes, como supõe Régis Duprat?  Deviam  ser  procedimentos  possíveis,  negociados  sem  escrituração  alguma,  apenas  cumpridos  pelas  partes sem qualquer expediente burocrático. Também os serviços notariais deviam ser caros, e tal como  hoje, a eles se recorria somente em última instância.  40 Ortmann, Frei Adalberto – op. cit. Capítulo III – Os painéis da capela. Pp 81‐112.  41 Tirapelli, Percival – IGREJAS PAULISTAS: Barro e Rococó. Ed. UNESP Imprensa Oficial. S. Paulo. 2007.  p. 45.   42 Tirapelli, Percival. Op cit. p. 46. Não menciona, entretanto, a fonte de onde extraiu tais informações.  43 Verificou‐se o mesmo com a igreja da VOT do Carmo, com a transferência de elementos de talha da  antiga igreja do Recolhimento das Irmãs carmelitas, doadas por Dom Leopoldo Duarte a Ordem Terceira  que  os  incorporou  na  reforma  de  1922,  que  esteve  à  cargo  do  arquiteto  Ricardo  Severo.  Porém,  ao  contrário  da  franciscana,  tal  incorporação  não  chega  a  afetar  a  unidade  original,  pois  que  talhados  mediante  o  mesmo  estilo.  À  mesma  época  foram  também  transferidas  as  pinturas  em  caixotões  que  ornavam o teto da capela mor daquela igreja, executadas por Padre Jesuíno do Monte Carmelo, e que  hoje  ornam  um  corredor  lateral  da  Ordem  Terceira  do  Carmo.  Menos  compreensível,  todavia,  é  a  presença  de  uma  bela  imagem  de  São  Francisco  na  sala  da  diretoria  desta  igreja  que,  perguntado  a 

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