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Percursos da literatura na educação : ensinar contando histórias

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Academic year: 2021

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FERNANDA MARIA MACAHIBA MASSAGARDI

PERCURSOS DA LITERATURA NA EDUCAÇÃO –

ENSINAR CONTANDO HISTÓRIAS

CAMPINAS

2014

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RESUMO

A literatura, oral ou escrita, é parte da história da humanidade. Registro de épocas, retratos de sociedades, espelho da realidade, dimensão de sonho e fantasias, esse gênero de arte é fundamental para a educação de nossas crianças e jovens. Linguagem que tem por basilar prática a leitura, tanto de mundo, como escrita, a literatura contribui para o desenvolvimento cognitivo e afetivo, na medida em que proporciona a formação de um sujeito crítico, que não apenas decodifica, mas interpreta e recria situações. Também possibilita a imersão num mundo de sensibilidades, porquanto é recebida primeiramente por meio dos sentidos e do corpo. A educação literária não se resume apenas ao conteúdo das narrativas. Um docente que pretenda levar tal prática aos alunos precisa conhecer aspectos fundamentais, tais como a criatividade, a representação do mundo na criança, o processo de aquisição de conhecimentos, a vida real e os sonhos dos educandos que têm sob sua tutela e quais fatores os animam a procurar na leitura da literatura momentos de prazer e de conhecimentos. A teoria piagetiana é aporte teórico no que tange ao entendimento do desenvolvimento infantil. No que refere-se à literatura, alguns autores, com agudeza de espírito, conseguiram e conseguem, de maneira atemporal, levar aos pequenos a educação revestida de fantasia. Considerando a educação essencial a um cidadão sensível e perspicaz, tais autores, utilizando recursos que serão abordados nessa investigação, transmitem aos leitores mensagens e situações que exigem reflexão. As obras de Monteiro Lobato e C. S. Lewis ultrapassaram sua época e emergiram no século XXI com aceitação plena das crianças e jovens. Dessa forma, as análises de suas vidas e de algumas de suas narrativas fazem parte desse trabalho, no intuito de apontar ao docente alguns caminhos que indiquem de que forma a literatura perpassa e auxilia a educação e quais os percursos foram percorridos por ela até o nosso século.

Palavras-chave: arte, literatura, educação, construtivismo

ABSTRACT

Literature, oral or written, is part of human history. Registration of times, portraits of societies, mirror of reality, dimension of dream and fantasy, this genre of art is essential to the education of our children and youth. Language that has as basic reading practice, either from the world, or written as well, literature contributes to cognitive and emotional development as it provides the formation of a critical subject that not only decodes, interprets, but recreates situations. Also enables immersion in a world of sensibilities, since it is primarily received through the senses and the body. Literary education is not just the content of the narratives. A teacher who wishes to take the practice of literature to the students need to know fundamental aspects such as creativity, representation of the world in the child, the process of acquiring knowledge, real life and dreams of students who are under his tutelage and the factors which animate the search for the reading in literature moments of pleasure and knowledge. Piaget's theory is the theoretical basis regarding the understanding of child development. When it comes to literature, some authors, with sharpness of mind, succeed, in a timeless way, to lead children to a fancy education. Considering an essential education to a sensitive and perceptive person, these authors, using resources that are addressed in this investigation, transmit messages to players and situations that require reflection. The works of Monteiro Lobato and C. S. Lewis surpassed their own time and emerged in the twenty-first century with full acceptance of children and youth. Thus, the analysis of their lives and some of their stories are part of this work, in order to highlight to the teacher some ways that indicate how the literature pervades and supports education and what routes were traveled by it until our century.

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SUMÁRIO

1.0 - Introdução...01

2.0 – Percursos da literatura em minha vida...03

3.0 - Os porquês da literatura: a quem se destina, o que é e qual sua função...08

3.1 - Literatura e escrita: erudição?...12

3.2 - Literatura clássica ou popular?...14

3.3 - Boa e má literatura...15

3.4 - Literatura: marcos históricos...16

3.5 - A literatura, a arte e o social...17

3.6 - Literatura: o real, o fantástico e o possível...22

3.7 - A permanência da realidade e da fantasia na literatura...28

3.8 - O leitor, o autor e a obra...30

3.9 - Literatura e linguagem...36

3.10 - Leituras de literatura: entre o provisório, o definitivo e o reinventado...40

3.11 - Literatura hoje...44

3.12 – A literatura enquanto arte...50

4.0 - A leitura e a literatura...55

4.1 - A leitura que produz sentidos: o texto e o contexto...58

4.2 - A leitura, a mídia e a alfabetização...65

4.3 - A leitura na escola e em casa...68

4.4 - A compreensão do mundo através da leitura prazerosa...81

4.5 - Barthes e o prazer do texto...86

4.6 - O leitor perante a obra...93

4.7 - A leitura segundo C.S. Lewis...96

4.8 - Leitura em voz alta ou silenciosa? ...103

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5.0 - O suporte material da escrita...115

5.1 - O livro infantil...118

6.0 - A criatividade ...120

7.0 – A ética e a estética: educação do sensível ...128

8.0 - A teoria da equilibração de Piaget ...150

8.1- A representação do mundo na criança...158

8.2 – Tipos de conhecimento...174

8.2.1 - Conhecimento social...176

8.2.2 - Conhecimento físico...177

8.2.3 - Conhecimento lógico-matemático ...179

9.0 - A construção do pensamento científico na criança...180

10.0 - Considerações sobre a infância e a adolescência ...193

10.1 - As instituições de ensino ...226

11.0 – Biografias...239

11.1 - Breve biografia de Jean Piaget...241

11.2 - Breve biografia de Monteiro Lobato ...243

11.3 - Breve biografia de C.S. Lewis ...251

12.0 - Monteiro Lobato e a criança...258

12.1 - A obra lobatiana...269

12.1.2 - A chave do tamanho...282

12.1.3 - O minotauro...298

12.1.4 - O Picapau Amarelo ...334

12.1.5 – Breve comentário: a Aritmética da Emília, Emília no país da Gramática e a Geografia da Dona Benta ...391

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13.0 - A obra lewisiana ...401

13.0.1 - O sobrinho do Mago...411

13.0.2 - O leão, a feiticeira e o guarda-roupa ...473

14.0 – Lewis e Lobato: breve análise biobibliográfica comparada...533

15.0 – Considerações finais ...540

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Dedico essa pesquisa à minha pequena bruxinha particular Ninianne, por quem vivo, às crianças que não têm família e aos meus alunos que nunca tiveram o prazer de ouvir uma história contada pelos pais.

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AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas fizeram parte desse meu percurso. Escrever uma tese é registrar não apenas um estudo, mas todo sentimento proveniente de uma paixão. O processo da escrita exige momentos de diálogo com as páginas de um livro, mas também instantes de intensa cooperação e amizade. Agradeço, primeiramente, à Profa. Dra. Orly Zucatto Mantovani de Assis, que confiou em minha capacidade, quando eu ainda estava dando os primeiros passos na academia; ao Prof. Geraldo Archangelo, que me acorreu no dia do vestibular, num momento em que eu havia desistido de tudo; Prof. Dr. João Franciso Duarte Júnior, grande mentor da educação do sensível e amigo; Prof. Dr. José Barbosa Machado, pelos apontamentos assertivos e amizade; Prof. Dr. Valério José Arantes, por aceitar ser parte de minha banca de defesa e por ensinamentos valorosos no LPG; Profa. Dra. Telma Vinha, pela amizade e palavras sábias; Prof. Dr. Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry, que me recebeu no Centro de Convivência de Afásicos da Unicamp para que eu pudesse, por três anos, aprender a valorizar a vida, além de ensinar arte; Profa. Dra. Nádia Badue Freire, por toda poesia, arte e entusiasmo; Prof. Dr. Edson do Prado Pfutzenreuter, que me acolheu no Instituto de Artes da Unicamp, no Programa de Estágio Docente, durante minha pós- graduação; Profa. Dra. Marisa Lajolo, que com seus escritos auxiliou minha pesquisa de Monteiro Lobato; Profa. Dra. Gabriele Greggersen, pela paixão e conhecimento de C.S. Lewis compartilhados; Profa. Dra. Maria Angela Miorim, minha querida orientadora de Iniciação Científica; Profa. Dra. Sandra Bulhões, que me convidou gentilmente para ministrar uma palestra aos alunos da matemática da UNIUBE; Prof. Dr. Ezequiel Theodoro da Silva, que me ensinar o valor do trabalho sério e com carinho convidou-me para fazer parte da equipe do site Leitura Crítica; meu querido Maestro (in memorian) Álvaro de Bautista, último dos artistas lendários do Instituto de Artes da Unicamp; Prof. Dr. Geraldo Porto, que fez do mosaico uma metáfora da vida durante as aulas da graduação; Profa. Dra. Miriam Garate, que ensinou mais do que cinema e literatura e Prof. Dr. Luis Renato Martins, que me apoiou num momento em que perdi minha mãe.

Agradeço ao meu pai (in memorian), por manter minha cabeça nas nuvens e à minha mãe (in memorian) por tentar trazer meus pés para o chão. Aos meus irmãos,

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cunhadas e tia Meg, por acreditarem em meu percurso. Também à Liliana Arévalo e Giovani Pitoli, navegantes e companheiros artistas em exposições.

Nunca conseguiria concluir esse trabalho sem o apoio e amizade das minhas irmãs do coração Daniela e Talita. Também sou grata aos meus amigos Ivan Aguirre, Douglas de Moraes, Marlete, Alessandra Bizeli, Eliane Precoma, Rosa Morena, Juliana Kataguiri, Carla Fernandes, Suely Oliveira, Ana Lúcia Meneghel, Marcelo Rachid de Paula, Patrícia Sant´ana Ferreira, Vanderli, Eliana Simões e Maria Alice, Patrícia Sant´ana Ferreira, Ednalva, Sidinea Lopes, Thelma Cardarelli, Penha Fernandes, Bety Gatti, Rosangela Aparecida e Carla Fernandes, pelo incentivo constante. E às colegas do LPG: Adriane, Maria Belintane, Ana Lúcia, Janete e Sandrinha.

Agradeço a amizade muito querida de Tamara Nishijima Pupo Massagardi.

Aos meus alunos da graduação da Unicamp, em especial para Giovana Delagracia, Daniele Akemi e Filipe Miranda, grandes amigos e incentivadores.

Aos amigos Cristina e Alex Visconti, que acompanham minha vida desde pequena. Aos meus alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Prefeitura Municipal de Campinas e do curso de Extensão do Proepre.

Agradeço todos os meus colegas professores do CEMEFEJA Paulo Freire e EMEF Geny Rodriguez, pelo apoio e incentivo.

Sou grata às minhas amigas portuguesas, Vó Miquinhas (in memorian), Angela Saldanha, Teresa Eça, Cristina Henriques, Isabel Trindade, Sonia Bolinhas, Teresa Sebastião, Antonieta Costa e Fernanda Santos, pelo carinho e sensibilidade.

Aos amigos Comparangoleiros Ari Cláudio e Tiago Nascimento.

Agradeço minhas queridas amigas e secretárias do Instituto de Artes, Mariângela, Neusa e Alaíde. Também aos funcionários e queridos amigos Joel, Santaterra (In

memorian) e Luis (in memorian).

Aos funcionários da Faculdade de Educação, Sr. Ivo, Verinha, Márcia, D. Vanis. Aos funcionários da pós-graduação da Faculdade de Educação, que sempre foram gentis e amigos: Nadir, Rita, Cleo e Luciana. Ao Gilberto, Leandro e Ademilson, grandes profissionais da videoconferência.

Sou grata a minha secretária Benê, anjo da guarda que cuida de minha casa. Também aos vizinhos Marlene, Renata e Gustavo Tomazzi, grandes amigos.

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Ao Dr. José Carlos Safi, da Santa Casa de Misericórdia de Itu, que ensinou, no grupo de voluntariado que frequentei por alguns anos, que a vida humana é preciosa e que as pessoas precisam umas das outras.

Sou grata também à Malu Neves, minha mestra contadora e histórias. Aos amigos da música, com os quais realizei um programa social: Júlia, Alexandre, Raquel e Júnior.

Aos funcionários, internos e queridos amigos da Casa Guadalupana da APOT, que me receberam com carinho e ampliaram meus horizontes de vida.

Com especial carinho sou grata à minha querida Ceumara, paciente do Centro de Convivência de Afásicos, que me ensinou a ser forte e superar obstáculos teoricamente intransponíveis.

Agradeço minha querida amiga Renata Santos, por estar presente nos momentos em que estive sozinha.

Ao querido Vitor, por trazer sempre um sorriso e alegria. Também à Ticiane e Geni, pessoas que são especiais e dádiva de Deus em minha vida. Exemplos de fé e otimismo.

Agradeço a Thaís Milagres, pela amizade e por todos os trabalhos maravilhosos que realizamos juntas.

Aos funcionários e alunos das Oficinas da Estação Cultural de Santa Bárbara, em especial à Silvia Gagliardo, sempre querida e grande mestra e também à Silvania Dollo, professora dedicada e competente da Fundação Romi.

Meus sinceros agradecimentos ao meu ex-marido Ricardo Pupo Massagardi, por toda ajuda que ofereceu com nossa filha, em momentos que precisei me ausentar a título de estudos e pela revisão dos conceitos da Física no capítulo referente às “Crônicas de Nárnia.”

Sou grata pela amizade de Marta Suàrez Bautista, minha querida Alvarita, por me ensinar lições de força, coragem e ternura. Uma amizade que surgiu de uma tristeza, num momento de doença.

E ao amigo Ricardo Labuto Gondim, pela amizade e deliciosas conversas teológicas, que aconteceram na cozinha da casa da mamãe Gondim, no Rio de Janeiro.

Agradeço aos responsáveis pela devolução de minha fé por meio da arte e da religião. Os queridos Pe. Hélio (in memorian), Pe. Dimitri, Ir. Cida, Ir. Josepha (in

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memorian), Josy Santos, Patrícia Maria, Olivieri e todos os amigos do grupo da

Fraternidade e da Igreja Melquita do Paraíso.

Agradeço ao caríssimo amigo, mentor intelectual e de vida Roque Ehrhardt de Campos, por me apresentar a obra de C. S. Lewis e descortinar a graça divina presente em minha vida durante esses anos.

Um especial agradecimento ao sempre presente amigo da Gralheira, por incentivar e compartilhar meus estudos, contos e poesia.

Agradeço ao meu querido Mello, pela ternura e cuidado. Por todo apoio e incentivo, por ouvir minhas fabulações, alegrias e tristezas e me ajudar em momentos difíceis, alegrando-se com minhas vitórias.

E a todos inúmeros amigos que, de uma forma ou de outra, fizeram desse percurso um momento feliz em minha vida.

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As árvores não permitem ver o bosque, e graças a isto é que o bosque existe. A missão das árvores patentes é fazer latentes as demais, e só quando nos damos perfeita conta de que a passagem visível está ocultando outras paisagens invisíveis, é que nos sentimos dentro de um bosque.

[...] Pois o profundo necessita de uma superfície atrás da qual esconder-se, precisa da superfície ou aparência para ser o profundo, de algo sobre o que se estenda e que ela intercepte.

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1.0 - Introdução:

Quando a literatura passa a ser entendida como gênero de arte, a sua importância aumenta consideravelmente. A arte, sempre veículo do belo, da reflexão, da denúncia e expressão de verdades e mentiras coletivas e individuais é um repositório da própria vida, vista com olhos mais perspicazes e sensíveis.

Se considerarmos que muitas escolas utilizam textos literários como forma de ensinar gramática ou punição de férias para alunos que precisam ler para conseguir notas, diminuímos e não fazemos jus ao poder que essa arte tem de sensibilizar e ensinar.

Esta investigação, fundamentada em revisão bibliográfica, tem início com as seguintes questões: pode a literatura ensinar os conteúdos propostos pelas escolas, auxiliar o infante a superar seus medos, construir suas estruturas de inteligência, ou seja, suas representações da realidade e uma vida afetiva e social?

Esta pesquisa faz um entrecruzamento da teoria psicogenética e dos contos de Monteiro Lobato e C.S. Lewis, de forma a explicar que a literatura pode promover o desenvolvimento intelectual e afetivo. E também a importância do faz de conta para a representação de mundo pela criança. Após explanação dos estudos de Piaget, esses serão retomados na minuciosa análise literária dos autores supracitados.

E quais autores e áreas podem fundamentar esta pesquisa no âmbito teórico e prático? Qual seria o material adequado para dar às crianças a oportunidade de vivenciar situações propícias ao seu desenvolvimento?

Primeiramente foi necessário partir de um mapa conceitual e enumerar as diversas vertentes relevantes que se interligam à temática central: o ensino por meio da literatura. Nesse ínterim, uma proposta que parecia simples mostrou-se complexa.

O ensino por meio da literatura não pode se resumir apenas ao conteúdo literário. Faz-se necessário entender qual a sociedade e a realidade das crianças que irão ter em mãos os livros, qual o papel do docente e da instituição de ensino nessa prática, quais os processos de aquisição de conhecimentos da criança, como a criança entende o mundo, o que é literatura, o que é literatura infantil, quais autores fizeram da literatura um veículo para a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo, como se dá a leitura, quais os aspectos que fazem da literatura um gênero de arte, que vai além da narrativa; qual a importância do

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livro enquanto objeto, num mundo repleto de inovações tecnológicas; como a criança pode ter liberdade para desenvolver sua criatividade, a importância do ouvir, brincar, ler e criar histórias e o que é a criatividade?

Essas foram inúmeras questões que nortearam o eixo central dessa investigação: ensinar contando histórias.

Para a compreensão da realidade da criança, os dados dos livros de Ariès (1981) e Galeano (2009) foram de fundamental importância. Mantovani de Assis (2002) e Meireles (1979), com suas teorias acerca da educação, do brincar e da criatividade, esclareceram aspectos relativos ao papel da instituição escola e do docente. Piaget (1973) e suas teorias da equilibração e da representação do mundo na criança forneceram aportes teóricos que possibilitaram o entendimento do processo de aquisição do conhecimento dos pequenos. Coelho (1991) e Góes (1984) foram imprescindíveis nos itens de leitura e literatura infantil. Lobato (1942), Lewis (2002), Carroll (1997) e suas “literaturas infantis” permitiram a interpretação, o deslumbramento e o reencontro com personagens de infância. Freire (2001), Silva (1996), Silva (1985), Proust (1989), Barthes (2004) e Geraldi (1984) auxiliaram na busca de uma prática de leitura libertadora. Duarte Júnior (2004) permitiu uma explanação acerca da importância da arte e da estética. Eco (2003) e Jesualdo (1978) forneceram dados acerca do livro enquanto objeto de desejo. Brenanm (2005) gerou uma reflexão sobre a importância do ouvir e ler histórias. Feymann apud Mlodinow (2005) evidenciou a presença da arte na ciência. E os poetas Barros (1998), Coralina (2006), Pessoa (2006) e tantos outros ilustraram, esclareceram e enriqueceram os diversos capítulos desta investigação.

Há três autores principais que fundamentaram esse estudo. Homens à frente de seu tempo. Por esse motivo, foram objeto de minha pesquisa para uma proposta para o século XXI: Monteiro Lobato, nascido em 1882; C.S.Lewis, nascido em 1896 e Jean Piaget, nascido em 1898. Suas datas de nascimento são coincidentemente próximas. Apesar de terem vivido em países diferentes, todos ofereceram e continuam a oferecer inúmeras propostas que auxiliam o desenvolvimento cognitivo e afetivo das crianças.

A obra de Piaget, de maneira ímpar, auxiliou o entendimento do processo de aquisição de conhecimento da criança e adolescente.

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A obra de C. S. Lewis continua sendo uma das mais vendidas em todo o mundo e foram transcritos para o cinema os títulos: “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, “O príncipe Caspian” e “A Viagem do Peregrino da Alvorada”, com enorme sucesso de bilheteria.

A obra de Lobato tem sido reeditada na forma de e-book, novo suporte de leitura. O conto "As Reinações de Narizinho" foi publicado na última Bienal do livro de São Paulo, com ilustrações interativas. O conto "As Memórias de Emília", que havia sido transformado em uma minissérie de televisão, foi reeditado em DVD e a obra completa de Lobato está sendo reeditada na Argentina. Um biólogo, um professor universitário e um advogado; grandes mestres que nos legaram escritos de importância ímpar, que merecem cuidadosa atenção e estudo.

2.0 – Percursos da literatura em minha vida

Os contos de fada são assim. Uma manhã a gente acorda e diz “era só um conto de fadas...” E a gente sorri de si mesmo. Mas, no fundo, não estamos sorrindo. Sabemos muito bem que os contos de fada são a única verdade da vida. (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.16)

No ano de 1985, ao visitar uma feira de livros na escola Salesiana, fui presenteada por meus pais com a coleção completa de Monteiro Lobato. Aos sete anos de idade, conhecia, das inúmeras leituras realizadas em anos anteriores nos horários que precediam o sono, a maioria dos contos e personagens. Folheando as páginas de alta gramatura, pouco ilustradas e repletas de fantasia, reencontrava diariamente anseios, medos, coragem, sonhos e tantos outros sentimentos próprios da criança tanto quanto dos adultos. Sentia os cheiros característicos do Sítio do Pica-Pau Amarelo, seus sons e o gosto do bolo da tia Nastácia - que era bastante parecido com o de minha avó.

Nessa época, moradora da cidade de São Paulo, percebia o medo que as pessoas tinham de assaltos e todas as noites, quando ouvia um barulho na janela de meu quarto, que ficava no primeiro andar de um sobrado, desejava que fosse apenas um ladrão e não a temível Cuca, a jacaré fêmea criada por Lobato, que personificava uma espécie de medo

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que me perseguiu durante longos anos. Deixei de fazer muitas coisas devido a esse sentimento que bloqueava minhas ações. Fui salva, e de muitas maneiras, pelo Jacaré da Terra do Nunca (com J maiúsculo), criado por J. M. Barrie no clássico da literatura infanto-juvenil “Peter Pan.” Aquele animal monstruoso que tinha devorado um dos braços do Capitão Gancho era, segundo meus critérios, um herói. E o melhor, tinha senso de humor, estava sempre sorrindo e com isso me fazia sorrir. No entanto, era um jacaré. E jacarés eram seres maus; como seriam bons tendo por prima a Cuca? Devo a Barrie minha primeira experiência de desligamento de uma transposição de um caso particular para o particular, chamada pela psicologia genética de transdução. O paradigma da Cuca, que se estendeu a todos os jacarés, inclusive os de pelúcia e infláveis, vaporizou à medida que fui capaz de perceber outros pontos de vista e situações, não apenas na crença no medo de um animal que tinha aparência e atitudes duvidosas e malvadas. Pude construir, através de uma mistura entre a fantasia e realidade, novos conceitos que permitiram a ampliação de repertório de vida.

Sempre recordo com carinho minha descoberta do Jacaré da Terra do Nunca, que me fez compreender o inofensivo no aparentemente amedrontador. Agradeço a ele e a Barrie a generosidade com que ilustraram minha realidade mediada pela fantasia.

Atualmente, como educadora, numa proposta de retrospectiva pessoal, faço uma revisão da minha infância e do papel da escola em minha formação. Relembro dos rostos de professores, de colegas, do ambiente físico do âmbito escolar salesiano e tantos outros “utensílios” pertinentes àquele período. Procuro responder algumas questões fundamentais que, de tempos em tempos, surgem. Entre elas há uma primordial: se a escola é tão importante na formação humana e como instância preparatória para a vida adulta, abrangendo o mundo e todas as suas características – práticas ou não –, quais os fundamentos que essa instituição foi capaz de gerar e perpetuar em minha pessoa?

Fecho os olhos e não me lembro dos conteúdos das aulas de Matemática, muito menos de Química ou Física, mas me recordo de um livro de literatura infantil que descrevia uma cena mágica, na qual algumas crianças enchiam tubos de ensaio com água colorida, fruto de papel crepom amassado. Dali extraíam música. Ao serem feridos com pequenos pedaços de pau, os tubos ressoavam em diferentes tons, conforme a quantidade de líquido que havia em cada um.

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Não sei sequer das aulas de Ciências, mas recordo-me das páginas de um livro repleto de ilustrações inocentes – entre elas a de um espermatozóide careca e simpático – que descrevia a reprodução humana em uma narrativa quase poética.

Das aulas de Geografia restaram vestígios de mapas, suas cores e relevos, copiados de livros chamados Atlas, que a professora fazia parecer uma brincadeira de caça ao tesouro.

Decorei mil normas de moral nas aulas de Educação Moral e Cívica. Elas não habitam mais a minha memória. Mas nunca esqueci as visitas que fiz às creches com as freiras da escola e de quando nos sentávamos no chão para contar histórias aos pequeninos.

Lembro-me de Esparta e Atenas nas aulas de História, descritas por uma professora que não sabia do seu excepcional talento como contadora de histórias. Eu ia para casa imaginando aquelas batalhas, os exércitos. E chorei dolorosamente a separação dos pobres meninos espartanos de suas mães – anúncio de precoce maturidade e falta de conforto. Ali também aprendi que há dois tipos de força – a física e a intelectual.

Não recordo gramaticalmente de quase nada das aulas de Língua Portuguesa. Minhas maiores paixões: criar textos e as visitas que, de tempos em tempos, a classe fazia até a biblioteca para a leitura de livros “a granel”, como doces coloridos em vitrines de confeitarias. Certa vez, aos oito anos, ganhei um prêmio fazendo a releitura de um livro que contava a estória de um sapo. Saiu no jornal da escola. Nesse dia resolvi o que queria ser quando crescesse: escritora.

Meus amigos riam muito de mim, diziam que ser escritor não é ter uma profissão. Até o dia em que ri de todos eles. Isso aconteceu quando a diretora da escola convidou uma escritora chamada Lúcia Pimentel Góes para ministrar uma palestra às crianças e famílias. Eu tinha 9 anos na época. Ela falava como fada madrinha, pausada e magicamente. Parecia conhecer todos os segredos do mundo.

Ao final do evento não me contive e disse a ela que queria escrever um livro. Carinhosamente, anotou seu endereço na contracapa de uma das publicações que minha mãe havia comprado, intitulado “O dedal da vovó” e disse: - Me escreva.

Por anos trocamos correspondências. Ela mudou-se do país e mesmo de lá me enviava cartas, que incentivavam uma criança a não desistir de publicar um livro. Fiz um caderno de poemas dedicado a ela e guardo-o em casa com carinho. Não sei por que nunca

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o entreguei à "Querida Lúcia" (era assim que começavam as minhas cartas, dirigidas a ela). Sentia uma curiosidade grande por saber onde comprava aquelas folhas de papel quase transparentes que usava para me escrever. Eu sempre respondia em papéis de carta fabulosamente decorados à maneira de criança. E esperava por meses aquelas correspondências, trazidas pelo correio, com o endereço da “Rua Grécia, 458”, em miúdas letras que se deitavam para o lado direito.

Aos dez anos, seguindo os conselhos da escritora, enviei um poema para um concurso do Centro Cultural São Paulo, promovido pelo jornal "A Folha de São Paulo" e ganhei o primeiro prêmio – um certificado que se perdeu e um jogo de xadrez.

Em minha adolescência a troca de cartas acabou e não saberia bem precisar o porquê. Mas a minha paixão pela leitura se manteve.

Há aproximadamente seis anos, digitando o nome dessa escritora na internet, descobri que é uma renomada professora da Universidade de São Paulo e hoje seus livros teóricos me ajudam a elaborar essa dissertação.

Escrevi a ela, que não se lembrava de mim. Foi tamanha a frustração! Em minha mente de criança pensava ser a única a enviar-lhe cartas. E talvez minha consciência adulta não tenha elaborado algo muito diferente. Essa escritora fez toda a diferença em minha vida de leitora.

Voltando à questão que pretendo responder, o que a escola deixou na Fernanda adulta foram muitas páginas de livros diversos, nas quais me debrucei por toda a vida em busca de uma realização íntima, conhecimento e criação. Todas aquelas letras – miúdas ou não – carregadas de significado e de todos os segredos do mundo, sempre me seduziram e continuam a seduzir. Na escola – e a entendo como instituição não apenas física, mas todo o corpo docente e alunos – as atividades que continham uma ligação intensa com a vida permaneceram gravadas em minha memória, como situações afetivas dignas de serem recordadas como saber verdadeiro. Deriva daí a razão da escolha desse tema que fala de envolvimento, aprendizagem e mágica na literatura.

Mas há algo que recordo claramente: dos colegas que não gostavam de ler e muito menos de escrever. Essa atitude deles rendeu-me bons lanches, trocados por cartas de amor que eu cuidadosamente criava para namorados de minhas amigas.

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Entretanto, a “culpa” de toda essa sensação de magia e motivação não foi apenas da instituição escola. Em casa, tive uma mãe que foi ardorosa leitora e não raro precisava disputar sua atenção com os livros, quando ela se recostava no sofá com eles.

Durante todos os anos que tive meu pai, ouvi suas histórias de vida, relatadas à mesa da cozinha, entre um café e um cigarro. Os clássicos tradicionais, contados na infância, vinham sempre durante o almoço, ou antes de dormir. Essa prática gerou uma criança que, aos quatro anos de idade, conhecia de cor toda uma coleção de contos tradicionais, cujas capas ostentavam hologramas. Sabia onde acabava cada frase e o momento de virar a página. Caso meus pais não se dignassem a abrir um livro que começava com "Era uma vez..." antes das refeições, eu me recusava a comer.

Eles se divertiam vendo a filha virar a página exatamente no momento devido, sem saber ler uma única palavra.

Literatura...

Recordo de quando chorei ao ouvir "A pequena vendedora de fósforos" e o quanto simpatizava com a rainha má da "Branca de neve" – eu a achava linda na ilustração. Depois vieram os clássicos “A moreninha”, “Senhora” e mais ousadamente e escondido de meus pais “O primo Basílio.” Na adolescência foi o surto romântico, desde as coleções de banca de jornal e Jorge Amado até os trágicos “Morro dos Ventos Uivantes”, “Vidas Secas” e a “Montanha Mágica.” Tive um período de paixão por Sidney Sheldon e outro no qual a característica era andar com livros volumosos debaixo dos braços, pois sentia que dava

status. Também os usei para esconder os seios e as marcas dos primeiros sutiãs, no início

da adolescência, quando caminhava para a escola.

Descobri os acadêmicos apenas na Universidade. Conhecia seus primos, os antigos e bons (por vezes) didáticos e informativos e a anciã Enciclopédia Barsa, que tinha respostas para todas as questões propostas pelos professores, numa época em que o Google ainda não fora criado.

Encantei-me com as bibliotecas da Universidade e percebi que a de minha infância, na escola Salesiana, considerada a maior de todo o Vale do Paraíba, não era tão grande assim.

Vi filmes que me mostraram recintos preciosos cheios de livros a la "O nome da Rosa" e pude visitar, nos anos de 2009, 2011 e 2012 lugares fantásticos na Europa. Estantes

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repletas dos meus caros amigos silenciosos (que tanto falam) e ainda manuscritos iluminados, objetos de estudo constante.

Refletindo acerca de minha vida percebo que em todos os momentos e de diversas maneiras, o livro sempre foi sinônimo de prazer, alegria e descoberta. É essa a sensação que tenho ao manusear as páginas repletas de segredos a serem desvendados.

Não sei se feliz ou infelizmente, quando somos adultos raciocinamos com um tipo de lógica diferente das crianças. Na infância, o mundo interior e da fantasia mantém vínculo contínuo e inseparável com o mundo exterior. Tal fato faz com que as ações cotidianas de uma criança, aos olhos de um adulto, pareçam poéticas e fantasiosas. No entanto, os adultos ainda se maravilham com as cenas tão próprias da infância descritas pelos grandes gênios da nossa literatura. Essa prática nos mantém sãos em uma vida que insiste em ser real demais. Segundo Meireles:

Quando ouvimos dizer que um adulto conseguiu realizar prodígios, que todos os dias fez nascer esperanças em redor de si, que exerceu sobre os mais distintos seres essa ação mágica, irresistível e inesquecível, quase sempre ouvimos acrescentar que essa criatura maravilhosa tinha conservado até a morte uma alma de criança. (MEIRELES, 2001, p.155) Posso afirmar que a alma de criança, daqueles longínquos momentos de leitura, ressoam até os dias atuais, dizendo à Fernanda pesquisadora: - maravilhe-se!

3.0 - Os porquês da literatura: A quem se destina, o que é e qual sua função?

Dentre as mais diversas formas que a arte pode assumir, é a literatura uma das mais relevantes. Diante dessa constatação, conceitualizar esse termo, indicando sua funcionalidade, pode auxiliar o docente nas escolhas pedagógicas, na medida em que compreende a importância dessa prática para o desenvolvimento intelectual e moral da criança.

Faz-se necessário um estudo histórico e social que permita definir algumas premissas referentes às questões: o que é, a quem se destina e qual a função da literatura? Algumas dessas respostas podem ser encontradas no texto a seguir:

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A função da literatura está ligada à complexidade da sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório, mas humanizador (talvez humanizador porque contraditório). Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão de mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente. (CANDIDO, 2004, p.176)

As raízes dessa arte apontam para a tradição oral. Épicos gregos como “A Ilíada” e “A Odisséia”, que originalmente eram cantados; as cantigas portuguesas de amor e de amigo do medievo europeu, a sabedoria e crenças populares, estruturando a cultura e as histórias de gerações de famílias de diversas classes sociais, teceram a possibilidade da perpetuação da memória da humanidade, que se deu, posteriormente, através da palavra impressa. Também o capítulo de “Gênesis”, da Bíblia, teve uma marca inicialmente oral. Vale ressaltar que, quando registrada, a oralidade, de certa forma, perdeu seu caráter original, que era impregnado de música e dança. Segundo Lajolo:

Distancia-se, assim, o registro que temos (e sobre o qual se constrói a história literária) de nossas origens literárias, das apresentações musicais e movimentadas dos artistas que apresentavam simultaneamente a música, o canto, a dança. (LAJOLO, 1982, p. 30)

A literatura oral, de ação preponderante na Idade Média, época em que a leitura era privilégio de uma pequena porcentagem da população, não perdeu completamente sua força. Atualmente ela emerge dos repentistas, da voz dos contadores de histórias e tantos outros que têm memórias afetivas, que muitas vezes são expostas numa conversa informal. De acordo com Coelho:

Literatura oral ou Literatura escrita foram as principais formas pelas

quais recebemos a herança da Tradição que nos cabe transformar, tal qual outros o fizeram, antes de nós, com os valores herdados e por sua vez renovados. (COELHO, 1991, p. 15)

Na Idade Média, quando a oralidade era marcante:

A função das narrativas maravilhosas da tradição oral poderia ser apenas a de ajudar os habitantes de aldeias camponesas a atravessar as longas

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noites de inverno. Sua matéria? Os perigos do mundo, a crueldade, a morte, a fome, a violência dos homens e da natureza. Os contos populares pré-modernos talvez fizessem pouco mais que nomear os medos presentes no coração de todos, adultos e crianças, que se reuniam em volta do fogo enquanto os lobos uivavam lá fora, o frio recrudescia e a fome era um espectro capaz de ceifar a vida dos mais frágeis, mês a mês. (CORSO & CORSO, 2006, p. 16)

Segundo Machado1, o fato de a literatura impressa ser preponderante em relação a literatura oral nos dias de hoje, trouxe algumas consequências. Segundo ele:

Perdeu-se, sobretudo o hábito de memorizar os textos orais. A escrita, sendo uma memória artificial, leva à moleza mental. Se temos os textos escritos e podemos lê-los sempre que quisermos, é inútil tentar memorizá-los. Esta é a lei do menor esforço.

Arte que venceu os séculos e as agruras do tempo e das sociedades, a literatura insurge e se transforma na medida em que novas necessidades se mostram. E é perpetuada através da palavra escrita.

Segundo Olivier Rolin, renomado escritor francês, a literatura é "a memória do mundo, a memória da Humanidade.” Entrevistado por Ana Nunes Cordeiro, da Agência Lusa2, ele declara:

Se não existisse a literatura, esqueceríamos a cada geração o que se passou. Graças à literatura, podemos ser um homem ou uma mulher do século XX, ou do século XIX, eu posso ser Madame Bovary, Anna Karenina, Dom Quixote... - posso ter mil vidas.

Nossa existência seria muito restrita sem a literatura, visto que essa forma de arte permite a ampliação de repertório e enriquecimento de experiências na medida em que relata outras manifestações da vida em situações distintas ou, por vezes, semelhantes. Ao mesmo tempo em que provoca uma identificação com as personagens, possibilita a

1 Disponível em: www.leituracritica.com.br/rev10/prumo/prumo03.htm. Acesso em dezembro de 2010. 2 Disponível em: http://www.destak.pt/artigo/44807. Acesso em novembro de 2010.

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formulação de hipóteses do vir a ser da realidade concreta do indivíduo, além de criar oportunidades de voos de imaginação, como afirma Rubem Alves3:

Pelo poder da palavra ela pode agora navegar nas nuvens, visitar as estrelas, entrar no corpo de animais, fluir com a seiva das plantas, investigar a imaginação da matéria, mergulhar no fundo de rios e de mares, andar por mundos que há muito deixaram de existir, assentar-se dentro de pirâmides e de catedrais góticas, ouvir corais gregorianos, ver os homens trabalhando e amando, ler as canções que escreveram, aprender das loucuras do poder, passear pelos espaços de literatura

[...]

Corpo espelho do universo! Tudo cabe dentro dele!”

Relatar verdades individuais integradas a uma verdade abrangente: essa é uma das mais importantes funções da literatura, independente da época em que surgiu. Apesar da passagem dos anos, por vezes o mesmo motivo continua a sensibilizar e fazer eco na alma humana. Ele mantém sua atualidade. Entretanto, como afirma Coelho:

Toda obra, ortodoxamente engajada com a realidade concreta e precária, se for bem realizada poderá atuar de maneira fecunda em seu tempo, mas está fadada, de antemão, a se transformar em mero documento de sua época. O ideal é quando, no contingente, o escritor consegue detectar o eterno [...] (COELHO, 2002, p.40)

O fenômeno literário é intrínseco ao fenômeno da linguagem e pode estar relacionado direta ou indiretamente a um contexto social. É ao mesmo tempo concreto e abstrato. Concreto porque apenas é parte da realidade quando transposto em forma de linguagem, palavra (oral ou impressa) e abstrato porque surge a partir de sentimentos e ideias. De acordo com Coelho (1991, p.8), como objeto de arte, “[...] as relações de aprendizagem e vivência, que se estabelecem entre ela (literatura) e o indivíduo, são fundamentais para que este alcance sua formação integral (Eu + Outro + Mundo, em harmonia dinâmica)."

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Sendo um processo de criação e produção, a literatura deve gerar matéria de estudos, prazer e leitura. Considerando a leitura não apenas a decodificação da palavra impressa, mas a leitura de mundo, enaltecida pelo educador Paulo Freire.

Assim sendo, podemos afirmar que a literatura auxilia no desenvolvimento da criança, pois estimula a reflexão relativa às situações cotidianas, as fantasias, do vir a ser em determinados contextos de mundo.

3.1 - Literatura e escrita: erudição?

Associar a literatura aos materiais impressos é comum nos dias de hoje. Geralmente desconsideram-se outras formas de expressão, como a oralidade, descrita anteriormente, por exemplo. Segundo Lajolo, isso se deve à:

A forma latina litteratura nasce de outra palavra igualmente latina: littera, que significa letra, isto é, sinal gráfico que representa, por escrito, os sons da linguagem. O parentesco letras/literatura continua em expressões como cursos e academias de letras, homens letrados, belas-letras e tantas outras. Insinua-se, por aí, uma estreita relação entre a palavra literatura e a noção de língua escrita, pergaminho com iluminuras, papel impresso etc. (LAJOLO, 1982, p.29)

Proust, em seu livro “Sobre a leitura”, descreve a importância da escrita:

A hora passava: frequentemente, muito tempo antes do almoço, começavam a chegar na sala aqueles que, cansados, haviam encurtado o passeio, haviam "passado por Méséglise", ou aqueles que "tendo de escrever", não tinham saído naquela manhã. Eles diziam: "Não vou incomodá-lo", mas logo começavam a se aproximar do fogo, a ver as horas, a declarar que o almoço já seria bem-vindo. Tratava-se com particular deferência aquele ou aquela que tinha "ficado escrevendo" e se lhe dizia: "Você pôs em dia suas cartinhas", com um sorriso no qual havia respeito, mistério, luxúria e consideração, como se essas "cartinhas" contivessem, ao mesmo tempo, um segredo de estado, uma prerrogativa, um augúrio e uma indisposição. (PROUST, 1989, p.11-12)

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No contexto escolar brasileiro é recorrente o incentivo da prática da escrita em detrimento da oralidade. Geralmente a leitura silenciosa e obrigatória é realizada através dos livros indicados pelo professor. A disciplina de Língua Portuguesa comumente é fragmentada em três vertentes: Gramática, Redação e Literatura, entrelaçadas em propostas conjuntas. Um exemplo, sem pretensões de julgamento de eficácia, é a utilização de um texto literário que visa à análise gramatical e posterior releitura por meio de uma redação. A escrita concretizando a literatura. No entanto, Lajolo (1982, p.14) questiona: “Para uma coisa ser considerada literatura tem de ser escrita? Tem de ser editada? Tem de ser impressa em livro e vendida ao público? Será então que tudo o que foi publicado em livro é literatura?”

É fato que as tecnologias da área de edição e gráfica permitem uma grande tiragem de exemplares a uma velocidade maior, facilitando a publicação de livros. Entretanto, quantidade não significa, necessariamente, qualidade. Esse fenômeno gera ofertas diversificadas e torna possível às pessoas a possibilidade de registrar em páginas impressas suas palavras, muitas vezes sem rigor de revisão. As grandes livrarias possuem estantes repletas de livros, mas não raro encontramos em suas páginas erros inadmissíveis.

“Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante”, afirmou certa vez nosso poeta Carlos Drummond de Andrade (2007, p. 26). Apesar disso, o status de escritor parece não perder créditos, simbolizando a erudição. Lajolo ensina:

Aos olhos da nossa tradição cultural, o domínio da escrita vale muitos pontos. (...) Daí que o entrelaçamento da noção de literatura com a linguagem escrita favoreça um conceito de literatura que privilegia a manifestação escrita sobre a oral. Some-se a isso o fato de que, antes de significar o que significa hoje, o termo literatura recobria outros significados: o de erudição, de conhecimentos gramaticais, de domínio das línguas clássicas. (LAJOLO, 1982, p.29)

De acordo com Culler, determinada convenção, fundamentada na escrita como sinônimo de erudição, nem sempre foi apoiada na premissa descrita acima. O autor ensina:

E obras que hoje são estudadas como literatura nas aulas de inglês ou latim nas escolas e universidades foram uma vez tratadas não como um tipo especial de escrita, mas como belos exemplos do uso da linguagem e da retórica. Eram exemplos de uma categoria mais ampla de práticas

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exemplares de escrita e pensamento, que incluía discursos, sermões, história e filosofia.

[...]

Uma obra como a Eneida, de Virgílio, que hoje é estudada como literatura, era tratada de modo diferente nas escolas antes de 1850. (CULLER, 1999, p. 28-29)

Faz-se necessário refletir acerca desse paradigma de nosso tempo. Será apenas a escrita sinônimo de erudição? Qual o papel da oralidade no currículo escolar? Num programa escolar é preciso estar atento às peculiaridades da escrita e da oralidade que podem promover o desenvolvimento da criança, sem preconceitos ou tendências.

3.2 - Literatura clássica ou popular?

Apesar de algumas obras literárias refletirem especificamente características de determinadas épocas, é primordial observar o papel exercido pelos chamados clássicos literários, que ultrapassam diversos períodos históricos sem perderem sua essência, mesmo que esse significado esteja imerso em adaptações do original. São as obras imortais, universais, não perecíveis ao tempo e devido às modificações das estruturas da sociedade. Candido esclarece:

A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da sua relativa intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um momento determinado e a um determinado lugar. (CANDIDO, 1975, p. 45).

É inegável a importância dos clássicos para a formação do ser humano, mas não devemos esquecer que nasceram de raízes populares. Há autores que estabelecem distinções, sendo que o popular perderia prestígio para a forma dita culta, gerando uma cisão e fronteiras entre classes sociais. Seriam apenas os clássicos a verdadeira literatura? Candido afirma:

Chamarei literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore,

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lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (CANDIDO, 2004, p.174)

A literatura apartada nos âmbitos erudito e popular apenas concretiza uma separação cultural que tem sido imposta em forma de crença. Seria necessário estabelecer um vínculo que permitisse o trânsito contínuo e ininterrupto e de importância análoga entre essas esferas ou até mesmo a junção delas, formando uma totalidade.

3.3 - Boa e má literatura:

Candido cria um universo maior que não desmerece o popular em detrimento do erudito, considerando que existe um diálogo intenso entre essas formas de arte. Exemplifica com a atitude de Mário de Andrade.

Ele (Mário de Andrade) entendia a princípio que as criações populares eram fonte das eruditas, e que de modo geral a arte vinha do povo. Mais tarde, inclusive devido a uma troca de ideias com Roger Bastide, sentiu que na verdade há uma corrente em dois sentidos, e que a esfera erudita e a popular trocam influências de maneira incessante, fazendo da criação literária e artística um fenômeno de vasta intercomunicação. (CANDIDO, 2004, p.188)

Contudo, dentro desse universo maior será possível delimitar a boa e má literatura? Será boa literatura a que consegue transmitir seu significado em qualquer época? Acaso podemos desconsiderar aquela que diz algo apenas em determinado período histórico? Lajolo (1982, p.15) responde: “A resposta é simples: tudo isso é, não é e pode ser que seja literatura. Depende do ponto de vista, do sentido que a palavra tem para cada um, da situação na qual se discute o que é literatura."

É um equívoco pensar que nossa herança literária foi selecionada por alguns poucos, os chamados críticos literários, pois a longo prazo, quem determina quais obras serão perpetuadas através dos tempos são os leitores.

É necessário, portanto, considerar a literatura como uma arte que transita e tem ou não seu significado alterado de acordo com sua inserção no período e na sociedade que a

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decodifica, sem desconsiderar a força de comunicação, expressão e valores intrínsecos à natureza de determinadas obras.

3.4 - Literatura - marcos históricos

Um dos momentos mais importantes da literatura se deu com o processo da burguesia emergente na França de 1789. Mundo e homem são vistos sob um ponto de vista diferente. Podemos afirmar que na literatura essa revolução se chamou Romantismo. Produções literárias condenadas pela literatura clássica passam a receber créditos. E o romance começa a ser publicado em jornais. Lajolo (1982, p.69) esclarece “O romance, que embora descendente da ilustre epopéia clássica, abandonou o berço aristocrático e, recolhido ao jornal, foi buscar seus leitores em um público mais largo, indiferenciado e sem

pedigri literário.”

Com a consolidação da burguesia e sua evidente violência econômica, as inovações tecnológicas, as descobertas científicas e as desigualdades sociais fazem da literatura uma arma que permite documentar o retrato de uma sociedade dita injusta. É a ascensão do realismo. Lajolo explicita:

É a virada realista que aponta no horizonte, que se instaura na raça e no susto. É a hora e a vez de levar adiante um conceito e uma prática de literatura que se concebem representação do real e que abominam qualquer rastro de deformação deste real pelo sentimento ou imaginação. (LAJOLO, 1982, p.79)

Os realistas, no início, procuram renegar o passado, como todas as vanguardas geralmente o fazem.

Atualmente vemos que a realidade continua fazendo parte da literatura, mas combinada com um teor de sensacionalismo e fantasia. Jesualdo esclarece:

Quando todo esse mundo de banditismo e tropelias econômicas adquiriu uma amplitude heróica e imponente nas Bolsas, nos parlamentos e na imprensa, o madraço foi cedendo o lugar de herói da novela popular ao policial capaz de deslindar crimes misteriosos muito complicados... embora imaginários. Tampouco é por acaso que Sherlock Holmes e Nick

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uma literatura que viria a ser dedicada, em grande parte, à infância, surgem na Inglaterra, de preferência a qualquer outro país. Nem se trata de produtos de uma fantasia desmedida. A imaginação cria o que a realidade lhe inspira: não uma fantasia carente de razão, alheia à vida, mas uma fantasia cujas causas são absolutamente reais... (JESUALDO, 1978,p.28)

As práticas literárias, por vezes, não se prendem à época em que surgem. Como já explicitado, por vezes transcendem e se entrelaçam a outras tendências. Mas é possível estabelecer, num panorama geral, características de um período.

Importante ressaltar a relevância da formação do educador que tenha conhecimento abrangente, de forma que possa oferecer à criança oportunidades de conhecer um rico repertório.

3.5 - A literatura, a arte e o social:

No Brasil, foi consolidada a crença de que é capaz de apreciar a boa literatura apenas uma minoria afortunada financeiramente, em detrimento de uma maioria miserável, excluída do que chamamos, comumente, alimento da alma. Tal sentença, pronunciada como verdade absoluta, possui afirmações duvidosas e deve ser considerada uma atitude preconceituosa.

Não é verdade que apenas as pessoas de alta classe social consigam apreciar a arte. Ao contrário, por vezes, elas admiram certo pintor ou escritor para seguir uma tendência, porque os grandes críticos dizem ser essa a prática que devem assumir os homens "cultos".

Certa vez, ao realizar uma oficina de artes numa fábrica de papelão em Campinas, me deparei nos corredores com textos emoldurados e assinados por um autor desconhecido. Os versos eram singulares. Questionando o presidente da empresa, soube que aquelas linhas resultavam de muitas leituras realizadas na biblioteca por um rapaz que foi alfabetizado no presídio e trabalhava ali, cumprindo a pena em regime semiaberto. Segundo ele, o poeta afirmava que escrevia por paixão, pois ninguém tinha interesse em ler sua obra. Ao receber meu e-mail pedindo uma cópia da narrativa, prontamente me enviou "Madrugada", que transcrevo a seguir, em forma de fragmentos:

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Acordei no meio da noite, era a Madrugada despertando-me para conversar com ela.

O que queres de mim senhora Madrugada? Perguntei. Tu és abstrata, calma, bonita e livre. Enquanto eu, um simples mortal, substância palpável, restringido aos limites da vida e acuado pelos meus devaneios. Durante o dia sou constantemente vigiado por outros também mortais que cuidam para que eu não escape do paradigma murado. À noite, sou trancado nos limites de uma cela e meu espaço se reduz numa proporção de quase zero.

[...]

Eu também tenho os meus limites! Respondeu-me a Madrugada. Logo o sol desponta no horizonte e terei de fugir para outro lado da terra onde mortais iguais a você necessitam de meu silêncio para escreverem suas tolices. Algumas tornam-se arte quase que instantaneamente; outras repousam caladas por séculos até serem descobertas e convertidas nos mais belos contos e poesias imortalizando seus criadores.

Exemplos como esse confirmam a afirmação de Candido (204, p. 188): “E aí a experiência mostra que o principal obstáculo (para a igualdade cultural) pode ser a falta de oportunidade, não a incapacidade.”

Em outra ocasião, trabalhando como educadora de artes com crianças de periferia numa ONG (Organização Não Governamental) da cidade de Campinas, obtive dos coordenadores a seguinte orientação: era preciso dar àqueles meninos e adolescentes algo próximo daquilo que tinham em relação à cultura. As artes visuais deveriam remeter ao

grafitti e a música ao rap. Não haveria receptividade de algo que fosse além do que aqueles

olhos estavam acostumados a ver ou os ouvidos a ouvir, diziam.

Considero importante estar atento ao repertório da comunidade, mas limitá-lo devido a uma característica econômica e social é um crime ideológico. Trouxe as iluminuras medievais e as histórias dos cavaleiros e das cruzadas e a partir delas ilustramos textos com alfabetos inovadores, criados por eles, dando seguimento à proposta do grafitti. E certa vez, com a falta de dois educadores, foram alocadas no teatro aproximadamente 70 crianças, das quais 80% sofriam violência doméstica, apresentando um comportamento um tanto complexo nas salas de aula. Tinha disponível na ocasião o datashow e, ao invés de vermos um filme já conhecido (prática muito utilizada por escolas nessas circunstâncias), decidi, contrariando as ordens que havia recebido, exibir a animação de Walt Disney intitulada “Fantasia”, que consiste em diversos curtas que têm como pano de fundo músicas

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consideradas eruditas. Não ofereci maiores informações e observei, surpresa, aqueles meninos que diariamente chegavam à instituição batendo nos colegas ou que não admitiam um toque ou um abraço, dançando em duplas ao som de Beethoven e Stravinsky. Assertiva é a afirmação de Candido:

Nesse ponto as pessoas são frequentemente vítimas de uma curiosa obnubilação. Elas afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde, coisas que ninguém bem formado admite hoje em dia que sejam privilégio de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoievski ou ouvir os quartetos de Beethoven? [...] Ora, o esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que reivindicamos está na base da reflexão sobre os direitos humanos. (CANDIDO, 2004, p.172)

Observando os exemplos citados anteriormente podemos afirmar que a capacidade de percepção de mundo não é privilégio daqueles que detêm o poder político ou econômico. Ao contrário, muitas pessoas de baixa renda possuem uma sensibilidade mais aguçada para fatos que são fonte de toda a arte e literatura - a própria vida. Por vezes, tais pessoas estão mais imersas nesta jornada do que a maioria dos economicamente afortunados.

Existe um poder maior do que o político ou econômico: o poder do conhecimento, que se dá por meio da tomada de consciência e deve ser construído com o auxílio da educação, promotora do gosto pela leitura e admiração pelo saber. Ter ciência de justiça, de direitos, deveres e necessidades para o bem viver, fazendo uso da razão e da sensibilidade, é aporte fundamental ao cidadão.

Sabemos, por meio de estudos da Psicologia Genética, que se fazem necessárias no processo de aquisição de conhecimentos as experiências, de forma que uma pessoa possa ampliar seu sistema de significação e lógico-matemático. E que essas experiências podem ser oferecidas pela sociedade e pela instituição escolar. Nesse sentido, uma boa escola tem um papel primordial na formação humana. E essa oportunidade tem sido vetada a uma grande porcentagem da população brasileira, fato que causa estranheza numa sociedade que se diz democrática. Candido explica:

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Nas sociedades que procuram estabelecer regimes igualitários, o pressuposto é que todos devem ter a possibilidade de passar dos níveis populares para os níveis eruditos como consequência normal da transformação da estrutura, prevendo-se a elevação sensível da capacidade de cada um graças à aquisição cada vez maior de conhecimentos e experiências. (CANDIDO, 2004, p.188)

Atuante entre as décadas de 40 e 60 no Brasil, fundador do movimento Economia e Humanismo, o padre dominicano Louis-Joseph Lebret define dois termos relevantes: bens compreessíveis e bens incompressíveis. Segundo ele, os bens incompressíveis são aqueles que não podem ser negados a ninguém, como por exemplo, o alimento, a casa, a roupa. E os bens compressíveis são aqueles considerados supérfluos, como por exemplo, maquiagens, enfeites etc. Mas ele ressalta que muitas vezes é difícil delimitar a fronteira entre esses bens, por ser muito tênue. Candido esclarece:

Por isso, a luta pelos direitos humanos pressupõe a consideração de tais problemas, e chegando mais perto do tema eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompreessíveis, certamente, a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer, e, por que não, à arte e à literatura? (CANDIDO, 2004, p. 174)

A sociedade brasileira trata como compreessíveis muitos bens materiais e espirituais que não o são. O que é considerado básico muitas vezes não é suficiente. E se há concessão literária, os menos favorecidos precisam ater-se apenas àquilo que é considerado popular. De acordo com Candido:

Em nossa sociedade há fruição segundo as classes na medida em que um homem do povo está praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de Machado de Assis ou Mário de Andrade. Para ele, ficam a literatura de massa, o folclore, a sabedoria espontânea, a canção popular, o provérbio. Estas modalidades são importantes e nobres, mas é grave considerá-las como suficientes para a grande maioria que, devido à pobreza e à ignorância, é impedida de chegar às obras eruditas. (CANDIDO, 2004, p.186)

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Em 1934 houve na Rússia, por parte dos escritores de Karlov, a preocupação de criar uma literatura proletária, que dissesse algo ao povo e que despertasse nele o interesse, focalizando problemas e situações específicas da sociedade da época. Candido esclarece:

Nessa ocasião, um escritor francês bastante empenhado, mas não sectário, Jean Guéhenno, publicou na revista Europe alguns artigos relatando uma experiência simples: ele deu para ler a gente modesta, de pouca instrução, romances populistas, empenhados na posição ideológica ao lado do trabalhador e do pobre. Mas não houve o menor interesse da parte das pessoas a que se dirigiu. Então, deu-lhes livros de Balzac, Stendhal, Flaubert, que os fascinaram. Guéhenno queria mostrar com isto que a boa literatura tem alcance universal, e que ela seria acolhida devidamente pelo povo se chegasse até ele. (CANDIDO, 2004, p.189)

É possível afirmar, portanto, que a literatura emergente das elites pode atingir os mais marginalizados, “distantes dos círculos oficiais da cultura” (Lajolo, 1982, p. 65). E que não basta que o tema seja relevante, é preciso que haja estrutura literária. Por exemplo, o regime soviético apenas acatava como boa literatura a que discorria acerca do socialismo. Entretanto, se o autor não tivesse talento, apenas o tema não concretizaria uma boa literatura, que precisa ter o que Candido chamou “poder humanizador”. São palavras do autor:

Entendo aqui por humanização (já que tenho falado tanto nela) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2004, p.180)

Pelo exposto anteriormente, pode-se inferir que a literatura tem um papel primordial na educação, pois concentra características intelectuais e afetivas que se estruturam fundamentadas na reflexão. Nela estão presentes os valores de nossa sociedade, as diversas personalidades que por vezes são reflexos de pessoas com as quais convivemos, as crenças, as denúncias sociais, a fantasia e principalmente as lacunas, que são espaços preenchidos pela imaginação, experiência e criatividade do leitor. É importante ressaltar que:

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Considerada em si, a função social independe da vontade ou da consciência dos autores e consumidores de literatura. Decorre da própria natureza da obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela comunicação. (CANDIDO, 1975, p. 46)

Apesar de ser detentora de uma função humanizadora, a literatura assume um papel dúbio. Entretanto, sempre possibilita o desenvolvimento de um senso crítico aguçado, na medida em que relata as diversas facetas da vida. Candido explica:

De fato, há conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver. (CANDIDO, 2004, p.176)

A literatura representa o mundo do possível e o mundo da fantasia. É organizadora de sentimentos e também instrumento de denúncia e está relacionada com a questão dos direitos humanos e relatos históricos. É, portanto, um bem incompressível e uma necessidade universal.

3.6 - Literatura: o real, o fantástico e o possível

A literatura transita entre a realidade e a fantasia. Apesar de imaterial e de suscitar devaneios, reflexões e porque não dizer, fugas da realidade, essa prática se fundamenta no real. E o que é realidade? É aquilo que vivemos em nosso mundo, nossas obrigações, direitos, deveres, rotinas e tantos outros aspectos. Já a fantasia se constitui de desejos, anseios, o vir a ser, o possível ou teoricamente impossível que ainda não se tornou real. E a imaginação, muitas vezes considerada parte da fantasia, pode também pertencer ao real, na medida em que há a possibilidade de concretizar o abstrato.

Murilo Mendes, no livro “O menino experimental” (MENDES, 1979, p. 12), com o poema "Os dois lados", ilustra as diversas facetas da realidade e da fantasia e faz perceber que se interpenetram, oferecendo, por vezes, dificuldades ao leitor para o discernimento

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delas. Em determinadas circunstâncias é impossível estabelecer limites entre uma e outra, apesar de o autor afirmar a existência de um lado e de outro.

Deste lado tem meu corpo Tem o sonho

Tem a minha namorada na janela

Tem as ruas gritando de luzes e movimentos Tem meu amor tão lento

Tem o mundo batendo na minha memória Tem o caminho para o trabalho

Do outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida Tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas Tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão Tem a morte, as colunas da ordem e da desordem.

Assim é com a literatura, que possui entrelaçados ao imaginário fragmentos de realidade. A mágica dessa arte está justamente naquilo que sugere, ou seja, nas lacunas que o leitor preenche com suas fantasias e realidades. É através desses espaços vazios que se criam universos individuais e interdependentes, expressos pela palavra. Por esse motivo, é possível afirmar que não se transmite a literatura. Construímo-la. Lajolo esclarece:

É desse cruzamento do mundo simbolizado pela palavra em estado de literatura com a realidade diária dos homens que a literatura assume seu extremo poder transformador. Os mundos fantásticos criados pelo texto não caem do céu, nem têm gênese na inspiração das musas. O mundo representado na literatura, simbólica ou realisticamente, nasce da experiência que o escritor tem de uma realidade histórica e social muito bem delimitada. (LAJOLO, 1982, p.65).

Entretanto, a literatura não é apenas uma prática que sirva tão somente para traduzir o mundo, como intencionavam alguns realistas, que acreditavam numa reprodução não deformada do real. Ela assume vários significados, que são gerados e fundamentados em fontes reais ou imaginárias. Lajolo dialoga:

Tudo isso, leitor, para dizer que não precisam ser verdadeiras as histórias que a literatura conta. Aliás, também não precisam ser inverídicas. Tanto faz. Importa bem pouco saber se Iracema, a virgem dos lábios de mel, vagava enamorada nas alvas praias dos verdes mares bravios. Idem para a

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