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ANTÍGONA Contra o quotidiano seco do mundo

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Academic year: 2021

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Durante 20 anos a vida e o trabalho de Luís Oliveira confundiram-se numa mesma casa, grande, barata – «pagava 300 escudos de renda por mês» – e estrategicamente posicionada paredes-meias com uma tipografia, ali para os lados do cemitério de Benfica, em Lisboa. Luís escolhia os textos, editava-os, levava-os à tipografia e não lhes largava a mão até estarem prontos para se viajarem até aos leitores. Paranóia? A determinada altura, o texto a editar era A Verdade, do Marquês de Sade, e para a capa tinha sido escolhida a imagem de uma cruz ateia, cruz de Cristo invertida. Chegado à tipografia, numa das suas frequentes acções de “fiscalização”, diz-lhe o atento tipógrafo «É pá, isto estava ao contrário, vocês enganaram-se», e mostra-lhe a capa pronta, de cruz endireitada. «Ai é? Tudo fora, fazem outro livro e assumem a responsabilidade», responde-lhe Luís. «Era uma barraca o Marquês de Sade sair com um cruz cristã, a não ser que se pensasse que era uma ironia; mas com o Sade não havia ironias para esse lado». Hoje, com 34 anos cumpridos em Junho, a Antígona saiu de casa, instalou-se pelo Príncipe Real e foi aí que nos recebeu – com simpatia e disponibilidade, com paixão e inconformismo, com livros e até café.

Chegamos ao número 39 da Rua Gustavo de Matos Sequeira, porta verde, de madeira maciça, «não aceitamos publicidade» sobre a ranhura para o correio, e tocamos à campainha do primeiro andar, «Antígona / Orfeu». É Lurdes Afonso, a assistente editorial da Antígona, quem nos abre a porta, e logo atrás vem receber-nos Luís Oliveira, o editor cuja história se confunde com a história da editora. «Não uso agenda, mas sabia que vocês vinham hoje, tenho uma óptima

A N T Í G O N A

C o n t r a o q u o t i d i a n o s e c o d o m u n d o

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memória», havia de dizer-nos mais tarde. Encaminha-nos para a sala de reuniões que a Antígona partilha com a Orfeu Negro, chancela filha da Antígona, conduzida por Carla Oliveira, filha de Luís. Ao fundo, uma estante recheada com os títulos da Orfeu Negro e Mini – aos da Antígona é-lhes dedicada outra estante. Na parede, um curioso poster com um anúncio de emprego, encabeçado com o alerta «Você é um líder? Sente-se realizado? Então este anúncio não é para si!». Na parede oposta, uma janela. Ao centro, a mesa sobre a qual descobriríamos que, em Benfica ou no Príncipe Real, com a tipografia mais ou menos vizinha, 10, 20 ou 34 anos passados, a Antígona mantém intactos os seus princípios fundadores, a sua paixão pelos textos subversivos, como se lê no texto que abre os catálogos. O seu empenho em «empurrar as palavras contra a ordem dominante».

«A Antígona está apresentada. Tem 34 anos e dispensa apresentações», afirma Luís Oliveira, mas acrescenta de imediato: «se quiser uma definição, a Antígona é uma editora refractária.» Para o editor, o termo «refractário» é o que melhor define o projecto. Tanto que podemos ler a descrição «Antígona, editores refractários» no topo do website [1] da editora, no nome do seu perfil no Facebook, como nome próprio na morada referida na ficha técnica dos livros que publica e, mais recentemente, sob a forma de epígrafe na folha de rosto dos livros. Logo no início da nossa conversa, Luís Oliveira mostra-nos em primeira mão um exemplar de História e Criação [2], de Cornelius Castoriadis. «Este é o livro que vai sair agora – ainda nem está nas livrarias –, onde começámos a utilizar o significado de “refractário”. Podem ler aí os dois, é de facto muito rico. E não pus tudo.» Acatamos a ordem e descobrimos uma definição de «refractário» [3] que nos apresenta a editora, situando-a como subversiva, como elemento de resistência aos modelos sociais hegemónicos.

Lemos, não poucas vezes, que a Antígona é uma editora de esquerda, que a Antígona é uma editora revolucionária. Luís Oliveira afirma que nunca seria possível ouvir semelhantes palavras vindas da sua boca.

Eu não sou de esquerda e a Antígona também não. Nós aqui na Antígona consideramos que são dois sistemas dominantes, esquerda e direita. Somos para além disso. Procuraríamos ter uma sociedade diferente, com muitas paixões e formas de as realizar – isso no plano humano e afectivo. Depois no plano teórico, é uma editora que procura autores que mijem fora do penico, isto é, que trabalharam de certa maneira para [1] www.antigona.pt

[2]Cornelius Castoriadis.

História e Criação. Lisboa:

Antígona, 2013. Trad. Manuela Gomes

[3] REFRACTÁRIO adj. Que

resiste à acção física ou química; que resiste às leis ou a princípios de autoridade, in-submisso; que não se molesta

ou ressente de ataques ou acções exteriores; insensível, indiferente, obstinado, resis-tente, intransigente; imune a certas doenças; que ou aquilo que suporta temperaturas elevadas; jovem que falta à selecção para o serviço militar depois de convocado; indócil.

In Dicionário Houaiss da

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a formação da humanidade; consideramos que a separação não serve o Homem e portanto não temos colecções.

Este repúdio à concepção de um mundo espartilhado levou a que todo o catálogo fosse crescendo como uma só colecção. Se, por um lado, parece haver uma unicidade que, em grande medida, se deverá ao facto de as obras editadas serem as que interessam particularmente a Luís Oliveira, por outro, o catálogo da Antígona não deixa de ser marcado por uma multiplicidade de assuntos e estilos, alimentados pelo ecletismo do gosto do seu editor. Segundo Luís Oliveira, o eixo comum a todos os livros da Antígona é o posicionamento de cada um deles num campo à parte da ordem social vigente, em desobediência e subversão, tal como a Antígona em relação a Creonte.

Porque a ideia de Antígona, pegando na personagem de Sófocles, é uma ideia de rebeldia, refractária. Nesse sentido, tem um projecto à parte do projecto social vigente. Por isso consideramos que todos os livros obedecem a essa ideia da Antígona e da sua desobediência a Creonte e não faz sentido compartimentá-los. Todos os livros obedecem a essa ideia do refractário, do que não se coaduna com as leis vigentes e com o quotidiano seco do mundo.

Pese embora o facto de a Antígona se colocar deliberadamente numa posição exterior aos compartimentos estanques que a sociedade tenta impingir aos projectos e às pessoas que deles fazem parte, Luís Oliveira não vê a editora como um projecto «marginal».

Nisso do marginal há uma grande confusão e até ambiguidade, ninguém é marginal a nada, podemos é fazer escolhas. A nossa escolha é tentar criticar a sociedade existente, as suas leis, a repressão, a supressão, a anulação. Supressão e anulação e também a invalidação que a sociedade faz geralmente das pessoas.

Um prefácio à editora: a livraria, a vida mundana e a declaração de guerra

Para perceber o projecto editorial da Antígona, façamos um breve regresso ao passado do seu editor.

Antes de ser editor, Luís Oliveira esteve na guerra em Angola [4], foi funcionário da Direcção de Finanças em Santarém, operário

[4] «Fui mobilizado. Não fugi

à guerra porque não havia grandes possibilidades e, em

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fabril na Alemanha [5], engenheiro e vendedor de máquinas de fresar em Almeirim e Alpiarça [6], dono e dinamizador de uma livraria em Santarém. A livraria Apolo foi o gérmen do que viria a ser o seu projecto editorial. Luís Oliveira tinha 29 anos e habitava já no seu pensamento um esquisso de uma editora chamada Antígona.

Simpatizava muito com a Antígona, a personagem de Sófocles, enquanto simbologia da rebeldia. Esse sentido metafórico ficou sempre na minha cabeça, tal como ficou a ideia de que um dia teria a minha própria editora, para fazer a minha selecção de livros.

Na Apolo, projecto que segundo as palavras do próprio Luís correspondeu a uma «fase da vida de fazer alguma coisa em Santarém», vendia de tudo.

Apesar de já fazer, de certa maneira, uma selecção de títulos, achava que tinha de vender ali na livraria aquilo que os outros escolhiam e aquilo que muitas vezes não me interessava. Mas eu não podia fazer censura, sou contra o proibido.

Os anos de Luís Oliveira no papel de livreiro foram anos de actividade frenética. A Apolo servia não “só” como espaço de divulgação e venda de livros. Era também agente dinamizador do encontro de pessoas com várias artes e variados discursos, através de projecções de filmes do cineclube de que Luís Oliveira era então presidente [7] ou conferências realizadas por Mário Viegas [8].

Em 1973, Luís Oliveira largou tudo o que tinha em braços e rumou a Lisboa. «Abandonei Santarém, abandonei a livraria, abandonei o casamento, tudo, rompi com tudo», conta. Então, com os bolsos cheios com o dinheiro conseguido pela venda da livraria e não se sentindo ainda preparado para se assumir como editor, entrou numa espécie de estágio. Entre leituras e conversas, mesas de café e discotecas, este foi, como lhe chama, o seu «mergulho psicológico».

Durante esses seis anos, até 1979, quando abro a editora, convivi muito em Lisboa com poetas e escritores. Havia um café que era o Monte Carlo, que albergava o Herberto Helder, o António José Forte, o Vergílio Ferreira, muitos escritores. E eu ia para ali à noite e dali partíamos para a vida mundana do Cais do Sodré, para o Bolero [9]... Foram seis anos sem trabalhar: dançava e lia de noite e durante o dia dormia, até

boa verdade, nessa altura ainda estava muito cru na questão das minhas escolhas. Se calhar aos 20 anos ainda partilhava um bocadinho o sistema.»

[5]«Lembro-me de que estava

nas Finanças em Santarém e resolvi ir para a Alemanha. Fui para lá sem nada. Não queria trabalhar para o Estado, primeiro, depois, não arranjei emprego. Pus-me a andar e andei lá de fábrica em fábrica, com o meu fraco inglês, mas com o meu bom francês, à procura de trabalho.»

[6]«Não era engenheiro,

aprendi a trabalhar com as máquinas. Mas os senhores latifundiários só cumprimenta-vam um engenheiro. Se fosse

um ajudante não era cum-primentado, era uma coisa

quase humilhante.»

[7]«Presidente. Isto não quer

dizer nada, porque eu não quero ser presidente nem de retretes.»

[8]«Lembro-me de um dia

aquilo estar cheio até à rua e o Mário Viegas a cantar

“mos todos em cuecas, esta-mos todos em cuecas”. Foi lá a PIDE e prendeu tudo, foi tudo de enxurrada. Menos eu, porque me recusei. Disse que não ia, não fechava a livraria e ia chamar o meu advogado,

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às quatro, cinco da tarde. O meu almoço era quase sempre uma sandes e cinco cafés.

Leu, então, centenas de livros, como aliás já havia lido em Santarém – «eram dois, três livros em cima da mesa de cabeceira e noites sem dormir, era jovem, era muito resistente» –, e como havia lido também já durante a infância e a adolescência, passadas na aldeia de Chãos, concelho de Ferreira do Zêzere. Desta experiência primeira, recorda Luís Oliveira:

Estive doente três anos, dos 14 aos 17. Foram três anos horrorosos, porque, como urinava sangue, na aldeia diziam que eu era menstruado. Aquilo para um puto de 14 anos foi um sofrimento enorme. Isolei-me da sociedade, não ia aos bailes, não convivia com gente da minha idade, tinha deixado de estudar... Mas li os livros da escola primária, que eram 203. Um deles, de Alexis Carrel [10]... Ainda hoje me lembro de frases desse livro, apesar de o ter lido há 60 anos. O autor diz a determinada altura “a justiça é como um cinto que aperta e alarga conforme as circunstâncias”. Continua a ser universal. No meio do rodopio pela capital, Luís Oliveira cruzou-se com o jornalista Torcato Sepúlveda. Torcato alugou um quarto em casa de Luís, juntos seguiam daí para as noites do Cais do Sodré e foi por essas bandas, iluminados pelas luzes do Lusitana e do Jamaica, embalados pelos seus ritmos, que conceberam o primeiro livro com selo Antígona. A história então contada é rocambolesca: numa mesa de um destes pontos de encontro da noite lisboeta, os dois teriam dado de caras com um manuscrito singular, assinado por um tal Custódio Losa, general dissidente tornado porteiro de discoteca, e encabeçado por um longo e bélico título: Declaração de Guerra às Forças Armadas e Outros Aparelhos Repressivos do Estado. Resolveram editá-lo, incluíram até um fac-símile do referido manuscrito com a assinatura do autor a comprovar a sua veracidade, escreveram um prefácio [11] definindo o projecto que então se iniciava e apresentaram-no aos leitores. Estava lançado o gancho, despertado o interesse, iniciado um alvoroço, que, durante meses, alimentou as páginas da imprensa:

Na altura andaram à procura do major, telefonaram-me várias vezes. Sobretudo um jornalista de um jornal que depois acabou, já não me lembro bem, Diário Popular ou uma coisa assim, telefonou-me várias vezes a ver se eu lhe apresentava

para eles me levarem então. Se não estavam de acordo...»

[9]«O Bolero era um bar que

não devem ter conhecido no Martim Moniz. Era muito engraçado: por baixo era uma boîte e tinha um restaurante onde se servia bacalhau à Brás do melhor de Lisboa. Lembro-me de um dia não ter-mos dinheiro, eu e o grupo, e aquilo era num primeiro andar, aí a três ou quarto metros de altura. E então um atirou-se pela janela e depois desce-mos todos pelos ombros, um grupo de sete, oito pessoas, e não pagámos. Não tínhamos mesmo dinheiro. Uma tarde, arranjámos dinheiro e fomos lá todos pagar ao homem, que até tinha achado muito graça, porque o empregado chegou lá com a conta e não viu nin-guém.»

[10]Alexis Carrel. O Homem,

esse Desconhecido. Porto:

Educação Nacional, 1936. Trad. Adolfo Casais Monteiro (1.ª edição em Portugal)

[11]«Nunca demos especial

importância à cultura; pelo contrário, servimo-nos dela como simples ferramenta para pensar melhor a nossa vida, organizar os desejos e de-fender o instinto. Seria, porém, um purismo infantil não utilizar a arma do livro (uma

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mercado-o majmercado-or. E eu disse “eu nãmercado-o cmercado-onheçmercado-o, nós encmercado-ontrámmercado-os mercado-o original dactilografado num bar, sei tanto como você, portanto não posso fazer nada”. E ele perguntava “mas ele nunca apareceu, nunca reclamou os direitos, nunca disse nada?”. “Nada, até hoje”. Foi assim uma coisa “quem é este gajo, este Custódio Losa, que é um militar e porteiro num bar e esquece-se de uma coisa destas, deixa isto?”. E eu dizia “olha, o Mário-Henrique Leiria diz que o acaso tem causas matemáticas muito precisas”. Dizia sempre isso: “foi um acaso, encontrámos isto.”

Num pacto de cumplicidade, Torcato Sepúlveda e Luís Oliveira mantiveram a história durante três décadas e foi apenas numa entrevista concedida há um par de anos à revista, entretanto também encerrada, Os Meus Livros, que o editor da Antígona revelou, afinal, que Custódio Losa era, na verdade, uma fusão Torcato-Luís. «O Losa foi um nome escolhido pelo Torcato e Custódio fui eu que escolhi, porque era um tio meu», elucida Luís Oliveira, apontando para a tal assinatura fac-similada no livro e revelando com toda a naturalidade «isto é a minha letra, é a minha assinatura».

O editor admite que o texto tem «algumas deficiências de escrita». Mas é, ainda assim, um manifesto da sua postura perante o mundo, uma tomada de posição que viria a espelhar-se em todos os textos por ele editados, mantendo-se, até hoje, absolutamente actual. Poderia a editora – e este texto – ter surgido três anos antes ou três anos depois? Folheando as 50 páginas do livro, Luís Oliveira responde:

Não. Não poderia ter surgido três anos antes, porque eu não me encontrava intelectualmente preparado. Três anos depois poderia ter surgido, mas eu achei que era aquele momento, porque era a seguir ao 25 de Abril. Temos isto [12]. Hoje seríamos presos. Tem outra [13] que é uma fotografia da mulher do Eanes, que na altura era Presidente da República. Isto é uma obra de arte, esta mulher, nós gozávamos com as mulheres deles. Hoje, este livro seria colocado fora do mercado.

A competir com a irreverência do texto está a própria irreverência da capa [14], ocupada frente e verso por uma fotografia de dois militares assassinados num carro, que, tal como a caraça e o nome Antígona, fazia parte do baú onde Luís Oliveira ia guardando o “enxoval” da editora que estava prestes a nascer. «Esta fotografia

ria como outra qualquer) para publicitar as experiências de corte radical com este mundo. Só realizando a mercado-ria se pode superá-la e só superando-a se pode realizá--la.» “Prefácio dos Editores” in Custódio Losa. Declaração de

Guerra às Forças Armadas e Outros Aparelhos Repressivos do Estado. Lisboa: Antígona,

1979. P. 6

[12] Mostra a ilustração da pág.

29, intitulada “perfil dos gover-nantes através dos tempos”, onde a figura de um homem pré-histórico é colocada lado a lado com uma fotografia de Carlos Mota Pinto,

primeiro--ministro na altura.

[13]Exibe a pág. 43, com uma

fotografia de Manuela Eanes legendada “as companheiras deles”.

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foram uns generais que foram mortos num atentado em Espanha durante o franquismo. Eu ainda nem sequer tinha a editora e achei que esta fotografia um dia havia de servir para qualquer coisa». Sobre um dos corpos, foi desenhada uma cruz invertida, materializada em buracos circulares, que deixam entrever sob ela a página vermelha do seu interior.

A afirmação da identidade: a linha gráfica, a tradução, a selecção dos textos a publicar

A capa da Declaração de Guerra não foi desenhada por Eduarda Feio e a de A Insurreição Erótica [15], de Giorgio Cesarano, segundo título lançado pela Antígona, também não. Mas, a partir de então – e durante vinte anos –, seria ela, pintora, licenciada em Belas-Artes, «companheira de vida e de aventura» de Luís Oliveira, que assumiria a responsabilidade pela afirmação de uma identidade da editora que se coseu também com linhas gráficas. Logo a começar pelo formato dos seus livros: quase todos eles têm uma dimensão de 13 cm X 21 cm, apenas os livros maiores surgem com 17 cm X 24 cm. «Mesmo sem colecções», sublinha Luís Oliveira, «realmente o formato deu personalidade à Antígona». Quanto ao design em si, mais do que o rigor gráfico, o que se procurou foi a pulsão afectiva, o risco, a força:

No caso desta capa [16], eu disse-lhe “quero uma coisa de comer crianças”. E ela arranjou este Saturno a devorar a criança que mete medo às mães. Ela fez capas muito bonitas. Uma por exemplo é o Oskar Panizza. Nunca viram? Psychopathia criminalis [17]. Mas quando a editora fez 20 anos ela disse “já não domino os programas”, ainda trabalhava com letraset, isto era tudo colado. Hoje trabalhamos com um designer [Rui Silva, da Alfaiataia], mas as capas não são mais bonitas, há muita gente a pedir as capas antigas quando fazemos reedições. O Mil Novecentos e Oitenta e Quatro [18] agora tem uma capa moderna. Ela tinha feito aquela com um soldado da Guerra do Golfo que parece que tem um tanque na cabeça, mas são uns óculos para a escuridão, aquilo[19] mete medo. Estão sempre a pedir esse livro, por causa da capa.

Esta capa [20] graficamente tem erros, isto seria enquadrado

de outra maneira, mas tem uma força...

Um dos pormenores que salta à vista nas capas da Antígona é a inscrição do nome do tradutor. O destaque dado a quem transporta

[14]

[15]Giorgio Cesarano. A

Insur-reição Erótica. Lisboa:

Antígo-na, 1979. Trad. Abel Prazer

[16]

Luís Oliveira (org.). A

Pro-messa de Antígona. Lisboa:

Antígona, 1989

[livro-souvenir lançado para cele-bração dos 10 anos da editora]

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uma obra da sua língua de origem para o português é, acima de tudo, uma forma de dar valor ao trabalho do tradutor, colocando em evidência a importância do seu papel na edição do livro tal qual ele nos chega às mãos.

Os editores acham que o tradutor é uma escumalha, não tem interesse. Ora, muitas vezes aqui eu apercebo-me de que os tradutores trabalham tanto como o próprio autor. Uma tradução exige uma reescrita do próprio livro.

Dada a importância dos “tradautores”, Luís Oliveira escolhe a dedo as mãos nas quais deposita os livros da Antígona. Da sua rede de confiança fazem parte alguns amigos que já colaboram com a editora há anos. É o caso de Manuel Portela. Professor, poeta e tradutor, Manuel Portela iniciou a sua colaboração em 1994.

Propus e publiquei na Antígona no final desse ano a primeira versão da minha tradução da obra de William Blake, Songs of Innocence and of Experience [21], cuja publicação original ocorrera 200 anos antes, em Londres. Foi a primeira tradução integral da obra em Portugal.

Desde então, releva-nos via e-mail, tem mantido uma relação de estreita proximidade com o projecto editorial de Luís Oliveira, tendo traduzido mais de uma dezena das obras que fazem hoje parte do catálogo da Antígona tal como o conhecemos. Nesta casa publicou ainda o trabalho ensaístico O Comércio da Literatura [22], foi co-autor da antologia PULLLLLLLLLLLLL Poesia Contemporânea do Canadá

[23], estiveram a seu cargo apresentações e lançamentos de livros da editora, sugere livros para publicação, escreve regularmente notas de leitura a livros que Luís Oliveira pondera publicar mas a respeito dos quais prefere ter primeiro uma opinião dos colaborados em quem confia. Usámos dos nossos recursos paródicos, no bom sentido – se é que mau sentido existe –, e perguntámos a Manuel Portela se, com tão volumosa e variada colaboração, se sentia um «militante de base da Antígona». Como resposta, obtivemos a sua visão sobre o que é a editora:

Não sou propriamente militante – essa palavra tem uma implicação de cegueira sectária que é contrária ao projecto da Antígona. A Antígona tem expressão num catálogo de livros e nas ideias e formas desses livros. Esse catálogo é o resultado cumulativo de afinidades e trocas de ideias entre

Oskar Panizza. Psychopathia

Criminalis. Lisboa: Antígona,

1989. Trad. Cristina Terra da Motta / José M. Justo

[18] George Orwell. Mil

Novecentos e Oitenta e Quatro. Lisboa: Antígona,

1991. Trad. Ana Luísa Faria

[19]

[20] De A promessa de

Antígona

[21] William Blake. Cantigas

da Inocência e Experiência.

Lisboa: Antígona, 1994. Trad. Manuel Portela

[22]Manuel Portela. O

Co-mércio da Literatura. Lisboa:

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um conjunto de pessoas que, ao longo dos anos, colaboraram com o editor, Luís Oliveira. Não há um programa pré-definido, mas sim uma ideia constante de interpelação do presente e do passado e de conhecimento da nossa condição no mundo. Essa interpelação é feita através de múltiplos autores nos mais diversos géneros (ensaio, romance, conto, poesia) escritos em muitas línguas. Esse corpo de vozes e de textos tomou forma progressivamente num conjunto de livros que têm um elemento em comum: a crença na força do livro co– mo instrumento essencial do pensamento e da experiência humana.

Esta força do livro referida por Manuel Portela representa, na Antígona, uma força particular. Se pensarmos sobre o assunto, apercebemo-nos de que há livros no mercado que continuariam a existir mesmo que em determinado momento não tivessem sido publicados por determinada editora. Uma qualquer outra editora inclui-los-ia no seu catálogo, pelos mais variados motivos, no instante imediatamente a seguir. Quando falamos da Antígona, falamos também de livros que, se não tivessem sido aqui publicados, podiam muito bem não circular hoje em Portugal. Questionado sobre a importância da editora na materialização de vários dos trabalhos da sua autoria, Manuel Portela afirma:

A sua publicação surgiu, desde o início, associada à Antígona, quer pela natureza dos textos, quer pelo papel que gradualmente fui assumindo como tradutor e autor. Ou seja, elas já foram pensadas, de certo modo, como obras para o catálogo da Antígona. Atendendo ao baixo valor de mercado dos títulos que refere, provavelmente não teriam sido publicadas do mesmo modo por outras editoras. Um bom exemplo disso é a antologia de poesia canadiana, cuja produção foi complexa e morosa, e que dificilmente teria encontrado outro editor.

Outra das pessoas da esfera de confiança de Luís Oliveira é Maria de Lurdes Afonso, que nos respondeu também a algumas perguntas por e-mail. Desde Março de 2011 a desempenhar funções de assistente editorial na Antígona, Lurdes conta-nos como começou a sua relação com a editora.

Acompanhava o catálogo da Antígona há vários anos e considerava esta editora uma excelente escola de edição de

[23]AA.VV. PULLLLLLLLLLLLL

Poesia Contemporânea do Canadá. Lisboa: Antígona,

2010. Trad. John Havelda, Isabel Patim e Manuel Portela.

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referência. Quando soube que a Antígona precisava de uma assistente editorial, trabalhava como copywriter numa agência de publicidade, mas tinha já muitas saudades do mundo da edição; por isso, não hesitei em enviar o meu currículo e uma carta de motivação.

As suas tarefas estendem-se por todo o processo de concepção e produção do livro, desde o primeiro momento, quando é ainda apenas um objecto hipotético, até ao último momento, do lançamento, no qual se dá por inaugurada a viagem do livro até ao seu leitor.

As minhas funções prendem-se sobretudo com o trabalho de coordenação editorial, com o acompanhamento do livro ao longo de todas as etapas e de todos os intervenientes: numa fase inicial, a elaboração de pareceres de leitura, a compra de direitos (quer a agências e a editoras estrangeiras, quer directamente aos autores) e a contratação de obras; numa segunda fase, o acompanhamento do processo de tradução, revisão e concepção gráfica do livro (confiados a colaboradores externos); por fim, a elaboração de materiais promocionais (do texto de contracapa ao press release) e a divulgação do livro na imprensa, no website da editora e, recentemente, nas redes sociais. A organização dos lançamentos é também uma tarefa muito aliciante (e que exige vários Lexotans).

Lurdes Afonso dá-nos ainda pistas sobre o funcionamento de uma editora independente por oposição ao funcionamento das grandes casas e conglomerados editoriais.

Ao invés das grandes editoras, onde o trabalho é geralmente muito compartimentado, na Antígona há uma grande concentração de funções em poucas pessoas que se desdobram em várias tarefas. Tem-se uma visão bastante completa e há uma grande participação, muito gratificante, em todas as fases do processo editorial.

Percebemos através do relato de Lurdes que o dia-a-dia de quem trabalha numa editora como a Antígona é um caminho atribulado pela dinâmica imprevisível entre os momentos de maior stress e os momentos de prazer e realização profissional – e também pessoal, se se acredita no projecto em que se trabalha, como é o caso confesso de Lurdes. Da sua experiência na Antígona, a assistente editorial destaca dois momentos em particular:

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No ano passado, a vinda de Anselm Jappe ao nosso país, onde iria lançar Sobre a Balsa da Medusa – Ensaios acerca da Decomposição do Capitalismo [24], teve de ser adiada à última da hora devido a uma greve inesperada de controladores aéreos. Os convites tinham sido enviados, o lançamento fora divulgado, havia entrevistas agendadas, etc. Felizmente, conseguimos improvisar um sistema de teleconferência em contra-relógio, num verdadeiro sprint contra os imponderáveis desta vida. Um momento que me deu um prazer especial: a belíssima confissão amargurada de Hélia Correia, que apresentou recentemente As Maçãs Douradas [25], no lançamento do livro. Ouvi-la dizer que tinha odiado o livro devido à terrível dor de cotovelo que sentiu ao ler as linhas da Eudora Welty é algo impagável.

Lurdes Afonso acrescenta ainda à sua lista afectiva alguns momentos do trabalho quotidiano que diz serem «sempre muito especiais»: «o contacto com os leitores fiéis da Antígona nas feiras do livro, nos lançamentos e, até, por telefone [26].»

Em 34 anos da editora, em 225 títulos publicados, a verdade é que – surpresa, ou não – não existe um único livro no catálogo da Antígona que tenha resultado de uma proposta [27] vinda de fora do seu núcleo de confiança – e que inclui, além de Manuel Portela e de Eduarda Feio, também Carlos da Fonseca, professor da Sorbonne, em Paris, e há quatro décadas amigo de Luís Oliveira. No espaço dedicado às perguntas frequentes, no site da Antígona, é aliás deixado um alerta de inspiração bíblica: «É mais difícil um autor entrar na Antígona do que um camelo passar pelo buraco de uma agulha». Resultado: uma forte coerência [28] de conjunto, com razões por detrás de cada escolha que, muitas vezes, são mais de natureza olfactiva que objectiva.

Se me perguntar por que é que eu escolhi determinado livro, às vezes não sei. É um cheiro, um instinto. O que me interessa é a inteligência vital, inteligência que exige uma compreensão essencial do mundo no sentido do Homem. Como dizia o Marx, ser radical é ir à raiz das coisas; na raiz está o Homem. Se uma pessoa tem uma inteligência vital, está na raiz das coisas, está no Homem. Se não está e está na empresa e no dinheiro e no espectáculo e nisso tudo, para mim não é uma inteligência vital. Apesar de tudo é inteligência, mas terá outra classificação. Portanto, a minha, fiquem a saber, é instintiva, que é a mesma coisa que ser vital. É talvez essa inteligência

[24] Anselm Jappe. Sobre a

Balsa da Medusa – Ensaios acerca da Decomposição do Capitalismo. Lisboa: Antígona,

2012. Trad. José Alfaro.

[25]Eudora Welty. As Maçãs

Douradas. Lisboa: Antígona,

2013. Trad. Diana V. Almeida.

[26] «Por graça, gostaria de

referir um leitor fiel de Nisa e outro dos arredores do Porto (mantenho o anonimato, mas envio-lhes saudações refrac-tárias caso passem os olhos por estas linhas algum dia; eles sabem quem são!), que todos os meses nos ligam para saber se há um catálogo novo em vista ou para es-tarem informados das novi-dades. Outros há, nas feiras do livro, que apontam para um título e exclamam para os amigos: “Aquele livro mudou a minha vida!” Haverá coisa mais gratificante do que poder contribuir de alguma forma para mudar a vida das pes-soas?»

[27] «Mas não estou a dizer

para não apresentarem uma proposta. Podem mandar para

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que me guia pelos livros, muitas vezes eu não sei... não sei justificar.

E quanto ao facto de serem escassos os nomes de autores portugueses editados pela Antígona, a justificação será mais racional? O escritor americano Phil Mailer [29] avança uma hipótese: «É verdade que não há em Portugal uma tradição literária subversiva e por isso será difícil descobrir autores que se integrem neste projecto voltado para a liquidação social». Luís Oliveira comenta:

Eu próprio tenho dito isso. Não há muito, não. Temos o Manuel Laranjeira, temos o Zé do Telhado, temos alguns autores. Mas não há uma tradição subversiva, há desvios... O Eça de Queirós era, de certa maneira, subversivo na linguagem, mas não era um subversivo. O Camilo também não era, nem o Lobo Antunes, nem ninguém dessa gente. E quando chegamos a França temos um Jean Meslier, um La Boétie, um Montaigne, por aí fora, nunca mais acaba, eram de facto subversivos. Quando vemos ainda hoje o Discurso Sobre a Servidão Voluntária [30], com 500 anos, do La Boétie, há uma altura em que ele diz “É preciso libertarmo-nos dos nossos libertadores”. Isto é uma frase universal, é a pedra de toque para o conhecimento da humanidade. As pessoas não se libertam dos pais, não se libertam dos namorados, das namoradas, dos chefes, não sei quê, não se libertam dos libertadores, não estão libertas. Estão influenciadas e manipuladas.

Existe, pois, pouco mais de uma dezena de nomes portugueses entre os quase 150 publicados pela Antígona, mas é um deles que está na base de um dos seus maiores êxitos editoriais e de uma das mais surpreendentes histórias que pontuam a sua história: Fernando Pessoa e o seu O Banqueiro Anarquista [31], editado sem licença e distribuído sem distribuidora, em 1981.

Na altura, os direitos da obra do poeta da Tabacaria estavam nas mãos da editora Ática e da família Gonçalves Pereira, advogados e professores de Direito em Coimbra, que terão olhado para este como o “patinho feio” dos textos de Pessoa e não o publicaram – «os gajos eram de direita e aquele livro não lhes convinha porque punha o Fernando Pessoa anarquista», justifica Luís Oliveira. «Um dia digo assim “vou publicar isto, sem direitos, sem nada, a ver o que é que acontece”». Dito e feito. Os senhores das leis não demoraram na resposta e enviaram a tudo quanto era distribuidora uma carta com

aí uma proposta.»

[28]«Coerente, sabe de onde

vem? Sabe o sentido etimo-lógico? Vem de coração. Eu tenho coração, sou coerente.»

[29]Phil Mailer. “Antígona vista

de Nova Iorque” in A

promes-sa de Antígona. Lisboa:

Antígona, 1989. P. 73

[30]Étienne de la Boétie.

Discurso Sobre a Servidão Voluntária. Lisboa: Antígona,

1986. Trad. Manuel João Gomes

[31]Fernando Pessoa

O Banqueiro Anarquista.

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promessa de processo caso o livro fosse levado até às livrarias. «E se nós fôssemos distribuir o livro? Vamos de carro por aí acima...», sugeriu então Eduarda Feio. Sugerido e feito:

E foi fantástico. Começámos por aí fora, em Coimbra sei que vivemos quase oito dias no Palácio do Buçaco, fizemos lá o Natal de 1981. Na altura, era o 12-13, ou seja, em cada 12 livros comprados havia um oferecido [32]. Quando chegámos a Coimbra, o livreiro disse “quero 100” – entregava 108 e facturava 100 e pagavam logo, com medo de que o livro esgotasse, porque eu anunciei só 1000 exemplares e foi o milagre dos pães. A tipografia que me fazia os livros chegou a estar a trabalhar dias inteiros só a fazer reedições, vendemos uns 50 000 num mês. Chegámos a ter os livros na mala do carro com notas de 1000 escudos e 500 escudos lá pelo meio, nem sabíamos que dinheiro lá estava. Vivemos à grande e à francesa.

Aventuras à parte, havia ainda que preparar o embate com os legítimos detentores dos direitos de autor e foi com essa intenção que Luís Oliveira decidiu distribuir o livro também pelas livrarias da Ática, que não hesitaram em comprá-los e, mais do que isso, em colocá-los em destaque nas suas montras. «Eles estavam a ganhar dinheiro com a ilegalidade», salienta o editor. E verdade é que a quezília teria o seu ponto final num simples telefonema:

São oito da manhã, ainda estava a dormir, telefona-me o senhor Gonçalves Pereira. “Eu gostava de falar com o senhor Luís Oliveira”. “Sou o próprio”. “Isto aqui assim é o Gonçalves Pereira, o detentor dos direitos do Pessoa, isto assim assim, você fez isto, vou-lhe meter um processo-crime”. E eu disse “não tem nenhum problema, mais vendo; se isso for proibido mais vendo”. “Pois, mas ninguém lhe vai distribuir o livro, já mandámos cartas para as distribuidoras”. Já nós o estávamos a vender directamente. E eu disse assim “Olhe, não faz mal, se for preciso eu peço ao meu amigo Kadafi que mande cá uns homens para ajudar a distribuir o livro”. Passou-me aquela, podia ter falado no Jacques Mesrine ou noutro qualquer. Não sei se aquilo bateu ali na cabeça ou se o homem pensou – já era velhote – “é pá, estou metido com piratas”. Até hoje, vendi milhares e milhares, talvez 100 000 livros, e ainda continua a vender. Hoje posso vendê-lo a cinco euros, fica-me a 70 cêntimos. O banqueiro foi um banqueiro que me pôs a viver

[32] «Hoje são plafonds. A

Fnac se comprar 500 livros quer mais dois por cento, mas continua esse vício. Se comprar 10 automóveis não lhe dão nenhum.»

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muito bem.

O Banqueiro Anarquista e O Papalagui [33] têm sido os grandes sustentáculos das contas de uma editora que pouco liga a contas – «gasto tudo o que tenho e o que não tenho», diz o editor. Curiosamente, em 2012, Fernando Pessoa voltou a ser um dos êxitos de vendas, agora com Contos Completos [34], segundo título de Pessoa no catálogo da Antígona. Caminhada [35], de Henry David Thoreau, com tradução de Maria de Lurdes Afonso – terceiro livro do autor americano editado pela Antígona, depois de Walden [36] e A

Desobediência Civil[37] – foi outro.

A chegada do livro ao leitor: a publicidade, as críticas, os prémios

Apesar de O Papalagui já ter sido reeditado umas 50 vezes, a informação que figura nos últimos exemplares publicados fica-se pela referência à 7.ª edição. Falta de rigor? Decisão ponderada, explica Luís Oliveira, e que espelha a relação que a editora quer – e aquela que não quer – estabelecer com os seus leitores:

Não quero que o leitor chegue ao livro através de uma informação que o aliene, porque há ainda gente que chega a uma livraria, vê “500 000 exemplares vendidos” e compra o livro. E um leitor que chega a um livro através dessa informação, ou da “20.ª edição”, já está alienado. Chega ao livro não a partir de uma informação correcta do que ele é, mas por uma imposição da própria publicidade. Sou contra isso, não faço publicidade.

Quanto à atenção que a imprensa dedica aos seus títulos, Luís Oliveira assinala que, dos cerca de 12 livros que a Antígona edita anualmente, pelos menos metade tem recensões nas publicações da especialidade [38]. Contudo, isso não o entusiasma muito.

Já não me interessa o que os jornalistas dizem sobre os livros e já não preciso, em boa verdade. Não vejam isto como uma vaidade, mas como uma forma orgulhosa de falar – e o orgulho é uma qualidade superior do espírito, a vaidade é uma qualidade inferior, acho eu, é uma definição minha. Às vezes é melhor não escreverem do que escreverem, porque dizem asneiras e não percebem muito bem os livros. O jornalista que é efectivo não lê o livro, lê a nota de badana. A pessoa [33]O Papalagui – Discursos

de Tuiavii, chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul.

Lisboa: Antígona, 1982, Trad. Luiza Neto Jorge

[34] Fernando Pessoa. Contos

Completos. Lisboa: Antígona,

2012

[35]Henry David Thoreau.

Caminhada. Lisboa: Antígona,

2012. Trad. Maria Afonso

[36]Henry David Thoreau.

Walden – ou a vida nos bosques. Lisboa: Antígona,

2009. Trad. Astrid Cabral

[37]Henry David Thoreau. A

Desobediência Civil – seguido de Defesa de John Brown.

Lisboa: Antígona, 2005. Trad. Manuel Jorão Gomes

[38]«Nos últimos dois, três

anos abrandou, porque não há revistas literárias, não há su-plementos... Um suplemento traz três livros no meio de mil que se publicam por mês, ou quinhentos, não faço ideia.»

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que está fora, que é freelancer e que lê os livros, às vezes faz trabalhos muito interessantes. Sobre o Platónov [39] saiu uma recensão de um crítico, o Rui Catalão, que leu de facto o livro e leu-o duas vezes.

Menos ainda, entusiasmam-no os prémios. Em 2010, os Prémios de Edição Ler/Booktailors resolveram atribuir-lhe uma distinção Especial Carreira, assinalando os 30 anos cumpridos da fundação da Antígona e querendo homenagear a «persistência e dedicação deste grande editor», lê-se na nota [40] publicada à data. Luís Oliveira recusou.

Eu não fui lá, nem quis saber disso para nada. E digo-lhe: para mim a Booktailors é uma banalidade de base, não tem grande prestígio nem têm grande interesse os prémios deles. Mas nenhum prémio tem grande interesse. Mesmo os gajos que vão receber o Nobel não são grande coisa. Porque houve muitos que recusaram. O Sartre, por exemplo, recusou. E o homem não era grande coisa, foi lá à Rússia e disse que aquilo era um paraíso. Muitos recusaram o Nobel da Literatura, disto e daquilo. Os prémios são sempre uma avaliação. E uma avaliação, seja na vida, seja na literatura, é sempre uma coisa duvidosa. Para haver uma avaliação é preciso haver quem avalie. E os que avaliam têm o quê? Dotes superiores aos outros? Têm qualidades especiais?

Até o próprio título de “editor” tem alguma dificuldade em aceitar, preferindo antes afirmar-se como alguém que gosta de «certos livros», que os selecciona e que os dá a ler – sem grande vontade de fazer parte desse tal “mundo editorial” dos prémios, das críticas, da publicidade do livro. Aliás, já no prólogo do acima citado A promessa de Antígona, Luís Oliveira o afirmava [41]. Agora, reitera:

Os editores são gelatina, não interessam nada. Não conheço nenhum editor corajoso, são quase todos uns cobardolas. Não assumem as coisas, publicam livros para ganhar dinheiro, a maior parte das vezes não os lêem. No outro dia foi entrevistado um editor na televisão que dizia que tinham tido dois êxitos naquele ano: de um lembrava-se, do outro não. Seria impossível na Antígona, porque eu passo uma manhã a colocar uma vírgula, como dizia Oscar Wilde, e uma tarde para a tirar. Nos 222 [42] livros que publiquei, sei onde está a vírgula a cortar o predicado do sujeito e, mesmo em

[39]Andrei Platónov. A

Escava-ção. Lisboa: Antígona, 2011.

Trad. António Pescada

[40] «Há 30 anos, Luís Oliveira

fundava a Antígona – Editores Refractários, um projecto inde-pendente e contestatário que pretendia lutar sempre contra a corrente, publicando o que de melhor houvesse para publicar. Três décadas depois, a Antígona e Luís

Oliveira mantêm-se iguais, com a mesma irreverência e qualidade. Este prémio preten-de homenagear a persistência e dedicação deste grande editor em publicar obras essenciais para a cultura literária, segundo inalienáveis princípios de qualidade.»

[41] «A Antígona não aspira

conquistar um lugar, modesto que fosse, no mundo das artes e das letras, nem na história assaz “respeitável” da edição. Se por infelicidade um panteão lhe oferecessem, o único que lhe conviria seria o dos grandes cataclismos, ao lado dos terramotos ou do da peste. Da peste; sem dúvida!», pp. 10-11

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livros com 20, 30 anos, se forem reeditados, eu sei onde está a gralha, sei onde está o verbo mal colocado. Vivo dentro e para os livros. Os meus.

A teia textual: as palavras de ordem e as palavras desordeiras

Muitos são os slogans que, ao longo do tempo, têm alimentado a teia de citações que serve de apresentação da Antígona ao mundo. Uns são aforísticos, outros são sarcásticos, todos reflectem o projecto editorial da Antígona: o que é e como é. O capital social da empresa, por exemplo, recusa-se a vir expresso em números. Em todos os documentos onde é referido encontramos a inscrição «enquanto existir dinheiro, nunca haverá bastante para todos.» Claro está, esta frase capital só surge mesmo voltada para o social, isto é, para as pessoas, para os leitores que seguem o trabalho da Antígona.

Eu vou para os bancos e eles dizem “Podemos emprestar. Qual é o capital da Antígona?” O capital que está registado são 5000 euros. Para o público é este, para os bancos não é.

Seria caricato ir ao balcão de um banco afirmar que todo o dinheiro do mundo não é suficiente para todas as pessoas do mundo. Seria abusivo até, depois de ter tido a Antígona uma ajuda tão grande por parte de um determinado banqueiro, como vimos atrás. Outro elemento que ironicamente tem funcionado como ajudante da Antígona no seu trajecto actual é o sistema capitalista, como faz notar Luís Oliveira:

Nas crises do capitalismo a Antígona vende muito mais. Quer dizer, é anti-capitalista e alimenta-se das crises capitalistas. É curioso. Neste momento nós vendemos muito. Nunca tive tanto dinheiro como agora.

Por que motivo isto acontece? Talvez porque a Antígona, não tendo respostas absolutas e universais sobre a sociedade em que vivemos para dar aos seus leitores – talvez porque as respostas absolutas e universais não existem –, tem «livros que pelo menos podem dar uma compreensão do mundo às pessoas».

Ainda assim, no meio do sucesso que a editora tem vindo a ter e que tem permitido o aumento do número de livros publicados por ano, há momentos menos bons em termos de negócio. Mas Luís Oliveira encara-os com naturalidade, sem lhes dar grande [42] Entretanto, até à data de

redacção deste texto, foram lançados mais três.

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importância, eventualmente por saber que nem sempre o facto de um livro não ser vendido está relacionado com o facto de ser um bom ou um mau livro. O caso de Memória [43], de Jean Meslier, é disso exemplo.

O Jean Meslier era um padre que dizia missa durante o dia e que durante a noite escrevia que aquilo era tudo mentira. Era mentira a Igreja, a religião, os sermões. Ia dar a missa e dizer no seu discurso o que a Bíblia lhe ensinou. E depois ia para casa e escrevia sobre a miséria em que a sociedade ainda vivia. Falava de si próprio, explicava que havia ali um intuito para ganhar a vida e que escreveu o que escreveu no testamento, umas mil páginas ou mais, para si próprio. Andei anos, sempre que ia a Paris, a procurar aquele original. Até que um dia encontro Memoires, Jean Meslier, um resumo. Não vendemos o livro. Vendi-o há pouco tempo a 1 euro para saldo. E mesmo em saldo não está a vender. Mas é praticamente o único desaire que temos na Antígona. E não estou arrependido de o fazer! Porque ele agora vai para aí para os saldos e alguém há-de ler aquilo. Aquilo é uma coisa [44]...

O arrependimento parece ser um sentimento demasiado católico e Luís Oliveira não se arrepende de ter publicado nenhum dos livros que fazem parte do catálogo da Antígona. Uma vez mais, parece ficar clara a ancoragem do projecto editorial da Antígona à figura do seu editor, aos seus gostos, aos seus interesses, às suas inquietações.

Pelo canto superior direito do site da Antígona, desfilam as linhas de força da editora, vertidas por citações dos autores que publica. George Orwell («Nunca se pode ter grande coisa em troca de coisa nenhuma»), Jacques Rigaut («Não há razões para viver, mas para morrer também não»), Sade («Deus é o único equívoco que eu não posso perdoar ao homem»), Raoul Vaneigem («O trabalho foi aquilo que o homem achou de melhor para nada fazer da sua vida»), Georges Bataille («Proibição não significa forçosamente abstenção, mas a sua prática sob a forma de transgressão») e La Boétie («É muito próprio do vulgo desconfiar de quem o estima e confiar nos que o enganam») são alguns deles. A que se somam muitos outros, como Henry David Thoreau, Eudora Welty, Reinaldo Arenas, Evgueni Zamiatine, Karl Kraus, Stig Dagerman, Jack London, William Blake, Guy Debord, Albert Cossery, Marquês de Sade ou Tomás da Fonseca, alguns nunca antes publicados em Portugal, todos encontrando na Antígona a editora que subscreve cada uma

[43] Jean Meslier. Memória.

Lisboa: Antígona, 2003. Trad. Luís Leitão

[44] «Ele tem uma frase em

que diz que a humanidade será livre quando o último padre for enforcado com as tripas do último rei, ou uma coisa assim. Os fenómenos do Maio de 68 desviam para “nós seremos livres quando o último burocrata for enforcado nas tripas do último padre”.»

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das suas palavras, destaca Lurdes Afonso. Para a assistente editorial da Antígona, é esta a postura – «a total identificação entre a filosofia da Antígona e os livros que publica, sem desvios» – que faz a editora distinguir-se das demais.

Além de um vocabulário muito próprio de contestação, inconformismo e irreverência que ressalta nos contactos com o exterior e em todas as actividades da editora – e que forma já a imagem de marca da Antígona –, a qualidade dos livros publicados (os tais livros que mudam vidas), um catálogo ultracoerente, a linha editorial intransigente que não cede a modas de mercado e que não trata os leitores como energúmenos, o posicionamento no mundo, o programa ideológico-editorial (a editora com uma palavra a dizer, que «empurra as palavras contra a ordem dominante do mundo» e que subscreve cada linha que publica), o carisma e o empenho do editor, a qualidade do trabalho de edição e de concretização gráfica do livro, aspectos que se traduzem em leitores muito fiéis que sabem com o que podem contar mal folheiam um livro da Antígona.

E na opinião de Manuel Portela, os leitores são um dos dois elementos que marcam a impressão digital da Antígona.

Do lado da produção, é o facto de os seus autores, tradutores, organizadores, prefaciadores, revisores e designers se identificarem com uma ideia de livro como projecto de conhecimento do mundo e como modo humano de comunicação. Do lado da recepção, é o facto de uma grande parte dos seus leitores reconhecerem nos livros (isto é, na unidade conceptual e material que a palavra livro designa) a mesma ideia de livro como projecto de conhecimento e de existência. Isto significa que os livros são produzidos por quem os faz e lidos por quem os lê como parte de um todo maior do que o objecto singular que naquele momento têm nas mãos. É a existência desse horizonte partilhado que garante a intensidade da atenção que define um livro da Antígona: cada projecto de livro é também um projecto de mundo e de existência humana no mundo.

Uma existência que se quer subversiva, desodiente, crítica, rebelde, refractária, como não se cansa de sublinhar Luís Oliveira. E, dessa forma, livre – até no modo como se aceita um convite para um lançamento de livros. É que na Antígona, aí como em tudo, até no nosso texto, «a entrada é livre e a saída também».

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