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Didácticas: Que desafios?

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Academic year: 2021

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Didácticas: Que desafios?

João Pedro da Ponte

Centro de Investigação em Educação e Departamento de Educação Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa

jponte@fc.ul.pt

Correspondendo à proposta que me foi lançada pela comissão organizadora deste encontro, procuro fazer no presente texto uma reflexão sobre a evolução recente das didácticas específicas e enunciar os que me parece serem os grandes desafios que se lhes colocam. Discorrer sobre questões desta natureza é um exercício sempre arriscado, mas que vale a pena tentar pela contribuição que pode trazer para o debate em torno dos caminhos alternativos que se oferecem a estas áreas do saber.

Mudanças na sociedade, na educação e na didáctica

O desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico constitui uma das características mais marcantes da sociedade do século XX. Esse desenvolvimento não se traduz apenas num acumular de conhecimentos, mas envolveu, por diversas vezes, uma mudança radical de paradigmas conceptuais. Ao lado das ciências exactas e naturais, já bem estabelecidas, as ciências sociais e humanas emergentes conheceram um grande desenvolvimento. Entre estas contam-se as ciências da educação, especialmente consagradas ao estudo dos fenómenos educativos.

O grande progresso científico e tecnológico, o desenvolvimento económico e cultural e as dinâmicas sociais e políticas arrastaram consigo profundas mudanças educacionais. Podemos dizer quer estas envolvem, no essencial, quatro eixos fundamentais: (i) uma afirmação de novos objectivos curriculares, valorizando não só conhecimentos mas também capacidades, atitudes e valores e, mais recentemente, competências; (ii) uma

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nova organização curricular, em que se destaca a emergência de dimensões curriculares transversais como a formação social e pessoal, a educação para a cidadania ou as novas tecnologias de informação e comunicação; (iii) uma nova relação escola-sociedade, onde se evidencia uma acrescida atenção à diversidade cultural; e (iv) uma nova organização pedagógica, potenciadora da autonomia, onde se destaca a afirmação da cultura de projecto.

Tal como tem acontecido em muitas outras áreas do saber, as didácticas têm conhecido uma evolução acentuada nas suas perspectivas fundamentais. Em grande medida, esta evolução é o resultado de factores externos como o desenvolvimento do conhecimento científico dos saberes a que se referem e no campo das ciências da educação, bem como as mudanças na sociedade e as agendas dos actores sociais e políticos quanto à escola e à educação (Ponte, 2002a). Não se pode negar, no entanto, que um papel igualmente importante nesta evolução tem sido desempenhado pelo trabalho teórico realizado internamente no campo das próprias didácticas, procurando repensar a sua natureza, clarificar os seus objectivos e tornar os seus fundamentos e métodos mais rigorosos (Alarcão, 1989, 1991).

Tomemos um caso concreto, a didáctica da matemática, cuja evolução recente ilustra bem estas influências. Assim, novos olhares sobre esta ciência evidenciaram o papel das actividades de resolução de problemas e de investigação na construção do conhecimento matemático, sugerindo a sua pertinência no processo de ensino-aprendizagem (e.g., Mason, 1978; Mason, Burton e Stacey, 1982; Pólya, 1945). Ao mesmo tempo, aprofundou-se a análise da fenomenologia dos conceitos e ideias matemáticas, evidenciando a sua relação com os mais diversos campos de experiência do indivíduo (Freudenthal, 1983). Para além disso, uma assinalável atenção tem sido dedicada a repensar o papel da Matemática na sociedade e as suas implicações para a educação (e.g., D’Ambrosio, 1986; Skovsmose, 2001). Por exemplo, foi evidenciado como ao lado do seu conhecido papel de ferramenta de descrição, ela pode constituir também um instrumento de prescrição, com importantes consequências sociais (Davis, 1988).

Em paralelo, a didáctica da matemática tem procurado tirar as necessárias consequências da evolução do currículo e das necessidades dos públicos escolares, questionando, por exemplo, as implicações de um ensino para todos, em oposição a um ensino elitista, dirigido exclusivamente para as necessidades de uma minoria (Abrantes,

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2001), e dando atenção ao problema recorrente do déficit da literacia matemática nos alunos e na população adulta (Ponte 2002b; Steen, 1999).

A didáctica da matemática tem procurado, ainda, integrar o conhecimento que tem sido produzido no campo da aprendizagem. Assim, toda a educação nos primeiros anos foi profundamente marcada pela obra de Piaget (e.g., Piaget e Gréco, 1974), sendo igualmente forte a influência das teorias do processamento de informação (Schoenfeld, 1992) e, mais recentemente, da psicologia sociocultural (Abreu, 1996). E, finalmente, a didáctica da matemática tem sido levada a reformular o modo de encarar o papel do professor, que passou a encarar como sujeito do seu desenvolvimento profissional e membro de uma cultura profissional, bem como construtor do currículo e investigador sobre a sua prática (Pires, 1999; Ponte, 2002c).

Os grandes paradigmas da didáctica

Podemos caracterizar evolução das didácticas nos últimos 40 ou 50 anos, em termos de uma sucessão de grandes paradigmas. Assim, numa primeira fase, as didácticas eram entendidas sobretudo como uma colecção de “métodos e técnicas” específicos de cada disciplina escolar, para aplicação no processo de ensino-aprendizagem. Estes métodos e técnicas eram sobretudo emergentes da experiência e da reflexão dos actores escolares e dos responsáveis educativos. Nesta fase, as didácticas assumem-se sobretudo como um “saber prático”. A designação “metodologias de ensino”, que por vezes surge associada às didácticas é um inequívoco indicador da existência (e da sobrevivência) esta tradição. Numa fase posterior, as didácticas adquirem um estatuto mais académico, apresentando-se como um saber formado por conceitos e princípios, emergentes da reflexão dos especialistas das áreas específicas do saber. Para além da reflexão sobre as práticas educativas, procurava-se fundamentar estes conceitos e princípios na história do desenvolvimento da ciência e na sua epistemologia. É a fase em que as didácticas se assumem sobretudo como um saber de cunho marcadamente histórico e filosófico. Esta evolução tem muito a ver com a inserção dos cursos de formação inicial de professores nas instituições de ensino superior.

Mais recentemente, as didácticas surgem como um campo de investigação empírica, suportada teoricamente nas ciências sociais e humanas e, em particular, nas outras

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ciências da educação. Passam, assim, a ser entendidas como o estudo dos fenómenos educativos, com suporte disciplinar e, muitas vezes, pluridisciplinar. Neste paradigma, a didáctica de cada disciplina (ou de cada saber escolar) tem por objecto o estudo dos problemas do ensino e aprendizagem dessa mesma disciplina e as respectivas implicações na formação de professores. Este paradigma tem permitido a afirmação da didáctica como um campo próprio dentro das ciências da educação, mas começa a revelar alguns sinais de esgotamento. Este resulta, sobretudo, da difícil relação que se tende a estabelecer entre as instâncias de produção de conhecimento (que continua a desenvolver-se essencialmente no campo académico) e as instâncias de utilização (no campo da prática profissional).

Cada uma das mudanças de paradigma representa uma mudança na ênfase do que se considera serem os aspectos mais essenciais do saber didáctico. A passagem do saber prático ao saber académico não significou a anulação das referências ao saber profissional dos actores educativos, mas apenas que este foi remetido para uma posição mais periférica. Do mesmo modo, a emergência da didáctica como um campo de estudos empíricos não significa o fim do interesse pelos estudos de inspiração histórica, epistemológica e filosófica, mas apenas que estes passaram a ocupar um lugar subordinado no desenvolvimento desta área do saber.

Desafios

Os desafios com que se confrontam presentemente as didácticas resultam, por um lado, da necessidade dar continuação ao processo de mudança educativa indicada mais acima e, por outro lado, da necessidade de resolver os impasses emergentes no terceiro paradigma, tornando mais estreita a relação entre teoria e prática, tanto no que se refere à produção como à mobilização do conhecimento didáctico.

Assim, em primeiro lugar, será preciso levar até às últimas consequências as mudanças que se têm verificado nos saberes disciplinares, decorrentes em grande medida das mudanças de entendimento sobre a natureza do conhecimento científico e das perspectivas sobre o seu papel na sociedade. Isto não constitui uma tarefa fácil, pois ao lado das novas perspectivas sobre a ciência e o conhecimento, continuam a existir – e numa posição ainda largamente dominante – as perspectivas anteriores que pressupõem a objectividade e a infalibilidade da ciência.

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Em segundo lugar, será preciso assumir a mudança que terá de ocorrer no papel curricular das disciplinas tradicionais. A “época de ouro” da escola organizada por disciplinas pertence ao passado. A organização dos currículos escolares já não se baseia na simples adição de componentes isoladas, privilegiando agora as interacções interdisciplinares e as dimensões transversais. Para as didácticas, construídas com referência a saberes disciplinares específicos e pouco habituadas a dialogar umas com as outras, isto está longe de constituir um desafio trivial.

Em terceiro lugar, será necessário assumir plenamente a natureza contextualizada dos fenómenos educativos. Trata-se, aqui, de uma mudança no modo habitual de encarar estes fenómenos. Para além da clássica relação triádica saber-professor-aluno (figura 1) é preciso entrar em linha de conta com a instituição escolar e a comunidade onde se inserem os diversos actores educativos e o próprio saber que se pretende que seja aprendido pelo aluno (figura 2).

Saber Professor Aluno Contexto Saber Professor Aluno Figura 1 Figura 2

Estes desafios exigem que se caminhe para um novo paradigma, desejavelmente um paradigma que integre os três anteriores (saber prático, saber académico histórico-filosófico, investigação empírica) e acrescente elementos que qualitativamente novos. A meu ver, esse paradigma só pode ser o paradigma da colaboração.

É na superação das barreiras que têm isolado os actores educativos uns dos outros que se pode encontrar a chave para a superação dos impasses teóricos, práticos e políticos actuais. Será no desenvolvimento de projectos de colaboração para a realização de estudos e intervenções, envolvendo professores e investigadores do campo de didáctica – por vezes de várias áreas disciplinares distintas – que podemos esperar a emergência

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de novos entendimentos e novas perspectivas, bem como de novas fórmulas práticas potenciadoras da transformação e da mudança dos sistemas educativos.

No momento actual, as didácticas são as áreas das ciências da educação que têm maior facilidade em estabelecer relações de colaboração continuada com os professores. O futuro mostrará se souberam agarrar essa oportunidade no sentido de aprofundar a sua compreensão e capacidade de intervenção sobre os problemas do ensino-aprendizagem dos saberes escolares.

Referências

Abrantes, P. (2001). Mathematical competence for all: Options, implications and obstacles. Educational Studies in Mathematics, 47, 127-143.

Abreu, G. (1996). Contextos sócio-culturais e aprendizagem matemática pelas crianças.

Quadrante, 5(2), 7-21.

Alarcão, I. (1989). Para uma revalorização da didáctica. Aprender, 7, 5-8.

Alarcão, I. (1991). A didáctica curricular: Fantasmas, sonhos, realidades. In I. P. Martins, A. I. Andrade, A. Moreira, M. H. A. Sá, N. Costa, & A. F. Paredes (Eds.), Actas do 2º Encontro Nacional de Didácticas e Metodologias de Ensino (pp. 299-310). Aveiro: Universidade de Aveiro.

D'Ambrosio, U. (1986). Da realidade à ação: Reflexões sobre educação e matemática. São Paulo: Summus.

Davis, P. J. (1988). Applied mathematics as social contract. ZDM, 88(1), 10-15.

Davis, P. J., & Hersh, R. (1988). O sonho de Descartes (tradução do original em inglês de 1986 de M. Moura). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves.

Freudenthal, H. (1983). Didactical phenomenology of mathematical structures. Dordrecht: Kluwer.

Mason, J. (1978). On investigations. Mathematics Teaching, 84, 43-47.

Mason, J., Burton, L., & Stacey, K. (1982). Thinking mathematically. London: Addison-Wesley.

Piaget, J., & Gréco, P. (1974). Aprendizagem e conhecimento. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos.

Pires, M. (1999). O professor e o currículo. Educação e Matemática, 55, 3-6.

Pólya, G. (1945). How to solve it: A new aspect of mathematical method. Princeton, NJ: Princeton University Press.

Ponte, J. P. (2002a). Os processos de transformação da gramática escolar. In J. B. Duarte (Ed.), Igualdade e diferença numa escola para todos: Contextos,

controvérsias, perspectivas (pp. 65-75). Lisboa: Edições Universitárias

Lusófonas.

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Ponte, J. P. (2002c). Investigar a nossa prática. In GTI (Ed.), Reflectir e investigar sobre

a prática profissional. Lisboa: APM.

Schoenfeld, A. H. (1992). Learning to think mathematically: Problem solving, metacognition, and sense making in mathematics. In D. A. Grouws (Ed.),

Handbook of research on mathematics teaching and learning (pp. 334-370).

New York: Macmillan.

Skovsmose, O. (2001). Educação matemática crítica. Campinas: Papirus.

Steen, L. A. (1999). Numeracy: The new literacy for a data-drenchted society.

Referências

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