(...) O folclore, apesar de não percebermos, acompanha a nossa existência e tem grande influência na nossa maneira de pensar, sentir e agir. Quando crianças fomos embalados pelas cantigas de ninar e pelos contos fantásticos. Quem não conhece o “Boi da cara preta”, ou o “Tutu” que pega as crianças desobedientes? Os garotos recorrem ao folclore em seus jogos de bola ou de pegador e as meninas, ao pularem corda ou brin-carem de roda, recitam versos ou cantam as bonitas canções de nossa terra, impregnadas da tristeza de nossos antepassados. O tempo vai passando... e terminada a fase escolar em que nos deliciamos com os trava-línguas e as adivinhas, vem a idade da adolescência em que o nosso coração e a nossa mente pensam e sonham com as quadrinhas de amor. Adultos, o folclore nos acompanha com os utensílios caseiros, festas e jogos, que ale-gram nossas horas de lazer, assim como os objetos utilizados na caça e pesca. Até mesmo os caminhões que cruzam o nosso país de norte a sul trazem nos pára-choques dizeres que deixam transparecer a filosofia torna-se popular do “Irmão da Estrada”. A música folclórica torna-se parte integrante de nossa vida e, quando velhos, com ela recordamos os belos tempos da moci-dade. Finalmente, ao deixarmos este “Vale de lágrimas”, é ainda o folclore que dita os epitáfios gravados na lousa de nos-sos túmulos.
Como vemos, toda a sociedade participa da criação e manu-tenção do folclore, considerado por muitos como “a história não escrita de um povo”, pois ele resume as tradições e esperanças das coletividades. O folclore não é estático, mas essencialmente dinâmico, pois, apesar de basear-se no passado, está sempre se acomodando à mentalidade e às reivindicações do presente.
A princípio a ciência folclórica abrangia somente o que hoje se denomina “literatura oral”. Incorporou-se-lhe posterior-mente a música, elemento indispensável na poesia popular, e admitiu-se depois a dança.
Os historiadores logo viram no folclore um capítulo particu-lar da história, pois ele explica vários fatos não registrados, ser-vindo para a apuração do grau de adiantamento dos povos primitivos. Aprofundando as investigações, notou-se que o saber tradicional do povo não se refletia apenas na parte espiri-tual, mas também na material, como as artes e técnicas popula-res, inegavelmente associadas a um sem-número de manifestações de saber.
Aos poucos esta nova ciência foi vencendo inúmeras dificul-dades até conseguir a autonomia tão desejada pelos seus culto-res, tornado-se, segundo Renato de Almeida, “a mais atrativa e séria das ciências”. Gradativamente ela se espalhou pelo mundo e todos os povos cultos dedicaram-lhe especial carinho, devotando-se não somente ao folclore nacional, como também ao de outros povos.
O folclore, além dos benefícios culturais que traz para quem o estuda com interesse e amor, ajuda-nos a compreender melhor os problemas sociais brasileiros, pois ele reflete os conhecimentos aceitos por nossos antepassados e transmitidos às gerações modernas. Fiel ao passado, mas alerta às solicitações da hora presente, o folclore preserva e sedimenta os principais distintivos de cada povo.
2. O fato folclórico
Segundo a Carta do Folclore Brasileiro, aprovada pelo I Con-gresso Brasileiro de Folclore em 1951, “constituem o fato folcló-rico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular, ou pela imitação, e que não sejam direta-mente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica”.
Para se saber se um fato apresentado pelo povo é folclórico ou não, basta observar se tem as suas principais características, que são:
1. Anonimato — Não tem autor conhecido. Naturalmente tudo tem um autor, mas no folclore o seu nome se perdeu atra-vés dos tempos, despersonalizando-se. Este fato foi aceito e modificado pela coletividade, passando a ser obra do povo. Ele sofreu alterações no tempo e no espaço apresentando grande número de variantes. Assim acontece com as estórias de D. Baratinha, da Gata Borralheira e muitas outras.
2. Aceitação coletiva — O povo, aceitando o fato, toma-o para si como se fosse seu e o modifica e transforma, dando origem a inúmeras variantes. O próprio povo diz “quem conta um conto aumenta um ponto”. O mesmo acontece com a música e com as danças, que tomam feições diferentes em cada lugar, tanto pela coreografia como pela indumentária, mas sempre conser-vam uma estrutura que determina aquela dança ou aquela música e as modificações não invalidam o modelo.
3. Transmissão oral — A transmissão do fato folclórico se faz de boca em boca, pois os antigos e mesmo as populações mais atrasadas do interior não possuem outro meio de comunicação. Nestes lugares mais afastados da civilização só se aprende por ouvir dizer ou, quando se refere à técnica de artesanato, se aprende também por imitação. Na transmissão oral vive toda a história daquele grupo e a aquisição do conhecimento dá a cada um a possibilidade de difundi-lo, cabendo aos mais bem dota-dos a responsabilidade maior na sua propaganda.
4. Tradicionalidade — Não no sentido de tradicionalista aca-bado, isto é, de uma coisa do passado, mas como o modo vivo e atual pelo qual os conhecimentos foram transmitidos, ex.: avô, pai, filho, neto. Não tendo outros meios de aprender, como professores, escolas, imprensa, rádio, etc., as pessoas recorrem às lições do passado para resolverem problemas do presente. Possuem mais a sabedoria constituída do que a inven-tiva. Essa força age no sentido de garantir a permanência de uma cultura, mas sofre pressão de outras culturas vindas de fora, daí a sua modificação.
5. Funcionalidade — Tudo quanto o povo faz tem uma razão, um destino, uma função. O povo nada realiza sem motivo, geralmente ligado ao comportamento do grupo ou a uma norma psico-religiosa-social, que se perde na noite dos tempos. Por que o povo canta? Canta para rezar, para dançar, para tra-balhar, para adormecer crianças, para enterrar seus mortos, etc., mas não dá concertos, recitais nem audições. Suas danças têm datas marcadas e só naquelas ocasiões ele as executa (por exemplo: as congadas e caiapós de Poços de Caldas só aparecem na festa de S. Benedito).
O fato folclórico, como expressão da experiência popular, é sempre atual, pois encontra-se em constante renovação. O fol-clore não é estático, mas essencialmente dinâmico. Apesar de
transmitido de pai para filho, dentro do mesmo agrupamento social, ele se modifica de acordo com as necessidades externas, mas conserva-se essencialmente o mesmo (exemplo: pano da Costa das baianas, flores de plástico dos congos, etc.).
O fato folclórico, como expressão da vida peculiar de uma coletividade, não acompanha a moda, mas muitas vezes se con-trapõe a ela, assim como às artes e técnicas eruditas modernas, ainda que estas possam lhe dar origem (exemplo: cerâmicas, bordados, etc.). Apesar de tradicional, ele pode ser originário de uma forma erudita de cultura, que se despersonalizou e foi aceita coletivamente (exemplo: valsa das “pastorinhas”).
Somente o que é popular é folclórico e o folclore é o retrato vivo dos sentimentos populares e das reações do povo ante as transformações sociais.