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A crítica de Marx aos economistas ingleses na definição de dinheiro 1

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Portinari – Retirantes 1944.

A crítica de Marx

aos economistas

ingleses na

definição de

dinheiro

1 Jadir Antunes2

Nosso trabalho pretende analisar a crítica de Marx aos economistas ingleses na definição de dinheiro. Partindo de uma definição de dinheiro originada na clássica análise de Aristóteles em sua obra

Ética a Nicômaco, os economistas tendem a ver no

dinheiro a medida do próprio valor das mercadorias cambiadas. Marx, partindo de uma análise onto-lógico-genética e dialética do dinheiro, criticará esta definição

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Capítulo de livro a ser publicado pelos organizadores do Colóquio Marx/Engels de 2012 - Cemarx/Unicamp. Postado em 07.08.2016. Disponível em: https://jadirantunes.wordpress.com/.

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Doutor em Filosofia pela Unicamp e Professor do PPGF da Unioeste – PR.

mostrando que o dinheiro é a mera medida ôntica3, é a mera medida externa, visível e empírica do valor imanente e racional das mercadorias – valor que pode ser medido em tempo de trabalho.

A questão do dinheiro em Aristóteles

Em sua Ética a Nicômaco (Livro V.5)4, Aristóteles procurava responder a importante questão de como seria possível haver justiça nas trocas. A justiça nas trocas só seria possível tendo como fundamentos a igualdade, a proporcionalidade, a reciprocidade, a

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Em Filosofia, ôntico e ontológico são determinações distintas e opostas de determinada coisa. As determinações ônticas são aquelas que surgem do caráter empírico, externo, quantitativo, fenomênico e aparente de uma coisa. Ôntico refere-se à coisa enquanto coisa sensível, enquanto coisa vista e dada imediatamente aos sentidos humanos. As determinações ontológicas, por sua vez, são aquelas que surgem a partir de uma análise racional e conceitual da coisa. Ontológico refere-se à coisa enquanto tal, à coisa enquanto coisa pensada e determinada pelo pensamento. Ontológico é o nível essencial e fundamental da coisa, que a determina enquanto tal, independentemente de suas determinações ônticas, empíricas, fenomênicas e quantitativas. O estudo da gênese ontológica da coisa corresponde, assim, ao estudo do processo total de geração e desenvolvimento da coisa enquanto tal, do surgir e evoluir da coisa em todas as suas determinações e momentos essenciais.

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Aristotle. Nicomachean Ethics. Harris Rackham. Edição bilíngue grego-inglês. Grã Bretanha: Loeb Classical Library, 1998.

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comensurabilidade e a equidade. Segundo Aristóteles, a igualdade pode ser concebida de um duplo ponto de vista: a real e a recíproca. A igualdade nas trocas só pode ser a igualdade recíproca. A igualdade real é aquela que existe entre dois produtos ou fabricantes idênticos, como seria o caso da troca entre dois médicos. Uma troca como essa careceria de sentido, pois a troca pressupõe a necessidade e a carência de coisas diferentes.

A igualdade recíproca, ou proporcional, seria aquela que existiria entre produtos e produtores naturalmente desiguais, como a que existe entre o médico e o camponês. A desigualdade entre ambos seria equalizada pelo intercâmbio proporcional de mercadorias. A troca entre produtores naturalmente desiguais seria justa na medida em que seus produtos pudessem ser equalizados e mensurados por uma medida comum. Tal medida, segundo Aristóteles, seria possível com a adoção do dinheiro nas relações de troca. O dinheiro, para Aristóteles, constituiria o termo médio entre duas mercadorias diferentes (M-D-M). Dessa forma, ele seria capaz de medir a necessidade ou procura das diferentes mercadorias. O dinheiro

(nomisma) seria a medida convencional e humana da necessidade (chreia). O dinheiro seria, assim, uma proporção convencional encontrada através da pechincha e do regateio entre duas porções distintas de mercadorias.

A palavra grega nomisma (dinheiro ou medida) tem um importante significado filosófico. Nomos é tudo aquilo posto pela vontade humana e se opõe a tudo o que é posto pela ação espontânea da natureza - a physis. Por esse motivo, dizia Aristóteles, “o dinheiro é chamado nomisma, porque não existe por natureza, mas por nomos e pode ser alterado e inutilizado à vontade” (EN – Livro V.5-30).

A medida expressa pelo dinheiro poderia, assim, sofrer alterações e variar indefinidamente a partir das mudanças na vontade humana – especialmente na necessidade e na procura por mercadorias. O dinheiro, dessa forma, não mediria o valor imanente das mercadorias, mas apenas as mudanças no comportamento da procura e da necessidade humana. O dinheiro seria útil, então, porque daria comensurabilidade às coisas trocadas. Sem ele, as trocas seriam impossíveis, sem ele, seriam possíveis

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apenas trocas diretas de produto por produto (M-M) – uma troca severamente limitada no tempo e no espaço.

A partir de Aristóteles, e sem superá-lo, os economistas passaram a conceber o dinheiro, então como: medida prática do valor das mercadorias; medida da utilidade e da procura das mercadorias; produto da convenção humana; elemento externo às trocas; simples meio de facilitação das trocas; simples intermediário das trocas; instrumento de troca (currency). E o valor de uma mercadoria passou a ser entendido, então, como mera proporção quantitativa entre as mercadorias.

A questão do dinheiro em Marx

O erro dos economistas ao analisarem a forma-valor, segundo Marx, teria sido, além de continuarem presos ao paradigma aristotélico do dinheiro, o de confundirem as propriedades naturais e sensíveis da forma dinheiro com as propriedades sociais do valor. Esse erro teria origem no mau hábito dos economistas ingleses de tomarem como verdadeiras as aparências do mercado de mercadorias e de analisarem

o dinheiro de um ponto de vista meramente ôntico, de um ponto de vista proporcional e quantitativo – como em Aristóteles.

Como observa Marx em O Capital (nota de rodapé 17 do Livro Primeiro), os poucos economistas que se ocuparam com a análise da forma de valor não poderiam ter chegado a nenhum resultado positivo superior ao de Aristóteles na análise do dinheiro por dois motivos. Em primeiro lugar, “porque confundem a forma

de valor com o valor”, e em segundo lugar, “porque eles, sob a influência crua do burguês prático, de início

consideram exclusivamente a determinação

quantitativa”5

.

O valor-de-troca aparece ao economista, preso às concepções práticas do capitalista, como o próprio valor da mercadoria. Este modo de raciocinar, ao confundir o valor-de-troca com o próprio valor, ao tomar as relações mais imediatas na esfera das trocas como relações reais, esconde por completo a oposição entre valor-de-uso e valor e o valor-de-troca como mero modo de expressão do valor. Por isso, tomado em sua determinação meramente quantitativa, o casaco aparece

5 Karl Marx: O Capital. Volume I – p. 55. Marx Engels Werke Band 23 – p. 64. Nota 17 da Quarta Edição de 1890.

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frente aos olhos do economista como o próprio valor do linho.

Tomados por essa determinação meramente ôntica e quantitativa do dinheiro, os economistas ingleses acreditaram que o valor não possuía nenhuma determinação ontológica e qualitativa prévia, que o valor não possuía sua própria essencialidade, sendo ele, por isso, idêntico à essencialidade do valor-de-troca. Dominados pela aparência de identidade entre valor e valor-de-troca e entre conteúdo e forma, os economistas ingleses acreditaram que o valor do dinheiro era meramente simbólico – um contrassenso evidente porque o dinheiro como forma equivalente não possui a determinação de ser valor, mas apenas a de ser expressão de valor – e, por isso, determinado pela convenção humana. Como para Aristóteles, os economistas acreditavam que o selo do valor estampado nas moedas tinha sua origem na lei, em nomos, na vontade da autoridade monetária e, por esse motivo, não possuía nenhuma raiz nas propriedades imanentes das mercadorias cambiáveis.

O defeito dos economistas em sua análise do dinheiro, segundo Marx, poderia ser explicado pelo defeito de sua própria filosofia empirista. No

entendimento dos economistas, o dinheiro, como uma terceira coisa externa, como medida e meio de troca entre duas mercadorias, teria origem após a origem das próprias trocas, teria origem num suposto contrato estabelecido entre os agentes da troca que escolheriam os metais preciosos, devido ao caráter extraordinário de sua essencialidade material, para servirem como dinheiro.

Este defeito pode ser encontrado em Adam Smith, em sua obra Riqueza das Nações – Capítulo V: A origem e uso do dinheiro6, por exemplo, onde após admitir que no princípio o valor-de-troca das mercadorias era medido diretamente em trabalho, passa em seguida, devido às inconveniências práticas desta medida, a substituir o trabalho por dinheiro, por uma coisa mais conveniente e adequada às complexas e desenvolvidas relações modernas de troca. Depois das mercadorias, ao lado delas, justaposto a elas, como coisa externa e independente delas, segundo Smith e os economistas, viria então o dinheiro, com suas qualidades extraordinárias, posto pela convenção e

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Adam Smith. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1985. An Inquiry into the nature and causes of the Wealthof Nations. V. I. Indianapolis: Liberty Classics, 1981.

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vontade humanas, para regular simetricamente as relações quantitativas entre as mercadorias cambiadas.

Como podemos ver, segundo o entendimento de Marx, o dinheiro surge, necessária e naturalmente, junto com a mercadoria, porque ele próprio é uma mercadoria, é a mercadoria universal junto às mercadorias individuais. Como diz Marx nos

Grundrisse, “o dinheiro não nasce de uma convenção [Konvention]... Nasce da troca e naturalmente na troca é seu próprio produto”7

.

O desenvolvimento das formas do valor

Para provar que o dinheiro não passa de uma medida externa e aparente do valor, Marx analisa meticulosamente a gênese lógica do valor a partir das formas mais simples de troca até a troca capitalista de mercadorias no mercado mundial. Nessa análise, a valor é constantemente duplicada em forma-relativa, forma-equivalente, forma simples, forma desdobrada, forma geral e forma dinheiro. Segundo Marx, todas as contradições e aparências que dominam a consciência dos agentes da troca podem ser

7 Karl Marx: Grundrisse. Volume I – p. 93. MEW 42 – p. 98.

esclarecidas analisando-se a forma mais simples de troca: a troca direta entre dois valores de uso determinados (20 varas de linho = 1 casaco = M-M). Nesta forma direta de troca, o linho aparece como a forma relativa de valor e o casaco como a forma simples.

A forma simples de valor é uma forma de equivalência restrita e individual, pois na relação de troca 20 varas de linho = 1 casaco, o casaco serve como forma equivalente apenas para o linho, não servindo para mais nenhuma outra mercadoria, pois a troca é uma permuta direta e determinada (M-M). Ambas as mercadorias, linho e casaco, saem dessa relação de troca e entram diretamente na esfera do consumo, pois o mesmo casaco não permanece circulando no mercado para servir como valor-de-troca para outra mercadoria.

A limitação da forma simples de valor, entretanto, é superada, segundo a análise lógica de Marx, quando o linho encontra à sua frente outros valores de uso igualmente capacitados e dispostos a servirem-lhe de equivalente. Desse modo, podemos encontrar no mercado diferentes relações simples de troca, tais como 20 varas de linho = 10 libras de chá, 20

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varas de linho = 40 libras de café e assim por diante. Surgem assim, diz Marx, “diferentes expressões simples

de valor de uma mesma mercadoria”8

. O casaco como forma equivalente do linho, dessa forma, é constantemente substituído por outras mercadorias na função de forma equivalente do valor. A forma simples de valor se transforma, dessa maneira, em forma desdobrada de valor.

Na forma simples de valor, o linho expressava seu valor numa mercadoria única e determinada: o casaco. Agora na forma desdobrada, ele expressa seu valor em todas as mercadorias existentes no mercado. Na forma desdobrada não há nenhuma forma determinada que limite a expressão de valor do linho e ele está livre para expressar esse valor no corpo de qualquer outra mercadoria.

Essa infinita variedade da forma equivalente que permitiu à mercadoria superar a limitação da forma simples, se converte, porém, numa limitação para a expressão da forma valor, pois a série de representações não acaba nunca e não ganha uma determinação estável e universal. A forma equivalente

8 Karl Marx: O Capital. Volume I – p. 64. MEW 23 – p. 76.

desdobrada possui a boa qualidade de ser universal, porém, é uma forma instável e infinitamente variável, pois se modifica a cada relação de troca. Se o defeito da forma simples era o de ser finita e limitada em sua forma de representação, o defeito da forma equivalente é o de ser infinita e ilimitada. Ambas têm em comum, assim, o fato de serem maus universais.

A forma desdobrada de valor se transforma em forma geral de valor logo que todas as mercadorias do mercado encontram no linho sua forma universal e determinada de representação. Com a forma geral de valor, toda a multiplicidade das formas relativas pode espelhar seu valor numa mesma e única mercadoria. Dessa maneira, a forma geral de valor resolve dialeticamente a contradição das formas anteriores elevando a um patamar superior de existência a forma equivalente de valor.

A forma geral de valor prepara em seguida sua própria superação ao ser substituída ao longo do tempo pela forma dinheiro. Logo que a divisão social do trabalho se desenvolve, que a produção de mercadorias se generaliza na sociedade e que as trocas se convertem em trocas entre diferentes comunidades

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estrangeiras, surge o ouro como a mercadoria perfeita e como a forma dinheiro do valor. O dinheiro surge, desse modo, como demonstra Marx, como a mercadoria das mercadorias, como a mercadoria sagrada que encarna em sua existência corporal todo o trabalho geral e abstrato da sociedade.

O fundamental na análise da forma dinheiro, segundo Marx, não consiste no estudo dos diferentes hábitos sociais que atribuíram a certos valores de uso o papel de funcionarem como forma equivalente geral. O estudo destes hábitos é um estudo secundário, empírico e superficial para Marx. O importante para ele é a exposição da gênese lógica da forma equivalente geral, é a exposição do nascimento do dinheiro a partir do nascimento da própria mercadoria. Nessa exposição, as formas simples, desdobrada e geral de valor funcionam apenas como formas embrionárias do dinheiro.

Nessa análise onto-lógico-genética, o dinheiro surge como resultado necessário do desenvolvimento da forma mercadoria. O dinheiro mesmo não passa de uma forma desenvolvida da mercadoria. A figura dinheiro é apenas a forma sensível

e desdobrada da antítese entre valor-de-uso e valor contida no interior da mercadoria. Nesse desdobramento, a mercadoria funciona como valor-de-uso e o dinheiro como a figura autonomizada e reificada do valor.

A forma-dinheiro

O mistério do ouro como forma-dinheiro surge da circunstância de que enquanto todas as outras mercadorias são sempre formas particulares e naturais da riqueza ele, ao contrário, já sai das entranhas da terra como forma diretamente geral e social da riqueza. Enquanto todas as outras mercadorias precisam ser trocadas por ouro para se converterem em formas socialmente úteis da riqueza, o ouro já se apresenta à sociedade como riqueza social em sua forma diretamente natural e sensível. O ouro, porém, como demonstra a exposição dialética de Marx, é apenas a forma autonomizada e reificada da riqueza geral da sociedade, sendo sempre possível reduzi-lo a certa quantidade de trabalho geral despendido pela sociedade na produção da riqueza.

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As formas simples, desdobrada e geral do valor – as formas equivalentes como casaco, linho e gado – são formas imperfeitas e defeituosas para expressar verdadeiramente o valor das mercadorias, porque ainda se apresentam como o resultado de certo trabalho útil da sociedade, e porque ainda se apresentam como certos produtos úteis para o uso humano, sendo, desse modo, freqüentemente retiradas para fora da esfera da circulação e conduzidas para a esfera do consumo humano, onde desaparecem.

O ouro substitui e supera essas formas como forma equivalente geral, porque não se apresenta como trabalho diretamente útil e como coisa diretamente destinada ao consumo humano. Apesar de o ouro, assim como as formas inferiores do valor, possuir o defeito de poder ser freqüentemente retirado da esfera da circulação e deslocado para a esfera do consumo, ele não é destruído pelo consumo humano podendo, por isso, retornar a qualquer instante à esfera das trocas como dinheiro.

O ouro, porém, ao contrário das outras formas, possui o defeito de poder ser falsificado. As falsificações do ouro como dinheiro, através do desgaste

ou do excesso de manuseio e de sua freqüente necessidade de ser recunhado, permitem, assim, que ele seja substituído por meros bilhetes de papel ou símbolos estatais. Os bilhetes de papel e de cunho forçado emitidos pelo Estado, por não surgirem de nenhum trabalho produtivo da sociedade e por não possuírem nenhuma utilidade para o consumo humano, superam o ouro em seu papel de dinheiro e meio de circulação.

Por não apresentar nenhuma relação com os trabalhos úteis da sociedade, por não apresentar nenhuma utilidade natural para o uso humano e por não perder sua função com o desgaste provocado pelo manuseio, o papel moeda consagra, desse modo, o fetiche da mercadoria como fetiche do dinheiro.

Os bilhetes estatais, porém, possuem o defeito de serem aceitos como dinheiro somente nos estreitos limites nacionais. Nas trocas mundiais eles não circulam nem são aceitos como dinheiro. Ao avançar a exposição para além dos limites nacionais, para a esfera da totalidade e do mercado mundial, o ouro é novamente posto como dinheiro, substituindo assim o papel moeda como dinheiro.

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Como diz Marx:

Ao sair da esfera interna de circulação, o dinheiro desprende-se das formas locais do padrão de preços, moeda divisionária e signo de valor, e reassume a forma originária de barra dos metais preciosos.9

Como dinheiro mundial, o dinheiro volta, assim, a existir como ouro e reassume sua forma sensível. Como ouro, o dinheiro volta a funcionar verdadeiramente como dinheiro, como mercadoria sagrada e acima de todas as outras mercadorias.

Como diz Marx:

É só no mercado mundial que o dinheiro funciona plenamente como mercadoria, cuja forma natural é, ao mesmo tempo, forma diretamente social de realização do trabalho humano em abstrato.10

Em sua determinação como moeda, o dinheiro funcionava tanto como medida dos preços quanto como meio de circulação. Como dinheiro ele

9 Karl Marx: O Capital. Volume I – p. 118. MEW 23 – p.156. 10 Karl Marx: O Capital. Volume I – p. 118. MEW 23 – p.156.

continua funcionando sob esta dupla determinação, mas, agora, a essa determinação se sobrepõe uma terceira, a de servir como objeto da sede insaciável por riqueza. Desse modo, como ouro, o dinheiro pode ser guardado e empilhado como tesouro, adequando-se perfeitamente à cobiça insaciável do avarento capitalista. Assim, o conceito de dinheiro ajusta-se plenamente à sua existência. Como diz Marx: “seu modo

de existir ajusta-se ao seu conceito”11

.

A tensão permanente entre mercadoria e dinheiro não é abolida com o dinheiro em sua figura mundial, pois persiste a oposição entre a forma natural e a forma social da riqueza e a luta da mercadoria para adequar-se a essa última forma. Ainda que o dinheiro tenha encontrado no ouro sua forma perfeita e adequada de existência, persiste o drama da mercadoria para converter-se em dinheiro e existir sob a forma sagrada e perfeita de riqueza. Por isso, o mercado mundial não abole as contradições da troca, mas apenas conduz essas contradições ao seu ponto mais elevado e definitivo.

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O dinheiro mundial

O dinheiro mundial representa a última etapa do processo contraditório da mercadoria. Com o dinheiro mundial, as contradições da mercadoria parecem ter chegado ao fim. Com o dinheiro mundial, porém, todas as contradições menores da mercadoria estão não apenas negadas, mas, ainda, conservadas numa forma e numa escala superior. O dinheiro agora é a meta absoluta da produção e sem ele nenhuma produção será possível. A tensão entre mercadoria e dinheiro por isso subsiste agora em escala ampliada e mundial.

Com o dinheiro mundial, o eterno cair da mercadoria no dinheiro e do dinheiro na mercadoria é elevado à sua escala universal. Nesse perpétuo transpassar de um no outro a mercadoria e o dinheiro são impulsionados a transpassar a si próprios numa nova e superior forma de intercâmbio social. Como nenhuma contradição pode verdadeiramente subsistir, o dinheiro mundial impulsiona a mercadoria a buscar sua solução em formas sociais que ultrapassam seus próprios limites imanentes. A mercadoria, desse modo, é impulsionada a avançar constantemente para além de

suas próprias fronteiras sociais. Como mercadoria ou como dinheiro a riqueza em que domina o modo de produção capitalista continua aparecendo como coisa, e como tal, essa riqueza impulsiona a produção para fronteiras sempre além de si mesmas.

Apesar de a mercadoria aparecer no processo capitalista de produção como o começo absoluto da riqueza, apesar de o dinheiro aparecer como sua meta absoluta, apesar de os agentes da troca e da produção aparecerem como meros mediadores do processo, para além da mercadoria e do dinheiro e de seus movimentos autonomizados se encontram a natureza e o trabalho humano como princípio e fundamento primeiro de todos os movimentos reais da sociedade.

Ainda que a mercadoria e o dinheiro apareçam como os entes absolutos do processo capitalista de produção, ainda que nossos agentes das trocas apareçam como meros agentes destes entes, por baixo e por trás desse constante transpassar da mercadoria em dinheiro e do dinheiro em mercadoria, se encontram a Natureza e o trabalho humano em sua eterna comunhão para produzir a verdadeira riqueza da

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sociedade: os valores de uso destinados a satisfazer nossas necessidades.

Ainda que o avançar da exposição de Marx pareça ter girado em círculos – a mercadoria gerando o dinheiro, o dinheiro gerando novas mercadorias e estas gerando o dinheiro mundial –, o avançar dialético da exposição de Marx nos conduz ao princípio e fundamento primeiro de todas as formas de riqueza da sociedade: o eterno metabolismo criador entre homem e Natureza. Nesse eterno metabolismo, o dinheiro e a mercadoria aparecem apenas como meras formas sociais e transitórias da riqueza. As formas equivalentes do valor são realidades criadas, negadas e superadas pelo incansável desenvolvimento imanente do trabalho geral da sociedade. Enquanto o trabalho é o sujeito absoluto de todo o processo, a mercadoria e o dinheiro são apenas suas figuras reificadas, autonomizadas e passageiras.

O problema do método de análise

Na análise das formas do valor estiveram em jogo dois métodos diferentes e contraditórios. Para

os economistas, a forma equivalente é tomada em sua forma dinheiro – a forma mais desenvolvida e concreta da forma equivalente de valor. Dessa forma, os economistas acreditaram encontrar nas propriedades ônticas do dinheiro as propriedades ontológicas do valor. O erro dos economistas foi o de não realizarem uma análise qualitativa do dinheiro que remetesse ao estudo de sua gênese, realizando assim uma análise quantitativa, empírica e superficial. Essa análise empírica fica geralmente encoberta pela difundida teoria contratualista e convencionalista do dinheiro comumente aceita pelos economistas ingleses.

O método de análise de Marx é radicalmente oposto ao método empírico dos economistas. Como temos visto, Marx submete a forma dinheiro a uma análise lógico-genética, ou seja, a uma análise retroativa e minuciosa da gênese lógica e conceitual do dinheiro, encontrando na forma simples sua expressão mais elementar e indivisível.

A análise da gênese conceitual do dinheiro mostrou a Marx sua verdadeira paternidade: o trabalho humano enquanto tal e sem forma definida. Por isso, uma vez compreendida essa forma simples e originária

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do dinheiro, bastou a Marx desenvolver as contradições e potencialidades da forma valor para chegar até a forma equivalente dinheiro e compreendê-la como mera expressão reificada das potencialidades abstratas e genéricas do trabalho humano. O dinheiro, assim, existe duplamente, como a mercadoria de todas as mercadorias e como a mercadoria negada e abstraída. O dinheiro, independentemente de suas formas, é a figura encarnada do trabalho social da sociedade.

Como mostrou Marx em O Capital, a confusão sobre o dinheiro na mente dos economistas tem uma dupla origem. Em primeiro lugar, ela surge do próprio caráter fantasioso da forma dinheiro, que leva os economistas a confundirem as aparentes propriedades naturais e sensíveis do ouro com suas propriedades sociais. Em segundo lugar, ela surge da insuficiência teórica dos economistas, que aceitam estas aparências sem analisá-las e criticá-las adequadamente.

Esta insuficiência tem origem na longa tradição intelectual nominalista e empirista inglesa, para quem a substância ou as qualidades ocultas de uma coisa são apenas nomes sem qualquer conteúdo real. Para essa tradição nominalista, pensar é o mesmo que

computar, e computar é o mesmo que adicionar ou subtrair predicados a uma determinada coisa sensível e aparente.

Influenciados por essa tradição, os economistas concebem erroneamente que as propriedades sociais ocultas do valor se identificam com suas propriedades naturais e visíveis aos sentidos humanos presentes na forma dinheiro. Os economistas, por isso, nunca se perguntaram pela origem ou gênese das propriedades sociais do valor, já que essas propriedades lhes apareciam como naturais e próprias do produto que atuava como forma equivalente da troca. A forma equivalente e o valor-de-troca apareciam, assim, como meras determinações ônticas e quantitativas da troca sem nenhuma determinação ontológica e qualitativa prévia.

Para se obter uma análise científica e dialética das trocas, deve-se tomar a análise das relações de valor de um modo totalmente oposto ao modo tomado pelo empirismo dos economistas e pelas teorias que tomam o valor-de-troca como certa expressão meramente quantitativa do valor-de-uso. Para uma análise científica do valor e do dinheiro, os economistas ingleses deveriam ter rompido com sua

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longa tradição intelectual aristotélica, fenomênica, antidialética e antiespeculativa e observado o mercado para além de suas aparências e determinações ônticas e quantitativas.

Referências

Adam Smith. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1985. An Inquiry into the nature and causes of the Wealth of Nations. Indianapolis: Liberty Classics, 1981.

Aristotle. Nicomachean Ethics. Harris Rackham. Edição bilíngue grego-inglês. Grã Bretanha: Loeb Classical Library, 1998.

Karl Marx. Grundrisse: Elementos Fundamentales para la crítica de la Economia Política (borrador 1857-58). Volume I. 15ª edição. México: 1987. Karl Marx & Friedrich Engels. Werke. Band 42. Berlim: Dietz Verlag/DDR, 1983.

_____. O Capital: crítica da economia política. Livro I. Volume I. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 3ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

Karl Marx & Friedrich Engels: Werke. Band 23. Berlin: Dietz Verlag/DDR, 1962.

Referências

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