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ANÁLISE DAS VISUALIDADES DE VIDEOCLIPES DE FUNK OSTENTAÇÃO A PARTIR DO GESTO METODOLÓGICO DOS ESTUDOS DE CULTURA VISUAL 1

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ANÁLISE DAS VISUALIDADES DE VIDEOCLIPES DE FUNK OSTENTAÇÃO A

PARTIR DO GESTO METODOLÓGICO DOS ESTUDOS DE CULTURA VISUAL1

Ana Carolina Borges de Andrade2

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – Belo Horizonte

RESUMO: A proposta é apresentar a metodologia utilizada na pesquisa de mestrado da autora para analisar videoclipes de Funk Ostentação de Kondzilla. Sob gesto teórico-metodológico dos Estudos Visuais (Mitchell, 2009), a análise parte das interações entre imagem, texto e som que configuram os videoclipes e trata do nosso encontro cotidiano com os objetos visuais. Observa-se como modos de ver e dar a ver instituídos na experiência visual podem revelar determinações políticas, históricas e culturais nas relações sociais, de poder, e de imaginários em disputa. Em coerência com o gesto metodológico, é utilizada a metodologia de análise funcional do estilo de David Bordwell (2008) com acréscimo de funções específicas para videoclipes de Thiago Soares (2004, 2009). Busca-se compreender, a partir das frestas na superfície dos videoclipes, como os recursos estilísticos exercem funções que apontam para as matrizes culturais que atravessam o seu corpo complexo.

Palavras-chave: Estudos Visuais. Cultura Visual. Análise de Estilo.

1. A CULTURA VISUAL

Ao mesmo tempo em que as imagens do mundo não podem ser puramente visuais, o visual desafia qualquer intenção de definir a cultura em termos estritamente linguísticos. Quando confirmamos os sentimentos e a vida social da imagem falamos sobre duas diferentes dimensões: sobre a nossa capacidade de perceber/emanar no/do corpo uma experiência sensível com o objeto visual, e sobre a nossa capacidade de associá-lo às nossas experiências prévias culturais e históricas. Os Estudos de Cultura Visual olham para o processo em que estas sensibilidades trabalham mutuamente, para a relação entre ambas. As partes constituintes da cultura visual não estão definidas, portanto, apenas pelo meio, mas pelo momento da conexão do espectador com aquilo que ele observa. Mirzoeff (2003, p.34) chama esta unidade de acontecimentos visuais, entendidos como “uma interação entre o signo visual, a tecnologia que possibilita e sustenta este signo e o espectador”. O conceito de acontecimento comunicacional e pragmático a partir de estudos e interpretações das visões de Louis Quéré (1991) entende o acontecimento como “uma emergência que instaura sentidos e rompe com a continuidade da experiência” e que “se inscreve em um contexto e ganha uma nova dimensão na medida em que é narrado e descrito

1 Artigo apresentado no GT 02 – Metodologias interdisciplinares de análise em mídia e músicado - IX Musicom. 2 Mestranda em Comunicação Social no PPGCOM-UFMG, na linha de pesquisa Processos Comunicativos e Práticas Sociais. Email: anacarolinaandrade.andrade@gmail.com.

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2 através da comunicação” (SIMÕES, 2014, p. 177 apud CRUZ, 2018, p.71). Comparando os dois conceitos, compreendo um acontecimento visual como um acontecimento comunicacional múltiplo, em que a interação entre espectador e materialidade contempla a relação do meio com ambos.

Observando a complexidade da interação múltipla dos acontecimentos visuais, Mirzoeff (2003) fala sobre a necessidade de ultrapassar as estratégias interpretativas semióticas na análise, pois o encontro entre o espectador e a imagem causa um afeto tátil, um impacto que precede a atividade interpretativa da linguagem. O signo é, portanto, contingente, e não pode atravessar os limites de tempo e lugar sem sofrer alterações ou provocar diferentes estímulos no observador. Um dos exemplos que Mirzoeff cita para discorrer sobre este sentimento é a transmissão televisiva da queda do muro de Berlim: um momento de intenso e surpreendente poder visual que suscita admiração, introspecção, terror e desejo. Para o autor, esta “inmediatez sensual” (p.37) é o que distingue qualquer tipo de imagem visual dos textos, esse sentimento que “excede a experiência e faz com que se relacionem mutuamente os diferentes componentes do signo visual ou do circuito semiótico.” Para o autor, esse sentimento, chamado por ele de sublime, está no centro dos acontecimentos visuais. O sublime emerge na apresentação de ideias que não têm correspondência no mundo natural, como os sentimentos, a paz, a igualdade e a liberdade. E o afeto acontece através de operações perceptivas do corpo do indivíduo no encontro com a imagem, acionando as conexões da visão com outros sentidos como o tato e a audição. Desta forma, os acontecimentos visuais vão produzindo sentido nas culturas, ao mesmo tempo em que são constituídos por sentimentos que vêm através das experiências culturais. Segundo Mirzoeff (2003), os acontecimentos visuais são unidades da Cultura Visual, e o exercício é olhar para estas unidades e, através delas, identificar as características do todo, pois o todo está contido, marcado nelas mesmas.

Para Hal Foster (1988, p.1), “embora visão sugira a percepção visual como uma operação física, e visualidade, como um fato social, os dois termos não são opostos como natureza e cultura: a visão também é social e histórica, e a visualidade envolve o corpo e a psique”. Com essa premissa, ele introduz o livro “Visão e Visualidade” (1988), que reúne discussões sobre as diferenças e entrecruzamentos dos conceitos.

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3 Mitchell (2002) explica que a preocupação da Cultura Visual é tanto a construção

social da visão, quanto a construção visual do social, pois “não é somente o fato de

nós vermos do modo que vemos, por sermos animais sociais, mas também o de nossos arranjos sociais tomarem a forma que têm, por sermos animais que veem” (p.171). Martin Jay (1994, p.8-9) fala sobre a proximidade do sentido da visão com a linguagem por se desenvolverem quase que no mesmo momento, o que implica no inevitável entrelaçamento da visão com a visualidade e em sobre como certos regimes escópicos buscam reduzir estas diferenças ao naturalizar certas determinações discursivas declarando-as como visão essencial, ou simplesmente ordenando-as em uma hierarquia natural da percepção visual, decidindo sobre as prioridades do que tem que ser visível ou não-visível.

A preocupação com a equidade na relação entre imagem e discurso aparece também na obra de Martín-Barbero, quando observa o recorrente equívoco notado na história em tratar as imagens como ilustrações do texto, submetidas ao discurso. Em Os exercícios do ver (2001), Martín-Barbero e Rey já haviam chamado a atenção para a experiência do audiovisual nas sociedades latino-americanas, atentando à necessidade de se buscar uma “mirada nova” sobre a imagem para tratar dos “avatares culturais políticos e narrativos do audiovisual e, especialmente, da televisão” (MARTÍN-BARBERO; REY, 2001, p. 10). Quando escreve sobre a reconfiguração digital do mundo audiovisual em Jóvenes entre el palimpsesto y el hipertexto, em 2017, Martín-Barbero (2017, p. 137) coloca os meios audiovisuais como o símbolo da fragmentação e da transformação das temporalidades pós-modernas: “Os meios audiovisuais (cinema, televisão, vídeo) são tanto o discurso por excelência da bricolagem dos tempos quanto o discurso que melhor expressa a compreensão do presente, transformando o extenso tempo da história no intenso do instantâneo.”

Mirzoeff situa a emergência em olharmos para a “globalização pós-moderna do visual como parte da vida cotidiana” (2003, p. 19), em uma perspectiva independente das segmentadas pelas antigas disciplinas. O autor observa que a habilidade de absorver e interpretar a informação visual é a base da sociedade industrial, e na era da informação está adquirindo uma maior relevância, pois se trata de uma capacidade que vem sendo aprendida e desenvolvida. Portanto, “a cultura visual não das imagens

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4 em si mesmas, e sim da tendência moderna a plasmar em imagens ou visualizar a existência”, de forma diferente em cada época. Ao pensar em métodos para estudar a Cultura Visual e suas unidades, os acontecimentos visuais, Mirzoeff observa algumas características e efeitos das transformações nos modos de ver e mostrar da cultura visual pós-moderna. Segundo o autor, é possível converter uma característica particular de um período em um meio para analisá-la, conforme outros, como Jurgen Habermas e Benedict Anderson, já fizeram. (p.19). Da mesma forma, o exercício de compreender o contexto histórico e cultural a partir do visual significa uma tática para compreender a vida cotidiana desde a perspectiva do consumidor, aquele que está exposto aos inúmeros objetos. E desenvolver uma tática é importante devido à insuficiência das antigas disciplinas em conseguirem compreender os objetos quando estes já não cabem mais em seus esquemas prontos de pesquisa. Mirzoeff cita como exemplo a existência de “um corpo emergente de condutas acadêmicas interdisciplinares que abarcam estudos culturais, estudos de gays e lésbicas, estudos de afroamericanos e muitos mais, cujos temas principais vão mais além dos limites das disciplinas acadêmicas tradicionais.

Mirzoeff (2003) também chama atenção para a incapacidade do discurso moderno racional de lidar com a riqueza do mundo visual. Em nossa natureza, visualizamos aquilo que não é visível por si mesmo, algo que excede as capacidades explicativas do texto. O signo visual não estável se apresenta ao espectador em toda a permeabilidade de sua cultura e instabilidade de sua identidade, e consegue alcançá-lo em uma experiência que excede a textualidade, uma experiência sublime que emerge no impacto do contato com a imagem e reposiciona constantemente o pesquisador no presente. O acontecimento visual deixa rastros, a experiência marca o corpo, essas marcas não podem ser ignoradas sob o risco de um assassinato da parte viva e ativa do objeto. Parte viva que vem agora habitar o corpo daquele que o encontra, e transforma o próprio olhar para a materialidade do objeto que restou do lado de fora. Ignorar as apreensões do corpo é ignorar a própria capacidade de compreensão da vontade das imagens, ao tempo em que seguir os seus rastros torna-se uma forma de torna-se aproximar de toda a potência criativa e política que ela emana.

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2. MÉTODO

É diante de todas estas constatações sobre a relação interdependente entre as obras e as culturas, sobre como as imagens acionam sensibilidades que provém das culturas ao mesmo tempo em que as configuram, sobre como as culturas pautam as matrizes que atravessam as obras ao mesmo tempo em que as obras agem elas próprias como mediações culturais, que Martín-Barbero observa o papel das imagens na atribuição de significados. No decorrer de seu trabalho, o pesquisador vem observando a emergência da Cultura Visual e das novas temporalidades pós-modernas, a presença dos meios audiovisuais e de seus usos como símbolo dessas novas fragmentações de tempo e espaço, e a recorrente necessidade de compreendermos o papel das imagens não como ilustrações do texto, nem como separadas do texto, mas como formas de atribuição de sentido entrelaçadas ao texto que se apresenta simultaneamente a elas e a todo o contexto em que elas se inserem. Quando levamos em conta a reconfiguração digital do mundo audiovisual, torna-se impossível uma análise de formas de linguagem separadas umas das outras, sendo extremamente necessária a observação da obra como um todo, onde imagem, texto e contexto, cada um com suas qualidades e potencialidades, se entrelaçam e formam um tecido uno.

O campo dos Estudos Visuais trata dos atos de ver e de mostrar a partir do encontro constante com os objetos visuais dispostos não ao lado, nem à frente, mas entre as nossas relações cotidianas. Mitchell (2009), um dos principais representantes do campo, nos chama a atenção para a impossibilidade de uma “teoria das imagens” ou de uma “ciência das representações”, pois segundo o autor, se, como pensava Foucault, a relação do visível com o legível é infinita, significa que as reflexões sobre “palavra” e “imagem” realizadas de forma isolada trazem definições insatisfatórias por se referirem a uma dialética instável, que muda de situação em cada prática de representação. É daí que surge a necessidade do uso de exercícios de análise des-disciplinares, que considerem a imagem-texto como um composto, às vezes sintético, outras vezes dotado de uma fissura na representação, mas sempre instável, em movimentação constante. Mitchell (2009, p.79) cita Deleuze dizendo que a antinomia da palavra e da imagem é um a priori histórico que aparece (e reaparece) como uma

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6 erva daninha a cada vez que se tenta estabilizar e unificar os campos da representação e do discurso sob um mesmo código.

Após esta reflexão, o autor faz um levantamento de métodos de análise tradicionais que buscam trabalhar com a comparação interartística a partir de análises individuais da imagem e do texto, considerando o “inter” apenas na comparação entre os resultados de cada análise individual. Usando essa comparação foram encontradas, por exemplo, analogias entre imagens e textos de determinados períodos, como Barroco ou Modernismo, mas uma vez que cada expressão revela inevitavelmente as normas estéticas de seu período, estas conclusões só servem para reforçar aquilo que já conhecemos sobre determinado período, e não nos acrescenta conhecimento sobre o objeto analisado. O próprio olhar para as linguagens como formas separadas, por si só, já reafirma a segmentação, e trata da situação como se os nossos órgãos sensoriais e mente fossem capazes de captar cada um de forma separada, “duas esferas paralelas que se convergem só em um mais alto nível de abstração” (2009, p.80). Acontece que antes de iniciarmos a compreensão interpretativa que irá separar o visual do textual, já existiu o processo interativo no encontro, e neste encontro o visual e o textual são um único agente, componentes que criam juntos os sentidos emergentes na picture em interação com o corpo humano sensível-social. Segundo o autor (p.82), as comparações interartísticas tradicionais possuem, portanto, três limitações básicas: pressupõem um conceito unificador e homogêneo em um composto que se reajusta em cada situação; realizam uma comparação sistemática que ignora a heterogeneidade do composto e as formas específicas das relações entre a imagem e o texto; acabam apenas confirmando uma sequência dominante de períodos históricos que não abre espaço a histórias alternativas, contra-memórias e práticas de resistência.

Entretanto, o modo comparativo corresponde a algum desejo crítico por conectar dimensões da experiência cultural. O desafio é, então, redescobrir a problemática da imagem-texto, o questionamento, como direcionar o olhar. O giro pictorial proposto por Mitchell toca exatamente nesta questão: não se trata de buscar respostas nas imagens, de decodificar todos os significados estritos, de descobrir o que elas fazem, pois estas respostas só podem ser encontradas na cultura, nos

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7 efeitos, nos usos, nos contextos, e não são revelados na materialidade em si. Se trata de olhar para a imagem e conseguir compreender os questionamentos que ela mesma levanta, o que ela acaba mostrando independentemente das intenções de quem a produziu ou de quem a observa. Ao invés de querer saber o que as imagens são, compreender o que elas querem saber sobre o que você é. Em outras palavras, as respostas nós já temos no texto, falta compreender quais são as perguntas nas imagens, e como elas se revelam, como indagam o espectador. A comparação por si só não é um procedimento necessário, pois além das semelhanças, similitudes ou analogias, o que é necessário é estudar o conjunto de relações entre os meios, incluindo a percepção sobre as diferenças e antagonismos, sobre as harmonias e dissonâncias, sobre as tensões na heterogeneidade do composto. Ao considerar a materialidade como a dimensão onde acontecem as relações e o lugar por onde começar a investigação, considera-se a forma em sua heterogeneidade infinita, segundo Foucault, em seu lugar entre o visível e legível, e suas aberturas para a emergência de imagens de segunda ordem impossíveis de serem analisadas em modelos seguros e bem definidos de análises visuais e textuais segmentadas, ainda que comparadas posteriormente.

O composto dialético imagem-texto em questão é um sistema em que um contém e está contido no outro. Surge a necessidade de trabalharmos com um termo que abranja outras variáveis contidas na representação para além do símbolo imagético. Mitchell propõe então a análise das pictures, o composto imagem-texto em toda a sua complexidade, abrangendo o visível e o não visível que se mostra quando olhamos para os processos, os contextos de produção e os suportes escolhidos para a sua veiculação. Esta observação demanda a compreensão das especificidades do formato como meio, pois apenas observando o videoclipe em toda a sua complexidade perceptiva e relacional poderemos tomá-lo como uma potencial unidade de análise das expressões e projeções de imaginários simbólicos sociais. Portanto, o objeto analisado é a visualidade dos videoclipes, conotada política e culturalmente pela identificação ou não-identificação dos sujeitos com os imaginários circulantes. Torna-se necessário um gesto que reconheça os efeitos performativos das práticas de ver, compreendendo que a imagem não se encontra submetida ao texto que a

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8 acompanha, mas é em si própria o registro de um processo de construção identitária em âmbito socializado, comunitário, livre de qualquer possibilidade de apropriação privada (BREA, 2005, p.7-11).

Os Estudos Visuais surgem como uma possibilidade de análise capaz de extrapolar antigas segmentações como aquelas que circundam os estudos culturais, estudos de imagem, história da arte e estética. É uma perspectiva “indisciplinadamente transdisciplinar”, que amplia os conceitos de arte e abrange a inerência do espaço estratégico dos meios de comunicação. O campo propõe uma análise não cúmplice do conjunto de processos sociais e cognitivos mediante os quais se efetua socialmente a cristalização efetiva de valores e significados culturais nas práticas artísticas, tomadas como práticas socialmente instituídas (BREA, 2005, p.6). Ao mesmo tempo em que a imagem não é subordinada ao texto, a vida social dos objetos visuais não é alheia a sua inscrição em ordenamentos simbólicos, a entornos cognitivos-disciplinares ou a campos regulados e práticas comunicacionais que se associam a eles (BREA, 2005 p.8).

O campo dos estudos culturais-visuais surge como “um campo de elucidação e de compreensão crítica do funcionamento diferencial das imagens como práticas sociais efetivas suportadas na comunidade de um repertório implícito e compartilhado de referências e valores, na acumulação cumplida de montantes circulantes de capital simbólico – mais ou menos estabilizado, e mais ou menos hegemônicos (dependendo sempre, desde logo, dos contextos, locais, sociais e históricos que estamos analisando). (BREA, 2005 p.8)

Esta reflexão é importante para percebermos a impureza dos objetos visuais, que não são ilustrações de um texto, mas ao mesmo tempo são indissociáveis dele. Não existem feitos (objetos, fenômenos ou meios) de visualidade puros, mas atos de ver extremamente complexos que resultam de um espesso emaranhado de operadores (textuais, mentais, imaginários, sensoriais, institucionais) e de interesses de representação em jogo: interesses de raça, gênero, classe, diferença cultural, grupos de crenças ou afinidades, etc. (BREA, 2005, p.09). Todo ver – fazer complexo, híbrido – constrói e é resultado de uma construção cultural, portanto, sua importância depende de sua força performativa, do seu poder de produção de realidade, de seus efeitos de subjetivação e socialização durante os processos de identificação e de diferenciação que seus imaginários circulantes carregam.

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9 Mitchell (2017) propõe o gesto de compreender o que querem as imagens, ao invés de tentar interpretá-las com metodologias formais que enquadram os produtos em categorias generalizantes que muitas vezes ignoram suas especificidades. É uma forma de olhar para a materialidade em sua instabilidade, e o reconhecimento de que, ainda que o pesquisador utilize uma metodologia híbrida que abranja olhares diversos, o gesto de definir previamente o caminho da pesquisa pressupondo a onisciência dos caminhos para os quais o objeto poderá seguir é que tem que ser revisto. O composto imagem-texto foge, escapa aos paradigmas pré-formulados, pois é no encontro com a obra que acontece a afetação, e este encontro é anterior à interpretação. Trata-se de adicionar às questões interpretativas e retóricas a análise dos desejos das imagens, detalhar o processo pelo qual a vida dos objetos se gera na experiência humana, em um ato de subjetivação e personificação das imagens como seres animados que são, inevitavelmente. (MITCHELL, 2017, p.2). A perspectiva de dar vida aos objetos visuais pode causar uma certa incredulidade ao ser associada a fetichismos, superstições e idolatria, ou a criticismos que expõem as imagens como agentes de manipulação ideológica. Entretanto, não podemos mais evitar o questionamento sobre a vontade das imagens, uma vez que elas nos exibem corpos, falam literalmente e figurativamente, devolvem a mirada, “uma cara que se encara al espectador” (MITCHELL, 2017, p. 56). Faz parte do exercício compreender o que as imagens falam por si mesmas, interagir com os sentimentos das imagens para, a partir de percepções individuais, traçar um caminho para a produção de conhecimento. Trata-se de exercitar um giro na pergunta, ao invés de desvendar “o que fazem as imagens”, tentar compreender “o que que querem as imagens”.

3. METODOLOGIA

Seguiremos as sugestões de Mitchell sobre o posicionamento frente aos videoclipes para partir do composto imagem-texto, da análise das pictures, e a partir delas identificarmos a presença ou não presença de efeitos performativos dos atos de ver e de mostrar dos sujeitos que permeiam a cultura Funk Ostentação. O desafio então é criar uma metodologia capaz de permitir a análise de como os elementos da

picture tecem a superfície do videoclipe. Conforme Mitchell explica, não será possível

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10 vindos da estética ou da cultura, do sensório ou do discursivo, se transforma no encontro com o outro, e depende das contribuições do outro para sua existência enquanto parte integrante de um composto. Mitchell usa a expressão imagem/texto (usando a barra) para se referir às infinitas formas como as partes do composto podem se relacionar. Rezende (2018) explica que “a barra não significa necessariamente uma tensão entre os termos, mas nos direciona para as diferentes relações possíveis entre visível e legível”. Para Mitchell, a visualidade se forma nestas zonas de atrito, onde as rachaduras deixam fissuras, e ao olhar por elas a experiência se revela, a imagem por trás da fissura desperta curiosidades e sensibilidades, questionamentos e afetos. Mitchell ilustra esta lacuna como “uma abertura na representação, um lugar onde a história poderia juntar-se pelas gretas” (MITCHELL, 2009, p. 96). Ao propor a análise do composto imagem/texto, sugere uma atenção cuidadosa para os percursos dos fios que tecem a superfície da picture, para os encontros e cruzamentos que visibilizam semelhanças ou contradições; o que fica visível na materialidade, ou invisível, ou visível mas não visto por alguém, ou visível e visto mas não notado, “também sobre a surdez e a linguagem visível do gesto; também chama atenção ao tátil, ao auditivo, ao fenômeno da sinestesia” (MITCHELL, 2006, p. 7). Mitchell propõe um passo em relação ao gesto, ele sugere agora um lugar para olhar, uma abertura por onde pode ser possível retirar uma amostra do composto, não aquela amostra de um ramo amputado, deslocado de seu caule e de suas folhas, mas uma amostra viva dos fios em cruzamento, em relação, em processo de germinação.

A análise funcional do estilo de David Bordwell foi trazida por dar conta do lugar de análise proposto por Mitchell, a imagem/texto, compreendendo que o estilo é uma estrutura capaz de reunir e comunicar significados através de imaginários compartilhados entre quem mostra e quem vê. Significa que pelo estilo é possível comunicar aspectos do real através de formas de expressões que extrapolam o significado literal de uma descrição e conseguem alcançar outros níveis de subjetividade. A busca é por compreender como as subjetividades podem ser comunicadas através do estilo, ou, como o estilo funciona como uma superfície que permite que os significados sejam comunicados e compreendidos por todos que estão ali sobre ela. Para Bordwell (2008, p.32), o estilo é a “textura tangível de um filme, a

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11 superfície perceptual que nós encontramos enquanto vemos e ouvimos, e esta superfície é o nosso ponto de partida na movimentação da trama, do tema e do sentimento – tudo o que importa para nós”.

O videoclipe conforma originalmente um gênero que assume a hibridez como qualidade, como a própria especificidade de sua forma. É constituído nos modos de arranjo técnico entre imagem e som que cumprem funções dentro do meio. Seguindo o gesto de Butler no meio televisivo e as considerações de Mitchell sobre as especificidades do meio, a metodologia construída para analisar os videoclipes irá explorar as funções específicas do estilo no videoclipe enquanto gênero, trazendo as funções propostas por Bordwell (2008) com o acréscimo daquelas propostas por Thiago Soares (2004, 2009). Mesmo trazendo como referência autores diferentes daqueles já trabalhados em análises nos estudos visuais, as semelhanças entre as abordagens permitem unir as funções identificadas pelos autores para o desenvolvimento da presente metodologia.

Dimensão Descritiva

Para a etapa da descrição, David Bordwell propõe uma engenharia invertida de todos os elementos utilizados na construção da materialidade, uma busca por descrever os passos dos diretores de arte e fotografia, os planos de câmera, as métricas pensadas na montagem dos planos, o ritmo narrativo de cada gênero que pautaram todas essas escolhas. Apesar deste tipo de análise quantitativa não ser suficiente para abranger os códigos sociais que regem o estilo das obras, Bordwell discorre sobre a necessidade da engenharia invertida dos textos da mídia, da des-construção do texto e, segundo o autor Jeremy Butler (2010), este exercício se mostra cada vez mais útil na medida que percebemos que os textos midiáticos são meios construídos “até as menores minúcias de sua mise-enscène”. Bordwell (2008, p.5) considera as técnicas como componentes do estilo, que nele exercem funções e comunicam significados culturais através de questionamentos e indagações. Para o autor, “o que é considerado conteúdo só nos afeta pelo uso de técnicas cinematográficas consagradas”.

Entretanto, segundo Butler (2010) e Bordwell (2008), a descrição não é apenas uma observação das técnicas e procedimentos trabalhados em cada plano segundo

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12 tomadas individuais, pois um sistema de signos é governado por regras e convenções compartilhadas entre os membros de uma cultura. Portanto, é necessário que a observação localize as técnicas em contextos mais amplos. Na obra O Elogio à Desarmonia, Soares (2004) apresenta uma metodologia que analisa as funções que as escolhas fórmicas podem exercer na composição de videoclipes, e, assim como Bordwell, inicia o procedimento com uma desconstrução dos tecidos imagético e sonoro, uma descrição dos elementos que os compõem, como se ajustam, quais referências estão entranhadas em seus fios, para depois pensar nas funções que exercem determinadas escolhas. Ele defende que o videoclipe configura-se num gênero audiovisual na medida em que é possível identificar tipos relativamente estáveis de enunciados, onde transitam tramas de linguagens que encontram espaços de intersecção e formam um tecido estável. Exemplos são a alta frequência na edição; a imagética com alto poder de saturação cromática e a presença do artista interpretando a canção (SOARES, 2004, p.55). Um videoclipe é como uma colagem de imagens rápidas e instantâneas que se relacionam com o ritmo musical, ou seja, possuem uma duração específica. “As imagens parecem feitas para serem “cortadas”, editadas, montadas, pós-produzidas” (SOARES, 2004, p. 33). A montagem - as unidades constituintes do clipe, suas justaposições e conflitos de planos - é tomada como a diretriz da primeira reflexão de Soares (2004) sobre os videoclipes, é o elogio da desarmonia que nomeia o seu livro. Nesta reflexão, o autor diz que o choque entre um plano e outro é um produtor de significações tanto quanto cada plano em sua forma individual, e a montagem configura uma nova proposta de produção de significados através da ordenação da sequência de planos, da duração de cada um em relação ao outro.

Tabela 1 - Tabela Descritiva.

Plano Performance Ambiente Tempo Plano Letra Sonoridade Gênero Musical 1

Dimensão Analítica

Ao se pensar na justificativa de tais determinações, direciona-se para a segunda dimensão da análise: perceber o funcionamento do estilo. A interpretação é

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13 uma tentativa de descobrir quais são as funções que as escolhas estilísticas querem cumprir. Soares compreende que os modos de produção, realização e consumo do videoclipe precisam ser analisados como inerentes à obra em sua materialidade, e percebe que precisa construir normatizações interpretativas que consigam traçar as linhas de corte onde as peças serão partidas, mas de forma que as linhas ultrapassem limites formalistas/isolacionistas e depois possam ser reconectadas sem a perda dos seus fundamentos. Ao apresentar as normatizações interpretativas para o audiovisual, Soares se aproxima da teoria funcional do estilo defendendo que, além da desconstrução semântica e crítica, torna-se necessária uma análise do uso e do sentido de cada elemento na construção do estilo do videoclipe. Para desenvolver estas normatizações, ele estuda obras de autores como Andrew Goodwin, Vanoye, Goliot-Lété, Maingueneau e Barthes e conclui, assim como Jeremy Butler (2010), que a descrição das escolhas fórmicas e técnicas deve ser pensada de forma crítica e funcional, levando em consideração as especificidades do videoclipe observadas em sua trajetória de pesquisas sobre o gênero.

Para Bordwell, a abordagem funcional da forma fílmica é uma reunião de escolhas intencionais em prol do propósito do produto. As quatro funções do estilo já referenciadas por Bordwell no cinema são: Denotar; Expressar; Simbolizar;

Decorar. Nesta pesquisa, a metodologia de Thiago Soares (2009) irá contribuir com

a teoria do estilo de Bordwell por substituir/acrescentar algumas funções de forma a abranger aquelas que são específicas dos videoclipes enquanto meio. Em síntese, estes postulados nos remetem às seguintes funções: função promocional,

persuasiva, de convocar, de identificar e de encenar.

Para esta análise, a tabela descritiva da etapa anterior será a tabela de amostragem, e a partir dos registros sobre a obra transcritos em suas linhas e colunas, seguiremos analisando as relações funcionais entre um aspecto identificado e outro em interação, buscando analisar de que forma os encontros, similitudes ou rachaduras se colocam visíveis nas aberturas entre as partes do composto para cumprir determinadas funções estilísticas.

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4. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS ANÁLISES

O trabalho analisou três videoclipes produzidos e dirigidos por Kondzilla: Taça de Chandon, dos MC’s Guimé, Rodolfinho e Dedê, Mulher do Poder, da MC Pocahontas e Capital das Notas, do MC Menor MR, com o intuito de compreender o que as fissuras no composto imagem-texto podem nos revelar sobre as sensibilidades e socialidades dos jovens do Funk Ostentação. Nas análises emergiram questões controversas e problemáticas sobre a presença de aspectos hegemônicos e de dominação entrelaçados e hibridizados em aspectos autônomos e de empoderamento dos atores. Nas observações foram levantadas as potencialidades das ações destes jovens sobre as conformações do sensível da sociedade brasileira, o potencial político dos seus atos de ver.

Após a análise de estilo, as observações levantadas foram relacionadas à três questões que emergiram através das pictures: a) como são geradas as transformações tecnoperceptivas dos jovens da cultura visual, b) quais masculinidades dominantes são reproduzidas nos videoclipes, e c) como o consumo atravessa as obras e qual é a causa, o sonho ativador e engajador das ações dos jovens do Funk Ostentação. A análise está separada em três tópicos, cada um relacionado a uma temática que atravessa todos os em três videoclipes em conjunto. Ela localiza as evidências visibilizadas nas fissuras da superfície dentro de determinados campos culturais e teóricos, faz ver as matrizes sobre as quais os videoclipes estão ancorados. Nos quatro recortes utilizados na análise dos videoclipes emergiram questões complexas que não poderiam ter sido previstas em momentos anteriores à análise, anteriores ao encontro com a materialidade, ao mesmo tempo em que nos direcionam a problematizações localizadas fora da materialidade, ao levantamento de teorias sociais, culturais e políticas que questionam esta complexidade evidenciada na análise.

A consideração final discute o potencial transformador do movimento cultural Funk Ostentação e dos videoclipes produzidos a partir da causa levantada por ele. O movimento estampa, de forma subversiva e ousada, novos interesses de representação e perspectivas até então desconhecidas pelo saber comum. Antes do Funk Ostentação, a periferia havia “falado” pouco, pois apenas alguns agentes haviam

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15 conquistado espaço para expressar questões específicas do cotidiano das favelas urbanas, talvez aquelas mais urgentes em serem comunicadas. Entretanto, as sensibilidades dos moradores de periferias não são guiadas apenas pelos problemas e questões emergentes. Os videoclipes de Funk Ostentação carregam sensibilidades que ainda não estavam presentes no imaginário cultural hegemônico brasileiro, influenciado por práticas de não permissão e criminalização de expressões das diversidades, principalmente no caso dos povos negros e periféricos. Os agentes do Funk Ostentação configuram novas maneiras de ver, de fazer e de pensar o sensível, e os videoclipes produzidos por eles agem através da performatização de seus atos de ver.

REFERÊNCIAS

BORDWELL, David. Figures traced in light on cinematic staging. Berkeley: University of California Press, 2008.

BREA, José Luis. Los estudios visuales: por una epistemología política de la

visualidad. In: BREA, José Luis. (org.). Estudios Visuales: La epistemologia de la

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