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avançamos não tanto pelo aprendizado cumulativo e contínuo, mas por uma mistura de esquecimento e lembrança. Essa parece, em si mesma, uma razão boa

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Academic year: 2021

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• Introdução •

Reeditar um livro escrito há quase três décadas exige um a explicação. Se por acaso o autor ainda é vivo, recai sobre ele o trabalho de explicar.

A prim eira parte dessa tarefa é descobrir, passados todos esses anos, o que o livro ainda tem de atual e novo o suficiente para j ustificar apresentá-lo um a vez m ais aos leitores – a leitores diferentes, um a ou duas gerações m ais j ovens que aqueles que devem ter lido o exem plar na edição original. O segundo trabalho é oposto ao prim eiro, m as o com plem enta: ponderar o que o autor teria alterado no texto caso o estivesse escrevendo pela prim eira vez.

A prim eira tarefa não é fácil, sej a qual for o padrão, dada a velocidade desconcertante com que todas as ideias desaparecem e caem no esquecim ento antes de ter a chance de am adurecer e envelhecer de form a adequada em nossa era, com o diz George Steiner, de coisas e pensam entos calculados “para o im pacto m áxim o e a obsolescência instantânea”. Um a época em que, com o outro autor observou, a vida de um best-seller nas estantes das livrarias é algo entre o leite e o iogurte. À prim eira vista, este é um trabalho assustador, talvez im possível…

Mas quem sabe não se possa extrair algum consolo da suspeita, não de todo fantasiosa, de que, dada a velocidade com que os “tem as quentes” da m oda são substituídos e esquecidos, não se pode saber ao certo se as ideias antigas realm ente envelheceram , sobreviveram ao uso ou foram abandonadas por m otivo de obsolescência. Será que certos tem as deixaram de ser com entados por ter perdido a relevância, ou deixaram de ser relevantes porque as pessoas ficaram cansadas de falar a respeito deles? Sobre nós, cientistas sociais, Gordon Allport disse um a vez que j am ais resolvem os problem a algum , só nos entediam os com eles. Mas, desde então, se tornou m arca registrada de nossa sociedade com o um todo o fato de não m ais nos m overm os nem acreditarm os nos m over “para a frente”; nós nos deslocam os de lado, com frequência de trás para a frente, e novam ente para trás. Por sua vez, vivem os na era da reciclagem; nada parece m orrer de um a vez por todas, nada – nem a vida eterna – parece destinado a perm anecer para sem pre.

Assim , as ideias devem ser enterradas vivas – m uito antes de estarem “bem m ortas” –, e sua m orte aparente é apenas um artefato de seu desaparecim ento de nosso cam po visual. O ato do enterro, m ais que qualquer teste clínico, é que garante o atestado de óbito. Se resgatadas da am nésia coletiva em que foram destinadas a hibernar, elas podem – quem sabe? – ganhar m ais um tem po de vida (com certeza, não m uito longo). E não apenas porque foram esprem idas até secar em sua prim eira visita, m as porque, com o m anda a dinâm ica dos discursos, as ideias estim ulam o debate e o colocam em m ovim ento “por im pacto”, em bora esse efeito inicial dificilm ente sej a seguido de plena assim ilação. A princípio, não há lim ite para o núm ero de retornos; a cada vez o im pacto tem novo efeito – com o se o retorno fosse um a prim eira apresentação. É verdade que não se pode entrar no “m esm o” rio duas vezes, m as tam bém é verdade que “a m esm a” ideia não pode entrar duas vezes no rio dos pensam entos. Hoj e

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avançam os não tanto pelo aprendizado cum ulativo e contínuo, m as por um a m istura de esquecim ento e lem brança. Essa parece, em si m esm a, um a razão boa o suficiente para reeditar um livro – ainda m ais pelo fato de que ele não voltará sozinho. O texto foi escrito num diálogo ativo com outros que então se encontravam na linha de frente do debate intelectual, m as que hoj e tam bém acum ulam poeira nas estantes das bibliotecas. Recordar os problem as que enfrentaram e tentaram resolver j untos não será inoportuno para todos aqueles que estão im ersos e engaj ados nas preocupações atuais.

A segunda das duas tarefas é m ais sim ples, pelo m enos em aparência. Para o autor, tam bém é m ais gratificante. Exige algo que os autores dificilm ente têm tem po de fazer em seu pensar e escrever cotidianos: exam inar em retrospecto a estrada que percorreram – ou m elhor, organizar as pegadas esparsas para produzir um sim ulacro de estrada. Ao atender a essa exigência, eles têm a rara oportunidade de im aginar (descobrir? inventar?) um a progressão lógica naquilo que vivenciaram com o um a sucessão de problem as e tem as singulares, “um de cada vez” – trabalho em geral deixado aos estudantes encarregados de produzir dissertações sobre a obra dos autores. E, confrontando-se m ais um a vez com seus próprios pensam entos iniciais, podem colocar em relevo suas ideias atuais. Afinal, todas as identidades – incluindo as identidades das ideias – são feitas de diferenças e continuidades.

O obj etivo desta Introdução é tentar realizar essas duas tarefas.

Vam os antecipar a direção que a tentativa irá tom ar: quando lido trinta anos depois de ter sido escrito, o livro parece passar no teste da “verdade”. Tem desem penho um pouco inferior no teste de “som ente a verdade”. E fracassa terrivelm ente no teste de “nada m ais que a verdade”. Creio que a m aior parte do que nele há de errado se refere ao que falta – m as deveria estar presente, tal com o o vej o agora – em qualquer avaliação da cultura que se pretenda abrangente e correta. Se fosse escrever este livro outra vez, talvez elim inasse pouca coisa do texto antigo, m as m uito provavelm ente acrescentaria alguns tópicos, e com toda a certeza rem anej aria as ênfases. O restante desta “Introdução”, portanto, contém algum as revisões, m as seu principal foco é preencher os espaços em branco que o texto original deixou de form a inadvertida.

Mais um a observação se faz necessária, tendo em vista sobretudo o tem po de vida curto de nossa m em ória coletiva. Um livro sobre cultura escrito trinta anos atrás tinha de confrontar leitores m uito diferentes daqueles que estarão presentes em sua segunda encarnação. Pouco se podia fiar nas ideias arraigadas dos leitores naquela época, enquanto hoj e o m esm o texto pode contar com leitores experim entados na “problem ática da cultura”, com estruturas cognitivas básicas e conceitos essenciais firm em ente estabelecidos. Certas ideias que há trinta anos teriam de ser explicadas com m uito labor agora parecem evidentes, no lim ite da trivialidade.

Nesse sentido, o caso m ais evidente é o da própria noção de cultura: na década de 1960, na Grã-Bretanha, ela estava quase ausente do discurso público, em particular do discurso sociocientífico – e isso apesar dos esforços pioneiros de Matthew Arnold para inseri-la no vocabulário das classes letradas britânicas e da brava luta posterior por sua legitim idade, em preendida por Ray m ond William s e Stuart Hall. Adm ito desde logo que – por sorte da opinião culta britânica – é difícil acreditar hoj e que este era o estado de coisas apenas há trinta anos. Mas, algum tem po depois de vir a público a prim eira edição deste livro, passei pela agonia de explicar aos ilustres intelectuais m em bros da com issão de planej am ento da universidade o que significa a palavra “cultura”. A ocasião para isso foi a proposta de instituir um Centro de Estudos Culturais

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interdepartam ental – então um espécim e extraordinariam ente raro nas Ilhas Britânicas. Da m esm a form a, a ideia de estrutura com o fenôm eno diacrônico, e não sincrônico, não era fácil de transm itir, tam pouco de ser apreendida e digerida pelos potenciais leitores, antes que a “estruturação” de Anthony Giddens atingisse o status canônico no prim eiro ano dos cursos de sociologia.

Hoj e, aquilo que no passado parecia um a ousada aventura intelectual se transform ou na repetição irrefletida da rotina. É da natureza das ideias que elas nasçam com o heresias perturbadoras e m orram com o ortodoxias aborrecidas. É necessário m uito poder de im aginação para fazer ressurgir (que dirá reviver) seu antigo e poderoso im pacto em ancipatório, instigador da reflexão: por exem plo, a agitação causada pela visão de cultura com o um a série infindável de perm utas, da autoria de Claude Lévi-Strauss. Afinal, a função de toda rotina é transform ar a reflexão, o exam e, a com provação, a vigilância e outros esforços árduos e dem orados em luxos sem os quais se pode passar.

Assim , som ando-se às duas tarefas antes m encionadas, cabe ao autor rem odelar algum as das ideias agora incorporadas à “rotina”, na esperança de restaurar, se possível, seu poder de corte. Ou, se preferirem , fazer ressurgir num a canção de ninar o seu passado de toque de alerta…

A cultura com o autoconsciência da sociedade m oderna

Em sintonia com a visão sociológica prevalecente três décadas atrás, para m im a cultura era um aspecto da realidade social – um dos m uitos “fatos sociais” que deviam ser adequadam ente apreendidos, descritos e representados. A principal preocupação do livro agora reeditado é com o fazer isso da m aneira apropriada. Eu pressupunha a existência de um fenôm eno obj etivo cham ado “cultura” que – em função do notório “retardo do conhecim ento” – talvez tenha sido descoberto com atraso, porém , um a vez descoberto, poderia ser em pregado com o ponto de referência obj etivo em relação ao qual tornava-se possível m edir e avaliar a propriedade de qualquer m odelo cognitivo. Quem sabe houve três diferentes discursos em que o m esm o term o teve seu significado alterado, causando certo grau de confusão sem ântica? Assim , era preciso distingui-los com cuidado, de m odo que o significado em que o term o “cultura” é usado em cada caso ficasse claro e livre de contam inação; m as a presença, o convívio e a interferência m útua dos três discursos m e pareciam então, em si m esm os, não problem áticos. Era outro “fato social”, e não um quebra-cabeça a exigir o esforço de um a escavação arqueológica ou necessitando ser “desconstruído”. Ainda não havia por perto Michel Foucault e Jacques Derrida para dar um a aj uda…

É um a espécie de paradoxo o fato de que a desconstrução do conceito de cultura tenha acabado por vir na onda da “culturalização” das ciências sociais. Originalm ente, na segunda m etade do século XVIII, a ideia de cultura foi cunhada para distinguir as realizações hum anas dos fatos “duros” da natureza. “Cultura” significava aquilo que os seres hum anos podem fazer; “natureza”, aquilo a que devem obedecer. Porém , a tendência geral do pensam ento social durante o século XIX, culm inando com Ém ile Durkheim e o conceito de “fatos sociais”, foi “naturalizar” a cultura: os fatos culturais podem ser produtos hum anos; contudo, um a vez

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produzidos, passam a confrontar seus antigos autores com toda a inflexível e indom ável obstinação da natureza – e os esforços dos pensadores sociais concentrados na tarefa de m ostrar que isso é assim e de explicar com o e por que são assim . Só na segunda m etade do século XX, de m odo gradual, porém contínuo, essa tendência com eçou a se inverter: havia chegado a era da “culturalização” da natureza.

Qual a razão de tal reviravolta? Pode-se apenas conj ecturar que, depois de um período dom inado pela busca frenética dos fundam entos sólidos e inabaláveis da ordem hum ana, consciente de sua fragilidade e carente de confiança, veio um tem po em que a espessa cam ada de artifícios hum anos tornou a natureza quase invisível – e suas fronteiras, entre elas as ainda intransponíveis, cada vez m ais distantes e exóticas. Os pilares da existência hum ana construídos pelo hom em foram plantados em profundidade suficiente para tornar redundante qualquer preocupação com outras e m elhores bases. Podia com eçar a era do contra-ataque: as arm as, a vontade e a autoconfiança agora estavam a postos. A “cultura” não precisava m ais m ascarar sua própria fragilidade hum ana e desculpar-se pela contingência de suas escolhas. A naturalização da cultura foi parte e parcela do m oderno desencantam ento do m undo. Sua desconstrução, que se seguiu à culturalização da natureza, tornou-se possível – talvez inevitável – com o reencantam ento pós-m oderno do m undo.

Reinhart Koselleck batizou o século XVIII de “a era das passagens da m ontanha” (“Sattelzeit”).1 O nom e é m erecido, j á que, antes do final daquele século, um abrupto divisor de águas filosófico foi negociado e deixado para trás, em vários pontos ao m esm o tem po. Para a história do pensam ento hum ano, as consequências desse evento não foram m enos sem inais do que o foram , para a história política, aquelas provocadas pela travessia do Rubicão por César. Em 1765, o conceito de “filosofia da história” apareceu no Essai sur les moeurs, de Voltaire, gerando um a leva de tratados de Geschichtephilosophische. Em 1719, Gottfried Müller com eçou a dar um curso de antropologia filosófica em que o suj eito cognitivo cartesiano se expandiu para o m odelo em tam anho natural do “hom em total”. E em 1750, Alexander Gottlieb Baum garten publicou seu livro Aesthetica, am pliando ainda m ais a ideia da “hum anidade” dos seres hum anos, ao adicionar às faculdades racionais as da sensibilidade e do im pulso criativo. Em sum a, em ergiu um a visão do “hom em ” que, nos duzentos anos seguintes, deveria servir de eixo em torno do qual iriam girar as im agens do m undo.

Aquela era um a nova visão, produto coletivo de um a nova filosofia – um a filosofia que via o m undo com o um a criação hum ana e um cam po de testes para as faculdades do hom em . Daí em diante, o universo deveria ser entendido basicam ente com o o am biente para atividades, escolhas, triunfos e equívocos hum anos. Num a tentativa de explicar o súbito aparecim ento de um a nova Weltanschauung, Odo Marquard cita Joachim Ritter: de repente, o futuro foi “desacoplado” do passado – com eçou a se desenvolver a percepção de que um futuro cuj o ponto de partida é a sociedade hum ana não guarda continuidade com o passado. O próprio Koselleck assinala a nova experiência de um a brecha entre realidade e expectativa. Não se poderia continuar a ser um a criatura do hábito, não se poderia m ais deduzir o estado de coisas futuro a partir de seus estágios presente e passado. Com o o ritm o da m udança se acelerava a cada ano, o m undo parecia cada vez m enos algo feito à sem elhança de Deus – ou sej a, cada vez m enos eterno, im penetrável e refratário. Em vez disso, assum iu um a form a cada vez m ais hum ana, tornando-se, aos poucos,

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algo feito “à im agem do hom em ” – m ultiform e, instável e instabilizante, caprichoso e cheio de surpresas.

Havia m ais que isso, porém : o ritm o acelerado da m udança revelava a tem poralidade de todos os arranj os m undanos, e a tem poralidade é um a característica da existência hum ana, não da divina. O que algum as gerações atrás teria sido um a criação divina, um veredicto contra o qual era im possível apelar em qualquer tribunal hum ano, agora, de form a problem ática, parecia consistir no traço característico das realizações hum anas – certas ou erradas, m as m ortais e revogáveis. Se a im pressão não estava equivocada, então o m undo e a form a com o as pessoas nele viviam constituíam um a tarefa, e não algo dado e inalterável. Dependendo de com o as pessoas a encarassem , era possível realizar essa tarefa de m aneira m ais ou m enos satisfatória. Ela podia ser feita com desleixo, m as tam bém ser bem -executada, para benefício da felicidade, da segurança e da expressividade da existência hum ana. Para garantir o sucesso e evitar o fracasso, era necessário com eçar com um cuidadoso inventário dos recursos hum anos: o que as pessoas podem fazer, se levam até o lim ite suas faculdades cognitivas, sua capacidade lógica e sua determ inação.

Essa era, em resum o, a prem issa da nova Weltanschauung, do hum anism o m oderno, sobre o qual John Carroll escreveu:

Ele tentou substituir Deus pelo hom em , colocar o hom em no centro do Universo. … Sua am bição era encontrar um a ordem hum ana sobre a Terra, na qual prevalecessem a liberdade e a felicidade, sem apoios transcendentais ou sobrenaturais – um a ordem inteiram ente hum ana. … Mas, para que o indivíduo se tornasse o ponto focal do Universo, ele deveria ter um lugar para se apoiar que não se m ovesse sob seus pés. O hum anism o precisava construir um a rocha. Tinha de criar do nada algo tão forte quanto a fé do Novo Testam ento, capaz de m over m ontanhas.2

Em Legisladores e intérpretes, procurei as raízes com uns e a ressonância m útua, a “afinidade eletiva”, entre o novo desafio que confrontava os adm inistradores da vida social – a tarefa de substituir a desintegrada ordem divina ou natural das coisas por um a ordem feita pelo hom em , artificial, de base legislativa – e a preocupação dos filósofos em substituir a revelação pela ve r da de de base racional. As duas preocupações em essência m odernas e intim am ente interligadas convergiam num a terceira – a pragm ática da construção da ordem , envolvendo a tecnologia do controle e da educação com portam entais: a técnica da m oldagem da m ente e da vontade. Esses três interesses então recém -chegados, em bora penetrantes e irresistíveis, deveriam j untar-se e fundir-se na ideia de “cultura” – esta últim a considerada, ao lado da Geschichtsphilosophie, da antropologia e da estética, um dos m arcos da “passagem na m ontanha” do século XVIII, talvez o m ais notável entre eles.

O que levou o pensam ento do século XVII à passagem na m ontanha foi a dúvida corrosiva quanto à fidedignidade das garantias divinas da condição hum ana. Veredictos inegociáveis do poder suprem o de repente pareciam sedim entos, por vezes da sabedoria hum ana, por vezes da ignorância ou da estupidez. O destino inapelável, predeterm inado no instante da Criação, com eçou a parecer m ais um m om ento na história – um a realização hum ana e um desafio à

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inteligência e à vontade do hom em ; não um a questão de abrir e fechar, m as um capítulo inacabado esperando ser concluído pelos personagens da tram a. Em outras palavras, por sob os m eandros do destino hum ano fora vislum brada a autodeterm inação.

A liberdade de autodeterm inação é um a bênção – e um a m aldição. Estim ulante para o ousado e diligente, atem orizante para o fraco – de espírito, de braços ou de vontade. Mas não é só isso. A liberdade é um a relação social: para que alguns sej am livres a fim de atingir seus obj etivos, outros devem ser não livres no que se refere a opor resistência aos princípios. A liberdade de um a pessoa pode ser desconcertante, j á que está im pregnada do risco de erro. Mas a liberdade dos outros parece, à prim eira vista, um obstáculo perigoso à liberdade de ação de um a pessoa. Ainda que a liberdade de alguém possa ser contem plada com o um a bênção indubitável, a perspectiva de liberdade ilim itada para todos os outros poucas vezes é agradável. Mesm o para os m ais ardentes entusiastas da autodeterm inação hum ana, a noção de “restrições necessárias” dificilm ente foi algo estranho.

Em sua m anifestação m ais radical, incorporada na ideia de em ancipação e transcendência, a apoteose da liberdade hum ana era um a regra com plem entada pela preocupação com os lim ites que precisavam ser im postos às ações dos protagonistas. O que era orgulhosam ente apresentado com o um exercício do livrearbítrio, no caso de um a pessoa, tendia a ser considerado esquisitice, irresponsabilidade, preconceito ou apenas um capricho m al-intencionado quando percebido com o possibilidade universalm ente disponível. Os arautos do duplo padrão nem sem pre ousaram ir tão longe quanto Nietzsche, supostam ente protofascista (“a grande m aioria dos hom ens não tem direito à existência, m as são um a desgraça para os hom ens superiores”3), ou quanto o socialista H.G. Wells (“os enxam es de pessoas pretas, e pardas, e brancas suj as, e am arelas” que não atingem os elevados critérios estabelecidos para a autoafirm ação hum ana “devem ir em bora”4). Mas ninguém teria dúvida quanto à necessidade de am arrar as m ãos daqueles em quem não se pode confiar.

A ideia de cultura que entrou em uso perto do fim do século XVIII refletia de m odo fiel essa am bivalência de atitudes. O caráter de dois gum es – sim ultaneam ente “perm itindo” e “restringindo” – da cultura, sobre o qual m uito se tem escrito nos últim os anos, na verdade estava presente desde o com eço. Num m odelo “universalm ente hum ano” de cultura, duas características m uito diferentes do hom em se fundiram num a condição conj unta; assim , desde o início, houve um paradoxo endêm ico a essa noção.

O conceito de cultura foi cunhado para distinguir e colocar em foco um a área crescente da condição hum ana destinada a ser “subdeterm inada”, ou algo que não podia ser plenam ente determ inado sem a m ediação das escolhas hum anas: um a área que, por essa razão, abriu espaço para a liberdade e a autoafirm ação. Mas o conceito devia significar, a um só tem po, o m ecanism o que perm itia o em prego dessa m esm a liberdade para lim itar o escopo, cercar escolhas potencialm ente infinitas num padrão finito, com preensível e adm inistrável. A ideia de “cultura” serviu para reconciliar toda um a série de oposições enervantes pela sua incom patibilidade ostensiva: entre liberdade e necessidade, entre voluntário e im posto, teleológico e causal, escolhido e determ inado, aleatório e padronizado, contingente e obediente à lei, criativo e rotineiro, inovador e repetitivo – em sum a, entre a autoafirm ação e a regulação norm ativa. O conceito de cultura foi planej ado para responder às preocupações e ansiedades da “era da

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passagem na m ontanha” – e a resposta se m ostrou tão am bígua quanto eram am bivalentes as aflições nascidas dessas ansiedades.

Autores que tiveram a cultura com o tem a fizeram um esforço honesto para elim inar a am biguidade. Sem sucesso, porém , j á que a ideia de cultura com o “determ inação autodeterm inada” deve seu atrativo intelectual exatam ente à ressonância de sua am bivalência interna com as am bivalências endêm icas da condição m oderna. Isso não faz m uito sentido, a m enos que se tente “fundam entar” a liberdade e a falta dela. A esse respeito, ela tende a com partilhar a qualidade de “inconclusivibilidade” com o pharmacon (suplem ento) de Derrida, ao m esm o tem po veneno e cura; ou com o hymen, sim ultaneam ente a virgindade e sua perda.

O discurso da cultura tornou-se fam oso por fundir tem as e perspectivas que se aj ustam com dificuldade num a narrativa coesa e não contraditória. O volum e de “anom alias” e incongruências lógicas teria há m uito feito explodir o m ais resistente dos “paradigm as” kuhnianos. É difícil conceber um discurso que pudesse ilustrar m elhor a observação de Foucault sobre a capacidade das form ações discursivas de gerar proposições m utuam ente contraditórias sem se desintegrar.

Trinta anos atrás, tentei desem aranhar as incoerências evidentes nos usos de “cultura” separando três contextos discursivos distintos em que o conceito se enredava. Nessa tentativa, parti do pressuposto de que as incoerências em questão eram em princípio corrigíveis. Fui guiado pela crença de que elas haviam surgido de falhas sobretudo analíticas, e pela esperança de que, com o devido cuidado, a confusão de categorias distintas ocultas por trás de um só term o poderia ser evitada e prevenida. Ainda acho que m anter a distinção entre esses três conceitos que oferecem três significados correlatos, porém diferentes, para a ideia de cultura continua a ser condição básica para qualquer tentativa de esclarecer o tem a da discordância. Contudo, não creio m ais que essa operação acabe por elim inar a am bivalência que o discurso da cultura necessariam ente encerra. Mais im portante ainda: não acho que a elim inação de tal am bivalência, se ela for ao m enos concebível, seria um a coisa boa, reforçando, por assim dizer, a utilidade cognitiva do term o. Acim a de tudo, não aceito m ais que a am bivalência que de fato im porta – a que prim eiro m e estim ulou a dissecar o com plexo significado de cultura, m as não foi afetada pela operação e continuou a ser um alvo fugidio – tenha sido o efeito acidental de um a negligência ou de um erro m etodológicos. Creio, pelo contrário, que a am bivalência inerente à ideia de cultura, a qual refletia fielm ente a am biguidade da condição histórica que ela pretendia captar e descrever, era o que tornava essa ideia um instrum ento de percepção e reflexão tão proveitoso e persistente.

A am biguidade que im porta, a am bivalência produtora de sentido, o alicerce genuíno sobre o qual se assenta a utilidade cognitiva de se conceber o hábitat hum ano com o o “m undo da cultura”, é entre “criatividade” e “regulação norm ativa”. As duas ideias não poderiam ser m ais distintas, m as am bas estão presentes – e devem continuar – na ideia com pósita de “cultura”, que significa tanto inventar quanto preservar; descontinuidade e prosseguim ento; novidade e tradição; rotina e quebra de padrões; seguir as norm as e transcendê-las; o ím par e o regular; a m udança e a m onotonia da reprodução; o inesperado e o previsível.

A am bivalência central do conceito de “cultura” reflete a am biguidade da ideia de construção da ordem , esse ponto focal de toda a existência m oderna. A ordem construída pelo hom em é inim aginável sem a liberdade hum ana de escolher, a capacidade hum ana de se erguer acim a da

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realidade pela im aginação, de suportar e devolver suas pressões. Inseparável, contudo, da ideia de um a ordem construída pelo hom em está o postulado de que essa liberdade deve afinal resultar no estabelecim ento de um a realidade a que não se possa resistir – na noção de que a liberdade deverá ser em pregada a serviço de sua própria anulação.

Essa contradição lógica da ideia de construção da ordem é, por sua vez, reflexo da genuína contradição social constituída pela prática dessa construção.

“Ordem ” é o oposto de aleatoriedade, significa o estreitam ento do leque de possibilidades. Um a sequência tem poral será “ordenada”, e não aleatória, à m edida que nem tudo possa acontecer, ou pelo m enos que nem tudo tenha a m esm a possibilidade de acontecer. “Construir a ordem ” significa, em outras palavras, m anipular as probabilidades dos eventos. Se o que se deve ordenar é um conj unto de seres hum anos, a tarefa consiste em increm entar a probabilidade de certos padrões de com portam ento, ao m esm o tem po que se restringe, ou se elim ina totalm ente, a possibilidade de outros tipos de conduta. Essa tarefa envolve dois requisitos: prim eiro, deve-se proj etar um a distribuição ótim a das probabilidades; segundo, deve-se garantir a obediência às preferências proj etadas. O prim eiro requisito pressupõe a liberdade de escolha; o segundo significa sua lim itação, ou m esm o sua elim inação total.

Os dois requisitos foram proj etados sobre a im agem de cultura. A genuína oposição entre as condições de legislar e ser legislado, adm inistrar e ser adm inistrado, estabelecer regras e segui-las (sedim entada em divisões sociais igualm ente genuínas de papéis e potenciais para a ação) tinha de ser subsum ida, resolvida, superada e obliterada num único conceito: um proj eto incapaz de ser concluído com sucesso.

A ideia de cultura foi um a invenção histórica instigada pelo im pulso de assim ilar, do ponto de vista intelectual, um a experiência inegavelm ente histórica. E, no entanto, a ideia em si não podia apreender essa experiência de outra m aneira senão em term os supra-históricos, da condição hum ana com o tal. As com plexidades reveladas no curso do confronto de um a tarefa historicam ente determ inada de construção da ordem (nenhum a determ inação se im põe, com o assinalou Gadam er, a m enos que sej a reconhecida com o tal) foram elevadas à categoria de paradoxos existenciais da hum anidade, por m eio da ideia de cultura com o propriedade universal de todas as form as hum anas de vida.

Com o nos lem bra Paul Ricoeur, “paradoxo” com partilha com “antinom ia” a característica da insolubilidade: em am bos os casos, “duas proposições contrárias resistem com igual firm eza à refutação e, assim , só podem ser aceitas ou rej eitadas em conj unto”. Mas paradoxo difere de antinom ia porque, neste caso, as duas teses em questão se ancoram no m esm o “universo discursivo”. Nesse sentido, pode-se falar da paradoxicalidade incurável da ideia de cultura form ada no lim iar da era m oderna, em bora proj etada sobre a condição hum ana de todas as épocas, j á que ideias inconciliáveis assim iladas nesse conceito aparecem a partir da m esm a experiência histórica.

O paradoxo que surge no universo do discurso cultural é entre autonomia e vulnerabilidade – ou, com o prefere Ricoeur, fragilidade. O ser hum ano autônom o só pode ser frágil. Não é possível haver autonom ia sem fragilidade (ou sej a, sem a ausência de um a form ação sólida, sem subdeterm inação e contingência). A “autonom ia é um a característica do ser frágil, vulnerável”. Observem os que o íntim o vínculo entre autonom ia e fragilidade só se torna um “paradoxo” quando concebido com o um problem a da filosofia, que tende, por sua natureza, a procurar

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Eindeutigkeit (não am biguidade), lógica, coerência e clareza num m undo que não tem qualquer dessas características, e a tratar toda am bivalência com o um desafio à razão. Quando visto com o um problem a filosófico, o parentesco entre autonom ia e vulnerabilidade apresenta um problem a exasperante: as figuras da vulnerabilidade e da fragilidade

são portadoras de m arcas particulares, adequadas à nossa m odernidade, que dificultam o discurso filosófico, condenando-o a m isturar considerações da condição m oderna e até extrem am ente contem porânea com características que podem ser tratadas, quando não com o universais, ao m enos com o de longa ou m esm o m uito longa duração.5

Podem os acrescentar que o que torna particularm ente pouco prom issor o tratam ento filosófico dispensado ao tem a da autonom ia/fragilidade é sua recusa a levar a sério a história (com o a causa da “condição hum ana”, e não com o o caso que a exem plifica); recusa que traz em seu interior a tendência a encobrir contradições sociológicas que se refletem em paradoxos lógicos. Falando do ponto de vista sociológico, o par autonom ia/fragilidade reflete a polarização de capacidade e incapacidade, desenvoltura e falta de expediente, poder e falta de poder de autoafirm ação. Essencialm ente m oderna é a condição em que o lugar entre os dois polos que assinalam o continuum ao longo do qual todos os indivíduos hum anos são posicionados nunca é plenam ente “estabelecido”, estando sem pre suj eito a negociação e luta. É destino dos indivíduos m odernos – livres e, portanto, subdeterm inados –, subconstituídos e assim destinados à autoconstituição, oscilar entre os extrem os da força e da falta de poder, e assim perceber sua liberdade com o um a “bênção dúbia”, um a m odalidade saturada de am bivalência.

Quando traduzida com o problem a filosófico, a am bivalência real da vida se torna um paradoxo lógico. Não há m ais a questão de enfrentar a am bivalência que estrutura o fluxo da vida real. Em vez disso, há o problem a de refutar um paradoxo que ofende a lógica. Com o diz Ricoeur:

Inúm eros pensadores contem porâneos, em particular cientistas políticos, veem a era da dem ocracia com o algo que teve início com a perda de garantias transcendentais, que deixou para arranj os contratuais e procedim entais a tarefa de preencher o “vácuo fundam ental”. … [Entretanto, eles] não podem evitar situar-se, em certo sentido, após os alicerces, após um big bang m oral – e assum indo o fenôm eno da autoridade com seus três m em bros que são a antecedência, a superioridade e a externalidade.6

O im pulso dos filósofos para abrandar no pensam ento a contraditoriedade da vida é poderoso e tende a j am ais perder m uito de sua potência. As contradições repercutem com o paradoxos: espinhos dolorosos na carne da filosofia – esse proj eto hercúleo de reconstruir o m undo confuso da experiência hum ana segundo o padrão de elegância e harm onia encontrado apenas na serena regularidade do pensam ento.

O conceito de cultura com porta todas as m arcas desse im pulso filosófico. Incorpora a visão da m oderna condição hum ana j á reciclada em paradoxo lógico. Seu obj etivo é superar a oposição entre autonom ia e vulnerabilidade, concebidas com o proposições – enquanto encobre a

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contradição da “vida real” entre o autônom o e o vulnerável: entre a tarefa da autoconstituição e o fato de ser constituído.

Com o o esforço de resolver o paradoxo não produzisse resultados convincentes, não surpreende que tenha nascido outra tendência para separar as duas proposições desconfortavelm ente enredadas – esquecer ou colocar em segundo plano a origem com um e a com unalidade do destino, elevar o insolúvel paradoxo de duas qualidades incom patíveis brotando das m esm as raízes ao status de antinomia entre duas forças m utuam ente estranhas e não relacionadas. É um a guerra travada entre exércitos distintos, e, portanto, um a guerra capaz, em princípio, de ser ganha ou perdida, de term inar com a derrota ou o desgaste final de um dos antagonistas. Ideias que não podem ser facilm ente com binadas num só conceito tendem a exercer um a pressão centrífuga, e cedo ou tarde explodem um a totalidade que é frágil.

Não adm ira que dois discursos diferentes e não facilm ente conciliáveis se tenham ram ificado a partir de um tronco com um , afastando-se cada vez m ais. Em sum a: um discurso gerou a ideia de cultura com o atividade do espírito que vaga livrem ente, o lócus da criatividade, da invenção, da autocrítica e da autotranscendência; o outro apresentou a cultura com o instrum ento da rotinização e da continuidade – um a serva da ordem social.

O produto do prim eiro discurso foi a noção de cultura com o capacidade de resistir à norm a e de se elevar acim a do com um – poïesis, arte, criação ab nihilo à sem elhança de Deus. Significava aquilo que, presum ivelm ente, distinguia os espíritos m ais ousados, m enos subm issos e conform istas: irreverência em relação à tradição, coragem de rom per horizontes bem -delineados, ultrapassar fronteiras bem -guardadas e revelar novas trilhas. Assim entendida, era possível possuir ou não a cultura; ela era propriedade de um a m inoria, e assim estava destinada a continuar. Para o resto da hum anidade, ela vinha, na m elhor das hipóteses, sob a form a de um presente: sedim entava “obras de arte”, obj etos tangíveis que podiam ser adquiridos ou, pelo m enos, com preendidos para ser apreciados por outros seres, não criativos. Esforços para aprender com o estim ar os produtos da alta cultura não tornariam esses seres criativos – eles continuariam , tal com o antes, recipientes m ais ou m enos passivos (espectadores, ouvintes, leitores). Mas, ao ganhar de form a oblíqua um a com preensão do m undo arcano da alta cultura, os m em bros da m aioria não criativa se tornariam , não obstante, “pessoas m elhores” – passando por um processo de elevação, intensificação e enobrecim ento espirituais.

O produto do segundo discurso foi a noção de cultura form ada e aplicada na antropologia ortodoxa. Nela, “cultura” queria dizer regularidade e padrão – com a liberdade classificada sob a rubrica de “desvio” e “rom pim ento da norm a”. Cultura era um agregado ou, m elhor ainda, um sistem a coerente de pressões apoiadas por sanções, valores e norm as interiorizados, e hábitos que asseguravam a repetitividade (e portanto a previsibilidade) da conduta no plano individual e a m onotonia da reprodução, da continuidade no decorrer do tem po, da “preservação da tradição”, da mêmeté, de Ricoeur, no plano da coletividade. “Cultura”, nesse sentido, queria dizer, em outras palavras, “preencher o vazio” deixado pelo desaparecim ento da ordem preordenada (sej a com o experiência factual, sej a com o artifício explanatório). Ela transm itia um a im agem de escolhas voláteis, indeterm inadas, solidificando-se em fundações. Im plicava a “naturalização” da ordem artificial, construída pelo hom em . Contava a história do m odo com o um a espécie destinada à liberdade usava-a para invocar necessidades não m enos poderosas e resistentes que as da “natureza” cega, desprovida de propósito. A narrativa antropológica ortodoxa da “cultura” surgiu,

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no período inicial da era m oderna, caracterizado por um “pânico à ordem ”, ao m esm o tem po com o teoria da coerência social e um apólogo.

As duas noções de cultura estavam em total oposição. Um a negava o que a outra proclam ava; um a se concentrava nos aspectos da realidade hum ana que a outra apresentava com o im possíveis ou, na m elhor das hipóteses, com o anorm alidades. A “cultura artística” explicava por que os m eios e m étodos hum anos não perm anecem ; a cultura da antropologia ortodoxa, pelo contrário, explicava por que eles são duradouros, obstinados e trem endam ente difíceis de m udar. A prim eira era a história da liberdade hum ana, da aleatoriedade e contingência de todas as form as de vida produzidas pelo hom em ; a segunda atribuía à liberdade e à contingência papel sem elhante ao dos m itos etiológicos, concentrando-se, em vez disso, nas m aneiras pelas quais seu poder de destruição da ordem é esvaziado e sem consequências.

Foi a segunda história que prevaleceu nas ciências sociais por m ais ou m enos um século. Ela alcançou sua versão m ais am pla (com o seria de se esperar, exatam ente quando estava para entrar em colapso e perder a autoridade) no m onum ental sistem a teórico de Talcott Parsons, em que a cultura ganhou o papel de fator “desaleatorizante”.

Parsons reescreveu a história da ciência social com o um a sucessão de tentativas fracassadas de responder à pergunta hobbesiana: com o agentes hum anos voluntários, dotados de livre-arbítrio e buscando seus obj etivos aparentem ente individuais e livrem ente escolhidos, não obstante se com portam de m aneira notavelm ente uniform e e regular, de m odo que sua conduta “siga um padrão”? Na busca de um a resposta adequada a essa pergunta perturbadora, afirm ou Parsons, a cultura é cham ada a desem penhar o papel decisivo de m eio que garante o “aj uste” entre sistem as “sociais” e de “personalidade”. “Sem a cultura, nem as personalidades hum anas nem nossos sistem as sociais seriam possíveis” – eles são possíveis apenas em coordenação m útua, e a cultura é precisam ente o sistem a de ideias ou crenças, de sím bolos expressivos e orientações de valor, que garante a perpetuidade dessa coordenação.

As seleções [de orientações de valor] são, evidentem ente, sem pre ações de indivíduos, m as elas não podem ser interindividualm ente aleatórias num sistem a social. Com efeito, um dos m ais im portantes im perativos funcionais da m anutenção dos sistem as sociais é que as orientações de valor de diferentes atores no m esm o sistem a social devem ser integradas, em algum a m edida, num sistem a comum. … O com partilham ento de orientações de valor é especialm ente crucial. … A regulação de todos esses processos de alocação e o desem penho das funções que m antêm o sistem a ou subsistem a em funcionam ento de m aneira suficientem ente integrada são impossíveis sem um sistem a de definição de papéis e sanções para a conform idade ou o desvio.7

“Não pode ser”, “deve ser”, “é im possível”. Não fosse pela função coordenadora desem penhada por valores, preceitos e norm as atribuídas, todos com partilhados e consensualm ente aceitos (isto é, pela cultura), não se pode im aginar qualquer tipo de vida ordenada (ou sej a, nenhum sistem a durável, capaz de se equilibrar e perpetuar, assim com o de m anter sua identidade). A cultura é o posto de abastecim ento do sistem a social; ao penetrar nos “sistem as de personalidade”, no curso dos esforços de m anutenção de padrões (ou sej a, sendo

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“internalizada” no processo de “socialização”), ela garante a “identidade consigo m esm o” do sistem a ao longo do tem po – “m antém a sociedade funcionando” em sua form a distintam ente reconhecível.

A cultura de Parsons, em outras palavras, é o que torna o afastam ento de um padrão estabelecido algo im possível, ou pelo m enos altam ente im provável. A cultura é um fator im obilizante, “estabilizador”. Ela estabiliza tão bem que, a m enos que ocorram “disfunções”, toda m udança de padrão é inacreditável, e a ocorrência concreta de algum a m udança é um quebra-cabeça que não pode ser resolvido utilizando-se o arcabouço da m esm a teoria que trata da inércia do sistem a. Na descrição idealtípica da cultura em term os de “deves” e “só podes”, não havia lugar para a alteração de padrões consagrados. Explicar a m udança era o evidente calcanhar de aquiles da versão parsoniana (e a m ais definitiva) da visão ortodoxa de cultura. Mas foi ela que colocou em relevo o que fora a fraqueza essencial da abordagem antropológico-cultural da época.

Essa fraqueza acabou elim inando toda esperança de escapar ao paradoxo da cultura que divide a m oeda ao m eio e segura separadam ente cada um a das faces. O atual estado de teorização da cultura reflete a nova determ inação (ou acordo resignado) de enfrentar o paradoxo em toda sua com plexidade, em toda a am bivalência de habilitar/desabilitar, de liberdade/restrição.

Tal com o ocorreu com tantas ideias “novas” em teoria social, foi Georg Sim m el quem – m uito antes da tentativa de Parsons, abortada e autodestrutiva, de superar o paradoxo reduzindo a im agem da cultura apenas a um a de suas faces inseparáveis – anteviu a inutilidade dessas tentativas; ele tam bém previu a necessidade de um a teorização da cultura que pudesse abarcar a am bivalência endêm ica do m odo existencial da cultura sem tentar negá-la nem reduzi-la a um sim ples erro de m étodo.

Sim m el preferiu falar da tragédia – e não do paradoxo – da cultura. A seu ver, o sím ile m ais adequado para lidar com os m istérios da cultura deveria ser extraído do universo do dram a grego e não do em aranhado lógico. De fato, no m odo de existência hum ano, duas forças form idáveis se opõem num contraste radical: “A vida subj etiva, que é agitada, m as tem poralm ente finita, e seus conteúdos, que, um a vez criados, são estacionários, m as de validade atem poral. … A cultura vem a ser criada pelo encontro dos dois elem entos, nenhum dos quais a contém por si m esm o.”8 O que transform a o dram a em tragédia real é o fato de os dois adversários serem parentes próxim os. O “estacionário e de validade atem poral” descende do “agitado e finito” – nada m ais que a característica solidificada, “reificada”, dos trabalhos autoexpressivos do prim eiro; m as Sim m el confronta seu progenitor, à m aneira de Electra, com o um a força estranha, hostil. O im pulso em ancipatório gerou a repressão, a inquietação repercute na fixidez: o espírito rebelde e indom ável cria seus próprios grilhões.

Falam os de cultura sem pre que a vida produz certas form as pelas quais se expressa e se realiza – obras de arte, religiões, ciências, tecnologia, leis e um a infinidade de outras. Essas form as abrangem o fluxo da vida e lhe fornecem conteúdo e form a, liberdade e ordem . Mas em bora surj am a partir dos processos da vida, em função de sua singular constelação, elas não com partilham seu ritm o agitado. … Adquirem identidades estáveis, um a lógica e um a

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legitim idade próprias. Essa nova rigidez as coloca inevitavelm ente a certa distância da dinâm ica espiritual que as criou e que as torna independentes. …

Eis aí a principal razão pela qual a cultura tem um a história. … Cada form a cultural, um a vez criada, é consum ida a ritm os variáveis pela força da vida.

A batalha j am ais cessa – é o m odo de vida próprio de todas as culturas. A sedim entação das form as e sua erosão cam inham de par, em bora obedeçam a “ritm os variáveis”; e, assim , o equilíbrio entre os dois aspectos do processo cultural m uda de um a época para outra. Nossa própria época – a m oderna –, segundo Sim m el, é m arcada por um a particular agitação das forças da vida: “O im pulso básico da cultura contem porânea é um im pulso negativo, e é por isso que, ao contrário dos hom ens em todas as épocas anteriores, j á tem os vivido por algum tem po sem qualquer ideal com um , talvez m esm o sem quaisquer ideais.”9

Fica-se im aginando por que é assim . Talvez a m oderna busca da ordem – o salto coraj oso, autoconsciente, da tem poralidade à atem poralidade, da inquietação à fixidez – sej a autodestrutiva. Se nenhum a “form a estável” pode afirm ar ter algum alicerce além daquele que lhe foi dado pela força criativa hum ana, então é im provável que algum a form a, qualquer que sej a, venha a atingir o status de um “ideal” – no sentido de um “estado final”, ou “derradeiro obj etivo”, que, um a vez alcançado, interrom pesse toda crítica das form as e levasse a “vida subj etiva” e “seus conteúdos” a coexistir em paz. Quanto m ais autoconsciente, determ inado e desem baraçado é o im pulso de construção da ordem , m ais visível é a m arca de nascença da fragilidade que portam seus produtos; quanto m ais frágeis parecem ser os produtos da autoridade, m enos “atem poral” se m ostra sua fixidez.

A tragédia da cultura de Sim m el, com o todas as tragédias, carece de um final feliz. Com o todas as tragédias, ela conta a história de atores golpeados por forças que se tornam cada vez m ais selvagens quanto m ais eles tentam dom á-las, guiados por um destino que não controlam . Em term os m ais prosaicos, porém não m enos dram áticos, as ideias sem inais de Sim m el são agora pesquisadas por todo o cam po das ciências sociais – sobretudo no m odelo de sociedade de risco, de Ulrich Beck, e na ideia de incerteza fabricada, de Anthony Giddens. Ou, nesse sentido, na visão de Cornelius Castoriadis sobre a dem ocracia m oderna com o um “regim e de reflexividade e autolim itação”, com o um a sociedade que sabe, deve saber, que não tem significação garantida, que vive sobre o caos, que ela própria é o caos que precisa dar a si m esm o um a form a, form a esta que não pode ser estabelecida de um a vez por todas.10

Para resum ir: a cultura, com o tende a ser vista agora, é tanto um agente da desordem quanto um instrum ento da ordem ; um fator tanto de envelhecim ento e obsolescência quanto de atem poralidade. O trabalho da cultura não consiste tanto em sua autoperpetuação quanto em garantir as condições para futuras experim entações e m udanças. Ou m elhor, a cultura se “autoperpetua” na m edida em que não o padrão, m as o im pulso de m odificá-lo, de alterá-lo e substituí-lo por outro padrão continua viável e potente com o passar do tem po. O paradoxo da cultura pode ser assim reform ulado: o que quer que sirva para a preservação de um padrão tam bém enfraquece seu poder.

A busca da ordem torna toda ordem flexível e m enos que atem poral; a cultura nada pode produzir além da m udança constante, em bora só possa produzir m udança por m eio do esforço de

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ordenação. Foi a paixão pela ordem nascida do m edo do caos – assim com o a descoberta da cultura, a percepção de que o destino da ordem está em m ãos hum anas – que levou o m undo hum ano a um a era de ininterrupto e acelerado dinam ism o de form as e padrões. Na busca de ordem e Eindeutigkeit, a am bivalência da liberdade encontrou o m étodo patenteado de sua própria preservação.

Sistem a ou m atriz?

A im agem da cultura com o um a oficina em que o padrão estável de sociedade é consertado e m antido harm onizava-se com a percepção de todas as coisas culturais – valores, norm as com portam entais, artefatos – estruturadas num sistema.

Ao falar de um grupo de itens com o um “sistem a”, tem os em m ente que todos os itens estão “interconectados” – ou sej a, que o estado de cada um deles depende dos estados que todos os outros assum em . A gam a de variações possíveis no estado de cada item é, portanto, m antida dentro de certos lim ites im postos pela rede de dependências em que está envolvido. Enquanto esses lim ites forem observados, o sistem a estará “em equilíbrio”: m anterá a capacidade de retom ar sua form a adequada, preservar sua identidade, apesar dos distúrbios locais e tem porais, e im pedirá que toda e qualquer unidade atinj a um ponto sem retorno. Enquanto perm anecerem dentro do sistem a, todos os itens (unidades, ingredientes, variáveis) tenderão a se conservar unidos na rede de determ inação recíproca e a se m anter na linha, pois do contrário irão transgredir o lim ite perm itido e desequilibrar o todo. Ou, para reform ular a m esm a exigência de form a negativa, nenhum item que não sej a m antido na linha, ou que não possa ser colocado na linha quando necessário, será ou poderá ser parte do sistem a. Em sua essência, a sistem aticidade é a form a de subordinar a liberdade dos elem entos à “m anutenção de padrão” da totalidade.

Do que se afirm ou depreende-se que, para atender aos critérios da sistem aticidade, o conj unto de itens precisa ser circunscrito – deve ter fronteiras. Só se pode falar de sistem a quando sem pre for possível decidir que item lhe pertence e qual está fora dele. Sistem as não gostam de áreas indefinidas nem de terras de ninguém . É preciso vigiar as fronteiras, lim itar e sobretudo controlar os m ovim entos que nela se dão; a existência de passagens de fronteira sem controle equivale ao colapso do sistem a. Elem entos de fora podem ter sua entrada perm itida no sistem a sob certas condições: devem passar por um processo de adaptação ou acomodação – um a m odificação que os torne “aj ustados” ao sistem a, perm itindo que ele os assimile. A assim ilação é um a via de m ão única: é o sistem a que estabelece as regras de adm issão, proj eta os procedim entos de assim ilação e avalia os resultados da adaptação – e continua a ser um sistem a enquanto for capaz de fazê-lo. Para os recém -chegados, assim ilação significa transform ação, enquanto para o sistem a significa reafirm ação de sua identidade.

Em tese, houve um a m istura de experiências heterogêneas que se com binaram nessa im agem da cultura com o um a totalidade encerrada em si m esm a, à m aneira de um sistem a. Pode-se supor que esse casam ento com plicado da visão dos de dentro com a dos de fora era necessária para que se pudesse invocar a visão sistêm ica.

Essa perspectiva foi um produto da prática dos antropólogos culturais criada por Bronislaw Malinowski, de visitar as “populações nativas” com um m odo de vida evidentem ente distinto do

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seu; im ergir nas atividades cotidianas, registrar os m eios e m odos nativos e tentar “extrair um sentido” deles, encaixando cada um dos hábitos ou ritos observados, ou relatados por “inform antes”, num a totalidade abrangente de rotinas que, supostam ente, tornam o m odo de vida investigado viável e capaz de se autoperpetuar.

A prim eira visão baseava-se na experiência de seletividade da sociedade da própria pessoa, suas práticas de inclusão/exclusão, suas pressões assim ilatórias sobre “elem entos estranhos” no interior das fronteiras do Estado-nação e sua luta por um a identidade particular.

As duas visões estavam naturalm ente disponíveis, na época em que o m odelo ortodoxo de cultura se tornou predom inante. Havia, contudo, num erosas áreas do globo com pouca ou nenhum a com unicação com as áreas vizinhas; populações que poderiam , sem distorcer m uito os fatos, ser descritas com o totalidades fechadas em si m esm as. E havia Estados-nação que prom oviam , de m odo explícito e forçado, a unificação nacional de línguas, calendários, padrões de educação, versões da história e códigos de ética j uridicam ente fundam entados – Estados preocupados em hom ogeneizar o vago conj unto de dialetos, costum es e m em órias coletivas locais para form ar um conj unto único, com um , nacional, de crenças e estilos de vida.

Tal com o era natural para os exploradores culturais da época presum ir, literalm ente, que todas as populações devem ter se preocupado com os problem as conhecidos a partir das práticas dom ésticas dos próprios exploradores, tam bém é natural para nós duvidar da credibilidade das “totalidades” sem elhantes a sistem as invocadas pela antropologia cultural ortodoxa. É difícil saber ao certo se a classificação das culturas exploradas com o sistem as era um a ilusão de ótica estim ulada por um ponto de vista transitório e historicam ente concebido, ou um a percepção adequada de um a realidade agora distante. Qualquer que tenha sido o caso, essa im agem se choca de m odo estridente com nossa experiência atual de sím bolos culturais que flutuam livrem ente; da porosidade das fronteiras que algum as pessoas gostariam de fechar, em bora não sej am capazes; e de governos de Estado que prom ovem ativam ente o “m ulticulturalism o”, não m ais interessados em privilegiar algum m odelo particular de cultura nacional, m as preocupados em não infringir qualquer das incontáveis “opções culturais” individual ou coletivam ente assum idas. Sobre a França atual – terra em particular fam osa no passado por governos que equiparavam a cidadania e a condição de Estado à cultura nacional –, Marc Fum aroli com entou de m aneira ácida que

ainda se fala de sociedade francesa, de política cultural francesa; porém , esse adj etivo não é m ais que um term o de conveniência que serve para denotar o presente im ediato, assim com o o fluxo agregado de m odism os e opiniões registrados pelas pesquisas de opinião. … Não é nem um lugar nem um am biente – apenas um a zona. Em vez de falar da França, falam os de cultura – m esm o que esse term o sej a apenas um substituto para “Babel”, este m uito m ais vulgar. …

A palavra “cultura” se tornou um enorm e conglom erado com posto de “culturas”, cada qual em igualdade de condições com todas as outras. … O “Estado cultural”, em bora aspirando a ser um Estado nacional, tam bém desej a ser tudo para todo m undo, um Estado-fantoche e até cam aleônico, seguindo os fluxos e refluxos dos m odism os e das gerações.11

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À luz da experiência agora com um , parece plausível que, tendo havido ou não um a cultura “de tipo sistem a”, a possibilidade (e a probabilidade) de perceber os fenôm enos culturais com o constituindo um a totalidade coesa e fechada em si m esm a (um “sistem a”, no sentido antes descrito) foi um a contingência histórica. Tem os agora a oportunidade de com preender m elhor do que antes o verdadeiro significado da observação (de resto banal) de que os fenôm enos espaciais são socialm ente produzidos – e que, portanto, seu papel de separar e reunir entidades sociais tende a m udar com a m udança de técnicas e procedim entos produtivos.

Olhando a história em retrospecto, pode-se indagar em que m edida fatores geofísicos, fronteiras naturais ou artificiais entre unidades territoriais, distintas identidades de populações e culturas, assim com o a distinção entre “dentro” e “fora” de um a entidade sociocultural, foram , em sua essência, nada m ais que derivativos conceituais dos sedim entos/artifícios m ateriais produzidos pelos “lim ites de velocidade”; ou, de m odo m ais geral, pelas restrições de tem po e custo im postas à liberdade de m ovim entação pelo espaço.

Paul Virilio insinuou que, em bora a declaração de Francis Fukuy am a sobre o “fim da história” tenha parecido altam ente prem atura, hoj e se pode falar com confiança cada vez m aior sobre o “fim da geografia”.12 As distâncias não são m ais tão im portantes quanto costum avam ser, enquanto a ideia de fronteira geofísica é cada vez m ais difícil de se defender no “m undo real”. De repente parece claro que as divisões dos continentes e do globo com o um todo em enclaves m ais ou m enos fechados ou até autossustentáveis eram função das distâncias – tornadas forçosam ente reais graças sobretudo ao caráter prim itivo dos transportes e às dificuldades e aos custos exorbitantes das viagens.

Longe de ser um “dado” obj etivo, im pessoal e físico, a “distância” é um produto social. Sua extensão varia com a velocidade com que pode ser percorrida e, para todas as finalidades e propósitos práticos, superada (em bora, num a econom ia m onetária, tam bém com os custos para que se atinj a essa velocidade). Todos os outros fatores socialm ente produzidos, relativos à constituição, separação e m anutenção de identidades coletivas – tais com o fronteiras entre Estados ou barreiras culturais –, parecem , em retrospecto, apenas efeitos secundários dessa velocidade.

As oposições entre “aqui” e “lá fora”, “perto” e “longe”, e tam bém a oposição entre “dentro” e “fora”, registravam o grau de subj ugação, dom esticação e fam iliaridade de vários fragm entos (hum anos e não hum anos) do m undo circundante.

“Dentro” é um a extrapolação de “estar em casa”, cam inhar num terreno que se dom ina, conhecido até a evidência ou m esm o a invisibilidade. “Dentro” envolve seres hum anos e coisas que são vistos, encontrados e tratados, ou com os quais se interage diariam ente, interligados à rotina habitual e às atividades do dia a dia. “Dentro” é um espaço em que raras vezes, se é que algum a vez, alguém se sente prej udicado, em que lhe faltam palavras ou no qual se fica inseguro sobre com o agir. “Fora” – “lá fora” –, por outro lado, é um espaço onde se vai apenas ocasionalm ente, ou nunca se vai, em que tende a acontecer coisas que não se podem prever nem com preender, diante das quais não se saberia com o reagir, caso elas acontecessem – um espaço onde estão coisas das quais pouco se sabe, de que não se espera m uito e do qual ninguém se sente obrigado a cuidar. Com parado com a confortável segurança do lar, encontrar-se num espaço assim é um a experiência irritante; aventurar-se “lá fora” significa estar além de seu horizonte,

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fora de seu lugar e de seu elem ento, representa atrair confusão e tem er a m ágoa.

Em resum o, a dim ensão crucial da oposição “dentro-fora” é entre certeza e incerteza, autoconfiança e hesitação. Estar “fora” significa atrair e tem er problem as – e exige esperteza, destreza, engenhosidade ou coragem , aprender regras estranhas sem as quais se passa m uito bem em outros lugares, e dom iná-las por m eio de tentativas arriscadas e erros m uitas vezes dispendiosos. A ideia do “dentro”, por outro lado, significa o não problem ático, hábitos adquiridos sem dor e desfrutados quase inconscientem ente, habilidades que exigem pouca reflexão – e, sendo com o são, eles parecem leves e não exigem escolhas, decerto não escolhas torturantes, não há espaço para a hesitação que gera ansiedade. O que quer que tenha sido retrospectivam ente apelidado de “com unidade” costum ava ser trazido à luz por essa oposição entre “bem aqui” e “lá fora”, “interno” e “externo”.

A história m oderna tem sido m arcada pelo progresso constante dos m eios de transporte, e, portanto, do volum e de m obilidade. Transporte e viagens constituíram um cam po de m udanças particularm ente rápidas e radicais. O progresso, nesse caso, com o Schum peter indicou há m uito tem po, não foi resultado da m ultiplicação do núm ero de carruagens, m as da invenção e produção em m assa de m eios de transporte novos – trens, autom óveis e aviões. Foi a disponibilidade de m eios de viaj ar que disparou o processo tipicam ente m oderno de erodir e m inar as “totalidades” sociais e culturais enraizadas do ponto de vista local – o processo captado (e rom antizado) pela prim eira vez pela fam osa fórm ula de Tönnies da m odernidade com o passagem da Gemeinschaft (com unidade) para a Gesellschaft (sociedade).

Entre os fatores técnicos da m obilidade, papel de especial destaque foi desem penhado pelo transporte da inform ação – o tipo de com unicação que não envolve, senão secundária e m arginalm ente, o m ovim ento de corpos físicos. Desenvolveram -se m eios técnicos que perm itiram que a inform ação viaj asse de forma independente de seus portadores corpóreos, m as tam bém dos obj etos sobre os quais ela inform ava: esses m eios estabeleceram “significantes” livres da custódia dos “significados”. A separação entre o m ovim ento da inform ação e a m udança espacial de seus portadores e de seus obj etos, por seu turno, perm itiu a diferenciação da velocidade de duas m obilidades. O m ovim ento da inform ação ganhou velocidade num a taxa que excedia em m uito aquela que a viagem dos corpos, ou a m udança de situações que a inform ação “inform ava”, era capaz de alcançar. Afinal, o aparecim ento de um a rede m undial servida por com putadores pôs fim – ao m enos no que se refere à inform ação – à própria noção de “viagem ” (e de “distância” a ser percorrida), e tornou a inform ação instantânea disponível pelo globo. Os resultados gerais desse últim o desenvolvim ento são enorm es. Seu im pacto sobre a interação entre associação/dissociação social tem sido am plam ente observado e descrito em detalhes.

Um a consequência, contudo, é em particular im portante para o nosso argum ento. Martin Heidegger assinalou que a “essência do m artelo” só cham a nossa atenção – e, assim , se torna obj eto de cognição – quando ele quebra. Por m otivos sem elhantes aos sugeridos por Heidegger, agora vem os com m ais clareza do que nunca o papel desem penhado por tem po, espaço e m eios de carregá-los na form ação, instabilidade ou flexibilidade e no desaparecim ento final das totalidades políticas e socioculturais. As cham adas “com unidades estritam ente entrelaçadas” de outrora eram , com o podem os ver agora, trazidas à luz e m antidas vivas pela brecha entre a com unicação quase instantânea dentro da pequena com unidade (cuj o tam anho era determ inado

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pelas qualidades inatas da “m assa cinzenta”, e portanto confinada aos lim ites naturais da visão, da capacidade de ouvir e de m em orizar dos seres hum anos) e a enorm idade de tem po e despesas necessários para passar a inform ação entre localidades. Por outro lado, a fragilidade e o curto tem po de vida atuais das com unidades, assim com o a perm eabilidade e a falta de clareza de suas fronteiras, parecem ser o resultado do estreitam ento ou desaparição total dessa brecha: a com unicação dentro da com unidade perde sua vantagem sobre o intercâm bio intercom unal quando ambos são instantâneos. “Dentro” e “fora” perderam grande parte de seu significado, m uito claro no passado.

Michael Benedikt resum e assim nossa descoberta retrospectiva e o novo entendim ento da conexão íntim a entre velocidade das viagens e coesão social:

O tipo de unidade tornado possível em pequenas com unidades pela quase sim ultaneidade e o custo quase zero das com unicações por voz natural, cartazes e panfletos se desintegra com a am pliação da escala. A coesão social em qualquer escala é função do consenso, do conhecim ento com partilhado, e, sem atualização e interação constantes, essa coesão depende fundam entalm ente da educação precoce e estrita na – assim com o da m em ória da – cultura. A flexibilidade social, ao contrário, depende de um a com unicação esquecível e barata.13 Acrescentem os que a palavra “e” na últim a sentença citada é supérflua. A facilidade de esquecer e o baixo custo (assim com o a alta velocidade) da com unicação são apenas dois aspectos da m esm a condição, e dificilm ente se pode concebê-los em separado. Com unicação barata significa inundar, sufocar ou em purrar a inform ação adquirida, assim com o representa a rápida chegada de notícias. Mantendo-se inalterada a capacidade da “m assa cinzenta” desde pelo m enos a era paleolítica, a com unicação barata inunda e asfixia a m em ória, em vez de alim entá-la e estabilizá-entá-la. A capacidade de retenção não é páreo para o volum e de inform ações que com petem pela atenção. As novas inform ações dificilm ente têm tem po de subm ergir, ser m em orizadas e se enrij ecer num piso sólido sobre o qual poderão se depositar sucessivas cam adas de conhecim ento. Em am pla m edida, em vez de se acrescentarem ao “banco da m em ória”, as percepções têm início a partir de um a “tela em branco”. A com unicação rápida beneficia a atividade de lim par a área e esquecer, em vez de aprender e acum ular conhecim ento.

Talvez o m ais sem inal dos desenvolvim entos recentes sej a a diferença decrescente entre os custos de transm itir a inform ação em escala local e supralocal ou global (de m odo independente da “distância geográfica” do lugar para onde você envia sua m ensagem , você paga a tarifa de um a “cham ada local”, circunstância tão im portante culturalm ente quanto do ponto de vista econôm ico). Isso, por sua vez, significa que a inform ação que acaba chegando e exigindo atenção, querendo entrar e ficar (ainda que por curto prazo) em nossa m em ória, tende a se originar nos locais m ais diversos e independentes. Não é provável, portanto, que possua qualquer parafernália da “sistem aticidade” – acim a de tudo, coerência e sequencialidade. Ao contrário, é possível que transm ita m ensagens m utuam ente incom patíveis ou que se anulem – em contradição aguda com as m ensagens que costum avam circular dentro de com unidades desprovidas de hardware e software, e baseadas apenas no wetware, ou “m assa cinzenta”, ou

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sej a, com as m ensagens que tendiam a reiterar e reforçar um as às outras, e assim contribuíam para o processo de m em orização (seletiva). Agora não há vantagem na proxim idade espacial da fonte de inform ação. Quanto a esse aspecto fundam ental, a distinção entre “dentro” e “fora” perdeu o sentido.

Com o afirm a Tim othy W. Luke, “o espaço das sociedades tradicionais se organiza em torno das capacidades m ais im ediatas dos corpos hum anos com uns”:

As visões tradicionais da ação m uitas vezes recorrem a m etáforas orgânicas em suas alusões: o conflito era corpo a corpo; o com bate era palm o a palm o; a j ustiça era olho por olho, dente por dente; o debate era face a face; a solidariedade era om bro a om bro; a com unidade era cara a cara; a am izade era de braços dados; e a m udança era passo a passo.14

Essa situação havia se alterado até um ponto além do reconhecim ento, com o advento de m eios que perm itiam alongar os conflitos, as solidariedades, os com bates e a adm inistração da j ustiça m uito além do alcance de olhos e braços hum anos. O espaço então se tornou, nas palavras de Luke, “processado/centrado/organizado/norm alizado” – e, acim a de tudo, em ancipado das restrições naturais do corpo hum ano. Foi, portanto, a capacidade da ciência, a velocidade de sua ação e o custo de seu uso que a partir de então “organizou o espaço”: “O espaço proj etado por essa ciência é radicalm ente diferente: não dado por Deus, m as construído; não natural, m as artificial; não m ediado pelo wetware, m as m ediado pelo hardware; não com unalizado, m as racionalizado; não local, m as nacional.”

Falando francam ente, esse espaço – o espaço m oderno – era o obj eto da administração, do gerenciam ento. Era o play ground da autoridade encarregada da tarefa de “coordenação principal”; de criar as regras que tornaram o “dentro” uniform e, ao m esm o tem po que o separavam do “fora”; de aparar as extrem idades e os atritos ásperos entre as norm as e os padrões de com portam ento existentes; de hom ogeneizar os heterogêneos e unificar os diferenciados – em sum a, de rem odelar um agregado incoerente, transform ando-o num sistem a coerente. O espaço global foi fatiado em dom ínios soberanos – territórios distintos com agências distintas e soberanas – para realizar as tarefas da autoridade m oderna. As coisas que não tinham lugar nesse arranj o eram “terra de ninguém ”, “pessoas sem controle”, condutas fora do padrão e m ensagens am bivalentes. A im agem da cultura com o um “sistem a” segundo o padrão de um quadro gerencial era a proj eção dessa tarefa/am bição de gerenciam ento do espaço.

Planej ado, o espaço m oderno devia ser duro, sólido, perm anente e inegociável. Concreto e aço deviam ser sua carne; a rede de ferrovias e autoestradas, seus vasos sanguíneos. Os autores das utopias m odernas não faziam distinção entre ordem social e arquitetônica, ou entre unidades e divisões sociais e territoriais; para eles – com o para seus contem porâneos encarregados da ordem social –, a chave para um a sociedade ordeira devia ser encontrada na organização do espaço. A totalidade social devia ser um a hierarquia de localidades cada vez m ais am plas e inclusivas, com a autoridade supralocal do Estado no topo, supervisionando o todo, e ela própria protegida da interferência cotidiana pelo m anto do sigilo oficial.

Mas esse quadro recua para o passado. Sobre o espaço territorial/urbanístico/arquitetônico construído, um a terceira divisão do m undo hum ano – a cibernética – se im pôs com o advento da

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