O QUE RESTA DA DITADURA
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Q35
O que resta da ditadura : a exceção brasileira / Edson Teles e Vladimir Safatle (Orgs.). - São Paulo : Boitempo, 2010.
- (Estado de Sítio) Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7559-155-0
1. Brasil - História - 1964-1985. 2. Brasil - Política e governo, 1964-1985. 3. Ditadura Brasil História Século XX. 3. Direitos humanos Brasil -História - Século XX. 4. Justiça - Brasil - -História. 5. Ciências sociais e história. 6. Violência - Brasil - História. I. Teles, Edson, 1968-. II. Safatle, Vladimir, 1973-. III. Série.
09-5696. CDD: 981.064
CDU: 94(81)”1964/1985”
03.11.09 11.11.09 016126
Copyright © Boitempo Editorial, 2010
Coordenação editorial Ivana Jinkings Editor-assistente Jorge Pereira Filho
Assistência editorial Ana Lotufo, Elisa Andrade Buzzo, Frederico Ventura e Gustavo Assano
Preparação Flamarion Maués
Revisão Alessandro de Paula
Capa e diagramação Silvana de Barros Panzoldo
Sobre foto de repressão ao Dia Naciona de Luta, protesto realizado em 23 de agosto de 1977 – Arquivo/ Agência Estado.
Produção Marcel Iha e Paula Pires
É vedada, nos termos da lei, a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora.
Este livro atende às normas do acordo ortográfico em vigor desde janeiro de 2009.
1a edição: março de 2010 1a reimpressão: junho de 2010
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SUMÁRIO
Apresentação ...9
1 A EXCEÇÃO JURÍDICA
Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico ...15 Paulo Ribeiro da Cunha
Relações civil-militares: o legado autoritário da
Constituição brasileira de 1988 ...41 Jorge Zaverucha
“O direito constitucional passa, o direito administrativo
permanece”: a persistência da estrutura administrativa de 1967 ...77 Gilberto Bercovici
Direito internacional dos direitos humanos e lei de anistia:
o caso brasileiro ...91 Flávia Piovesan
O processo de acerto de contas e a lógica do arbítrio ...109 Glenda Mezarobba
2 O PREÇO DE UMA RECONCILIAÇÃO EXTORQUIDA
Tortura e sintoma social ...123 Maria Rita Kehl
Escritas da tortura ...133 Jaime Ginzburg
As ciladas do trauma: considerações sobre história e poesia nos
anos 1970 ...151 Beatriz de Moraes Vieira
O preço de uma reconciliação extorquida ...177 Jeanne Marie Gagnebin
Brasil, a ausência significante política (uma comunicação) ...187 Tales Ab’Sáber
3 A POLÍTICA DO BLOQUEIO, O BLOQUEIO DA POLÍTICA 1964, o ano que não terminou ...205
Paulo Eduardo Arantes
Do uso da violência contra o Estado ilegal ...237 Vladimir Safatle
Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a
luta por “verdade e justiça” no Brasil ...253 Janaína de Almeida Teles
Entre justiça e violência: estado de exceção nas democracias
do Brasil e da África do Sul ...299 Edson Teles
Dez fragmentos sobre a literatura contemporânea no Brasil e na Argentina ou de como os patetas sempre adoram o
discurso do poder ...319 Ricardo Lísias
Bibliografia ...329
2
O PREÇO DE UMA
TORTURA E SINTOMA SOCIAL
Maria Rita Kehl
Em um livro escrito em 20041 eu me referi ao ressentimento como
um dos sintomas mais representativos da relação ambivalente da socieda-de brasileira com os posocieda-deres que, em tese, socieda-deveriam representar e socieda- defen-der interesses coletivos. Fruto dos abusos históricos que aparentemente “perdoamos” sem exigir que opressores e agressores pedissem perdão e re-parassem os danos causados, o ressentimento instalou-se na sociedade bra-sileira como forma de “revolta passiva” (Bourdieu) ou “vingança adiada” (Nietzsche), ao sinalizar uma covarde cumplicidade dos ofendidos e opri-midos com seus ofensores/opressores. A mágoa “irreparável” do ressentido indica que ele sabe, mas não quer saber, que aceitou se colocar em uma condição passiva diante dos abusos do mais forte; por covardia, por cálculo (“mais tarde ele há de reconhecer e premiar meu sacrifício”) ou por impo-tência autoimposta, o ressentido acaba por se revelar cúmplice do agravo que o vitimou.
É importante ressaltar, entretanto, que o ressentimento não abate aque-les que foram derrotados na luta e no enfrentamento com o opressor, e sim os que recuaram sem lutar e perdoaram sem exigir reparação. O expediente corriqueiro – por má-fé ou mal-entendido? – de chamar de “ressentidos” aqueles que não desistiram de lutar por seus direitos e pela reparação das injustiças sofridas não passa de uma forma de desqualificar a luta política em nome de uma paz social imposta de cima para baixo. Nossa tradicional cordialidade, no sentido que Sérgio Buarque de Hollanda tomou empresta-do de Ribeiro Couto, obscurece a luta de classes e desvirtua a gravidade empresta-dos conflitos desde o período colonial.
Tortura e sintoma social 125
zação, o mal-estar silenciado acaba por se manifestar em atos que devem
ser decifrados, de maneira análoga aos sintomas dos que buscam a clínica psicanalítica. Mas mesmo os sintomas relatados, um a um, nos consultó-rios dos psicanalistas, são muito menos individuais do que se pode supor. Lacan, na conferência “Função e campo da palavra e da linguagem em psi-canálise” escreve que a originalidade do método psicanalítico está em abor-dar não o indivíduo, mas o “campo da realidade transindividual do sujeito
[...] O inconsciente é aquela parte do discurso concreto enquanto transin-dividual que não está à disposição do sujeito para restabelecer a continuida-de continuida-de seu discurso consciente”2.
Por que as formações do inconsciente ultrapassam a experiência dita in-dividual do sujeito? Porque o sujeito não é um indivíduo, no sentido radi-cal da palavra; é dividido desde sua origem, a partir de seu pertencimento a um campo simbólico cuja sustentação é necessariamente coletiva. As for-mações do inconsciente, como fenômenos de linguagem, são tributárias da estrutura desse órgão coletivo, público e simbólico que é a língua em suas diferentes formas de uso. “Na perspectiva analítica”, escreve Marie-Hélène Brousse3, “a oposição individual/coletivo não é válida, e o desejo que o
su- jeito visa a decifrar é sempre o desejo do Outro”. No Seminário 14 : A lógica do fantasma , Lacan radicalizou esta relação ao propor a fórmula “o
incons-ciente é a política”4.
Toda “realidade” (social) produz, automaticamente, uma espécie de “universo paralelo”: o acervo de experiências não incluídas nas práticas fa-lantes. Experiênciasloucas , desviantes, proscritas ou simplesmente doentias.
Pois mesmo aquilo que temos de mais singular, o modo de cada um padecer e adoecer, nem sempre pertence exclusivamente a nós. Por vezes a doença, sobretudo a chamada doença mental, não passa de um fragmento do real, um pedaço excluído da cultura – e o doente é seu “cavalo”, como se diz no candomblé. O doente é o lugar (social) onde a doença encontrou uma bre-cha para se manifestar. Nietzsche acertou ao afirmar que a doença institui um ponto de vista privilegiado sobre a realidade.
2 Jacques Lacan, “Función y campo de la palabra y del lenguaje en psicoanálisis”
(1953), em Escritos (trad. Tomás Segovia, Madri/México, Siglo Veintiuno, 1994, v. 1), p. 227-310.
3 Marie Hélène Brousse, Conferência 1, “O analista e o político”,O inconsciente é a política
(São Paulo, Seminário Internacional da Escola Brasileira de Psicanálise, 2003), p. 17.
4 Jacques Lacan, Seminário 14: A lógica do fantasma . Disponível em: <http://www.