• Nenhum resultado encontrado

Thomas Szasz-Ideologia e doença mental

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Thomas Szasz-Ideologia e doença mental"

Copied!
24
0
0

Texto

(1)

PSYCHE

THOMAS

S.

SZASZ

professor de psiquiatria da Universidade de Nova York, em Syracuse

.

ideologia e

doenca mental

ENSAIOS SOBRE A DESUMANIZACÃO PSIQUIÁTRICA DO HOMEM

Tradução de JosÉ SANZ

Segunda edição

Z.AHAR EDITORES RIO DE JANEIRO

(2)

1.

INTRODUÇÃO

Dentre os vanos absurdos ditos por Rousseau, um dos mais in-sensatos. e também o mais famoso. diz: "O homem nasce livre e, no entanto, está sempre aprisionado". Essa frase presunçosa obscurece a natureza da liberdade. Porque, se a liberdade é a capacidade de escolha livre de coerções, então o homem nasce aprisionado. E o desafio da vida é a libertação.

A capacidade do indivíduo de fazer escolhas livre de coer-ções depende de suas condições internas e externas. Suas con-dições internas, isto é, seu caráter, personalidade ou mentalidade - compreendendo suas aspirações e desejos, bem como suas aversões e autodisciplina - o impulsionam a agir de várias ma-neiras. ou o impedem. Suas condi ões externas, isto é, sua cons-~ tituição biológica e seu ambiente físico e social - comprendendo àS potencialidades de seu corRo, e õ clima, cultura, leis e tecno-logta e sua sociedade - o estimulam a agir de determinadas m eiras e ümrbem-a agtr e outras. Essas condições co nfigu-ram

e

definem a extensão e qualidade das opções de um indivi-.diÍo- Em geral, quanto mais controle o homem adquire sobre suas condições internas e externas, tanto mais livre se torna, en-quanto que o fracasso na aquisição de tal controle, ou a perda do mesmo, o escraviza.

Há, contudo, uma limitação importante à liberdade do ho-mem: a liberdade dos outros homens. As condições externas que o homem procura controlar incluem outras pessoas e 'instituições sociais, formando uma rede complexa de interações e interdepen-dências. Com freqüência, a única maneira de uma pessoa aumen-tar suas possibilidades de livre opção é pela redução das de seus semelhantes. Isso é verdadeiro, mesmo que o indivíduo aspi-re somente ao autocontrole e deixe os outros em paz: sua auto-disciplina tornará mais difícil aos outros, se não impossível, con-trolá-Ia e dominá-lo. Pior ainda, se o indivíduo aspira

(3)

contro-26 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

se refere a ocorrências físico-químicas que não são afetadas ao tor-n.ar-se. pÚ,bl~cas,o te:mo "doença mental" refere-se a eventos

Só-',~ ClO-P~ICO,logICOS,crucialmente afetados quando tornados públicos.

•'§t O psiquíatra desse modo não pode, e não consegue, ficar alheio à ~. pe~soa que, observa, con;o pode fazer e o faz o patologista. O

psi-. ~ qUlatr~ esta comprometido com um quadro daquilo que considera \)~ a realidade e com o que pensa que a sociedade considera real'

~ observa e julga o comportamento do paciente à luz dessas cren~ ça~~ A simples n~ção. de "sintoma mental" ou de "doença men-ta.!: , desse modo, .ImplIca uma comparação dissimulada e freqíien-tem.ente em conflito, en~re observador e observado, psiquiatra e paciente, Apesar de ÓbVlO,esse fato precisa ser reenfatizado como no caso de alguém que, como eu, deseja contra-atacar a tendência prevalente de negar os aspectos morais da Psiquiatria e substituí-los por conceitos.e intervenções médicas pretensamente isentas.

. A Psicoterapia é, pois, praticada como se não acarretasse nada além de restaurar o paciente de um estado de enfermidade men-tal .para um estado de sanidade menmen-tal. Enquanto for geralmente aceI~o que a d?ença mental tem algo a ver com as relações sociais .. -ou interpessoais do homem, paradoxalmente se sustentará que os problemas de v~lor;s - isto é! da Ética - não aparecem nesse processo. O propno Freud fOI longe o suficiente para afirmar' "Considero. a. ~tic:'l ~Jo:n0já si~tematizada. Na realidade não fi; nada de .ngn~f~catwo.6 Essa e uma afirmação assombrosa em particular, para alguém que estudou o homem como um se; so-cial tão profundamente quanto Freud. Menciono-a aqui para mos-trar como a noção'de "doença" - no caso da Psicanálise "Psico-pat?lo.gia", ou "doen~a mental" - foi usada por Freud, e pela maioria de seus seguidores, como meio de classificar certos tipos d; comportamento humano, como que dentro do âmbito da Medi-cma e, desse modo, por decreto, fora do domínio da Ética, No en-ta~to, de ~ato. permanece que, em certo sentido, grande parte da Psicoterapia gIra. em torno d.a elucidação e avaliação de objetivos e valores - muitos dos quais podem ser mutuamente contraditó-rios -, e os meios pelos quais podem ser melhor harmonizados

concretizados ou abandonados. '

, . Devido à longa ~éri.e de valores humanos e de métodos pelos quais podem ser atingidos - e porque muitos dos fins e meios são persistentemente desconhecidos -, os confitos de valores são a principal fonte de conflitos nas reia ões humanas. De fato dizer que as re ações l1ümanas a to os os níveis - da mãe à criança,

16 I consider ethics to be taken for granted. Actually I have never dane

a mean thing. (N. do T.)

o

MITO DA DOENÇA MENTAL 27

do marido à es)osa, de nação a na ão - são carre adas de de-pressão, tensão e desarmonia e, maISuma vez,tornar o o VIOex ~E no-entanto,

o

que po e ser o VIOpo e também ser

parca-mente compreendido. .E isso é, creio, o que ocorre nesse caso, pois a mim parece que, em nossas teorias científicas de com orta-l}1ento,falhamos em aceitar o simples fato de que as relações

hU-

/

manas são inerentemente carregadas de dificuldades e que tor-ná-Ias, mesmo relativamente, harmoniosas re uer muita aciência e'traba ho ár uo. uglro que a I era e oença mental esteja ago' -ra sendo trabalhada para obscurecer certas dificuldades que no pre-sente possam ser inerentes - não que sejam irremovíveis - às relações sociais das pessoas. Se isso é verdade, o conceito funcio-na como um disfarce: em vez de chamar atenção para necessida-des, aspirações e valores humanos conflitantes, o conceito de doen-ça mental produz uma "coisa" moral e impessoal --: uma "doen-ça" - como uma explicação para problemas existenciais, Com relação a isto podemos nos lembrar que, não faz muito tempo, os diabos e as feiticeiras eram responsáveis' pelos problemas na vida elo homem. A crença na doença mental, como algo diferente do problema do homem em conviver com seus semelhantes, é a pró-pria herdeira da crença em demônios e feitiçaria. Assim, a doen-ça mental existe ou é "real" exatamente no mesmo sentido no qual as feiticeiras existiam ou eram "reais",

VI

Enquanto sustento que as doenças mentais não existem, obvia-mente não sugiro ou quero dizer que as ocorrências sociais e psi-cológicas às quais este rótulo é fixado também não existam. Tan~ to quanto os problemas pessoais e sociais que se tinha na Idade .Média, os problemas humanos contemporâneos são suficientemente reais. O que me preocupa são os rótulos que lhes damos e, ten-do-lhes rotulado, o que fazer a respeito. O conceito demonológi-co dos problemas existenciais deram lugar à terapia baseada em linhas teológicas. Hoje, a crença em doença mental implica _ ou melhor, requer - uma terapia baseada em linhas mé-dicas ou psicoterápicas.

Não me proponho aqui a oferecer uma nova concepção de "doença psiquiátrica" ou uma nova forma de "terapia". Meu obje-tivo é mais modesto e, no entanto, ao mesmo tempo mais arnbi-cioso; ~~erir gue o fenômeno atualmente chamado ~e doenças mentai e revisto e mais sim lesmente ue fosse removido da cate or" de doen as, e que fosse considerado como expres-sões do esfor m com o ro e'lna e como e 'ãeVeria

(4)

28 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

~~. Esse problema é, sem dúvida vasto, sua enormidade refle-tindo não somente a inabilidade do homem em fazer frente ao seu ambiente, como também, e até mais, seu crescente grau de auto-re-flexão.

Por problemas existenciais, pois, refiro-me àquela explosiva reação em cadeia que começou com a perda pelo homem da graça divina ao tomar do fruto da árvore do conhecimento. A cons-cientizacão do homem de si mesmo e do mundo que o cerca pa-rece estar numa constante expansão, trazendo em seu despertar uma sempre maior carga de conhecimentoF' Esta carga é espera-da e não deve ser mal interpretada. Nosso único meio racional para amenizá-Ia é adquirir mais conhecimento e agir de forma apropriada, baseando a ação neste conhecimento. A principal al-ternativa consiste em agir como se a carga não fosse o que perce-bemos que é. e refugiarmo-nos na antiga visão teológica do ho-mem. Nessa perspectiva o homem não modela sua vida nem muito " -do mundo que o cerca, mas meramente vive seu destino num mundo criado por seres superiores. Isso pode, logicamente, le-vá-Io a pleitear a não-responsabilidade em lugar de dificuldades intransponíveis e problemas insondáveis. No entanto, se o ho-mem não se fizer cada vez mais responsável por suas ações, tanto individual quanto coletivamente, parece improvável que algum po -der ou ser superior assuma esta tarefa e lhe carregue o fardo. Além disso. este parece ser um momento propício da História ao obscurecimento da questão da responsabilidade do homem por suas ações, escondendo-se por trás de um concepção forjada de doença mental.

VII

17 hado em E. Jones: The Liie and Work 01 Sigmund Freud (Nova

York: Bnsic Books, 1957), vol. 111, p. 247. Zahar Editores, Vida e

Obr« de Slgmund Freud.

29

j

algum outro significado ou valor. Uma vez satisfdtas as necessi:

l

í

dades de eservação do corpo, e.talvez da,raçª",.Q homem se

~:;

®

fron a com? ,PEo ema o,Jpgm icado pessoal: o ~ue deve~la Ia- (If zef e i mesmo? .Por q11e deveria VIVg? a esao ao mito a doe~ça mental permife às pessoas evitar confrontar-se com este problema, acreditando que a saúde mental, concebida como a au-sência de doença mental, automaticamente assegura a escolha certa e segura na condução da vida. Mas os fatos são contr~rios a isto. N a vida, são as escolhas sensatas que as pessoas consideram, re -trospectivamente, como evidência de saúde ~ental.. _

Quando afirmo que a doença mental e um mito, na? quero dizer que a infelicidade pessoal e o comportamento soclalm~nte desviado não existam; o que estou dizendo é que os categonza-mos como doenças por nossa própria conta e risco.

A expressão "doença mental" é uma metáfora que errada-

(

1

/

mente consideramos como fato. Chamamos as pessoas de doenteS!

IJ

fisicamente guando o funcionamento de seu cor o VIOla certas nl!! "-mas anatômicas e fisiológicas; de form,a~ga, c~amamos 'de mentalmente msanas as pessoas cu'a conduta essoal VIOla ce r-tas normas éticas, políticas e sociai " Isso explica porque mui~as figuras históricas, de Jesus a Castro, e de Jó a Hitler,. tê!;! ~Ido diagnosticadas como sofrendo desta ou daquela doença. pSlqUlatn~a.

Finalmente b mito da doença mental nos encoraja a acreditar em seu corolário ló ico: ue a interação social seria harmoniosa, satisfatóna e a se se ra ara uma VI a sau ave, não fosse pe-las influências desa re, adoras a oen a menta ou SICOato o Ia. ontu o a felicidade humana universal, pelo menos nessa forma, não é senão um outro exemplo de desejos utópicos. Creio na possi-bilidade da felicidade humana, ou do bem-estar - não somente para uns poucos, mas numa escala anteriormente inimaginável. Contudo, isso pode ser atingido somente se muitos homens, não só' uns pou-cos estiverem desejosos e forem capazes de confrontar francamente e atacar com coragem seus conflitos éticos, pessoais e sociais. Isso significa ter a coragem e integridade de renunciar a batalhas em-preendidas em frentes falsas, à procura de soluções para pro.ble-mas substitutivos - por exemplo, lutar na batalha contra a aClde.z estomacal e fadiga crônica, em vez de enfrentar' um

confli-to conjugal. A • .., •

N ossos adversários não são demônios, feiticeiras, o destino ou a doença mental. Não temos inimigos contra os quais pos~a-mos lutar exorcizar, ou dissipar' pela "cura". O que temos, Sim, são problemas existenciais - que podem ser bio~ógicos! econô mi-cos políticos, ou sócio-psicológicos, Neste ensaio detive-me so-mente nos problemas .pertinentes à última categoria apresentada,

(5)

30 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

e dentro deste grupo, com ênf~se naqueles'pertinente,s valores m,.?-r~is O campo abrangido pela Psiquiatria moderna e ,:,a~to e na?

. •1 od M ar mento limitou-se a

fiz esforço para abrange- o t o. . eu .

. ~ de ue a doença mental e um mito cu a unçao e

1~--

E

ro OSI ao '1 1 d co

1-, r e assim tornar mais aceitavel, a amarga pl u a os tos morais nas relaçoes umanas.

3.

A ÉTICA DA SAúDE MENTAL

; mecemos com algumas definições. De acordo com o W ebsier' s '/'hird N ew I nternatlonol Dictionary, (edição integral), Ética é "a

<liciplina que trata do que é bom e mau ou certo e errado

ou do dever e do compromisso moral ... "; é também "um J~rupode princípios morais ou série de valores ... " e "os princí-pios de conduta que governam um indivíduo ou uma profissão: pndrões de comportamento ... "

A Ética é, assim, uma questão essencialmente humana. Exis-tem "princípios de conduta" que regem indivíduos e grupos, mas 11 I há princípios semelhantes governando o comportamento dos mimais, das máquinas ou das estrelas. De fato, a palavra "con-duta" implica que somente as pessoas conduzem-se; os animais comportam-se, as máquinas funcionam, e as estrelas movem-se.

É demais dizer, pois, que qualquer comportamento humano

qu constitua conduta - a qual é, em outras palavras, produto da c' c lha ou escolha potencial e não simplesmente de um reflexo -c', ipso facto conduta moral? Em qualquer conduta, as

conside-Juções de bom e mau ou certo e errado desempenham um papel.

l.ogicamente, seu estudo pertence ao domínio da Ética, cujo pes-qui ador é um cientista do comportamento, por excelência.

Se examinarmos a definição e prática da Psiquiatria, contu-cio, veremos que é uma redefiniçâo dissimulada da natureza (' ibjetivo da Ética. De acordo com o Webster's, a Psiquiatria é "11111 ramo da Medicina que tem relação com a Ciência e prática cio tratamento de desordens mentais, emocionais, ou de compor-t '111 rito, especialmente as de origem endógena, ou resultantes de (c'l\ ionamentos interpessoais falhos"; mais adiante, é "uma teo-r" u tratado, ou texto, sobre a Etiologia, reconhecimento,

tra-Iun nto ou prevenção de desordens mentais, emocionais ou de

(6)

qual-32 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

quer área da atividade humana (Psiquiatria Social)" ~ou ainda,

é "o serviço psiquiátrico num hospital geral (este paciente é um

caso de Psiquiatria)."

O objetivo nominal da Psiquiatria é o estudo e tratamento

de desordens mentais. Mas o que são desordens mentais?

Acei-I

tar a existência de uma classe de fenômenos chamados "doenças

mentais", ao invés de questionar as condisões sob as quais

algu-mas pessoas designam outras de "mentalmente doentes", é o passo

decisivo na adoção da Ética da saúde mental." Se tomarmos

se-riamente a definição do dicionário desta disciplina, o estudo de

uma grande parte do comportamento humano será transferido

da Ética para a Psiquiatria. Pois, enquanto o estudioso da Ética

supostamente se preocupa apenas com o comportamento normal

(moral), e o psiquiatra somente com o comportamento anõrmal

(emocionalmente desordenado), a distinção essencial entre os dois

reside em bases.•éticas. Em outras palavras, ~ afirmação de que

uma essoa é mental ente envolve um .ul amento moral

50 re a mesma. Além disso, devido às conseqüências SOCiaiSde

l

Julgamento:-tanto o "paciente" como aqueles que dele tratam

como tal tornam-se atores duma peça de moralidade, embora seja

esta expressa num jargão médico-psiquiátrico.

Tendo removido o comportamento mentalmente desordenado

do escopo da Ética, o psiquiatra vem tendo que justificar sua

re-classificação. Tem feito isso pela definição d!J,qualidade ou

n,Nu-reza do comportamento que estuda: enquanto o estudloSO da Ética

trata do comportamento moral, O"psiquiatra estuda o mecanismo

biológico ou mecanismo do comportamento. Nas palavras de

Webster's, a preocupação do psiquiatra é com o comportamento

"originado de causas endógenas ou resultantes de relacionamentos

interpessoais falhos". Deveríamos aqui concentrar nossa atenção

nas palavras "causas" e "resultantes". Com estas palavras, a·

tran-sição da Ética para a Fisiologia, e conseqüentemente para a

Me-dicina e Psiquiatria, está seguramente completa.

A Ética tem significado somente num contexto de indivíduos

\3utônomos ou grupos exercendo escolhas mais ou menos livres· de

coação. A conduta resultante de tais escolhas é dita como tendo

razões e significados, mas não causas. Esta é a bem conhecida

po-laridade entre determinismo e voluntariasmo, causalida~e e livre

arbítrio, Ciência natural e Ciência moral.

Definir a Psiquiatria do modo acima leva não somente à

reavaliação das disciplinas ensinadas nas universidades, mas

tam-18 Ver T. S. Szasz: The Myth of Mental IlIness: Foundations of a

Theory of Personal Conduct (Nova York: Hoeber-Harper, 1961). (A ser

publicado por Zahar Editores sob o título O Mito da Doença Mental.)

\~

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 33

1>é111 proporciona um ponto de vista sobre a natureza de alguns

ti-pos de comportamento humano e sobre o homem em geral.

Pela assinalação de "causas endógenas" ao comportamento

humano, o comportamento é classificado co,m.,qtato em vez

de como açEfl.. O diabetes é uma doença causada por uma

falta ~endóg'ena de enzimas necessárias ao metabolismo dos

car-il idratos. ~Nessa estrutura de referência, a causa endógena de

uma depressão deve ser, ou um defeito metabólico (isto é, um

evento químico antecedente) ou um defeito nas "relações

inter-pessoais" (isto é, um evento histórico antecedente). .EventQs....Q!l

.xpec1.ativasfut~s são excluídos como "causas" possíveis de uma

. nsação de depressão. Mas isso é razoável? Consideremos o

mi-lionário que se encontra financeiramente arruinado devido a

re-v ses nos negócios. Como explicarmos sua "depressão" (se assim

quisermos rotular seu sentimento de tristeza)? Considerando-a

c mo o resultado dos eventos mencionados, e talvez de outros

.m sua infância? Ou como a ~pressão de sua visão de si

mes-mo e de seus poderes no mundo, presentes e futuros? Escolher

a Primeira é redefinir a condtltãêtica como um mal psiquiátrico.

As artes de curar - especialmente a Medicina, religião e

Psiquiatria - operam dentro da sociedade, não fora dela. Na

rea-lidade, são uma parte importante da sociedade. Não é de

sur-pr ender, conseqüentemente, que estas instituições reflitam e

pro-Jl1 vam os valores morais primários da comunidade. Além disso,

hoje como no passado, uma ou outra dessas instituições é usada

para moldar a sociedade pelo apego a certos valores e oposição

l utros. Qual é o papel da Psiquiatria em promover um sistema

tico dissimulado na sociedade americana contemporânea? Quais

os valores morais que ela abraça e impõe à sociedade? Ten~

/ar i sugerir algumas respostas pelo exame da posição de certos

trnbalhos psiquiátricos representativos e pela explicitação da

na-t\Ir za da ética da saúde mental. E tentarei demonstrar que no

di.I go entre as duas maiores ideologias de nosso tempo -

indi-vldualisrno e coletivismo - a ética da saúde mental se enquadra

JlO lado do coletivismo.

II

homem deseja a liberdade e dela tem medo. Karl R.

I'opper fala dos "inimigos da sociedade aberta't-" e Erich Fromm,

I\I K. R. Popper: The open Society and lts Enemies, (Princeton, N. J.:

(7)

34 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 35

daqueles que "fogem à Überdade".J2O Ansiando por liberdade e

auto-determinação, os homens desejam colocar-se como indivíduos mas te~endo a solidão e a responsabilidade, eles também desej~m s~ umr aos seus semelhantes como membros de um grupo.

T.e~ricamente, o individualismo e o coletivismo são princípios

ar:tagomcos: para o pnmeiro, os valores supremos sã.o a aJl1;QRo -mIa e a liberdade individual; para o último, a solidariedade ~ o ru o e a se ran a coletiva. Na prática, o antagonismo é s~ mente parcr : o ornem precisa ser ambos - sozinho como um indivíduo solitário, e, com seus semelhantes, corno membro de um g~upo. Thoreau, em Walden Pond, e o homem de terno de flanela cinza em sua organização burocrática são dois extremos

.de um espectro: muitos homens procuram orientar-se numa

dire-ção. entre e~tes extremos. O individualismo e o coletivismo podem

assim ser f1gurado~ co~o as duas margens de um rio que corre veloz, entre as,qUâ.IS nos - como homens morais - devemos na-v:gar.

q

cauteloso, o tímido e talvez o "sábio" tomarão a

posi-çao mediana : como o político prático, tal pessoa procurará a co-mod~r~se à "realidade social" pela afirmação e negação tanto do

coletivismo como do individualismo.

.. Apesar ~e que! em geral, um sistema ético que valoriza o co-letivismo sera hostil àquele que valoriza o individualismo e

vice-versa, uma diferen a im ortante entre os dois deve ser notada: numa SOClea' em IVI ualista, os omens nao são proibidos pela

or a e ormar assoCIa õe5Võllinfanas nem - -mlr a éis submissos_ nos ru os. Em contraste numa sociedade coletiyista •.os. homens são for~dos a p-Jlrticipa de certas ativida-des organizacionais, e são punidos !l0r levar uma existência sõ fi-tana e. m e er:den e.. . :azã~ desta diferença é simples: com:o uma ÉtIca SocIal, o m?IVlduabsmo procura minimizar a coerção

e favorece o ?e?envolvlm~nto de uma sociedade pluralista; en-quanto o coletivismo considera a coerção como meio necessário para atingir as finalidades desejadas e favorece o desenvolvimento

de uma sociedade singularista.

A Ética Coletivista é exemplificada na União Soviética como no caso d.e Iosif Brodsky. ~oeta judeu de 24 anos, Brod~ky foi l~v~do a Julgamento em Leningrado por "levar uma vida parasi-ta:la". A acusação tem raiz num "conceito legal soviético, que fOI decretado em 1961 para permitir o exílio de cidadãos

residen-tes que não realizam 'trabalho socialmente útil' ''.21

111t)lsky teve duas audiências, a primeira a 18 de fevereiro e,

'1'IIIIdtl, a 13 de março de 1964. A transcrição do julgamento 1I Il.urdcstinamente da Rússia e foi publicada a sua tradução no

Ili, NI"w LeaderP' Na primeira audiência, Brodsky foi acusado

'I" uru-iue de ser um poeta e não "produzir" trabalho. Como

re-1I"ldo, o juiz ordenou que BrodsRy fosse enviado "para um

exa-111IIIl[lIj:ílrico oficial durante o qual sefia determina dó se Brodsky.

1111I d' algum tipo de doença psicológica ou não, e se tal doença

1111tlll1' ia que fosse Brodsky mandado para uma localidade

distan-, IIIII~ trabalhos forçados. Levando em consideração que, a

par-I, d.\ história de sua doença, aparenta Brodsky ter-se evadido

I IUI pitalização, é ordenado à divisão n.? 18 da milícia enca

rre-11 " dt' levá-lo ao exame psiquiátrico oficial."23

(I ponto de vista é característico da Ética Coletivista. É ta

m-I••111 udistingiiível da psiquiatria institucional americana cont

empo-I1111I. I',m ambos os sistemas, a pessoa que não fez mal a

nin-111111ma, é considerada como um "desvio" é definida como doen·

I 111I'l1ln[;ar ena-se-lhe ser submetida a um exame si uiátrico

r I siste, Isto e VISto como maIs um sma e sua anorma 1 ade

I '11111."

lir'dsky foi julgado culpado e mandado "a uma localidade

01I11111por' um período de cinco anos de trabalhos forçados".z

11.1 -utença, deve ser notado, foi a um tem o tera êu ica, no que

1'111111111' promover o "bem-estar" de rodsky, e penal, no que

I'111111r u puni-lo pelo mal que ele infligiu à comunidade. Essa

11111111'\11é a tese coletivista clássica: o que é bom para a

comu-11dlld,' , bom para o indivíduo.

que ao indivíduo é negada '11111'111r existência que não a do grupo, esta equação de um com

1/11I" os é bastante lógica.

\)111outro homem de letras russo, Valer Tarsis, que havia

1'II111kdo um livro na nglaterra, descrevendo a difícil situação

.111I ritores e intelectuais sob o regime de Kruschev, foi

encar-I'1 uln nu~ hospital psiquiátrico em Moscou. Pode-se lembrar que

111111I) P eta americano Ezra Pound aconteceu o mesmo: ele foi

11111Il"lrado num hospital psiquiátrico em Washington.P' Em sua

1111,111autobiográfica, Ward 7 (Pavilhão 7), Tarsis dá a impressão

"The trial of Iosif Brodsky: A transcript." The New Leader, 47:6-11'

I I1 ,I agosto), 1964

I Ilskl., p. 14.

• I'lIfOuma comparação entre a legislação criminal soviética e a legls

-III~11nmcricana de higiene mental, ver T. S. Szasz: Law, Liberty, and

" I'/'"illlry: An Inquiry into The Social Uses of Mental Health .Practices;

1NIIVIIYork: Macmillan, 1963) pp. 218-21.

h "Th trial of Iosif Brodsxy", op, cit., p. 14.

n V r zasz, Law Liberty and Psichiatry, supra, Capo 17.

20 E. Fromm: "O Medo à Liberdade" (Nova York: Rinehart 1941).

Edição brasileira Zahar Editores. ' 21 Citado no The New York Times, a 31 de agosto de 1964, p. 8.

(8)

36 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

de que a hospitalização mental involuntária é uma técnica sovié

ti-ca largamente usada para reprimir o desvio social.ê?

. Parece claro que o inimigo do estado soviético não é o capi-talista, mas o operário solitário - não os Rockefellers, mas os Thoreaus. Na religião do coletivismo, a heresia é o

individualis-mo: o pária por excelência é aquele que se recusa a fazer parte

do time.

Argumentarei que a maior ameaça da Psiquiatria americana

contemporânea - como a exemplifica a Psiquiatria Comunitária,

é a criação de uma sociedade coletivista, com todas as suas

im-plicações em matéria de política econômica, liberdade pessoal e

conformidade social. .

. /

.

i

.

~

J>

III

~t

S,e por "P~iquia~ria Comunitária:' entenden;nos os cuidados

~I~ d~ saude mental providos pela comunidade através de fundos pú-~~ '\ blicos ~ em vez de pelo indivíduo, ou por grupos voluntários

através de fundos privados - então a Psiquiatria Comunitária é

tão antiga quanto a Psiquiatria americana. (Em muitos outros

países, a Psiquiatria também começou como urna empresa

comu-nitária e nunca cessou de funcionar nesse papel.)

Novo como é o termo "Psiquiatria Comunitária", muitos ps i-quiatras livremente admitem que este é somente mais um sloqan

da incessante campanha da profissão para se vender ao público.

N o quarto encontro anual da Associação de Médicos Supe rinten-dentes -de Hospitais Psiquiátricos, o tópico principal era Ps

iquia-tria Comunitária - "O que é e o que -não -é".28

"O que é Psiquiatria Comunitária?" - perguntou o diretor de

um hospital estadual do Leste. Sua resposta: "Estive em dois

congressos na Europa, neste verão, e desconheço o que se quer

dizer com esse termo... Quando se fala sobre ele, raramente é claro o que significa".29 Para um psiquiatra de um estado do

Meio-Oeste, "Psiquiatria Comunitária... significa que nós

cola-boramos dentro da estrutura das facilidades médicas

e

ps

iquiátri-cas existentes.t'ê? Este ponto de vista foi apoiado por U111psiquia -tra de um hospital estadual do Leste, que afirmou: "Na

Pensilvâ-nia, os hospitais estaduais já estão servindo às comunidades nas

27 V, Tarsis: 'Ward 7: An Autobiographicai Novel, trad. paru () inglês

por Katya Brown (Londres e Glasgow: Collins and Harvill, 1%5).

28 "Roche Report: Community psychiatry and mental hospitals". Frontiers

O] Hospital Psychiatry, 1:12 & 9 (15 de novcmbro) , 19fí4.

29 Ibid., p. 2.

30 Ibid.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 37

11'/11 cstâo localizados ... Estão executando Psiquiatria

Cornuni-t I I"111Tal é o curso do progresso na Psiquiatria.

{) que achei particularmente perturbador neste relato foi que, '1" 1II cl muitos que assistiam à reunião estarem incertos sobre 11 'IIH' ra ou poderia ser a Psiquiatria Comunitária, todos

decla-I decla-Idecla-Idecla-III1Isua firme intenção de tomar um papel de liderança na

mes-1111 I isse um psiquiatra de um hospital estadual do Meio-Oeste:

"c '111'quer que seja ou venha a ser a Psiquiatria Comunitária,

1 1111,11r to1 marmos parte dela. É melhor tomarmos a liderança

1111 tC'r('mos uma parte a nós relegada. Deveríamos estar

funcio-1IIIIdo omo hospitais psiquiátricos comunitários. Se nos

omitir-"111 • dissermos que não somos centros psiquiátricos

comunitá-I 11 • t remos um grande número de pessoas nos dizendo o que 1I'1'1',"112 O presidente da organização de médicos superintenden-II ('015.0conclamou os membros a "assumir um papel de lideran-1I", IIouve concordância geral sobre isso: "A não ser que

par-I\ pt't11 S e tomemos uma parte dominante, seremos relegados ao

111\ da fila",33 preveniu um psiquiatra de um hospital estadual ,1/1 Mio-Oeste.

isto é Psiquiatria Comunitária, o que há de novo a

res-I" 1()? Por que é enaltecida e recomendada como se fosse algum

IIIIVOacanço médico que promete revolucionar o "tratamento' dos

"rluent s mentais"? Para responder a essas perguntas seria

neces-1110 um estudo histórico de nosso tema, o qual não procurarei

Ilfl'r aqui.34 Que seja suficiente apontar as forças específicas que

111\<1;1',m a Psiquiatria Comunitária como um movimento ou

disci-"I un listinta. Estas forças são de dois tipos - um político, outro

II quiátrico

As políticas sociais do liberalismo intervencionista moderno,

1111t;llda neste país por Franklin D. Roosevelt, recebeu reforço

1'IIIIc'roo durante a presidência de John F. Kennedy. A

"Mensa-~111\ 1\0 Congresso" do . Kenned "sobre Doen

en-1,11",de 5 de fevereiro de 1963, reflete este espírito, Apesar de '1tll' os CU! a os com o doente mental hospitalizado tenham sido, I,.nllcionalmente, uma operação de bem-estar governamental -

le-IIln a cabo através das facilidades dos vários departamentos go-1111I1111ntais de Higiene Mental e a Administração dos

Vetera-1111 advogou ele um programa ainda mais extenso, sustentado

I"11 fundos públicos. :Qisse o presidente: "Proponho um

progra-11/ tbkl,

" lbid., p. 9. "" Ibld.

I l'ura discussão mais aprofundada, ver T. S. Szasz: "Para onde

(9)

IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL 39

38 A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL

('it 'i os pontos de vista de alguns dos propagandistas da Psi-I1 111 L Comunitária. Mas, e sobre o trabalho em si? Seu

obje-I " pdncipal parece ser a disseminação de uma Ética. de saúde

111 111 11 orno um tipo de religião secular. Sustentarei este

pon-I" di' vista por citações do principal livro-texto de Psiquiatria

Co-1111111 I'iria, Princípios de Psiquiatria Preventiva. de Gerald Caplan.

() que Caplan descreve é um sistema de Psiquiatria

burocrá-til 11 qual mais e mais psiquiatras realizam cada vez menos

II 111.11110 real com os assim chamados pacientes. O papel principal

.111 p i[uiatra comunitário é o de ser um "consultor de saúde men-tti"; isso significa conversar com as pessoas, que conversam com

111111 1 pessoas e, finalmente, alguém conversa ou tem algum tipo

Ili Ioutato com alguém que é considerado, real ou potencialmente,

dllt III mental". Este esquema funciona em conformidade com a

I 1 11 Parkinson :39 o perito, no topo da pirâmide, é tão

impor-I11111 'tão ocupado que necessita de um enorme exército de

su-t,,"dinados para ajudá-lo, e seus subordinados precisam de um

vas-111" ircito de subordinados de segunda ordem, e assim por

dian-I1 Numa sociedade confrontada com uma larga escala de desern-1"/pu devido à automatização e grandes avanços tecnológicos, o 1'111 pcto de uma indústria de saúde mental "preventiva",

pron-t" apaz de absorver uma grande quantidade de mão-de-obra, ti, Into, deveria ser politicamente atraente. E o é. Olhemos mais

""Iltamente para o trabalho real do si uiatra comunitário. , gunâo-Cãpfan, uIi1atarefa fundamental do psiquiatra

co-1111Iuitário é prover mais e melhores "condições sócio-culturais" ~ 1',11 as pessoas. Não está claro quais sejam estas condições. Por

I

'

"lIlplo, "o especialista em saúde mental" é descrito como alguém

1:

'11'" "oferece .con:ulta a l~gislado:es e adr;:in~stradores e cola~ora

111111 utros cidadãos em influenciar as agencias governamentais a

1IIIIIIifi ar as lei e regularnentos'l.s" Em português claro, um opinq

-Iltlt~1 para a burocracia da saúde mental.] .

psiqUIatra comunitário tambem auxilia "os legisladores e

urlnridades do Bem-Estar Social a melhorar o clima moral nos( 1111' onde crianças (ilegítimas) estão sendo educadas, e a

influen-I ,,. fluas mães a casar, dando-lhes, assim, pais estáveis".~

Ape-I," <1 Caplan mencionar a preocupação do psiquiatra

cornunitá-ma nacional de saúde mental, para auxiliar no InICIOuma nova abordagem e ênfase no cuidado com o doente mental... O Go-verno em todos os níveis - federal, estadual e local - fundações privadas e os cidadãos, individualmente, devem assumir suas res-ponsabilidades nesta área."35

Gerald Caplan, cujo livro Robert Fe1ix chamou de a "BÍ-blia. '. daqueles que trabalham com saúde mental comunitária", saudou esta mensagem como "o primeiro pronunciamento oficial sobre este tópico por um chefe de governo deste ou de qualquer outro pa~s:"36Doravante, acrescentou, "a prevenção, o tratamento, e a reabilitação do doente mental e do retardado mental deverão ser consi~eradas uma responsabilidade comunitária e não um pro-blema privado a ser tratado pelos indivíduos e suas famílias em

consulta com seus conselheiros médicos'l.ê" . .

Sem definir claramente o que é a Psiquiatria Comunitária ou v que pode ou.•.poderá fazer, proclamaram-na meramente boa' por s~r um esforço grupal, envolvendo a comunidade e o governo, e nao u~. esforç? pessoal, envolvendo indivíduos e suas associações

~VOluntanas, DIzem-nos que a promoção da "saúde mental

comu-nitária" é um problema tão complexo que requer a intervenção do

governo - mas que o cidadão individual é responsável por seu

ucesso. . .

A Psiquiatria Comunitária mal sai dos conselhos de planeja-mento; sua natureza e seus progressos não são mais que frases bombásticas epromessas utópicas. Na realidade, talvez a única coi-sa clara a respeito é a hostilidade ao psiquiatra em prática priva-da que presta serviços ao paciente individual: ele é descrito como

engajado em uma atividade infame. Seu papel tem mais que uma

le,:e semelhança ao de Brodsky, o poeta-parasita de Leningrado. Michael Gorman, por exemplo, cita com aprovação as reflexões d~ Henry Brosin so~re 0J>ape1 social do psiquiatra: "Não há dú-VIda de que o desafio do papel da PSlqUlatna está conosco todo o tempo. O aspecto interessante é como seremos no futuro. Não

os estereótipos e os homens de palha dos velhos empreendedores

privados da AMA.n38

35 J, F. Kennedy: "Message frorn The President of The United States

Relative to Mental I1Iness and Mental Retardation" (5 de fevereiro de

1963), 88.0 Cong., Primeira Sess,, "House of Representatives" Documento n." 58; reimpresso no Amer. J, Psychiatry ; 120:729-37 (fev.), i964, p. 730, 36 G. Caplan: "Principies of Preventive Psychiatry" (Nova York: Basic 13ooks, 1964), p. 3.

:37 lbid.

:38 Citado em M. Gorman: "Psychiatry and public policy", Amer. J Psychiatry, 122:55-60 (jan.)' ,1965, p. 56.

nll ',N. Parkinson: Parkinson's Law and Other Studies in Adminis-tratlon (1957), (Boston: Houghton Miff1in Co. 1962).

111 .aplan, op. cit., p. 56.

I1 Lobbyist, no original em inglês: aquele que freqüenta os corredores

ti lima câmara legislativa com o fim de influenciar os representantes

tio povo (N, do T.).

(10)

40 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 41

I

rio quanto aos efeitos do divórcio sobre as crianças, não há

co-mentário sobre o aconselhamento de mulheres que querem ajuda

para recorrer a divórcios, abortos ou anticoncepcionais.

Uma outra função do especialista em saúde mental é revisar

"as condições de vida de seu grupo-problema na população e desse

modo influenciar aqueles que ajudam a determinar estas

condi-ções, a fim de que suas leis, regulamentos e políticas ... sejam

modificados numa direção apropriada."43 Caplan enfatiza que não

está advogando o governo para os psiquiatras; ele conhece a

possi-bilidade do psiquiatra tornar-se, desse modo, o agente ou porta-voz

de certos grupos políticos ou sociais. Conclui o problema,

decla-rando que cada psiquiatra deve tomar uma decisão por si mesmo

e que seu livro não se dedica àqueles que desejam servir a

cer-tos grupos de interesses especiais, mas àqueles "que dirigem seus

esforços primordialmente à redução da desordem mental em nossas

comunidades=j+ Mas admite que a distinção entre psiquiatras que

exploram seu conhecimento profissional a serviço de uma

organi-zação e "aqueles que trabalham em uma organização para atingir

os objetivos de sua profissão" não é tão simples na prática. Por

exemplo, comentando sobre o papel de consultores psiquiátricos no

Corpo de Paz, brandamente observa que seu sucesso "não está

dissociado do fato de que eles foram capazes de aceitar por

com-pleto os principais objetivos daquela organização, e que este

entu-siasmo foi de pronto percebido por seus líderes".45

Sobre o papel indicado para o psiquiatra na clínica médica

.de sua comunidade (especificamente com relação à sua

fun-ção numa clínica, atendendo a uma mãe que tem uma relação

"perturbada" com seu filho), Caplan escreve: "Se o psiquiatra

preventivo pode convencer as autoridades médicas nas clínicas de

que suas operações são uma extensão lógica da prática médica

tradicional, seu papel será aprovado por todos envolvidos,

incluin-do ele mesmo. Tudo que lhe resta é resolver os detalhes téc-nicos."~

Mas é precisamente isso o que eu considero a questão

cen-traI: o chamado trabalho de saúde mental é "uma extensão

ló-gica da prática médica tradicional", seja preventivo, seja

terapêu-tico? Digo que não é uma extensão lógica, mas sim retórica."47

43 Ibid., pp. 62-63. 41 Ibid., p. 65.

45 Ibid.

46 Ibid., p. 79.

47 Ver Szasz: The Myth ot Mental lllness, supra; também "O mito da

doença mental", neste volume, capítulo 2; e "A retórica da rejeição", neste volume, capítulo 4.

I 111\101m palavras, a prática da educação da saúde mental e pSi-f

111111111Comunitária. não é prática médica, mas persuasão moral I IIrI,a política.

IV

. mo foi apontado anteriormente, saúde mental e doença

111'li!." não são mais que palavras novas para descrever valores

1111111, Mas em geral a semântica do movimento de saúde

men-Ili 11() passa de um novo vocabulário para promover um tipo

par-I1111li' de Ética secular.

I',st ponto de vista pode ser sustentado de várias maneiras.

'1111I ntarei fazê-lo pela citação de opiniões expressas pelo

Scien-1111C mmittee of the World Federation for Mental Health na

1I\11\I1prafiaintitulada Mental Health and Value S)'stems, editada 1"11I nneth Soddy.

N primeiro capítulo, os autores sinceramente admitem que

"" iúde mental é associada a princípios dependentes da religião .111 cI \ logia prevalente da comunidade em questão."48

J) pois, então, segue um retrospecto dos vários conceitos de

1111I!' mental proposto por vários autores. Por exemplo, na

opi-11(Icl Soddy, "A resposta de uma pessoa sadia à vida é

despro-'0111 de constrangimento; suas ambições estão dentro do limite

011 rcnlizaçâo prática ... "49 Enquanto que, na opinião de um

co-11"1 .ujo ponto de vista ele cita. a saúde mental "envolve boas I1111.)S .ilJte!pessoais consi o' ropno, com os ou ros e com 11,1\"DO - uma definição que co oca slmp esmente todos os ateu

1\I (I sse dos doentes mentais.

autores consideram o desgastado problema da relação entre

lt1 1)11.ção social e da saúde mental e têm um sucesso admirável

1111esquivar-se dos problemas que afirmam estar atacando: "A

11',,1 mental e adaptação social não são idênticas ... o que pode

II Ilustrado pelo fato de que poucas pessoas considerariam

al-"lI 111que se tornou melhor ajustada como resultado de ter deixado

111 munidade e se mudado para uma sociedade diferente, como

11wlo desse modo se tornado sadia mentalmente. " No passado,

11111\0ainda hoje em algumas sociedades, a adaptação à sociedade

I 11(11.a ser altamente valorizada. " como um sinal de saúde

men-I li, a falha em adaptar-se era ainda mais acentuadamente

con-dirnda como sinal ele má saúde... Há ocasiões e situações nas

'1111, do ponto elevista da saúde mental, a rebelião e a não COI 1-'" . Soddy, org.: Cross-Cultural Studies in Mental Health: Identity,

f li/ai Health, and Value Syslems, (Chicago: Quadrangle, 1962). p. 70. u lb/d., p. 72.

(11)

(

42 IDEOLOGIA E DOENÇA .MENTAL

formidade podem ser muito mais importantes que a adaptação 50-cial."Gl Mas nenhum critério é fornecido para distinguir, "dQ. ponto de vista da saúde mental", as situações às quais dev~ríamos nos conformar daquelas contra as uais deveríamos nos rebelar.

á muitos outros exemp os esse tipo e o agem ipócrita, Assim, nos dizem que, "conquanto seja improvável que haja con-cordância sobre a proposição de que todas as pessoas 'más' sejam mentalmente insanas, pode ser provável um acordo sobre que ne-nhuma pessoa 'má' poderia ser considerada como tendo o mais alto nível possível de saúde mental, e que muitas pessoas 'más' são mentalmente insanas."5~ Os problemas de que a quem cabe decidir quem são as pessoas "más", e sob que critérios são toma-das as decisões, são encobertos. Esta evasão da realidade dos valo-res éticos conflitantes no mundo como existem é o aspecto mais importante deste estudo. Talvez um dos objetivos de propor-se uma ética mental., confusa, mas compreensível, é o de manter esta re-cusa. De fato, o verdadeiro objetivo do psiquiatra comunitário parece ser o de recolocar um vocabulário político claro com uma semântica psiquiátrica obscura e um sistema pluralístico de va-lores morais com uma ética de saúde mental singularista. Aqui está um exemplo de como isto é realizado:

"N osso ponto de vista é de que o ato de um grupo social assumir uma atitude de Superioridade em relação a outro não é proveitoso para a saúde mental de nenhum deles."1I3 Alguns co-mentários simplistas sobre o problema do negro nos Estados Uni-dos têm seqüência. Sem dúvida, o sentimento aqui expresso é admirável. Mas os problemas reais da psiquiatria estão ligados não a grupos abstratos, mas a'indivíduos concretos. N o entanto, nada é dlto sobre as rela ões reais entre as pessoas - por exem-plo, entre a u tos e crianças, médicos e pacientes, peritos e clien-tes; e como nessas várias situações a consecução de um relacio-namento, que é tanto igualitário quanto funcional, requer uma ha-bilidade e esforço extremos de todos os envolvidos (e pode, em alguns casos, até ser impossível a sua realização).

O estudioso da Ética da saúde mental revela-se quando ana-lisa a saúde e a doença mental, e sua posição moral é ainda mais clara quando discute tratamento psiquiátrico. De fato, o promotor da saúde mental surge agora como um engenheiro social em gran-de escala: não se satisfará com nada menos que a permissão de exportar sua própria ideologia para um mercado mundial.

51 Ibid., pp. 75-76.

52 Ibid., p. 82. 113 Ibid., p. 106.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 43

Os autores começam sua discussão da promoção da saúde

III.ntal apontando as "resistências" contra a mesma: "Os

princí-)11 s que sustentam o sucesso em tentativas de alterar condições tnlturais no interesse da saúde mental, e os riscos de tais tentati-VIlS, são considerações muito importantes para o trabalho de saú-de mental prático... A introdução de modificações numa com~-nidade pode estar ~ujeita a),cond~ções não diferente~ daquelas obti- il

l

dns no caso da cnança... (grifo nosso).M AqUI; reconhecemos o familiar modelo médico-psiquiátrico de relações humanas: o

cliente é como a criança ignorante que deve ~er "protegida''., se 1\.cessário autocraticamente. e sem seu- consenttmento, 2..~~nto, .flue se parece com o pai onicornpeterite. .

- O psicoterapeuta que adota este ponto de VIsta e se com-promete com esse tipo de trabalho. adota uma titude condescen-dente com seus clientes (relutantes): ele os considera, na melhor das hipóteses, como crianças estúpidas que necessitam de educação .

•• na pior das hipóteses, como criminosos diabóli~os que necessi-tam ser corrigidos. Muito freqüentemente, procura Impor a

muda~-ça de valores através da força e da fraude, ;m lug~r de ser atraves do exemplo e da verdade. Em resumo, nao pratica o que prega. A atitude igualitária e de amor para com os semelhantes, a qual o psicoterapeuta está tão ansioso de exportar para as áreas "psi-quiatricamente subdesenvolvidas" do mundo, parece estar em

fal-ta

em toda parte. Ou deveríamos ignorar as relações entre

bran-os e negros nos Estados Unidos, e entre psiquiatra e paciente involuutário?

Os autores não estão inteiramente esquecidos destas dificul-dades. Mas parecem pensar que é suficiente admitir seu conheci-mento de ta-is problemas. Por exemplo, depois de comentar sobre as semelhanças entre a lavagem cerebral realizada na China e o tratamento 'psiquiátrico involuntário, escrevem:

"O termo lavagem cerebral tem ... sido aplicado com conota-ções infelizes na prática psicoterapêutica por aqueles que a ela são hostis. Consideramos que esta lição deva ser decorada por todos que são responsáveis por assegurar tratamento psiquiátrico a pa-cientes que não o desejam. O uso da compulsão ou do embuste certamente parecerá, àqueles que vêem com antipatia e que têm medo dos objetivos da Psicoterapia, imoral" (grifos nossos).5'6 O déspota "benevolente", quer político, quer psiquiátrico, não gosta de ver questionada a sua benevolência. Se o é, recorre à tática clássica do opressor: tenta silenciar seu crítico e, se isso . falha, tel1ta degradá-lo. O psiquiatra faz isso, rotulando aqueles

!li Ibid., p. 173.

(12)

44 IDEOLOGIA E DOEl-1ÇA MENTAL

~6 K. Davi~: "~e .ap~licat,~on of science to personal relations: A critique

to the farnily clinic idea, A mero Sociological Rev., 1:236-47 (abril) 1936, p. 238.

57 Ibid., p. 241.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 45

isto é, que" muitos clientes são conduzidos a clínicas

tami-liares à própria revelia."58 Analogamente, muitos outros mais. são

conduzidos a hospitais mentais estaduais e a clínicas mantidas por comunidades. A Psiquiatria Comunitária assim emerge, pelo menos em minha opinião, como uma nova tentativa de revitalizar

e expandir a velha indústria da higiene mental.

Primeiro, há uma nova campanha publicitária: a educação de saúde mental é uma tentativa de induzir pessoas insuspeitas a se tornarem clientes dos serviços de saúde mental comunitários. Depois, tendo criado uma procura - ou, neste caso, talvez mera-mente a aparência de uma -, a indústria se expande: isso toma a forma de consumos estavelmente crescentes para os hospitais psiquiátricos e clínicas existentes e para a criação de novas e mais altamente automatizadas fábricas, chamadas "centros de sa ú-de mental comunitários".

Antes de concluir essa crítica à Ética do trabalho psicoterápi-co, quero brevemente comentar sobre os valores advogados pelos autores de M ental Health and Value Systems.

Promovem a mudança como tal; a direção da mudança, no entanto, é freqüentemente mantida inespecífica. "O s uc~s-so da promoção da saúde mental depende parcialmente da cri a-ção de um clima favorável à mudança e uma crença de que a mudança é desejável e possível."59 Também enfatizam a necessi-dade de um exame minucioso de certas "pressuposições não co m-provadas; nenhuma delas, contudo, diz respeíto à natureza do tra-balho psicoterápico. Em vez disso, alistam, entre as pressuposições nã.Q...com rovadas idéias tais como ti. •. a mãe

é

sem re a melhor

pessoa para tomar conta e seu próprio filh.o."

Acredito que devêssemos objetar a tudo isto sobre fundamen-tos morais e lógicos básicos: se os valores morais devem ser dis-cutidos e fomentados, devem ser considerados pelo que são - va-lores morais, não valores de saúde. Por quê? Porque _os valores morais são, e devem ser do' eresse le ítimo de todos e não deve ser a com etencia es ecial d um ru o em ar ICU ;etiqüanto que os valores de saúde (e especialmente sua implementação téc-nica ) são, e devem ser, principalmente, do interesse de peritos em saúde e, em especial, dos médicos.

v

A despeito de como a chamamos, a saúde mental atualmente é um grande negócio. Isto é verdade em toda sociedade moderna,

ss Ibid..

59 Soddy, op. cit., p. 209.

(13)

10 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

lar seus semelhantes, sua liberdade acarreta a escravidão dos

de-mais, Um máximo ilimitado de escolhas livres para todos é

da-I

ramen~e impossível. Assim, acontece q~e a"liberdade .J..ndividual !!m sido sempre" e rovavelmente continuará sendo, qm-premlo

~ifícil de se obter, por requerer um equilíbrio delicado entre

auto-determinação suficiente para salvaguardar a autonomia pessoal

e

autocontrole suficie te Rara p1=0J~~ a autonomia dos outros,

O fiomem nasce aprisionado, vítima. inocente e desespe nç

a-da de paixões interiores e controles externos que o moldam e do -minam, O desenvolvimento pessoal é, assim, um process.o de

li-bertação individual no qual o autocontrole e a auto direção

su-plantam a anarquia interna e a coação externa, Portanto, os

pré-requisitos da liberdade individual - libertação do controle

arbi-trariamentepolítico e interpessoal, o domínio das complexidades

técnicas de objetos sofisticados, autodeterminação e

autoconfian-ça ....:....não. são. suficientes para o desenvolvimento e manifestação

das potencialidades criativas do- indivíduo, mas também, e ainda

mais importante, a autodisciplina.

A interação dialética de tendências opostas' ou temas de

liberdade e escravidão, liberação e opressão, competência e inco

m-petência, responsabilidade e licenciosidade, ordem e caos, tão

essen-ciais ao crescimento, vida e morte do indivíduo, é transformada,

em Psiquiatria e campos associados, em tendências opostas ou

te-mas de "maturidade" e "imaturidade", "independência" e

"depen-dência", "saúde mental" e "doença mental", e "sanidade" e "

lou-cura", Acredito que todos' esses termos psiquiátricos São

inade-quados e insatisfatórios, porque todos negligenciam ou desviam a

atenção do caráter essencialmente moral e palítico do desenvolv

i-mento humano e da existência social, Assim, a linguagem psiquiá

-trica retira o caráter ético e político das relações humanas e da

conduta pessoal. Em grande parte do meu. trabalho, tenho

pro-curado desfazer isso pela recolocação da Ética e da Política em

seus devidos lugares, nas questões referentes' às habitualmente

de-nominadas saúde mental e doeriça mental. Em 'resumo, tenho te

n-tado restaurar a índole ética e política da linguagem psiquiátrica,

Apesar dos ensaios reunidos nesse volume terem sido

escri-tos num período de aproximadamente dez anos, em cada um

de-les está relacionado algum aspecto do mesmo problema, a saber:

a relação entre ideologia e. insanidade, enquanto refletida na teo-ria- e prática psiquiátricas, Acredito que os resultados dessa

in-vestigação tenham um duplo significado: definem os dilemas

mo-rais do psiquiatra contemporâneo e, ao mesmo tempo, iluminam

problema político fundamental de nosso' tempo ou, talvez, da

própria condição humana, INTRODUÇÃO 11 II . , • . h a ou do processo vital, pe -A conquista da eXlstenCla umana, . id if . , l' ou com a I entllca

-Ias profissões ligadas à saude menta começ, lminou em

ção e classificação das chamadas doençdas men,tdals,e cu "problema

, fi ~ de que tu o na VI a e um

nossos dias com a a irmaçao d "reso

l-, " . " .. cia do' comportamento eve

~~~~~I,a~~~ndoqu;s ;or~~~ozes mais proeminentes .da ~siqui~r~J

esse' processo agora, está com~le~o, ,Por eX,e~plo,

°e

w

:

~_

re~ .

Rome consultor senwr em PSlqUl~tnana, Clínica ~ayo . p,_

sident~ da Associação Psiquiát:-ica. ~enca?a,; afmr:a, sem vacl_

I ' "Na realidade o mundo inteiro e o umco. reCipiente apr,? .

a~ ,d . ra o cauda.!' da Psiquiatria contemporanea,· e esta nao

pna o pa , d d t ía."!

deve se apavorar pela magmtu e a are a, .

-

-

---1 H, P. Rome: "Psychiatry

.petence of psychiatry." ·Amer.

p. 729.

and foreign afrairs: The expanding co

(14)

46 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

qualquer que seja sua estrutura política. É impossível, conseqüen

-tet;'le.nte, compreender o debate entre valores individualistas e

co-l:.t1Vlsta? em Psi<I,uiatria sem uma clara compreensão da orga

niza-çao social dos cuidados de saúde mental.

S~rpreendente como possa parecer, nos Estados Unidos 98%

dos cuidados para com o doente mental hospitalizado são providos

p~l.:>s gov~r~os Ít;dera1, estadual e dos condadosê- (N. do T.: d

i-.VIS~~ admll:~s~rattva). A situação na. Grã-Bretanha é parecida, Na

Uma o Soviética a taxa é. de 100%, evidentemente.

. Para ser ~claro, este não é o quadro total para os Estados

Umdos ou Gra-~retanha. A prática privada ainda é o que se in

fe-re do termo: p~lvada. No entanto, isso não significa que os

cuida-d?s .com o paciente' psiquiátrico interno sejam pagos com fundos

publt~o~, ou. que os cuidados com pacientes psiquiátricos de

am-bulatono seJ.am pag~s ~om fundos particulares. Os serviços para

c~m . os pacíerjtes .:lao-mternos são financiados tanto por fundos

p~bhc~s como pa~lculares. Incluindo todos os tipos de cuidados,

fOI estimado que .aproximada~ente 65

%

de todos os serviços de

tratamento de. paclent~s mentais são sustentados por impostos e

35% por serviços particulares e voluntários't/'ê

As in:plicações do ~asto e expansivo envolvimento do gove

r-no em cU1d~dos de saude mental têm sido, penso, insuficien

te-me~te apreciadas. Além disso, quaisquer que sejam os problemas

ad~~n~os do contr?~e governamental nos cuidados hospitalares

psi-qUI~tncos, suas dificuldades estão relacionadas com um problema

lo~lca~ente a?tecedente: qual o objetivo dos cuidados oferecidos?

Nao ajuda .dlzer que é o de transformar os doentes mentais em

pessoas sadias. Vimos que os termos "sa.úde mental" e "d

1" d . r oen~

~enta . eSl~~a~ ,va.1ores éttcos e desempenhos sociais. O sistema

do hospl~al psíquiàtríco então .serve, se bem que dissimu1adamente,

para. estimular ;ertos. valores e desempenhos, e suprimir outros.

Quais val0.res sao eS~lmu1ados e quais são suprimidos depende, é

cla,ro, do tipo de sociedade. que está patrocinando os "cuidados de

saúde". .

Mais uma vez, esses pontos não são novid~de. Pontos de v

is-ta semel?a~tes ~oram articulados por outros. Davis observou que

aos possrveis clientes de clínicas psicoterapêuticas "é dito de um

modo ou de.outro, através de conferências, publicidade em jornais,

6:

.

D. Blain: ':Action in mental health:Opportunities and

lities of the pnvate sector of society". Amer. J. Psychiatry

(nov.), 1964, p. 425.' .~ ,

62 Ibid.

responsi

bi-121:422-27

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 47

1111 nnúncios discretos, que a clínica existe com o propósito de

I lidar indivíduos a resolver seus problemas; enquanto que na

ver-tllcI. elas existem com o propósito de ajudar a ordem social esta

-111II ida. Uma vez induzido a ir à clínica, o indivíduo pode ser

unvumente desiludido, sob a forma de propaganda que tenta

con-'I 11 ê-lo de que seu melhor interesse reside em fazer o que ele,

Ip,(I' ntemente, não quer fazer, como se o "melhor interesse" de

1111I indivíduo pudesse ser julgado por qualquer coisa que não seus

pl6prios desejos."M

Devido ao caráter involuntário deste tipo de clínica ou

hos-pital, sucede, segundo Davis (e eu concordo com ele), que o servi

-u"deve encontrar subsídios (filantrópicos ou governamentais) em

v z de lucro através de honorários. Mais adiante, já que seu

pro-pô ito na maioria dos casos se identifica com a comunidade em

vez de com a pessoa a quem serve, e já que requer o uso da

força ou embuste para levar a cabo seu propósito, deve funcionar

corno uma arma da lei e do governo. Não é permitido o uso da

força e da fraude com indivíduos em sua capacidade privada ...

• nseqüentemente, para apaziguar conflitos familiares pelo refo

r-ço de normas sociais, uma clínica psicoterapêutica deve estar r

e-v stida do poder ou pelo menos do manto de alguma instituição

uitorizada pelo Estado para o exercício da decepção sistemática,

t 1 como na Igreja."M

A comunidade poderia sustentar uma clínica devotada a

es-timular os melhores interesses do cliente, em lugar dos da c

omu-nidade? Davis considerou esta possibilidade e concluiu que não.

Porque, se este tipo de clínica está por existir, então, "como

aque-la do outro tipo, ela deve usar de força e de logro - não s

o-bre o cliente, mas sobre a comunidade. Deve interferir nos

corre-ti res legislativos; empregar armas políticas e, acima de tudo, ne

-gar seu verdadeiro propósito.'?" (Temos visto a Psicanálise

ame-ricana organizada fazer justamente isso.) 66

Davis não deixa dúvidas sobre as alternativas básicas que a

Psiquiatria deveria, mas se recusa, enfrentar: "A clínica indivi

-dualística aceitaria os critérios de seu cliente. O outro tipo de

clí-nica aceitaria os critérios da sociedade. Na prática, somente a úl

-(111 Davis, op. cit., pp. 241-42.

01 Ibid., pp. 242-43.

ou lbid., p. 243. .' .

(10 Ver T. S. Zzasz: "psychoanalysis and taxation: A contribution t.

the theoríc of the disease concept in psychiatry". Amer. J. Psychothearapy.

18:635-43 (out.) , 1964; "A note on psychiatric rhetoric." Amer. J.

(15)

48 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

tima é aceitável. porque o Estado está revestido do poder de usar da força e da fraude."67 Na medida em que as clínicas psicote-rapêuticas ou outros tipos de facilidades de saúde mental tentam render serviços de ambos os tipos, "estão tentando montar em dois .cavalos colocados em direções opostas."68

A comparação dos cuidados oferecidos pelos hospitais ps iquiá-tricos, na Rússia e nos Estados Unidos, sustenta o argumento de que os valores e desempenhos que a Psiquiatria estimula ou su-prime estão relacionados com a sociedade que patrocina o serviço psiquiátrico. A proporção de médicos e leitos hospitalares para a população é aproximadamente a mesma em ambos os países. Con-tudo, essa semelhança é enganadora. Na União Soviética, exis-tem aproximadamente 200.000 leitos em hospitais psiquiátricos;· nos Estados Unidos, aproximadamente 750.000. Por outro lado, "11,2% de todos os leitos hospitalares na União Soviética são ocupados por pacjentes psiquiátricos, comparados com 46,4% nos Estados Unidos."69

Esta diferença é melhor explicada por certas políticas sociais e psiquiátricas que encorajam a internação em hospitais psiquiá-tricos nos Estados Unidos, mas desencorajam na Rússia. Além disso, a principal ênfase soviética nos cuidados psiquiátricos é o trabalho forçado, enquanto a nossa é a frivolidade forçada; eles compelem os pacientes psiquiátricos a produzir, enquanto nós os compelimos a consumir. Parece improvável que estas ênfases " te-rapêuticas" não devessem ser relacionadas com a escassez de tra -balho crônica na Rússia e o nosso crônico excesso.

Na Rússia, "Iaborterapia" difere do trabalho comum no fato de uma ser levada a cabo sob os auspicios de uma instituição psiquiátrica e a última sob os auspícios de uma fábrica ou faze n-da, respectivamente. Além disso, como vimos no caso de Iosií Brodsky, o criminoso russo é sentenciado para o trabalho - não para a frivolidade (ou abertura de novos empregos), como seu correspondente americano. Tudo isto advém de duas fontes bá-sicas: primeiro, da teoria sócio-política soviética que sustenta que "trabalho produtivo" é bom e necessário tanto para a sociedade como para o indivíduo; segundo, do fato sócio-econômico sovié -tico de que num sistema de burocracias colossais (onde faltam controle e equilíbrio adequados) mais e mais pessoas são necessá

-67 Davis, op. cit., p. 244.

68 lbid., p. 245.

69 J. Wortis, and D. Freundlich: "Psychiatric work therapy in the

Soviet Union. Amer J. Psychiatry, 1211:123-25 (agosto), 1964, p. 123.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 49

os soviéticos têm

711 Ibid.

I Ibid., p. 124. T~ lbid., p. 127.

(16)

50 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

te inclina-se para menos de 5% da força de trabalho (sem incluir muitas pessoas mais velhas capazes de trabalhar). Ao mesmo te~ -po, nos hospitais psiquiátricos americanos o trabalho si nificativo e pro UIVO e esencoraja o e, se necessário, roibido ela for . Em vez de defInir o trabar 10 "f'õrãdo como tera ia - como _O

fazem os soviéticos - nós definimos a ociosidade forçada como terapia.

.

o

único trabalho permitido ou encora' ado e o tra a -lho necessário ara manter as instala ões e servi os hospitalares e, mesmo nesta categona, somente o tra a 10 ue e consl era o

nao competitivo com as empresas privadas.

Como sugeri naalgum tempo, lia mternação em hospitais psi -quiátricos serve como uma função sócio-econômica dupla. Primei -ro, pela defini ~o das essoas internadas como inca azes e r -duzir tra alho (e freqüentem ente proibindo-as de trabalhar mesmo

-ªpós a alta), o sistema de cuidados psiquiátricos serve para di -minUIr nossa taxa nacional de desemprego; um. grande número de pessoas são"clas'sificadas como mentalmente insanas em vez de incompetentes socialmente ou desempregadas. Segundo, pela cria -ção de uma vasta organização de hospitais psiquiátricos e institui -ções filiadas, o sistema de cuidados com a saúde mental ajuda a oferecer novos empregos; de fato, o número de empregos psiquiá-tricos e parapsiquiátricos assim criados é assustador. Como re-sultado, maiores cortes nos gastos da burocracia da saúde mental ameaçam o mesmo tipo de deslocamento econômico, da mesma for-ma que o fazem os cortes nos gastos com a Defesa, e são, talvez. igualmente "impensáveis".

Parece-me, conseqüentemente, que, ao contrário da repetida propaganda sobre os altos custos da doença mental, nós temos um engenhoso interesse econômico para perpetuar e até mesmo aumen-tar tal "doença". Confrontados como estamos com a superprodu-ção e desemprego, podemos evidentemente sustentar o "custo" de cuidar de centenas de milhares de "pacientes mentais" e seus dependentes. Mas podemos sustentar o "custo" de não tomar con-ta deles e assim acrescentá-Ios ao número de desempregados, não somente os assim chamados doentes mentais, mas também as pessoas que deles "tratam" atualmente e neles "pesquisam"?

Quaisquer que sejam os objetivos ostentados pela Psiquia-tria comunitária, suas operações reais são passíveis de serem in-fluenciadas por considerações e fatos sócio-econômicos e políticos

tais como os que discutimos aqui.

73 T. S. Szasz: "Review of The Economics oi Mental lIlness, por Rashi

Fein" (Nova York: Basic Books, 1958). AMA Archives of General Psychiatry, 1:116-18 (julho), 1959.

A ÉTICA DA SAÚDE MENTAL 51

VI

A Psiquiatria é uma empresa moral e social. O psiquiatra I1 ti L de problemas de conduta humana. E; conseqüentemen!e,

.c~-1,11 udo em situações de conflito - freqüentemente entre o

indiví-tllll) o grupo. Se quisermos compreender a Psiquiatria, não po-d'IIlOS desviar os olhos desse dilema: devemos saber de que lado

, I(L O psiquiatra - do lado do indivíduo ou do grupo.

Os componentes da ideologia da saúde me?tal~ descrevem .0

I"oblema em termos diferentes. Pela não enfatização dos

confli-111 entre as pessoas, evitam colocar-se explicitamente. con;o

agen-II ou do indivíduo ou do grupo. Como preferem visualizar, em VII. de promover os interesses de um ou outro partido ou valor

moral, promovem a "saúde mental". ..

Considerações como essas levaram-me a concluir que o

con-I con-I'it de doença mental é uma traição ao senso comum e a uma vi fio ética do homem. Para ser claro, quando quer que falemos di' um conceito de homem, nosso problema inicial é o de defini-I 10 e de filosofia: o que siFínifica homem? Seguindo na tradiçã~

do individualismo e racionahsmo, sustento que um ser humano e uuia pessoa na medida em que faz escolhas livres, não coagidas. trualquer coisa que aumente sua liberdade. aumentar~ ~ua. hu-11mnidade ; qualquer coisa que diminua sua liberdade dIminUI sua humanidade.

Liberdade independência e responsabilidade progressivas le-vam o indivíduo a ser um homem; escravidão, dependência

e

irres-ponsabilidade progressivas, a ser uma c.oisa. Hoj~, ~ inevitavel-mente claro que, a despeito de suas origens e objetivos, o con-I'-ito de doença mental serve para escravizar o homem. Ofa~ pela JH'rmissão - na realidade, ordenação - de um homem Impor

un vontade sobre outrem.

Vimos que os fornecedores de cuidados com a saúde mental, I pccialmente quando tais cuidados sã~ oferecidos pel.o gov~rx:o,

I) na realidade os fornecedores dos interesses morais e

SOCIO-1'(' nômicos do Estado. Isto dificilmente surpreende. Que outros

nl resses poderiam eles representar? Seguramente não .aqueles do

pn iente, euj os interesses são freqüenternente antagomcos aos

do Estado. Desse modo, a Psiquiatria - agora orgulhosamente

1hamada de "Psiquiatria Comunitária" -: torna-se la.r~amen~e ~

III·j de controlar o indivíduo. Numa SOCIedade massiíicada, ISto e

11\lhor realizado pelo reconhecimento de sua existência, do. p~-dsnte somente como membro de um grupo e nunca como um indi-vlduo.

(17)

52 IDEOLOGIA E DOENÇA MENTAL

O perigo é claro e foi apontado por outros. Nos Estado

Unidos, quando a ideologia do totalitarismo é promovida como

fascismo ou comunismo, ela é friamente rejeitada. Contudo, quan

-do a mesma ideologia é promovida sob o disfarce de cuidados de

saúde mental ela é calorosamente abraçada. Assim, parece possí

-vel que, onde o comunismo e o fascismo falharam em coletivizar

a sociedade americana, a Ética da saúde mental possa ainda ter

sucesso.

4.

A RETóRICA DA REJEIÇÃO

Num ensaio anterior." tentei esclarecer o conceito de doença

men-tal, oferecendo uma análise lógica da mesma. Nas ciências físicas,·

nde a linguagem é usada principalmente de forma descritiva -ito é, para comunicar como as coisas são - é freqüente que tal análise seja suficiente para dissipar as obscuridades. Contudo, nas ciências sociais ou humanas, onde a linguagem não é só usada des-.

ritivamente, mas também promocionalrnente - ou seja, para

co-municar não somente como as coisas são, mas também como

de-veriam ser - isso não basta e deve, conseqüentemente, ser co

m-plcmentado por uma análise dos aspectos históricos, morais e

táti-c s do conceito em questão. O objetivo deste ensaio, assim, é

de melhor esclarecer o.conceito de doença mental pelo exame de

eus antecedentes históricos, implicações morais e funções es

tra-tégicas.

II

A linguagem tem três principais funções: transmitir info rma-ções, induzir estado de ânimo e promover a ação.n Deve ser

nfatizado que a clareza conceitual é necessária somente para o

uso da linguagem cognitiva ou de transmissão de informações. Fa

l-ta de clareza pode não ser um defeito quando a linguagem é usada

para influenciar as pessoas; na verdade, freqüentemente é uma

vantagem.

As ciências sociais - a Psiquiatria entre elas - se dedicam no estudo de como as pessoas se influenciam umas às outras. O uso promocional da linguagem é, conseqüentemente, um aspecto

significativo das observações que as ciências sociais tentam

des-H T. S. Szasz: "O mito da doença mental". Neste volume, capítulo 4.

7~ H. Reichenbach: "Elernents of Symbolic Logic, (Nova York: Mac -millan, 1947), pp. 1-20.

Referências

Documentos relacionados

O Museu Digital dos Ex-votos, projeto acadêmico que objetiva apresentar os ex- votos do Brasil, não terá, evidentemente, a mesma dinâmica da sala de milagres, mas em

nhece a pretensão de Aristóteles de que haja uma ligação direta entre o dictum de omni et nullo e a validade dos silogismos perfeitos, mas a julga improcedente. Um dos

Não pode ser copiado, escaneado, ou duplicado, no todo ou em parte, exceto para uso como permitido em uma licença distribuída com um certo produto ou serviço ou de outra forma em

Equipamentos de emergência imediatamente acessíveis, com instruções de utilização. Assegurar-se que os lava- olhos e os chuveiros de segurança estejam próximos ao local de

O objetivo deste experimento foi avaliar o efeito de doses de extrato hidroalcoólico de mudas de tomate cultivar Perinha, Lycopersicon esculentum M., sobre

17 CORTE IDH. Caso Castañeda Gutman vs.. restrição ao lançamento de uma candidatura a cargo político pode demandar o enfrentamento de temas de ordem histórica, social e política

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

*-XXXX-(sobrenome) *-XXXX-MARTINEZ Sobrenome feito por qualquer sucursal a que se tenha acesso.. Uma reserva cancelada ainda possuirá os dados do cliente, porém, não terá