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Walcyr Carrasco - Meu Primeiro Beijo rev

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Academic year: 2021

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Meu primeiro beijo

Meu primeiro beijo

Meu primeiro beijo

Meu primeiro beijo

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WALCYR CARRASCO

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Copyright © Walcyr Carrasco, 1997

Todos os direitos de edição reservados à QUINTETO EDITORIAL LTDA.

Editora Maria Esther Nejm

Editor de arte Alberto Lunares

Ilustrações Olavo Cavalcanti

Diagramação Wilde Velasques Kern

Editoração eletrônica Finalização

Vânia Aparecida Maia de Oliveira Coordenação

Carlos Rizzi

Reginaldo Soares Damasceno

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Carrasco, Walcyr.

Meu primeiro beijo / Walcyr Carrasco;

ilustrador: Olavo Cavalcante — São Paulo: Quinteto Editorial, 1997. ISBN 85-305-0117-9

1. Literatura infanto-juvenil. I. Cavalcante, Olavo, li. Título. 97-0321 CDD-028.5

índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infanto-juvenil 028.5

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É difícil ser filha da minha mãe. Ela é linda, tão linda que todo mundo diz:

— Ela tem um rosto de anjo! E eu, que rosto tenho? De capeta? Odeio sair com minha mãe na rua. Os homens assobiam, fazem o maior estardalhaço. Até meus amigos na escola comentam:

— A mãe da Clara, hem? Eu queria ter uma mãe assim.

Sei que você pode achar que estou exagerando. Quando a gente escreve uma história, tem liberdade total. Eu posso usar as palavras que quiser, inventar que minha mãe é alta ou baixa, gorda ou magra. Ou dizer que tem asas. Escrever é bom por isso. A cabeça da gente voa. Uma delícia.

Mas, se eu disser que minha mãe tem asas e me carrega pra escola voando, você saberá que é invenção pura. Porque o dia que surgir uma mãe com asas, vai aparecer na televisão. Ou ela vai esconder as asas, pra ninguém ficar falando.

Por isso vou me restringir aos fatos que mudaram completamente minha vida.

E para falar deles, é preciso falar da beleza da minha mãe.

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São Paulo. Ganhou todos os concursos de beleza locais.

Três rapazes se apaixonaram perdidamente por ela. Meu avô não quis permitir o namoro. Naqueles tempos, os namoros eram levados muito a sério, segundo ela conta. Diz que a primeira vez em que beijou alguém no portão de casa estava com um medo danado de ser pega pela minha avó, e já era bem adulta.

Ah, os tempos mudaram! Na minha classe, existem três meninas que já beijaram alguém. Duas fazem o maior ar de mistério e não querem contar como foi, de jeito nenhum. Mas a Selma, que é muito amiga minha, diz que beijo tem gosto de chiclete. Eu perguntei se não é porque ela foi beijar um menino que estava mascando chiclete, mas ela garante que não. Já consultou várias pessoas, e todas garantem que beijo e chiclete têm o mesmo sabor. A Selma, pra dizer a verdade, só beijou um garoto da escola uma única vez. Agora, quando eles se encontram, ele fica vermelho e foge de medo dela. Eu nunca tive chance de beijar alguém. Por enquanto, treino com meu ursinho. Assim, mais tarde, ninguém vai sair dizendo que sou inexperiente. (Apesar de que, nesse tipo de assunto, as opiniões variam muito. A tia de minha mãe nunca se casou, nunca teve namorado, nunca beijou ninguém e fala disso com o maior orgulho.)

Voltando à minha mãe e aos três rapazes que se apaixonaram por ela.

Minha avó contou que um deles era magro, alto, tinha costeletas pretas e usava um par de calças vermelhas. Devia ser muito lindo, porque todas as moças da cidade eram loucas por ele. Tinha um carro conversível e todas as sextas e sábados atravessava as ruas com os pneus chiando, o motor roncando, o rádio bem alto e sempre uma nova namorada do lado. Era muito rico, pois seu pai tinha imensas fazendas de gado leiteiro. Quando viu minha mãe pela primeira vez, ela estava parada de manhã muito cedo no ponto de ônibus. Naquela época, embora ainda estivesse na escola, estudando pra ser professora, minha mãe dava aulas numa escola num sítio, a duas horas de distância de ônibus. Era uma vida dura.

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Em compensação, a vida do rapaz era mole! Naquele dia, ele só estava acordado tão cedo porque tinha passado a noite toda numa festa. Vinha todo alegre, ao volante, quando viu minha mãe. Brecou, fazendo barulho com os pneus, e ofereceu uma carona. Mamãe olhou para ele, viu que tinha os olhos vermelhos por falta de sono e deu uma gargalhada.

— Vai dormir, que é melhor! — disse ela.

Desde aquele dia, o rapaz ficou perdidamente apaixonado. Deixou de ter namoradas, deixou de ir a festas.

Ia esperar minha mãe na porta da escola. De noite, estacionava em frente à casa de meus avós. Quando mamãe foi a seu primeiro baile, com um vestido lindo que minha avó demorou dois meses para bordar, o rapaz comprou uma mesa de pista e conseguiu dançar com ela. Disse que estava apaixonado, mas mamãe riu e explicou que não pensava no assunto.

Mesmo assim, o rapaz continuou insistindo. Até na igreja ele começou a ir, só para ver mamãe. Foi assim até o dia em que ela se casou.

O nome desse rapaz era Braz.

O segundo apaixonado era colega de escola, vizinho de meus avós. Ele e mamãe eram amigos desde crianças, e toda a vizinhança comentava que um dia iriam se casar. Quando ficaram mocinhos, ele convidou mamãe para ir ao cinema, e ela aceitou, porque sempre tinham sido muito amigos. No cinema, ele ofereceu uma bala. Quando ela foi pegar a bala, seus dedos se tocaram, e ele agarrou a mão dela inteira. Mamãe deixou que ele pegasse na mão dela, pensando que nada tinha de mais. Ele acreditou que isso queria dizer:

— Sim, eu quero namorar você!

Foi aproximando os lábios. Mamãe levou um susto tão grande que engoliu a bala e quase sufocou. Gemeu que estava sem ar, e o rapaz teve que abaná-la. Na volta do cinema, ele puxou assunto. Falou do namoro. Ela respondeu que era muito nova, não pensava nessas coisas, e deviam continuar amigos.

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Desde então, toda vez que a via, ele olhava para ela com um ar de peixe morto que dava até pena.

O nome desse rapaz era Amarildo.

O terceiro era um rapaz que tinha vindo da Bahia. Trabalhava numa fábrica de sabão. Passava o dia no meio da soda e do cheiro forte dos produtos químicos. Por isso tinha um cheiro diferente. Se estava a um quarteirão, minha avó já sentia o cheiro.

Foi a sorte ele ter um cheiro tão forte.

De tão apaixonado, ele quis raptar minha mãe.

Arrumou um caminhãozinho e, quando ela vinha voltando da escola, ficou escondido numa esquina. Quando minha mãe virou a rua, ele botou um lenço com um produto químico muito forte no nariz dela. Ela desmaiou, e ele a levou pro caminhãozinho. Amarrou seus pulsos e botou um lenço na sua boca.

Mamãe acordou no campo, já de noitinha, toda amarrada.

Ele explicou que ela não precisava ter medo, porque só tinha feito aquilo pra ter a chance de dizer que a amava e que daria sua vida por ela.

Em seguida, tirou o lenço de sua boca e pediu que não gritasse, pois queria conversar com ela.

Conversar coisa nenhuma! Fez um biquinho com os lábios e foi se aproximando de mamãe. Quando sentiu os fios do bigode dele bem próximos, ela gritou que nem louca.

O delegado já estava na trilha, devido ao cheiro de sabão que o rapaz tinha no corpo. Com os gritos, correu.

O rapaz foi preso. Meus avós não quiseram processá-lo, pois nada acontecera a mamãe. Foi solto, com a condição de ir embora da cidade. Nunca mais se ouviu falar dele, por isso nem vale a pena dizer o nome. Cada vez que minha avó sentia cheiro de sabão forte, corria atrás de mamãe, pra ver se estava tudo bem.

E natural que você pense: se a mãe dela não quis saber de nenhum de seus apaixonados, como é que ela nasceu e agora está escrevendo este livro?

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Simples: mamãe casou com papai, que nem pensava em casar com ela.

Acontece que ela sempre teve suas próprias idéias, e estava apaixonada por ele há mais de um ano. Era um professor do colégio, quinze anos mais velho do que ela. Ninguém podia imaginar que ele pudesse ser alvo de tão grande paixão.

Solteirão, sem muito dinheiro, o professor Adalberto tinha vindo de São Paulo. Diziam que era muito inteligente e que estava prestando concurso para ser professor numa universidade paulista. Também escrevia romances, tinha um livro publicado. Era um homem sério, sempre calado, e jamais pensaria em namorar uma aluna. Mesmo porque tinha um grande segredo, que não revelava a ninguém.

Mamãe sonhava com ele dia e noite, e não tinha olhos para nenhum de seus apaixonados.

Quando terminou a escola, mamãe teve a maior decepção. O professor Adalberto estava mudando de cidade. Conseguira, afinal, a vaga de professor na universidade. Mamãe, que era linda e tinha qualquer homem a seus pés, não sabia o que fazer. Por isso, não fez nada, e passou noites e noites chorando no travesseiro.

Mais tarde, mamãe veio para São Paulo prestar o vestibular. Dias depois, estava andando na rua quando um homem a viu de longe e correu até ela. Trabalhava para uma agência de modelos e convidou mamãe para fazer fotografias. Ela aceitou, porque pagavam muitíssimo bem. Até hoje guardo uma fotografia de mamãe anunciando um creme para a pele.

Mamãe fez sucesso como modelo. E também no coração dos homens. Todas as semanas, recebia flores, bombons e propostas de casamento. Nem queria saber. Ainda pensava naquele professor, embora nem soubesse onde ele estava.

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Ela foi convidada para um trabalho muito importante: as fotos da nova coleção de diamantes de uma das principais joalherias do país. Foi para o shopping, onde vestiu uma roupa lindíssima. Botou colares e pulseiras de diamantes que a faziam brilhar como o sol. Enquanto posava para as fotos, uma multidão se juntou. Todo mundo comentava:

— Como é linda!

No intervalo entre uma foto e outra, ela viu uma figura conhecida.

Era a única pessoa que não dava importância para as fotos. O professor Adalberto, que observava os lançamentos na vitrina de uma livraria. Mamãe fez "Ah!". Pediu licença e correu atrás dele, com todos os diamantes na mão. Os seguranças foram atrás apavorados, porque era um risco se misturar com a multidão cheia de jóias como ela estava. Ela gritou:

— Professor Adalberto! Ele se virou, surpreso. Não reconheceu naquela mulher deslumbrante a aluna de dois anos atrás. Ela se apresentou:

— Sou Cristina. Estudei com você. Ele se lembrou, de boca aberta.

Nunca podia imaginar que a aluna fosse se transformar numa mulher tão linda.

Menos ainda que ela se lembrasse dele, depois de ter ficado tão famosa.

— Ainda tenho o livro que você escreveu — ela disse. Ele agradeceu e começou a se despedir.

Então, ela agarrou as mãos dele e disse, de uma vez só:

— Não vá embora nunca mais. Sempre fui apaixonada por você. Com os olhos arregalados, Adalberto observava aquela mulher deslumbrante, muito acima dos sonhos de qualquer homem, dizendo que o amava desde sempre. Abriu a boca ainda mais, e foi abrindo, abrindo, até cair desmaiado no chão. A multidão, entusiasmada, começou a aplaudir, pensando que fosse uma cena da filmagem.

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Ele ficou apaixonado por ela, mas não queria casar. — Vou estragar sua vida — ele dizia.

Finalmente, revelou seu segredo. Tinha uma doença muito grave no coração. Era um problema com o qual tinha nascido. Enfim, era um homem que, a qualquer momento...

— Não posso oferecer nenhuma segurança a você.

Mas mamãe o amava de verdade. Até hoje diz que o reencontro foi o momento mais bonito de sua vida.

Com o que ganhava como modelo, ela comprou o apartamento onde vivemos. E bom. Mas, como a carreira de modelo é curta, ela voltou a estudar. Fez faculdade, e hoje trabalha como relações-públicas numa grande companhia de aviação. Graças a esse emprego é que vivemos com algum conforto. (E é por isso que já fui uma vez a Miami e outra à França. Mamãe ganhou as passagens de graça!)

Papai morreu alguns anos depois, poucos meses após meu nascimento.

Mamãe sempre diz que nunca deixou de amá-lo.

Eu só o conheci por fotografias, pelo que minha mãe e minha avó contam, e pelo livro que ele escreveu. Sempre que posso, leio um pedacinho e imagino que estou conversando com ele.

Sinto falta de ter conhecido meu pai. Todo mundo diz que puxei a ele.

Não herdei a beleza de mamãe, mas o nariz em forma de cabo de guarda-chuva de papai. Nunca fui uma menina linda como mamãe. Para piorar as coisas, nos últimos meses, comecei a usar óculos. A molecada na escola me chama de quatro-olhos, e eu fico louca da vida! Acho que nunca ninguém se atirará a meus pés, ou dirá que larga tudo por mim. Tenho medo de nunca receber flores, bombons e de jamais ouvir palavras de paixão.

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Mas também sou obrigada a reconhecer: herdei de meu pai o gosto por escrever, e isso me faz muito bem. Mamãe sempre lembra uma frase que ele dizia:

— Quem tem um livro nunca está sozinho.

Porque meu pai era assim: lia enquanto viajava, lia antes de dormir. Lia sempre que podia. Eu queria muito ter conhecido meu pai.

Pelo que mamãe conta, nós teríamos sido grandes amigos.

Diz mamãe que beleza não é tudo. Concordo. Porque, embora seja tão linda, nunca mais se apaixonou, desde que papai morreu. Vovó reclamava, dizia que ela não podia passar a vida toda sozinha. Mamãe sorria, "triste:

— Como o Adalberto, não vou encontrar ninguém.

Mas um dia desses eu cheguei em casa, da rua, e entrei no quarto sem que mamãe me visse. Ela estava deitada, apoiada no travesseiro, vendo televisão. (Em nosso apartamento, a televisão fica no quarto dela.) Notei que era um filme de amor que sempre passa na televisão. Só que não estava vendo coisa nenhuma.

Ela chorava. As lágrimas rolavam em seu rosto.

Eu voltei para a sala. Fiquei sem jeito. O que é que se pode dizer pra uma mãe que está chorando?

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Foi nesse dia que eu percebi como minha mãe era triste. Por isso resolvi fazer várias coisas. É disso que vou falar.

Como comecei a usar óculos, como fiz mamãe ficar feliz, e como dei — ufa! — meu primeiro beijo de verdade!

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Tudo começou quando senti meus olhos arderem. Reclamei pra mamãe, ela pingou colírio.

Não adiantou.

Além disso, eu sentia uma dorzinha de cabeça que não parava. Falei com ela de novo. No trabalho, comentou com uma amiga, que aconselhou:

— O melhor é levar ao médico.

O problema de mamãe era justamente esse. Hoje em dia os médicos são todos especializados, e ela não sabia por onde começar.

Ligou para meus avós, que vieram do interior, pois mamãe não podia faltar muito no emprego. Freqüentemente, meus avós passavam longas temporadas conosco. Nós não temos empregada, apenas uma faxineira que vem lavar e passar roupa duas vezes por semana, e a presença de meus avós ajudava muito. Principalmente porque vovó sabe fazer comida do jeito que eu gosto: feijão, arroz, bife bem temperadinho, com cebolas, e salada de alface com tomate.

Quando soube da dor de cabeça, vovó aconselhou: — Leve logo ao médico. Pode ser apendicite.

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apendicite, pois ela operou quando criança, e quase morreu no hospital. — Apendicite não dá dor nos olhos, minha velha — divertiu-se vovô.

Mamãe marcou consulta com um oftalmologista. Foi uma tarde decisiva.

Fui até lá com meus avós. Era um médico muito simpático. Entrei numa sala cheia de aparelhos enormes.

— Não vai doer nada — ele garantiu.

Doer, não doeu. Mas era uma sensação muito esquisita.

Eu tinha que ficar sentada, olhando uma luzinha vermelha lá no fundo. Enquanto isso, ele observava dentro dos meus olhos.

Depois, sentei numa cadeira e ele colocou um aparelho apoiado no meu nariz. Cada vez que ele mexia no aparelho, algumas lentes se moviam e minha visão se modificava. Na minha frente, ele projetou várias séries de letras. Algumas tão pequenininhas que eu não conseguia enxergar. Outras pareciam borradas, mas, quando ele mudava as lentes, melhoravam. Eu fiz o maior esforço para acertar. Quando eu dizia, ele apenas me olhava com um sorriso e botava nova série de letras. No final, vovó perguntou:

— E grave, doutor?

— Que grave coisa nenhuma! E só miopia! — ele declarou. E deu a sentença:

— Você vai ter que usar óculos. Estremeci.

Tive vontade que acontecesse um terremoto, só para que o chão abrisse e eu entrasse dentro da terra!

Óculos?

De óculos, eu nunca seria tão bonita quanto a mamãe!

Comecei a chorar dizendo que nunca usaria óculos. Vovó me consolou, explicando que não era feio, que existem óculos lindos.

No dia seguinte, fui com mamãe a uma ótica. Exigi que ela fosse, porque sempre teve muito bom gosto para se vestir e poderia me ajudar. Não foi fácil! Logo descobri que meu gosto não combinava nem um

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pouco com o dela!

A armação que mais me interessou era incrível!

Era um par de óculos com dois cisnes em cima. Seus bicos se tocavam bem na parte que fica em cima do nariz. Um charme. Com uns óculos daqueles, eu até que ficaria bem. Mas minha mãe explicou que eram muito pesados para serem usados todos os dias e que a armação era muito grande para meu rosto de menina.

— Além disso, logo você vai se cansar desses cisnes! Como eu poderia me cansar de uns cisnes tão lindos?

Mas vocês sabem muito bem que, quando a mãe da gente decide uma coisa, é inútil bater boca, principalmente quando se trata de óculos, sapatos e biquínis.

Aí eu vi uns óculos mais incríveis ainda. Era uma armação preta, bem grossa, com um morcego no alto. Os olhinhos do morcego eram vermelhos e brilhantes. As lentes, escuras! Pensei que, se eu

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usasse uns óculos daqueles, iam achar que eu era uma cantora ou uma guitarrista da pesada.

A vendedora da loja riu de mim, e fiquei furiosa. Mamãe me explicou, delicada como sempre:

— Esses óculos de morcego até que são bem originais, Clara. Por isso só servem para ser usados em ocasiões especiais. Além disso, as lentes escuras prejudicariam sua visão se fossem usados dentro de casa. Ou para ler e estudar. Óculos escuros só servem para o sol. Agora, vamos comprar óculos para o uso diário.

Eu me conformei.

Não porque seja conformada de verdade. Resolvi ficar quieta, mas, pensando bem, nunca vejo ninguém com óculos de cisnes ou morcegos na rua.

Deixei que mamãe me fizesse escolher uns óculos absolutamente normais, de plástico rajado de marrom e ocre. Segundo mamãe, imitam tartaruga. São pequenos, de contornos suaves. Ideais para o meu rosto, segundo garantiram. Pois eu não achei nada disso. Olhando no espelho, tenho a impressão de que penduraram dois fundos de garrafa no meu nariz.

Quando os óculos ficaram prontos, fui buscá-los com mamãe. Pus no rosto. O médico havia avisado, mas mesmo assim estranhei. Quando a gente coloca óculos pela primeira vez, perde um pouco o senso de equilíbrio. Eu andava e tinha a impressão de que ia pisar num buraco que não existia. Mais tarde, é claro, eu me acostumei. Foi apenas a primeira impressão.

Em casa, quando fiquei sozinha, corri até o quarto de minha mãe e peguei o álbum de fotografias que ela tem guardado na primeira gaveta do armário.

Exatamente como eu me lembrava.

Lá estava a foto de papai, olhando diretamente pra mim, com um par de óculos cravados no nariz. Até nisso me pareço com ele!

Talvez eu não precisasse ficar tão chateada. Afinal, se com aqueles óculos ele conquistou uma lindeza como a mamãe, quem sabe

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eu tivesse a mesma sorte e fizesse estremecer o coração de um príncipe encantado!

Eu estava olhando a foto de papai quando mamãe entrou e se sentou a meu lado. Parece que adivinhou meus pensamentos.

— Sim, você se parece muito com ele. E eu gosto muito de você, como gostava dele. Cada vez que olho pra você, eu sinto muito, muito amor! Sabe que ficou linda de óculos?

Eu até que me conformei.

Nem tudo foi tão cor-de-rosa, porém. Quando cheguei na escola, no dia seguinte, ouvi vários comentários.

— Olha só, de óculos! — Quatro-olhos!

Quem me insultou a primeira vez foi o Rosendo. E um menino moreno e gordinho, um ano mais velho do que eu. Está atrasado na classe, porque seus pais são mexicanos e moram há dois anos no Brasil. Ele demorou um ano para aprender português e, mesmo assim, fala de um jeito diferente, como se suas palavras tivessem outro ritmo. Também vive confundindo certas palavras, porque continua falando espanhol em casa e volta e meia diz chica em vez de menina, ou mira, no lugar de olhe.

Parece que tem prazer em me deixar furiosa. Quando começou a me chamar de quatro-olhos, fingi que não ouvi. Ele insistiu. Durante o recreio, ficou numa roda de garotos e mexeu tanto comigo que, de repente, vi tudo vermelho. Saí correndo em direção a ele, com os braços para frente, para derrubá-lo no chão. Sou boa de briga e, sempre que enfrento um menino mais forte, faço isso. Vou correndo e, com a força da corrida, dou um empurrão, e ele, pimba! Rola no chão!

Quando eu estava bem perto, ele se desviou, pegou um lenço de bolso, abriu e agitou como se fosse um toureiro. Não pude parar, passei pelo lenço, tropecei! Quem caiu no chão fui eu!

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— Que venga el toro! — ele gritou, agitando o lenço de novo. Todo mundo, até minhas amigas, deu risada.

Meus óculos tinham voado para longe; a lente estava trincada. Comecei a chorar.

O safado fez cara de quem estava morrendo de dó de mim, e fiquei mais brava ainda, porque odeio quando alguém tem dó. Aí, ele mudou de atitude, não sei por quê. Pegou os óculos, que estavam no chão, e levou para mim.

— Acalmate, nina, no es nada — disse em seu português estropiado.

Peguei os óculos e coloquei. O mundo estava todo rajado, devido à lente partida. A professora vinha vindo, querendo saber o que acontecera. Todos se dispersaram, e eu fiquei com cara de boba, esfolada e olhando o mundo através do vidro partido.

Minha mãe ficou louca da vida e levou os óculos para consertar no dia seguinte.

Quando os coloquei de volta, já sabia que devia tomar cuidado com eles. Voltei para a escola de queixo erguido e avisei:

— Se alguém me chamar de quatro-olhos, vai ver! Mas é claro que ninguém chamou.

Tinham arrumado apelido muito melhor: bezerra!

Tudo por causa do Rosendo ter bancado o toureiro comigo. Fiquei semanas ouvindo aquele apelido, sempre murmurado nas

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minhas costas, ou de longe, porque ninguém queria brigar comigo. Uma amiga, a Cláudia, até comentou:

— Você tem sorte, porque o apelido podia ser vaca, o que é muito pior!

Sorte? Acho que não é sorte nenhuma ser chamada de bezerra, e eu passava o tempo todo de orelhas em pé, pra ver se alguém tinha coragem de dizer na minha frente.

Coragem, ninguém teve não.

Mas um dia eu estava entrando no pátio da escola e, de longe, o Rosendo tirou um lenço e agitou, como se fosse a capa de um toureiro. Fiquei tão brava que peguei uma banana do meu lanche e atirei em cima dele. Não acertei, e todo mundo ficou dando risada!

Depois de alguns dias, deixaram de me chamar de bezerra. O Rosendo inventou um novo apelido.

Começou a me chamar de Clara de ovos, de omelete, de uma porção de absurdos!

Desses apelidos eu não podia fugir, porque meu nome é Clara, como você sabe.

Um nome lindo, e achei péssimo confundirem com clara de ovo. Sempre tive o maior orgulho do meu nome, que era o de minha avó por parte de pai, e o Rosendo avacalhou.

Francamente, não sei o que tem contra mim! Mas eu ainda pego esse safado!

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Sinto falta do meu pai. Não conheci meu pai, realmente, como já disse, mas sinto falta de ter um pai. Também acho que mamãe sente falta de ter alguém a seu lado. Um companheiro. Às vezes leio histórias de fadas que falam de madrastas ruins, que torturam as crianças, e penso:

— Se mamãe casasse de novo, e eu tivesse um padrasto, ele seria ruim pra mim?

Nem dá pra imaginar.

Como já contei, mamãe nunca se interessou por ninguém. Só saía de vez em quando, com as amigas do trabalho. Um dia ouvi mamãe conversando com uma delas. A amiga falava sobre um rapaz, gerente na companhia, que era apaixonado por mamãe.

— Tenho pena dele, porque é uma paixão inútil.

— Por que você pelo menos não aceita um convite pra jantar? Quem sabe...

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— Não sinto atração. Portanto, acho que nem deveria me preocupar em ter um padrasto ruim. Pelo jeito, não teria nenhum, nunca!

Talvez por isso eu tenha me apegado tanto a meu tio Álvaro. Ele era bem mais novo que papai. Acabou a faculdade faz dois anos, e tocava violão em um conjunto musical. Vivia com meus avós, no sítio.

A família de meu pai morava toda em um sítio com uma casa enorme, velha, mas muito bonita, embora precise de uma boa pintura.

As paredes vivem descascando. Minha avó, Maria Clara, é uma mulher calada, que vive mergulhada no piano. Gostaria muito de aprender música, mas ela mora longe, e não dá para estudar com ela. Mamãe já prometeu me botar no curso de piano no ano que vem. Quem sabe?

Soube que, certa época, minha família foi dona de todas as terras da região. Tinham uma enorme fazenda. Mas o meu bisavô gostava de jogar e foi perdendo pedacinho por pedacinho nas cartas. Só ficou com o sítio e a enorme casa da fazenda.

Meu avô é vivo, e ainda gosta de ajudar no trabalho do campo. Foi com ele que vi, pela primeira vez, uma jabuticabeira cheia de frutas. Sempre comi jabuticaba comprada na feira. Fiquei surpresa ao descobrir que ela cresce coladinha no tronco e nos galhos da árvore. Uma jabuticabeira fica tão carregada que a gente pode comer, comer, comer até cansar, e os galhos ficam repletos. Meu avô me mostrou árvore por árvore no pomar. Meu tio mais velho também fez questão de me explicar como é a criação de galinhas. São elas que sustentam a família, na verdade. Ele construiu um imenso galpão, onde os frangos são criados em ninhos que parecem engradados. Mexem-se o mínimo possível, para engordar depressa. E comem uma ração especial para a carne ficar macia. Mas, lá no sítio, eles criam também galinhas no quintal, soltas, e a carne é bem mais saborosa. Chamam de galinhas caipiras.

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Vamos pouco ao sítio. Cada vez menos.

Mamãe é muito ligada a seus próprios pais. Sei que acha triste visitar a família de meu pai. Acho que ela tem razão, é mesmo uma família muito triste. Vovó Clara, sempre tocando aquelas músicas melancólicas, vovô Antenor mergulhado no jardim.

— Eu faço questão de visitar seus avós porque é o que seu pai gostaria que eu fizesse — dizia mamãe.

Eu sabia que, no fundo, aquelas viagens eram dolorosas para ela, devido às recordações.

Tinha, até o começo desta história, duas tias solteiras, Amarílis e Alba, que viviam também no sítio. Ficava muito preocupada quando olhava para elas, solteiras, e mais velhas que mamãe! Todo mundo na família de papai casou tarde, e morro de medo de acontecer o mesmo comigo. Cheguei a pensar que poderia ser culpa do nariz de guarda-chuva, que caracteriza todos nós. Todos, não. Minha tia Alba tem o nariz pequeno e delicado, cabelos castanhos e cacheados. Poderia ser confundida com um anjo, desses das gravuras. Dizem que teve muitos pretendentes (embora, é claro, nunca tenha sido tão linda quanto mamãe), mas jamais quis saber de algum. Tia Alba queria ser freira, mas vovô foi contra. Olhando para minhas tias, eu me preocupo muito, porque às vezes acho que estou ficando velha e nunca namorei

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ninguém.

O fato é que, visitando a antiga casa do meu pai, tento pensar como ela era. Uma vez minha tia Amarílis me deu uma coisa tão linda que até hoje, quando pego, tenho vontade de chorar.

Abriu uma mala velha, que estava cheia de roupas, e explicou que algumas eram de meu pai, quando mocinho. Ninguém tivera coragem de jogar. O sítio é assim, cheio de móveis velhos, com roupas antigas, malas fechadas, móveis quebrados, tudo guardado em quartos que ninguém mais usa.

Tia Amarílis achou um paletó, apalpou e, dentro, encontrou um lenço. Deu para mim e disse:

— Quando ele ia aos bailes, usava esse lenço perfumado no bolso do paletó.

Eu botei o lenço no nariz e senti um perfume bem no fundo. Um perfume forte, gostoso. Respirei fundo, para o cheiro entrar bem no meu nariz.

Minha tia me deu o lenço, que está bem guardado numa caixa fechada, para não perder o perfume de vez. Assim, quando tenho muita, muita vontade de lembrar do meu pai, pego o lenço e cheiro. É um jeito de ficar perto dele, pode acreditar, e sempre me faz muito bem.

Em compensação, tenho raiva dos meus primos. Das outras vezes, quando eu ia lá, o menorzinho tinha mania de vir correndo, levantar minha saia e fugir antes que eu desse um tabefe no seu nariz. Toda molecada ficava rindo e comentando a cor da minha calcinha. Fico furiosa, ainda mais porque, pra mim, mamãe adora escolher calcinhas bem bonitas, com rendinha. Da última vez, fiz uma exigência:

— Só vou de calças compridas.

Mamãe riu quando expliquei por que, mas topou. Só que, aí, meus primos começaram a caçoar dos meus óculos.

— "Zóio" de vidro!

— Caipiras! — eu respondia. E mostrei a língua pra eles!

Mas nem devia ligar, porque todos são bem mais novos do que eu. Não passam de umas criancinhas!

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De todos, do que eu mais gostava era o meu tio Álvaro. As vezes, de noite, ele me abraçava e ficava sentado comigo nos degraus da varanda, me mostrando as estrelas. Fazia cafuné nos meus cabelos e dizia que eu era linda.

— Não sou não, porque uso óculos e tenho nariz de guarda-chuva! — eu dizia.

— Engano seu. Seus cabelos são muito bonitos, e os óculos ficaram muito bem em você. Dão charme! — ele respondia.

Eu não acreditava, mas ficava feliz. Acho que é isso que ele queria, me deixar feliz.

Foi graças a uma dessas viagens ao sítio que eu me apaixonei perdidamente, como só acontece nos romances. Só que não foi por tio Álvaro, não!

Mamãe não gosta de dirigir muito em estrada, porque seu carro é velho e vive tendo problemas. Fomos de ônibus (meu tio Álvaro sempre ia pegar a gente na cidade). O ônibus parou num restaurante no meio da estrada, como faz todas as vezes. Eu estava tomando refrigerante e comendo coxinha (adoro coxinha de bar) quando ouvi uma voz:

— Nina, é você?

Era um homem moreno, um pouquinho barrigudo, mas com ombros largos, falando com minha mãe. Ela olhou, surpresa, e sorriu. (O sorriso de mamãe é lindo como os anúncios de pasta de dente.)

— Braz!

Notei que ele tinha costeletas. Ela me apresentou: — E minha filha, Clara.

Ele passou a mão pela minha cabeça e disse:

— E linda. Parece com você. Imediatamente, percebi que se tratava de um falso, porque não pareço com minha mãe de jeito nenhum. Fiquei irritada e dei uma mordida forte na coxinha. Ele olhou para minha mãe com um jeito esquisito, parecia um garoto querendo um pedaço do lanche da gente na escola.

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— Fiquei viúva. E você?

— Casei, mas não deu certo. Separei.

Mamãe sorriu, de novo aquele sorriso lindo. Vi que ele suspirou. Perguntou pra mim:

— Quer ver meu caminhão? Fiquei entusiasmadíssima.

Tenho a maior vontade de dirigir caminhão e fiquei louca para conhecer um por dentro. Ele me pegou pela mão, fomos até o pátio.

— Minha família perdeu tudo, não sei se você soube. — Ouvi alguma coisa a respeito.

— Foi com uma das crises na agricultura. Meu pai tinha investido muito nas fazendas. Veio a geada... tínhamos feito muitos empréstimos nos bancos... foi terrível, mas, de certa forma, também foi uma experiência e tanto! Eu, que nunca tinha trabalhado, juntei-o pouco que sobrou e comprei um caminhão. Hoje tenho uma pequena transportadora. Não é sempre que pego a estrada.

Foi sorte nos encontrarmos — explicou à minha mãe.

Ela apenas sorriu de novo, e eu notei outra vez o jeito esquisito com que ele a olhava.

Ele abriu a portinhola do caminhão, me ajudou a subir.

Entrei. Dentro havia um cheiro de couro, e o banco era tão.alto que, para alcançar o breque, eu precisaria de pernas de pau. Peguei no volante, que era enorme. Estiquei meus braços até o máximo, e nem assim consegui abraçá-lo. Pela janelinha, vi o homem dando um cartão à minha mãe.

Nesse instante, chamaram os passageiros do ônibus. Ele abriu a portinhola, me pegou pela cintura, me ergueu no alto e me pôs no chão. Nossa, como era forte! Mamãe se despediu depressa, porque o ônibus ia partir. Ele perguntou:

— Posso dar um beijo nessa moça linda?

Ele me ergueu com as mãos fortes e deu um beijão na minha testa.

Até fiquei zonza, pela rapidez com que me agarrou. Tinha um cheiro de perfume bem forte e a barba por fazer, que me arranhou um

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pouco. Quando me pôs no chão, eu estava com as pernas bambas. Percebi que estava totalmente apaixonada!

Quando sentamos no ônibus, perguntei: — Quem era, mamãe, quem era?

— Um velho conhecido. Claro que não fiquei contente com a resposta. Fiquei pensando: se eu crescesse depressa, ainda poderia me casar com ele.

Quem sabe?

Tinha dito que me achava bonita. Já era um passo.

Em casa, vi que mamãe pegou o cartão e pôs dentro de uma gaveta, como se não tivesse importância. Depois, fui olhar. Lá estava tudo o que eu precisava saber: o nome, o telefone. Braz. Onde foi que eu tinha ouvido aquele nome?

Só precisava de mais algumas informações. Na primeira vez que vovó, mãe de mamãe, veio nos visitar, puxei o assunto:

— Sabe que mamãe encontrou um velho amigo no restaurante da estrada?

— Quem?

— Era um homem de costeletas. Chamava Braz.

Foi aí que eu soube que Braz era justamente o rapaz filho de fazendeiro (que perdeu tudo), apaixonado por mamãe, quando ela morava no interior com os pais. Eu sei que disse o nome dele no começo da história, mas foi só nessa conversa com vovó que fiquei sabendo de tudo.

— Esse rapaz foi apaixonado por sua mãe. Ele tinha aliança no dedo?

— Ouvi dizer que é separado.

— Como foi a reação da sua mãe? Será que ele gosta dela ainda? Senti o coração se partir em pedaços.

Como eu poderia concorrer com mamãe?

Em seguida, vovó puxou o assunto com mamãe, toda contente: — Quer dizer que você e o Braz se reencontraram?

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— Maria Clara, nesta idade e já fofoqueira? Tão pequena e com a língua tão grande!

Fiquei furiosa também. Sou quase uma mocinha.

A professora, que conhece muito bem a história da antiguidade, explicou que na época dos impérios egípcios, há cinco mil anos mais ou menos, as meninas se casavam com seis anos de idade. Gritei:

— Se eu fosse uma rainha egípcia, já deveria estar casada e estaria governando o país! Sou grande!

Mamãe caiu na gargalhada:

— Mas você não é uma rainha egípcia, nem vive num palácio, nem está construindo uma pirâmide. Nem devia ficar atiçando sua avó, que só pensa em me ver casada de novo.

— Penso para seu próprio bem — resmungou vovó.

— Acha que eu deixaria minha filha ser criada por um estranho? Só aí eu percebi que uma das razões por que mamãe não se casava era eu! Justamente eu, que vivia pensando em como seria bom ter um pai. (Embora às vezes sentisse uma ponta de remorso, pensando se meu pai não ficaria triste por eu querer tanto ter outro pai.) Vovó perguntava:

— Trocaram telefone? Mamãe reagia:

— Ficou louca?

Eu devia ter respondido a mamãe que seria bom ter um pai. Fiquei calada. Porque, na minha cabeça, havia um redemoinho de idéias.

É claro que mamãe podia se casar de novo. Mas não seria melhor se eu ajudasse a escolher meu padrasto? Assim, teria certeza de que não poderia ser ninguém ruim, nem chato comigo. Também, é claro, não podia ser o tal de Braz. Eu estava apaixonada por ele, e mamãe não. Mamãe, porém, era tão bonita que não devia ser difícil achar um padrasto.

Decidi que, a partir daquele dia, eu começaria a procurar alguém.

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E também daria um jeito de me encontrar com o Braz. Quem sabe ele se apaixonava por mim, e dizia:

— Eu espero você crescer! Meus planos, porém, tiveram que ser adiados.

Um dia, quando terminou a aula e eu estava indo pegar a perua para voltar pra casa, dona Zilma, orientadora do colégio, pediu:

— Espere um pouco. Hoje você vai com a dona Conchita.

Vi uma mulher morena, de pele chocolate e cabelos pretos vindo na minha direção. Era um tom de cor morena que eu nunca tinha visto.

Seu rosto era quadrado e de traços finos. Veio até mim com um jeito dramático, e me abraçou forte. Fiquei preocupada só de receber o abraço.

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A orientadora explicou:

— Sua mãe ligou, explicando que não vai estar em casa, aconteceu uma emergência. Como eu tenho outro período de trabalho, pedi para a dona Conchita levar você para a casa dela. Sua mãe está de acordo, e já está com o telefone dela, para buscar você depois.

— Venga, hijita! — disse dona Conchita, me abraçando de novo. Nesse instante, vi ao longe, nos esperando, o Rosendo! Pelo jeito de falar, percebi que era a mãe dele!

— Eu não vou pra casa de ninguém! Quero ir pra minha casa! — Você precisa ir — disse a orientadora. — É só por algumas horas, até sua avó chegar do interior, para ficar com você.

Então meu coração foi ficando apertadinho! Senti um nó na garganta. Só podia ter acontecido alguma coisa horrível.

— Só vou se contarem o que aconteceu!

Vi que a orientadora trocava um olhar com dona Conchita.

— Seu tio Álvaro sofreu um acidente, e sua mãe foi para o hospital. Ele está muito, muito mal!

Olhei para elas, e de repente tudo foi ficando escuro em volta de mim.

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Depois que passaram álcool nos meus pulsos e me puseram um lenço molhado na testa, acordei e fui pra casa do Rosendo. Eu estava muito, muito nervosa. Ninguém sabia detalhes sobre o acidente.

Somente que o tio Álvaro tinha batido o carro, na estrada, já perto da cidade, e que estava no hospital.

— Quando su abuella venga, todo se aclarará — disse dona Conchita em seu português espanholado.

O pior de tudo é que eu seria obrigada a passar horas e horas na casa do Rosendo! No carro, porém, ele estava muito quieto. Quando chegamos em casa, ele me contou que no jantar haveria comida mexicana, e fiquei com medo de não gostar. É chato quando a gente não gosta do que servem na casa dos outros. Segundo mamãe, é horrível dizer que a comida está péssima.

(Eu também acho muito feio. Afinal, a pessoa cozinhou horas e horas, e o mínimo que eu gosto de fazer é agradecer com um sorriso.) O problema é que meu prato preferido é hambúrguer salada, e não gosto de comida muito enjoada.

A casa era o máximo! Muito diferente da minha. Quer dizer, eu e mamãe vivemos num apartamento, e eles moravam numa casa de verdade. Tinha duas salas enormes e uma mesa de madeira escura com

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oito cadeiras, para jantar. (Desde aquele dia, eu decidi. Quando crescer, também vou querer uma sala de jantar!) Tinha muitos objetos espalhados pela casa toda, todos bem coloridos, e várias estátuas de bois, porque os mexicanos gostam .muito da figura do boi. Não é à toa que o Rosendo queria bancar o toureiro comigo! Dona Conchita arrumou os pratos, e notei que o Rosendo ajudava a mãe muito mais do que eu na minha casa. Pegava os talheres e guardanapos. O pai de Rosendo chegou. Era um homem alto e magro, com a pele um pouco mais clara que a da mãe, mas os cabelos pretos eram iguais. Sentamos à mesa, e ela serviu várias comidas estranhas.

A principal chamava-se tortilla. É uma espécie de panqueca, mas sem ovos. É feita de farinha de milho (depois fiquei sabendo que também existem as de trigo), e quase todos os pratos mexicanos são à base de tortillas. (A gente fala tortilha, ou, dependendo do tipo de castelhano, tortija, como me ensinaram mais tarde. Acontece que o castelhano é falado com sotaques diferentes nos diversos países da América Latina.) Aquele dia comemos tacos. Nada mais são do que as tortillas enroladas em forma de canudo com alguma coisa dentro. Os tacos de carne têm molho de carne moída dentro. Os de queijo, queijo derretido. E assim por diante. Só que, quando pus o primeiro na boca, quase chamei os bombeiros. Minha língua estava pegando fogo! Haja pimenta! Bebi um gole de água tão depressa que quase engoli o copo. Dona Conchita pediu mil desculpas, porque tinha esquecido de me oferecer o molho separado, sem pimenta. Mexicanos comem muita pimenta, e, prevendo minha reação, ela havia feito um molho só pra mim.

Outro prato estranho era o guacamole. E uma espécie de patê de abacate salgado. A gente come com comida normal. Eu sempre comi abacate com açúcar e estranhei o gosto dele com sal. Quando comentei que podia fazer mal, todos riram. Rosendo disse que no México eles achavam que abacate com açúcar faz mal. Eu experimentei o guacamole de novo e até acabei gostando um pouquinho.

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espanhol são parecidas com o português, mas têm significados diferentes. Eu disse:

— E uma comida esquisita. Dona Conchita ficou vermelha de felicidade e me agradeceu o elogio. Logo vi que tinha confusão no meio, porque eu não estava elogiando coisa nenhuma. Fiquei quieta, porque percebi que esquisito em espanhol queria dizer saboroso, ou alguma coisa parecida.

Depois, eu e o Rosendo fomos ao quarto dele jogar video game. — Por que você está calado desse jeito? — eu perguntei.

— Porque tu tio bateu el carro, foi para o hospital e mi madre me disse que se yo não te tratar muy bien serei castigado. Mas tu es una bezerra de quatro ojos.

Ah, que raiva! Eu quase parti pra cima dele, mas preferi ficar quieta, porque afinal de contas estava na casa dele. Só respondi:

— Você pensa que é um grande toureiro, mas gorducho desse jeito parece um porquinho. Pior ainda, um porquinho que não sabe falar nem espanhol nem português, só essa língua misturada que é horrível!

— Y tu, un vidro de pimienta!

— E você, uma tortilla! Vi que ele estava ficando vermelho, vermelho. Fiquei de pé, com os punhos preparados. Ele que viesse, pra ver o que era bom. De repente, ele caiu na gargalhada.

— Tu estas tan tonta, parada com las manos cerradas! Falou em espanhol, mas entendi que estava rindo da minha

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posição de boxe. Olhei pra mim mesma e comecei a rir também. Parecia um galo de briga, em pé daquele jeito. Daí, aconteceu uma coisa engraçada. Eu ria, ria, ria tanto que não podia parar, e ele ria de me ver rindo. Mas aí o riso foi se fechando na garganta e, sem perceber, comecei a chorar.

— Por que estas llorando?

— Estou com medo por meu tio! Então Rosendo se aproximou e me abraçou, e chorei no ombro dele, chorei tanto que até molhei sua camisa. Chorei no ombro do chato! Fui parando aos poucos, mas nem consegui dizer coisa alguma. Tocou a campainha. Ficamos parados, esperando. Logo, a voz de vovó:

— Clara!

Tinha vindo me buscar! Antes de descer, corri ao banheiro e lavei o rosto.

Desci correndo, porque estava morrendo de vergonha de ter chorado na frente dele!

Vovó me abraçou. Vovô estava lá fora, esperando no carro.

— Muito obrigada, dona Conchita! Muito obrigada, seu Juan! — eu disse, ao me despedir.

Fomos para o hospital.

Tio Álvaro estava na UTI. Voltamos para o apartamento, desanimados.

Ele ficou alguns dias entre a vida e a morte. Tia Alba, tia Amarílis, vovó Clara, quase toda a família se refugiou em nosso apartamento, pois era impossível dormir no hospital. Mamãe encheu a sala de colchonetes, e dormíamos como se estivéssemos em uma tenda cigana. Eu notei que nem sempre tia Alba ia para o hospital. Mas, quando chegava da escola, à tarde, freqüentemente ela não estava em casa.

Onde é que poderia estar indo se, pelo que eu sabia, não conhecia ninguém na cidade?

Depois que tio Álvaro saiu da UTI, foi para um quarto, todo engessado. Mais tarde, veio para nosso apartamento. Ficou na minha

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cama, e passei a dormir com mamãe. Já estava bem, embora tivesse muitas dores, devido à imobilidade forçada. Soube mais tarde que colocaram três pinos em sua perna direita, e que ele só não morreu por um triz.

Apesar disso, quando eu me aproximava, ele sempre fazia esforço para dar um sorriso.

Para minha surpresa, quem começou a conversar comigo no pátio foi o Rosendo. Acho que, depois de eu ter chorado na frente dele, quis ser mais amigo que antes. Primeiro, veio perguntar como meu tio estava — era dona Conchita que queria saber. No dia seguinte, trouxe um pedaço de bolo de milho. Era a mãe que tinha mandado.

Eu não dava muita bola, mas ele ficava parado do meu lado, puxando conversa. O que eu podia fazer? Um dia, ele disse:

— Yo prometo nunca mais te chamar de bezerra de óculos.

— Então não chamo você de porquinho — prometi, porque sou uma menina de paz.

Continuamos parados, nos olhando. Mais tarde, a Cláudia comentou:

— Todo mundo diz que vocês estão namorando! — Quem?

— Você e o Rosendo. — Eu?

Caí na gargalhada. Expliquei:

— Estou apaixonada pelo dono de uma transportadora, que tem costeletas imensas!

— Verdade? Você está namorando um adulto?

Fantasiei um pouquinho. Não queria ficar por baixo.

— Assim, assim. Ele disse que vai me esperar, e já me mostrou a cabine do caminhão!

— Oh! — disse a Cláudia, de olhos arregalados.

Não tocamos mais no assunto. Eu nem podia imaginar a confusão que isso ia dar.

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Porque, é claro, ela começou a contar a história pra todo mundo, exagerando em detalhes que inventou por si própria!

Enquanto a fofoca corria nas minhas costas, lá em casa acontecia um terremoto.

O caso é que o acidente do tio Álvaro causou uma revolução! Quando ele começou a melhorar, já instalado em casa, minha avó paterna, Clara, disse que era melhor Alba e Amarílis irem embora, de volta para o sítio, para não sobrecarregar mamãe. Imediatamente, vi um brilho nos olhos de tia Amarílis.

— Eu não volto!

— Como assim? — espantou-se vovó Clara.

— Estou cheia de ser uma inútil. Cheia de passar os dias no sítio, olhando o tempo passar. Afinal, pra que tirei um diploma?

Só aí eu soube que tia Amarílis tinha um diploma de enfermeira. Nunca exercera a profissão. Ocorre que os hospitais têm falta de boas enfermeiras diplomadas. Enquanto ajudava a cuidar de meu tio, titia arrumara um emprego!

— Vou ficar aqui, morando com a Nina!

Olhei para mamãe, que fez um gesto com a cabeça. Vovó Clara espantou-se mais ainda:

— Vocês combinaram tudo?

— De jeito nenhum. Só fiquei sabendo dos planos da Amarílis a semana passada — explicou mamãe.

— Mas eu não podia recusar minha casa a Amarílis. Pode perfeitamente ficar no quarto com a Clarinha. Só não disse nada porque achei que o correto seria que ela contasse seus planos pessoalmente.

Fiquei supercontente! O apartamento às vezes era tão vazio. — Você vai incomodar a Nina

— insistiu vovó.

— Não vai não. Será até bom pra mim — explicou mamãe. — Fico muito preocupada, porque a Clara chega da escola antes de mim e passa horas sozinha no apartamento.

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minha sobrinha — disse titia. — E é só por algum tempo. Mais tarde, alugo um apartamento pra mim.

Vovó olhou em torno, chateada. Percebi que ela gostava de ter as filhas embaixo das asas, como uma pata choca. Perguntou em voz baixa:

— E você, Alba, também vai ficar aqui no apartamento? Tia Alba sorriu:

— Não, eu não tenho um diploma como a Amarílis. — Então, o melhor é voltar para o sítio amanhã. — Também não vou voltar para o sítio.

Todos olharam para ela, surpresos.

— Ficou louca? — perguntou tia Amarílis.

Notei que nem tia Amarílis, nem mamãe, sabiam dos planos de Alba.

— Apenas procurei meu caminho — explicou tia Alba. — Fui ao convento de Santa Teresinha. Já me aceitaram.

— Você não pode fazer isso! — disse vovó.

— Posso sim, mãe. Quando eu era mais nova e quis ir para o convento, você e papai insistiram para que eu não fosse. Disseram que era melhor esperar, para ter certeza. Pois bem: esperei sete anos, mamãe. Sete anos. Nunca me interessei por nenhum rapaz, nunca quis outra coisa na vida. Durante todo esse tempo, me correspondi com o convento. As freiras me deram apoio. Estou pronta.

— Quer dizer que vim pra cidade com duas filhas e volto sem nenhuma?

Tia Alba e tia Amarílis abraçaram vovó.

— Não, mamãe, a gente nunca vai se separar de você, no fundo do coração — garantiu tia Alba.

— Vou visitar vocês sempre. Apenas é preciso seguir o próprio caminho — continuou Amarílis.

Vovó suspirou. No dia seguinte, ela é quem resolveu fazer as malas. Afinal, meu tio estava fora de perigo. Tia Amarílis poderia muito bem cuidar dele, ajudada por mamãe e por mim. Partiu um pouco

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entristecida. (Dali a alguns meses, porém, falava das filhas com o maior orgulho, como se ela própria tivesse tido a idéia de deixá-las na cidade.)

Outra conseqüência do acidente de titio foi que mamãe reencontrou outro antigo admirador: Amarildo, seu amigo de infância.

Agora ele tinha se tornado médico do hospital. Não tivera nada a ver com o tratamento de tio Álvaro, porque era obstetra. Mas viu mamãe no hospital e foi falar com ela. Lembraram de muitas coisas do passado e, quando ele a convidou para jantar, ela aceitou.

Tia Amarílis ficou superentusiasmada. Falava pelos cotovelos: — Ele é tão charmoso! Mamãe ria:

— E apenas um amigo de infância, Amarílis.

Eu estava louca para conhecer o charmoso. Fiquei escondida na porta do prédio quando ele veio buscar mamãe.

Chegou num carro imenso, todo cheio de truques: pára-choques coloridos, pintura cintilante.

Desceu.

Era um homem enorme! Devia pesar uns cem quilos!

Pensei: "Mamãe nunca quis sair com ninguém, e agora sai com um que vale por dois".

Mamãe desceu, animada: — Vamos, Amarildo!

Ele abriu a porta do carro para ela. Depois, entrou do lado dele. Não sei como conseguiu se espremer atrás do volante. Partiram. Subi, decepcionada. Tia Amarílis esperava no quarto, ao lado da cama do tio Álvaro.

— Que tal?

— É do tipo que parece que engoliu um colchão — respondi. Meus tios caíram na gargalhada, embora eu não tivesse idéia do que havia dito de tão engraçado. Ficamos vendo televisão e conversando.

Mamãe voltou quatro horas depois. Eu devia estar dormindo, mas ouvi quando chegou e sentou-se no sofá, exausta.

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— Comemos, comemos e comemos. Quando era pequeno, o Amarildo já era meio guloso, mas agora virou um glutão. Estou exausta de tanto comer, porque ele é do tipo que faz questão de que a gente não fique de prato vazio. Fomos num rodízio, e acho que devorei um boi inteiro.

— E... e o resto? — perguntou titia. — O resto, como?

— Vocês não marcaram de se reencontrar... sei lá? Ouvi um longo suspiro de mamãe.

— Amarílis... depois de cinco minutos, a conversa dele já não tinha graça nenhuma. Ele falava e falava da vida de obstetra, e eu pensava nas conversas que tinha com o Adalberto. Eram tão interessantes...

— Mas meu irmão morreu há tanto tempo.

— Eu não posso continuar saindo com o Amarildo, porque não tenho o menor interesse por ele. E um bom sujeito, gosta de falar... é uma pessoa agradável. Mas... sempre foi um amigo, desde criança. Nunca tive a menor atração.

— Você é tão bonita, Nina! E triste vê-la sozinha, dando duro para criar sua filha.

— Você também é bonita, Amarílis. No entanto...

— Eu podia estar casada. E que me enfurnei naquele sítio, esperando não sei o quê. Agora minha vida vai mudar.

— Se você achou o Amarildo tão simpático, por que não o convida pra jantar?

Titia deu uma gargalhada:

— Do jeito que ele come, se eu convidar e pagar a conta, vou à falência.

As duas riram. Eu, porém, tive uma idéia brilhante.

Já sabia com quem casaria mamãe. Não sei como ninguém tivera essa idéia! Só havia um homem no mundo por quem ela poderia se interessar! Tio Álvaro!.

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saído de casa. (Tia Alba já se fora e estava feliz no convento. Eu e mamãe tínhamos ido visitá-la duas vezes, e ela parecia um passarinho cantando, de tão alegre. Era outra.)

Quando tive certeza de que estava sozinha com tio Álvaro, fui falar com ele. Com a perna e o tronco engessados, ele parecia uma espécie de tartaruga dentro do casco. Dormia. Eu me aproximei devagarzinho e assoprei o nariz dele. Ele fungou e abriu os olhos. Sorriu.

— E aí, bonitona?

— Tio Álvaro, eu queria pedir uma coisa pra você. — Diga.

— Casa com mamãe.

Ele ficou branco que nem papel. Abriu a boca duas vezes, de tão surpreso.

— De onde você tirou essa idéia?

— Da minha própria cabeça. Eu olho pra você na cama e olho pra mamãe. Vocês dariam um casal superlegal.

Ele me olhou, pensativo. Depois falou com voz bem baixa: — Quer dizer que sua mãe não fez nenhum comentário? — Que comentário?

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— Ainda bem.

Ficou quieto um tempão. Finalmente, decidiu:

— Uma menina esperta como você merece saber a verdade. Eu não posso casar com sua mãe.

— Por que não pode? Pode sim!

— Porque ela não quer, Clara. Tio Álvaro desabafou:

— Depois que meu irmão, seu pai, morreu, eu fiz tudo para ajudar sua mãe. Você era muito pequena. Vinha sempre pra cidade, trazia frutas, legumes. Chegamos a convidá-la para morar no sítio, mas ela nunca aceitou. Sempre foi muito independente. Quanto mais eu me aproximava dela, mais eu a admirava. Além de linda, sua mãe é uma mulher de muita personalidade.

— Então, tio, casa com ela!

— Eu passei a gostar de sua mãe como se ela fosse uma das heroínas de novelas. E um dia me declarei. Faz anos. Ela foi muito simpática e explicou que não pensava em se casar de novo.

— Mas e se agora ela mudar de opinião?

— Clara, eu e sua mãe nos tornamos grandes amigos. Confidentes. Como se fôssemos irmãos. Hoje, eu já não estou apaixonado por ela. Amo outra pessoa.

— Você, titio? Mas nunca vi você namorando ninguém!

— Eu conheci a Pietra quando estava viajando com meu conjunto, faz alguns meses. Vá até a cômoda, abra a primeira gaveta e pegue minha carteira.

Obedeci. Abri a carteira e peguei uma foto que estava onde ele indicou. Era a foto de uma mulher linda, tão linda que parecia um sonho.

Estava de maio azul, numa praia cheia de pedras. O sol batia em seus cabelos, provocando lindos reflexos dourados. Seu olhar era vago, calmo, sossegado, como se estivesse vendo a gente.

— Pietra é modelo e trabalha na Itália. Embora seja de família brasileira, conseguiu o passaporte italiano por causa de seus avós sicilianos.

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— Ela é linda, tio Álvaro. Foi por causa dela que você desistiu de mamãe?

— Não, querida, não. Eu e sua mãe havíamos chegado à conclusão de que nunca haveria um romance entre nós, faz tempo. Foi por isso que estranhei sua idéia. Quando você falou, pensei que sua mãe pudesse ter contado alguma história do passado. Somos muito amigos, só isso. Fui apaixonado por sua mãe, confesso. Mas nada aconteceu. Por sorte, encontrei a Pietra. Vamos nos casar o ano que vem. E por isso que estava vindo para a cidade quando o acidente aconteceu. Vim renovar meu passaporte. Vou para a Itália. Meu coração bateu forte.

— Não, tio Álvaro, você não pode ir embora daqui! Eu gosto tanto de você!

— Eu também gosto de você, Clara. Mas preciso me encontrar com a Pietra. Ela tem amigos lá em Milão, eles são donos de um bar e restaurante de comida brasileira. Fui convidado a ir para lá, tocar violão, cantar... vai dar muito certo.

— Mas eu nunca mais vou ver você? — Eu prometo que venho visitar o Brasil. Quase comecei a chorar.

De repente, era como se ele tivesse morrido no acidente, porque ia partir para longe, e nunca mais a gente ia se ver como agora. Ia partir para encontrar aquela moça linda, tão linda como eu jamais poderia ser. Pietra, com seus olhos de modelo de revista! Enquanto eu, aqui, de óculos, me sentia a menina mais feia do mundo!

Logo depois fui para o quarto de mamãe, deitei na cama de casal e chorei com a cabeça no travesseiro.

Tio Álvaro ficou dois meses em casa, se recuperando e fazendo o tratamento de fisioterapia. Depois daquela noite, nunca mais tocou no assunto dele e de mamãe. Em compensação, não parava de falar de Pietra. Fiquei sabendo de tudo sobre ela, até a cor do batom que preferia. Pra ser franca, eu já não agüentava mais tanta Pietra, Pietra! Tia Amarílis começou a sair com o doutor Amarildo depois que mamãe

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os apresentou. Logo começou a engordar, porque eles jantavam fora toda noite. Vivia alargando as costuras dos vestidos.

Quando estava em condições de viajar, tio Álvaro foi para o sítio, passou mais uma semana com os pais e partiu para a Itália. Fomos levá-lo ao aeroporto e, quando o avião levantou vôo, me deu um nó na garganta.

Era mais alguém que ia embora. Eu pensei:

— Não é justo! Papai morreu, mamãe não casou com mais ninguém e agora tio Álvaro partiu! Será que vou viver sempre tão sozinha?

Porque, naquela época, o Rosendo não contava, embora continuasse com a mania de puxar papo, me trazer pedaços de bolo e falar do México. Eu odiava e fazia o máximo para ficar longe dele, pois não queria que continuasse essa fofoca do namoro entre nós. Não adiantava, porque ele vivia atrás de mim, um inferno!

Foi nessa época que estourou a fofoca.

Acontece que um dia eu fiquei tão triste, tão triste com a partida do tio Álvaro, que finalmente tomei coragem. Abri a gaveta onde estava o cartão, peguei o telefone e disquei. Atendeu uma voz de mulher. Era a secretária.

— Quero falar com o Braz. — Quem deseja?

— Diz que é Clara, filha da Nina.

Logo ouvi a voz, tão bonita quanto eu me lembrava! — Clara! E o Braz! Tremi de emoção!

— Achei você muito legal e resolvi telefonar — eu disse.

Houve um silêncio do outro lado da linha. Não é que eu seja muito atirada com os rapazes, mas achei que, depois de tanto tempo, eu devia dar alguma dica.

— Verdade, Clara? — ele perguntou.

— E... — eu disse, para ajudar a conversa.

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Boba que eu sou! Imaginei que ele também estava me dando uma dica. Respondi:

— Sabe que tenho o seu cartão guardado até hoje?

— Sua mãe guardou o meu cartão? Então por que nunca me ligou?

Contei do acidente do meu tio, da minha tia morando com a gente, da outra que foi para o convento. Falei da escola, dos óculos. Bati o maior papo. Contei também que vovó se lembrou dele, e que tinha dito que mamãe devia encontrá-lo. Ele riu:

— Sua avó disse isso? Ela mudou bastante, porque, no passado, nem podia ouvir meu nome!

Depois ele disse que precisava desligar, mas perguntou a que horas mamãe estaria em casa. Eu sabia que naquela noite ela trabalharia até mais tarde. Braz ficou chateado. Contou que ia viajar para Minas, e que só voltaria na semana seguinte. Eu disse que adorava doce de leite mineiro, e ele prometeu me trazer um vidro. Disse que, quando voltasse, procuraria pela gente. Aí, eu tomei coragem e disse:

— Sabe, Braz, eu às vezes me sinto muito sozinha! Todo mundo de quem eu gosto foi embora. Meu pai, meu tio...

Novamente o silêncio. Depois a voz dele voltou, emocionada: — Eu não vou embora, Clara. Sou seu amigo, pode ter certeza. Na semana seguinte, surpresa!

Lá estava ele, na saída da escola. Eu nem lembrava de ter dito o endereço da escola, o meu horário de saída. Mas lá estava Braz, me esperando. Eu o reconheci de longe, pelas costeletas, e pelo caminhão parado mais adiante. Corri até ele e gritei:

— Braz! — Clara!

Ele me abraçou e beijou com sua pele áspera. Entregou um pacotinho:

— Doce de leite pra você e sua mãe!

Agradeci e disse pra ele telefonar. Ficou sem jeito.

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mãe me ligar, se ela tiver vontade. Se gostar do doce.

Não entendi muito bem o que ele queria dizer com isso. Nem tive tempo. Pois, mal partiu, vi os olhos de Cláudia, apertadinhos, olhando na minha direção.

— Quer dizer que é verdade? — ela perguntou. — O quê?

— Você tem mesmo um namorado!

— Tenho sim, e daí? Ele vai me esperar crescer pra casar comigo!

Cláudia tapou a boca, chocada. Vi Rosendo olhando de longe, com um ar muito esquisito. Não dei a mínima para nenhum dos dois.

Entrei na perua que levava minha turma para casa. Dois dias depois, estourou o maior escândalo.

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Mamãe voltou para casa arrasada. Ao seu lado, tia Amarílis, preocupadíssima.

— Clara! Precisamos falar com você. — Diga, mamãe.

Eu nunca podia imaginar tanta confusão! Resumindo: a orientadora do colégio chamou mamãe. Constava que eu estava namorando um adulto. Um homem maduro, que vinha me buscar na porta do colégio.

Segundo a orientadora, tudo começara com uma fofoca, mas ela não dera importância. Há alguns dias, porém, eu fora vista na porta da escola com o tal senhor.

— Foi fofoca da Cláudia! — gritei.

— Não, não é uma fofoca — disse mamãe. — Você ainda é uma criança, Clara. Quem pode ser esse homem?

— Ele é só uns vinte anos mais velho do que eu! Outro dia vi numa revista uma atriz de vinte que casou com um homem de quarenta! Por que eu não posso?

Mamãe suspirou e tentou explicar:

— Clara, é óbvio que aos vinte anos você terá mais condições de decidir por si própria o que é melhor para você. Sabe, eu acho que

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muitas vezes, nessa fase da vida em que você está entrando, a pessoa tem vontade de queimar etapas. Você já quer se considerar uma adulta, já quer ter liberdade total, já quer namorar alguém mais velho. Tudo isso é muito legal. Você merece a liberdade, merece crescer, já pode gostar de alguém. Mas o bom dessa fase da vida não é correr em direção à vida adulta e sim aproveitar cada experiência. E agora que você vai descobrir caminhos para toda a vida. Será muito mais legal que, quando você namore, seja com alguém da sua idade, que descubra a vida junto com você. Alguém que divida as experiências. Não com alguém mais velho, que, ao olhar para você, verá apenas uma criança. Quais podem ser as intenções desse homem, Clara?

— Ele gosta de mim! Não acha que eu seja uma criança!

— Então é sério, Clara! Você percebe o risco que está correndo!? — Ele me trouxe doce de leite! Tia Amarílis fez um ar escandalizado. Replicou, furiosa:

— Se ele não achasse que você é uma criança, ia trazer doce de leite?!

Mamãe correu à geladeira: lá estava o pacotinho. — Pensei que você tinha comprado o doce, Amarílis!

As duas me olharam preocupadíssimas. Fiz o maior charme possível.

— Pensam que só porque uso óculos ninguém olha pra mim? Ele vai se casar comigo!

— Isso é o que você pensa! Decretaram guerra! Queriam que eu dissesse quem era, mas nunca! Fiz o maior segredo!

Daquele dia em diante, uma delas ia sempre me esperar na porta da escola. Chegava em casa e ficava presa. Só podia sair em companhia de uma das duas! Isso só foi possível porque, como enfermeira, tia Amarílis pegava o turno da noite. Para completar, vovó e vovô vieram para a cidade ajudar na vigilância. Eu me sentia uma prisioneira.

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