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Onésimo Teotónio Almeida

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Academic year: 2021

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O Século dos Prodígios

A Ciência no Portugal da Expansão

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Índice

Introdução — ou de como surgiu este livro ... 15

I PARTE UMA CRÍTICA RETROSPETIVA PARA PORTUGUESES Portugal e a primeira revolução científica — uma primeira abordagem (para portugueses) ... 35

II PARTE UMA REVISITAÇÃO SERENA PARA PORTUGUESES E NÃO-PORTUGUESES Um lugar de direito na narrativa histórica (para não-portugueses) ... 83

Os Descobrimentos portugueses e o dealbar da modernidade — uma revisitação abrangente ... 99

«Experiência a madre das cousas» — insistindo na busca da origem da expressão ... 129

A difusão da ideia de experiência (até ao séculoXVI) ... 149

O moderno D. João de Castro ... 183

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Francisco Sanches — um elo perdido

entre Descobrimentos e modernidade ... 227

De Zurara a Francis Bacon — conhecimento e poder, ciência e tecnologia ... 239

Vasco da Gama e os supostos cristãos da Índia — um equívoco equivocado? ... 251

III PARTE DA VANGUARDA À RETAGUARDA: UMA REFLEXÃO PARA PORTUGUESES Sant’Anna Dionísio e o seu A Não-Cooperação da Inteligência Ibérica na Criação da Ciência — uma releitura ... 275

APÊNDICES Plutarco e as ilhas Satanazes do mapa de 1424 ... 311

Conversa sobre Luís de Albuquerque ... 321

Sobre a aurora da modernidade ... 329

Agradecimentos ... 337

Proveniência dos textos ... 339

Bibliografia ... 345

Índice onomástico ... 375

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À memória dos amigos Luís de Albuquerque J. Sebastião da Silva Dias J. Mariano Gago, e ainda de Joaquim Barradas de Carvalho, de quem apenas conheci a obra.

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«Andávamos emproados de ter visto a maravilha.» LÍDIAJORGE, O Dia dos Prodígios

«Vejam agora os sábios na escritura Que segredos são estes da natura.» LUÍS DECAMÕES, Os Lusíadas, Canto V

«Fundamentei-me, claro, nos conhecimentos acumulados do passado, mas não hesitei em oferecer novas interpretações e renovados juízos sobre velhas disputas históricas. Não pretendo ter “acertado” em tudo — ou sequer ter feito as perguntas certas. A minha esperança é que este livro seja recebido como um contributo para um continuado diálogo sobre a temática que aborda.» DAVIDC. LINDBERG, The Beginnings of Western Science

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«ROSSANDERSEN: Encontra a mesma tensão entre a física

teórica e a empírica? KRAUSSANDERSEN: Às vezes, mas não deveria haver. A física

é uma ciência empírica. Como físico teórico, posso dizer-lhe que reconheço que é o experimento que faz avançar o campo, e é muito raro ser no sentido inverso. Einstein é, claro, a óbvia exceção, mas mesmo ele foi guiado pela observação. O comum é ser o universo a surpreender-nos e não o contrário.» LAWRENCEKRAUSS, autor de A Universe from Nothing

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Introdução — ou de como surgiu este livro

NADA COMO COMEÇAR PELO PRINCÍPIOe entrar no porquê de um livro, para mais com um título politicamente incorreto. Como só no final da leitura espero que fique cabalmente entendido o significado deste, cingir-me-ei à explicação do volume em si, particularmente para os leitores que, tendo algum conhecimento de ensaios meus anteriores, sejam apanhados de surpresa com es-tes textos sobre a ciência no período da Expansão europeia, o dos Descobrimentos portugueses dos séculosXVe XVI.

A experiência da diáspora colocou-me desde cedo em situa-ções diversas onde me senti na obrigação de explicar Portugal. Porque em regra não estava preparado para o fazer, não me so-brava outro remédio senão informar-me devidamente. Então mergulhado nos meus seminários de doutoramento em Filosofia, e depois na escrita de uma tese sobre o conceito de ideologia, academicamente deveria estar longe das questões da história da cultura portuguesa. E todavia não estava. Circunstâncias diversas que só cabem numa narrativa biográfica mantiveram-me sempre em dois mundos — num deles, como estudante; no outro, como professor. Na verdade, durante cinco anos, entre 1975 e 1980, fui em simultâneo aluno de doutoramento em Filosofia na Brown University e docente de Estudos Portugueses no então incipiente

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Centro de Estudos Portugueses e Brasileiros da mesma universidade. Interessado sobretudo em Epistemologia e Filosofia das Ciências Sociais, fiz também seminários de Sociologia da Ciência e do Conhecimento. Porque em paralelo lecionava um curso sobre Cultura Portuguesa, para responder a interrogações surgidas en-tre alunos destinados a serem educadores nos programas de ensi-no bilingue frequentados por crianças recém-emigradas do mundo lusófono, sobretudo de Portugal continental e insular, fui mergu-lhando nas obras de autores clássicos e nas de interpretação da cultura portuguesa. Cedo me apercebi de alguns temas recorren-tes em todos os autores. Eram eles: a questão dos Descobrimen-tos e o seu papel de mito quase-fundador da pátria, a decadência (ou declínio), os estrangeirados, a Renascença portuguesa e, no fundo, a luta entre as forças que reclamavam para Portugal uma abertura à modernidade e as que insistiam na tradição e num cer-to modo de ser português. Cedo passei a denominar esse curso «Identidade Nacional», nele incluindo uma revisitação de toda essa problemática, levando os alunos a ler e a confrontar-se com os textos dos melhores autores lusos, desde Camões e Antero de Quental a Fernando Pessoa e Eduardo Lourenço.

Terminada a tese de doutoramento, em finais de 1979, pas-sei a dedicar três quartos do meu tempo letivo aos Estudos Portugueses e à expansão do Centro, mas comecei simultanea-mente a levar para fora das aulas os resultados das minhas leituras e investigação, apresentando comunicações em congressos. Por casualidade, o primeiro foi mesmo em 1980, na University of Florida, em Gainesville, num colóquio sobre «Portugal no Tem-po de Camões». Escolhi como tema uma leitura crítica dos escri-tos de Joaquim Barradas de Carvalho, ao tempo figura maior no domínio da História na Universidade de Lisboa, doutorado na Sorbonne, regressado de um longo exílio em França e no Brasil

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e com vasta e muito citada obra. Quis o acaso que nesse colóquio estivesse o professor J.S. Silva Dias, autor de, entre outros, A Po-lítica Cultural da Época de D. João III1, com quem passei a

encon-trar-me regularmente nas minhas idas a Lisboa. Nessa minha intervenção fui crítico de J. Barradas de Carvalho, sobretudo em dois aspetos fundamentais: a sua leitura althusseriana da História e a ausência de termos comparativos com o que se passava fora de Portugal, nas suas generalizações sobre o que então se chamava «a prioridade portuguesa» e que Barradas de Carvalho designava por «rutura epistemológica», um termo que na altura ganhou grande circulação nos meios culturais portugueses.

Esse meu texto foi mais tarde lido pela bióloga Maria de Sousa, ao tempo a trabalhar em Nova Iorque, que o passou ao professor Luís de Albuquerque, de quem algum tempo depois re-cebi um convite para participar num congresso sobre história da ciência em Portugal promovido pela Academia das Ciências de Lisboa, em 1984. Era minha intenção incluir esse ensaio no livro sobre identidade nacional que entretanto submetera à Imprensa Nacional-Casa da Moeda, sob a direção de Vasco Graça Moura. Aceite para publicação, como expliquei em A Obsessão da Portu-galidade2, acabei protelando a sua entrega porque cada secção foi

sendo alargada com sucessivos textos apresentados em colóquios diversos dentro e fora de Portugal e Estados Unidos da América. Só recentemente acabaram vindo a público a parte sobre Fernando Pessoa (Pessoa, Portugal e o Futuro)3e esse, atrás citado, A Obsessão

da Portugalidade. O terceiro da série, que não segue nenhuma ordem especial, é o presente volume.

O texto a que me venho referindo como tendo aberto a se-quência de escritos meus sobre a temática da ciência nos Desco-brimentos é o que enceta este conjunto de ensaios. Optei por não tocar nele, para além de leves retoques formais, porque ele acaba

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demonstrando que sobre a questão da ciência nos Descobrimentos não tomei nenhum partido a priori. Entrei criticando as posições de J. Barradas de Carvalho, todavia gradualmente fui-me aperce-bendo de que, se por um lado os portugueses pecavam por exces-so, exagerando as suas pretensões vanguardistas em matéria de ciência no séculoXVI, por outro a historiografia anglo-americana

pecava por supina ignorância do que se passara em Portugal nesse período, reclamando para os Ingleses um papel pioneiro que na verdade não tiveram, pelo menos exclusivamente. E aos poucos passei a usar dois registos, consoante me dirigia a portugueses ou a anglo-americanos, reconhecendo agora que o professor Barra-das de Carvalho sentiu em França precisamente o mesmo que eu sinto face à historiografia anglo-americana. Republico, no entan-to, esse texto sem alterações porque ele servirá ao menos para de-monstrar que foi a evidência dos factos que se me impôs e me fez refrear as minhas críticas iniciais, se bem que continue a pensar que o paradigma marxista (para mais na versão althusseriana) que enforma o seu pensamento distorceu a documentação impressio-nante que recolheu nos seus escritos. E não só isso, como adiante se verá. Todavia, se o leitor não estiver interessado nesse «diálo-go» teórico, pode muito bem saltar toda essa I Parte e começar a leitura na II, pois é ela que reflete a minha perspetiva atual sobre toda esta problemática.

Quando em 1996 tive de fazer uma conferência plenária no Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas na Uni-versidade de Oxford, no Reino Unido, tinha plena consciência de quão escorregadio era o terreno a pisar. Iniciei, por isso, a minha intervenção nestes termos:

Recordo-me de há cerca de vinte anos ter tido em mãos uma edição de La Rebelión de las Masas, de Ortega y Gasset, que continha

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dois Prólogos escritos pelo autor respetivamente para as primeiras traduções francesa e inglesa do livro. Surgem exatamente com os títulos: Prólogo para Franceses e Prólogo para Ingleses. Vindo eu há dezasseis anos a dedicar alguma parte do meu tempo de investigação ao papel de Portugal na aurora da ciência moderna, dou também comi-go em situação de ambivalência. Quando escrevo para portugueses, uma atitude crítica leva-me a atenuar, ou abrandar, alguns entusias-mos excessivos da parte de autores sérios, mas que alcandoraram o papel desempenhado pelos portugueses do séculoXVIà categoria de

«pré-rutura epistemológica» (Joaquim Barradas de Carvalho), ou de «revolução da experiência», como lhe chamaram nos anos eufóricos do salazarismo.4Fi-lo, por exemplo, num ensaio incluído em volume

coletivo publicado há uma dúzia de anos pela Academia das Ciências de Lisboa. Quando, porém, sobre o tema escrevo ou falo em inglês dirigindo-me a um público anglo-saxónico, que desse período da nossa história pouco mais sabe do que os nomes Prince Henry e Da

Gama, vejo-me na necessidade de entrar no contexto dos debates

contemporâneos de história e filosofia das ciências, acentuando a im-portância do que em Portugal se escreveu no séculoXVI. Ao fazê-lo,

vou mais além de um simples carregar nas tintas: procuro reformular os parâmetros do discurso português e demonstrar como o nosso séculoXVIconstitui uma etapa importante que nos permite

compreen-der melhor como se efetuou a transição da conceção clássica e me-dieval da ciência para a moderna.

Hoje, falando a lusófonos, lendo a versão portuguesa — expres-samente preparada para aqui — de um texto escrito originalmente em inglês e destinado a um público anglo-americano, sinto-me tão perplexo como aquele soldado que não conseguia distinguir a mão direita da esquerda. Depois de sucessivas lições do furriel — «Esta é a tua mão direita, esta é a tua mão esquerda» —, o furriel enrolou--lhe os braços um no outro e perguntouenrolou--lhe: «Qual é agora a tua mão direita e a esquerda?» E o soldado, perdido: «Mas o meu furriel baralhou-mas todas!»5

Apesar dos meus caveats iniciais, surgiram reações forte-mente críticas, se bem que ninguém — e eram figuras nacionais consagradas a intervir no debate — apontasse qualquer deslize

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factual da minha parte, pelo menos sobre o que na altura não tivesse já respondido em escritos sobre as questões em causa. Queriam apenas que me cuidasse e precavesse contra os perigos do nacionalismo.

Curiosíssima reação, porque nunca a encontrara feita a Bar-radas de Carvalho, e eu agora estava do lado dele falando sobre-tudo para estrangeiros, chamando-lhes a atenção para algo que desconheciam e deveriam conhecer. Mas os historiadores portu-gueses presentes não tinham qualquer interesse na história da ciência e, por isso, não contribuíram em nada para a elucidação do tema. (Um caso houve de um académico luso que até tinha interesse no tópico, mas especificamente na ciência estrangeira e não no que ocorrera em Portugal.)

De então para cá, prossegui investigando, escrevendo e pu-blicando em português e inglês, tendo sobretudo anglo-america-nos como interlocutores, incluindo nesse grupo os meus aluanglo-america-nos num seminário na Brown intitulado «Sobre a Aurora da Moder-nidade» («On the Dawn of Modernity»).6 Falecidos J.S. Silva

Dias e, sobretudo, Luís de Albuquerque, figura que sempre admirei, com quem mantive relações de amizade e frequente contacto enquanto foi presidente da Comissão Científica da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, o interesse da parte dos historiadores portugueses passou a limitar-se ao professor Francisco Contente Domingues e, posteriormente, aos professores Henrique Leitão e Amélia Polónia. Dos anglo-americanos, devo destacar os historiadores George D. Winius, Wilcomb E. Washburn, Patricia Seed e Norman Fiering, entre outros que injustamente estou a esquecer. Posto este historial, que me pareceu necessário para contex-tualizar as páginas que se seguem, é altura de me debruçar agora sobre o conteúdo do livro.

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Não pretendi escrever nenhum tratado sobre a ciência e os Descobrimentos. Toda a minha atividade ensaística tem sido sempre uma conversação com textos de outros autores, na tenta-tiva de diálogo com eles, de modo a fazer luz sobre algumas das questões que mais me interessam na história da cultura portuguesa. Assim, cada capítulo abre uma janela sobre um determinado tema e o presente volume simplesmente reúne artigos inter-rela-cionados, mas sem a pretensão de cobrir tudo o que em Portugal ocorreu nesse domínio da nova mentalidade empírica no período dos Descobrimentos. Circunstâncias várias influíram na escolha dos temas de ensaios que fui lendo em congressos, colóquios e conferências em universidades europeias e norte-americanas, resultando assim que algumas áreas nunca chegaram a ser contem-pladas, se bem que eu estivesse (e ainda esteja) interessado nelas. Chegou, todavia, a altura de pôr cá fora este livro e desistir de elaborar um volume exaustivo, incorporando tudo o que nas aulas venho discutindo. Portanto — faço questão de acentuar —, o lei-tor está em presença de um conjunto de contributos parcelares para uma revisitação global do papel português na abertura à mo-dernidade científica.

O núcleo duro da temática do livro circula em torno da ideia de que durante a Alta Idade Média foram surgindo sinais, alguns deles muito isolados e sem efeitos posteriores, de uma viragem de enfoque, cada vez maior, para a natureza e o conheci-mento empírico dela. Outro aspeto desse núcleo duro é a noção de que um dos momentos da referida viragem — o mais signifi-cativo e de maiores consequências antes da primeira revolução científica ocorrida com Newton e Galileu no séculoXVII — teve

lugar em Portugal durante o período da Expansão. A experiência como critério fundamental de verdade, que havia sido importante para Aristóteles e Galeno na Idade Clássica, fora redescoberta

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por autores como Roger Bacon, no séculoXIII, mas só ganhou

foros de institucionalização e de estruturação de uma nova men-talidade com o contributo de autores fulcrais no processo dos Descobrimentos portugueses. Não se pode, no entanto, falar ain-da de revolução científica nesse período, por razões que ao longo das páginas deste livro se espera fiquem claras.

Nada disto está imbuído de qualquer nacionalismo ou chau-vinismo. Aceitei como narrativa estruturante (o termo corrente é «visão recebida») a historiografia anglo-americana. Apoiando-me num pilar que essa cultura crê como alicerce inabalável — o culto do facto —, tenho trazido à colação factos sistematicamente ignorados por essa narrativa hoje omnipresente. Ignorados não exata ou necessariamente por nacionalismo, mas por um paro-quialismo em grande parte provocado pelo caráter monolingue da conversação desenvolvida pela academia anglo-americana, e tam-bém — não pode esquecer-se este pormenor — por um desdém herdado das culturas protestantes em relação ao universo dos paí-ses «católicos», geralmente pensado apenas como o abjeto objeto da ira da Reforma. Inconsciente e atavicamente subjaz a ideia da leyenda negra, que a Inquisição consolidou na mente anglo-saxó-nica e no seu prolongamento norte-americano.

Em relação a esta temática da ciência nos Descobrimentos fora de Portugal, há dois níveis de público a considerar: o acadé-mico, que pensa na modernidade científica como tendo ocorrido apenas no séculoXVII, esquecendo que os Descobrimentos

portu-gueses não aconteceram por acaso, antes tiveram como uma das suas motivações uma nova mentalidade empírica com implica-ções tecnológicas; há também que ter em conta o grande público, incluindo a sua camada culta, que mantém arraigado na mente o mito da «terra plana» posto a circular pelo norte-americano Washington Irving e o francês Antoine-Jean Letronne em finais do

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séculoXIXe princípios do XX.7É a velha estória de Colombo ter

ido propor a D. João II a sua supostamente revolucionária teoria da esfericidade da Terra. Segundo a lenda, o rei terá reunido os seus especialistas, que lhe recomendaram a rejeição da proposta por mal informada, porque a Terra era plana. A viagem de Colombo teria então sido a vingança do navegador, daí que a sua gloriosa descoberta das Américas, confirmando a redondeza da Terra, tivesse resultado em benefício de Espanha.8

Não é apenas nos EUA que essa estória se perpetua. Ainda muito recentemente fiz uma conferência pública na Universidade de Genebra e surpreendi muitos dos presentes ao demonstrar a total falsidade de quejanda narrativa. Todos os anos tenho o pra-zer de acompanhar, no meu seminário «Sobre a Origem da Mo-dernidade», uma dúzia e meia de alunos, norte-americanos e de vários outros países, na desmistificação dessa historieta. O mito, porém, persiste, porque os mitos têm o condão de nunca morrer por serem mais cativantes do que a realidade. E, no entanto, nes-te caso a realidade é deveras fascinannes-te. Está por ser escrita ainda uma parte da História portuguesa, aquela que apenas transparece nos livros do período dos Descobrimentos. Refiro-me aos deba-tes que terão forçosamente tido lugar entre os líderes envolvidos nas viagens marítimas, sobretudo no séculoXV, não sobre a

esfe-ricidade da Terra, assunto mais do que estabelecido entre eles, mas sobre o que aconteceria às naus abaixo do equador. Seriam arrastadas para onde? Temos conhecimento das surpresas surgi-das com a descoberta de vegetação luxuriante para sul do deserto do Sara, bem como da existência de gente que andava em pé como nós, o que destronava por completo as fantasias gregas dos antípodas. Na Antiguidade Clássica supunha-se que, a existir gente do outro lado do globo (já os Gregos sabiam que a Terra era redonda), teriam de viver de pernas para o ar, uma vez que

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nessa época, como aliás ainda na dos portugueses de Quatrocentos e Quinhentos, não havia ainda notícia da força da gravidade.

Outro grande debate deve ter ocorrido (temos dele indícios fortes) sobre a extensão de África e sobre se depois da Guiné se-ria possível começar a subir para norte, rumo à Etiópia. Há claros sinais de desapontamento quando as notícias que chegavam apontavam para um prolongar-se imenso desse continente para sul, levantando sérias dúvidas sobre se poderia navegar-se entre o Atlântico e o Índico. Se a África se estendia assim tanto para sul, então seria bem provável que o mapa de Ptolomeu, do séculoI,

a única fonte de informação clássica sobre aquela parte do globo terrestre, estivesse correto e o Índico fosse realmente apenas um lago.9 Ora, isso explica o interesse dos portugueses na passagem

pelo Noroeste, que levou a expedições, sobretudo a partir dos Açores, que permitiram em 1452 a descoberta das ilhas das Flores e do Corvo (na altura considerado um novo arquipélago — o das ilhas Floreyras), as viagens à Gronelândia e à Terra Nova (esta por Gaspar Côrte-Real e não pelo irmão, Miguel, como pretende a lenda portuguesa).10 A viagem de Bartolomeu Dias

dobrando o cabo da Boa Esperança veio pôr termo apenas a parte de uma discussão de décadas, porque o ainda hipotético caminho marítimo para a Índia era de qualquer modo, e sem sombra de dúvidas, excessivamente demorado e oneroso, inclusive no núme-ro de vítimas.

Tudo isso torna fascinante a investigação sobre o que terá sido debatido em Lisboa na segunda metade do séculoXV,

por-que, repita-se, as viagens empreendidas não surgiram de modo nenhum por acaso. Costumo mesmo compará-las — salvas as óbvias e menos óbvias diferenças — às viagens do Projeto Apollo que levou os norte-americanos à Lua: um plano tateado passo a passo, construído à custa de tentativas e erros, coligindo afanosa

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e cuidadosamente todas as informações herdadas do passado e potencialmente úteis, mas abandonadas a partir do momento em que as notícias que iam sucessivamente chegando das viagens, cada vez mais para longe no Atlântico, demonstravam que os clássicos tinham falado de cor, sem nunca poderem ter visto com os próprios olhos nada do que os «rudes marinheiros» portugue-ses então experimentavam.

É toda essa empolgante história de descoberta, de fascínio com o novo, que está por detrás dos ensaios que se seguem. Rei-tero: com eles não pretendo reescrever essa narrativa, pois nem sequer tenho carta de historiador. Foram as ideias e o entusiasmo pelo relato das mesmas que me trouxeram a estas tentativas de conversa com os historiadores, levantando dúvidas, questões, e tecendo considerações que me parecem pertinentes.

Assim, os ensaios que se seguem têm cada um o seu objeti-vo e foco. Sendo todos sobre temática relacionada, caminham cada qual na sua direção. No seu conjunto, porém, apontam todos para um sentido que gostaria surgisse coeso e coerente, se bem que longe de colmatar todas as brechas e hiatos que uma narrati-va abrangente deste período exigiria. Deixo essa tarefa a um his-toriador de fôlego que seja sensível a esta problemática. O que aqui fica são subsídios parcelares, simples contributos e possíveis pistas. Tendo cada um deles sido escrito como texto independen-te e para públicos específicos, procurei agora eliminar ao máximo as repetições de informação. Nalguns casos isso foi, porém, im-possível, na medida em que truncaria a linha lógica da argumen-tação de cada ensaio. Para essas eventuais redundâncias peço a benevolência do leitor.

Eu próprio gostaria de ter mais tempo de vida para escrever sobre outros temas a que não cheguei, mas que desenvolvo anual-mente nas aulas. A servir de exemplo, poderei mencionar a do

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papel dos mitos herdados dos clássicos, ou das estórias medievais sobre crenças em ilhas e terras. São muitos os casos e altamente reveladores. A ilha do Brazil é, por sinal, um dos mais interessan-tes e ainda hoje mal contado. A mais que batida narrativa do pau-brasil para nome do Brasil, substituindo o de Santa Cruz, vejo-a como explicação deficiente, por lhe faltar a referência ao facto de há muito os portugueses procurarem a ilha Brazil que aparecia em mapas já no séculoXIV. Mas esse assunto ficará para

um ensaio futuro; não quis que a sua ausência (e a de outros) atrasasse ainda mais a publicação do presente volume.

Casos há que foram, entretanto, tratados — e muito bem — por outros autores, como acontece com a análise das preocupa-ções empíricas do açoriano Gaspar Frutuoso (c. 1552-1591), autor de Saudades da Terra. Os novos fenómenos vulcânicos, e geológicos em geral, por ele encontrados em terras até pouco tempo antes inteiramente desconhecidas atraíram-lhe os cuida-dos e atenções. A escrita de Frutuoso aparece, por isso, mais do que salpicada de observações empíricas e tentativas de explicação igualmente com base nas suas novas experiências. Esse trabalho foi levado a cabo por Manuel Serrano Pinto.11

Um outro exemplo paradigmático é o relativo a Fernão Mendes Pinto e a sua Peregrinação. Inicialmente influenciado pelas leituras clássicas, não lhe prestei a devida atenção como amostra da nova mentalidade empírica, até conhecer a obra de um investigador galego que me demonstrou à saciedade que a rota e a toponímia referidas nas narrativas do aventureiro são passíveis de serem identificadas com relativa facilidade e segurança. Refiro--me ao espetacular trabalho de Afonso Xavier Canosa Rodri-gues.12

Quer dizer: ao fim e ao cabo, trata-se de mais de cem anos de prodígios. Limitei o título deste volume a «um século», em

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parte pelo prazer que me dá dialogar com títulos de obras clássicas portuguesas (no caso, como é mais que óbvio, O Dia dos Prodí-gios, de Lídia Jorge), mas também porque os prodíProdí-gios, muitos deles eticamente condenáveis — e nem sequer me refiro à escra-vatura! —, não se confinam às divisões tradicionais dos séculos, já que o período das grandes inovações científicas portuguesas cobre sensivelmente os anos entre o final do primeiro quartel do sé-culoXVe os finais do segundo quartel do séculoXVI, com a chegada

ao Japão. Do ponto de vista propriamente de interesse para a his-tória da ciência, teríamos de terminar um quartel mais cedo, com a viagem de Fernão de Magalhães (já agora, outro tema estudado no meu seminário, através do relato de Antonio Pigafetta, sobre o qual ainda não escrevi).

Decidi encerrar o livro propriamente dito (acrescentei al-guns apêndices sobre que falarei de seguida) com um ensaio escrito para a segunda parte do congresso sobre Portugal e a ciên-cia, organizado pelo professor Luís de Albuquerque na Academia das Ciências, que teve lugar em 1989 e que tomou como enfoque o séculoXX. Amavelmente instado por ele a colaborar, tentei

es-quivar-me alegando nada ter a dizer sobre o séculoXX. Porque

havíamos conversado muitas vezes sobre o estado da ciência em Portugal (lembro-me de ter publicado uma crónica no Diário de Notícias em que lamentava a ausência de prémios para a ciência, ao contrário dos muitos que existiam para as letras13),

estimulou--me a escrever sobre um tema que lhe propus como saída e me parecia ser a única possibilidade: o ensaio de Sant’Anna Dionísio, A Não-Cooperação da Península Ibérica na Criação da Ciência, que foi posteriormente, tal como o anterior, publicado no volume das Atas do Congresso, editado pela Academia. O artigo está hoje desatualizado, dado o avanço, entretanto ocorrido, das ciências em Portugal; mas nem por isso creio que esteja desfocado, uma

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vez que se ocupa da análise de um texto clássico (que eu saiba não anteriormente analisado por ninguém), tentando explicar o se-cular atraso português no domínio da ciência. Esse ensaio inte-gra-se, aliás, no tema da decadência (ou declínio, como prefiro chamar-lhe) da Ibéria face à modernidade, tema do meu próximo volume de ensaios. Todavia, pareceu-me que ficaria mais bem integrado no presente conjunto.

Seguem-se alguns apêndices que, como o lugar que ocupam indica, não são essenciais, mas podem ajudar a colmatar algumas brechas, das muitas que o volume certamente deixou abertas. O primeiro é um contraponto, destinado a comprovar que não subjaz a esta minha revisitação dos Descobrimentos portugueses qualquer atitude nacionalista. Face às pretensões patrióticas sobre a descoberta portuguesa da América do Norte, já referi atrás que no meu livro O Peso do Hífen incluí dois textos fortemente críti-cos. Acrescento agora um terceiro ensaio, sobre as ilhas Antília e Satanazes, inseridas no mapa de Zuane Pizzigano de 1424, que levaram Armando Cortesão a deslizar inclinando-se para a tese segundo a qual esses nomes supostamente portugueses (Antília não se sabe a que língua pertence) seriam prova de os portugueses terem chegado à América do Norte muito antes de Colombo. Proponho, todavia, que essas ilhas devem ter uma origem mítica. Cortesão, registe-se, estudou esse mapa com imenso rigor, dedi-cando-lhe cinco anos de estudo no British Museum.14Mas a sua

atitude de investigador sério nada tem a ver com o fanatismo de um médico luso-americano que insistia no delírio de essas ilhas serem, respetivamente, a Nova Escócia e a Terra Nova.

O segundo item dos Apêndices é uma breve entrevista sobre uma das figuras a quem dedico este livro. Aproveitei o terem-me convidado a falar sobre ele para aqui lhe prestar uma mais que justa homenagem.

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O terceiro e último apêndice poderá parecer estranho, mas é o programa do seminário que leciono todos os anos na Brown University. No fundo, é o esquema geral do livro que eu gostaria de ter escrito, se dispusesse de tempo e me dedicasse por inteiro a esta fascinante problemática.

Iniciei esta Introdução referindo que o título deste livro é politicamente incorreto. Sim, atualmente, em muitos círculos ele parecerá isso mesmo. A Expansão europeia é malvista e malquis-ta, por ter sido uma invasão em terras que pertenciam a outros. Este livro não é, porém, sobre isso, mas sobre história das ideias e, em particular, sobre história da ciência. Há muita gente séria interessada nesse estudo, sem que isso de algum modo signifique que aceite ou valide os erros, os abusos e os crimes cometidos du-rante a Expansão. Confundir-se as questões não as ilumina nada, apenas obscurece e conspurca o nosso entendimento da História. Gostaria ainda de acrescentar que, tendo participado na criação do Forum on European Expansion and Global Interaction nos EUA em 1993, estou plenamente consciente das dificuldades que o termo «Descobrimentos» levanta. Apesar disso, uso-o com frequência por não achar que daí advenham grandes males ao mun-do. A Europa Ocidental descobriu que havia mais mundos para além dela; são Descobrimentos do ponto de vista europeu. Mas há mais do que isso: no caso da temática deste livro — a ciên-cia —, a Expansão europeia só foi possível graças a um conjunto significativo de descobertas científicas. Nunca fui dado a puris-mos linguísticos (puritanispuris-mos?) e não é com esta idade que vou começar a sê-lo.

Uma última nota-sugestão: este livro foi escrito numa lin-guagem acessível. A parte especificamente académica está con-centrada nas notas e essas vão colocadas no final de cada capítulo

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para não incomodarem o leitor não interessado nelas. Cada capítulo pode muito bem dispensá-las. O mesmo se diga para a biblio-grafia, pensada em benefício dos leitores mais exigentes e interes-sados.

Providence, Rhode Island (EUA), 5 de abril de 2018.

NOTAS

1Dias, 1969; Dias, 1973. Um outro participante era o historiador A.H.

Oli-veira Marques, que, ao contrário do professor Silva Dias, não se interessou mini-mamente pela questão da ciência nos Descobrimentos.

2Almeida, 2017 3Almeida, 2014. 4Osório, 1947. 5Almeida, 1998. 6V. Apêndice 3.

7V. Jeffrey Burton Russell, Inventing the Flat Earth. Columbus and Modern

Historians (1991).

8Isto apesar de excelentes livros destinados ao grande público, como o de

Stephen R. Bown, 1494: How a Family Feud in Medieval Spain Divided the World

in Half. Para não falar de grandes exposições nacionais com belíssimos catálogos

cheios de informação, como «Encompassing the Globe. Portugal and the World in the

16thand 17thCenturies» (Smithsonian Institution, 1991).

9Ptolomeu teve de inventar o prolongamento de África para sul e depois para

leste e oeste, porque não tinha outra maneira de imaginar como se poderia conter a água do Atlântico. Daí ter chamado «Terra incognita» à que ele inventou, o que é uma espécie de oximoro, pois se é incógnita como pode estar mapeada? Haveria que pensá-la apenas em termos de um lago imenso, bem mais vasto, mas nos mol-des do Mediterrâneo. E o Índico teria idêntico formato.

10Os leitores tentados a detetar nacionalismo neste volume devem

contraba-lançar a sua leitura com a das minhas críticas aos devaneios lusitanos sobre a su-posta descoberta portuguesa da América — o mito da Pedra de Dighton. V. O Peso

do Hífen. Ensaios sobre a Experiência Luso-Americana (2010).

(25)

O SÉCULO DOS PRODÍGIOS 31

12«A identificacão e referenciacão de entidades geográficas mencionadas.

O caso da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto» (s. d.).

13Artigo publicado em 1989 e incluído no final do último capítulo (III Parte). 14Cortesão, 1954.

Referências

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