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FESTA URBANA E DIÁSPORA AFRICANA: O DISCURSO DA IMPRENSA SOTEROPOLITANA, André Luiz Rosa Ribeiro Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC

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FESTA URBANA E DIÁSPORA AFRICANA: O DISCURSO DA IMPRENSA SOTEROPOLITANA, 1930-1950

André Luiz Rosa Ribeiro Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC

O principal objetivo desta pesquisa é perceber como as festas afrocatólicas, realizadas nos largos e no litoral da Cidade do Salvador, foram vinculadas a uma identidade afro-soteropolitana. A principal fonte de pesquisa foi o jornal Estado da Bahia (Acervo Hemerográfico da Biblioteca Pública do Estado da Bahia – Seção Raros). O recorte temporal inicial situa-se na década de 1930, período de uma gradual mudança do olhar da imprensa baiana sobre as manifestações afro-soteropolitanas, e encerra-se na década de 1950, quando se consolida a imagem das festas ligadas às comunidades de terreiro como um dos símbolos da identitários da Cidade do Salvador e, por consequência, da Bahia.

As fontes selecionadas foram avaliadas a partir da hipótese que os discursos presentes colaboraram na formação de memória sobre as manifestações religiosas afro-baianas. Pinheiro (2015) defende que, as estratégias discursivas da imprensa devem ser pensadas com base na análise das narrativas sociais e nas perspectivas teóricas sobre as práticas discursivas mediáticas. O termo discurso é aqui considerado a partir da compreensão da linguagem enquanto prática social. Os discursos não somente representam entidades e relações sociais, eles as constroem ou as constituem, e “posicionam as pessoas de diferentes maneiras como sujeitos sociais” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 22).

As fontes hemerográficas, interpretadas como produtoras de memória, são entendidas como expressões mediadoras das experiências sociais em dado momento histórico, com intuito de perceber as mudanças ou as manutenções dos discursos sobre o tema de pesquisa na primeira metade do século XX. Os atuavam com intérpretes da sociedade baiana, direcionados especialmente a uma classe média urbana letrada e intelectuais de diversas áreas profissionais. A imprensa, apesar do seu elevado grau de subjetividade, é geralmente concebida como espaço de representação da realidade. De tal maneira, os acervos hemerográficos como objeto de estudo são fundamentais, para

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compreensão dos mecanismos utilizados para veiculação de interesses de determinadas ideias na vida social.

Os jornais traduziam as ideias e pensamentos que norteavam o contexto social e cultural no período histórico no qual foram produzidos: a Cidade do Salvador da primeira metade do século passado. A imprensa soteropolitana possuía protagonismo no processo de construção e legitimação de representações sociais, valores e imagens da cultura afro-baiana no período.

Os jornais passaram a relatar, além das batidas policiais nos terreiros mais humildes, as grandes festas, os “espetáculos” religiosos das grandes casas (LANDES, 2002). Dessa forma, ocorre uma passagem da imagem do negro de elemento socialmente perigoso, ligado à feitiçaria e atividades marginais, para o negro exótico e festivo, totalmente integrado à sociedade baiana. É possível perceber que, a partir do maior interesse dos etnólogos na década de 1930, os jornalistas também passaram a “interpretar” as manifestações afro-brasileiras. Figuras como Édison Carneiro, Thadeu Santos, Reginaldo Guimarães e Aydano do Couto Ferraz produzem uma série artigos sobre o tema nas páginas do jornal Estado da Bahia, especialmente no contexto do II Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Salvador no ano de 1937. Momento em que lideranças religiosas ganham espaços consideráveis nas páginas da imprensa. Reportagens extensas são dedicadas à determinados terreiros e suas lideranças. Figuras importantes do mundo religioso, como Martiniano Bonfim, João Torres Filho, Joãozinho da Goméia, e Severiano Manoel de Abreu, Jubiabá, são entrevistados e fotografados. Ter uma reportagem sobre si ou uma foto estampada nas páginas dos jornais era objeto de prestígio social entre os elementos populares, exceção às páginas policiais.

As festas como a Lavagem do Bonfim e a do Presente são cada vez mais prestigiadas pelos jornais soteropolitanos, momento do protagonismo do povo negro nas manifestações de rua, quando é possível perceber uma rede de socialidades presentes nos valores, ideias, religiosidades. Os poderes públicos passam a se interessar cada vez na intervenção organização das festas populares, inserindo-as em uma pauta de uso político. A festa, segundo Chartier, é um dos principais eventos públicos em que se vinculam, “em termos de compromisso e de conflito, relações entre uma cultura designada como popular,

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ou folclórica, e as culturas dominantes”. A festa situa-se no encontro de duas dinâmicas culturais: de um lado, “a invenção e a expressão da cultura tradicional compartilhada pela maioria”; de outro lado, “a vontade disciplinante e o projeto aculturante da cultura dominante”. Em consequência as festas, de caráter popular, foram alvo “de um trabalho sempre recomeçado”, visando discipliná-la mediante injunções normativas (CHARTIER, 2004, p. 24).

Existe um período crítico de construção das imagens sobre a cultura afro-soteropolitana que inicia, na imprensa em fins do século XIX até a primeira metade do século passado, quando consolida-se também nos campos artístico e acadêmico, e vão sendo apropriadas e reapropriadas pelas instâncias administrativas para moldar a “Roma Negra”. Jornalistas, pesquisadores (Artur Ramos, Édison Carneiro, Roger Bastide, Pierre Verger) e artistas (Jorge Amado, Dorival Caymmi, Carybé, Mário Cravo), vão fixando nos anos 1930-1960 os temas “folclóricos” da Bahia, mais especificamente de Salvador e seu Recôncavo: candomblé, capoeira, samba, culinária, indumentárias, lendas e outros acervos culturais que irão constituir uma Bahia “inventada”.

O imaginário popular foi alimentado, nesse período, pelas matérias assinadas por Édison Carneiro, entre outros. Ao final dos anos 1930 e início dos anos 1940 jovens escritores, como Carneiro, Couto e Amado, passaram a atuar na imprensa soteropolitana (Estado da Bahia e O Imparcial), dando um novo colorido às páginas dos jornais, impregnando-as de uma nova visão sobre o mundo dos negros descendentes de africanos, sobre seus valores e suas crenças. Era uma postura de cunho social adequada ao engajamento político dos membros da Academia dos Rebeldes, muitos dos quais se tornariam membros do Partido Comunista Brasileiro, atuando decisivamente na reconfiguração do olhar sobre as raízes mais profundas da cultura baiana.

Esses escritores passam a descrever nos jornais os comportamentos e códigos culturais do povo-de-santo. Participam de festas religiosas, nos terreiros e nos largos, conversam com as pessoas em seu ambiente de trabalho: quituteiras, pescadores, cordelistas, capoeiristas, sambistas, pequenos comerciantes se integram ao cotidiano dos jornais, mesmo que ainda estejam presentes inúmeros estereótipos vigentes na sociedade

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da época. Tais escritores realizam uma imersão na realidade do povo negro de Salvador, buscam os espaços em que as situações sociais se desenrolam.

Tomemos como objeto de análise o artigo intitulado O culto da mãe d´água, escrito por Édison Carneiro para o jornal Estado da Bahia:

Na Bahia o culto da mãe d’agua se distingue pelo seu caráter tipicamente africano. Segundo as lendas africanas sobre o surgimento dos orixás, da união de Obatalá, o céu, mais Ododua, a terra, nasceram Aganjú, a terra firme, e Iemanjá, as águas. E da união destes dois nasceu Orungán, o ar, tudo que existe entre a terra e o céu – o qual se apaixonou seriamente por Iemanjá, sua mãe, até conseguir violá-la. Fugindo às propostas canalhas do filho, Iemanjá perseguida por ele, morreu – e dos seus seios, tornados enormes, nasceram dois rios, que se reuniram adiante, formando uma lagoa, ao passo que, do ventre rompido, surgiram todos os orixás que povoam a imaginação do negro (CARNEIRO, 1936a, p.3).

O mito do culto à Mãe d’Água serve, aqui, como tema privilegiado para uma abordagem do mundo das mulheres e dos homens cujas vidas sempre estiveram ligadas às águas da baía de Todos os Santos, morada da Rainha do Mar, também conhecida como Iemanjá, Janaína e Dona Maria. Costuma-se representar a divindade das águas como uma sereia, ou ainda como uma mulher branca de braços abertos e mãos espalmadas, muito próxima das representações de Nossa Senhora (COUTO, 2010, p. 145), conforme a maioria das imagens existentes na Casa do Peso do Rio Vermelho, onde realiza-se a sua maior festa anual.

Não conheço orixá que possua maior número de denominações do que Iemanjá, a mãe d’agua. Arthur Ramos conseguiu registrar, na Bahia, os nomes de Janaína, Princesa do Mar, Sereia, Sereia do Mar, dona Maria, Ôloxún, etc. E eu mesmo conheço ainda os seguintes. – Rainha do Mar, Inaê, Dandalunda. E em quantos lugares ela é adorada! Os filhos de Iemanjá, por exemplo, devem dar-lhes presentes em todas as águas, isto é, em os lugares onde Iemanjá mora, ou seja, no Dique, no Rio de Vermelho, em Amaralina, no Monte-Serrate, no Abaité (Itapoan), em S. Bartolomeu e na Lagoa Vovó, perto de S. Gonçalo. Só assim poderão obter os favores da sua excelsa senhora. O presente era o presente comum para a mãe d’agua, -pó de arroz, pentes, loção, espelho, etc., todo o material indispensável a uma toilette bem cuidada (CARNEIRO, 1936b, p.5).

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De acordo com Cleidiana Ramos (2017), em sua tese de doutoramento sobre as festas de verão em Salvador, a do Rio Vermelho iniciou-se em fevereiro de 1924 sob a iniciativa dos pescadores pertencentes à Colônia de Pesca Z-1, que realizavam então uma procissão marítima do local até Monte Serrat. No seu dia consagrado, 2 de fevereiro (dia da Senhora das Candeias), também havia presentes à mãe d’agua no Dique, na Cidade do Salvador, e na Amoreira, na ilha de Itaparica. Na povoação da Ilhota, no Mar Grande nesse mesmo dia se canta que a Virgem das Candeias é “dos homens amparo e guia, da ilha a esperança, luz, vida e alegria (CARNEIRO, 1936a, p.3).

As fontes hemerográficas apontam ainda uma cartografia das festas afro-soteropolitanas que abrange praticamente todo o litoral urbano da Cidade do Salvador e suas imediações:

Na Bahia, Iemanjá mora no dique, lago existente no caminho do Rio Vermelho. Todos os anos, no dia 2 de fevereiro, os candomblés das circunvizinhanças levam-lhe presentes, quase sempre constituídos por leques, pós-de-arroz, fitas, sabonetes, pentes, frascos de perfume e, às vezes, - conforme o testemunho de uma “feita”, - brilhantes e anéis de ouro (...) Não fica aí a devoção dos negros à mãe d’agua. Na Bahia, há festas semelhantes, em vários pontos da cidade. No Rio Vermelho também a 2 de fevereiro. No Monte-Serrat, onde há a famosa Loca de Mãe d’Água, a 20 de outubro. Nas Cabeceiras da Ponte, perto da histórica povoação do Cabrito, a 3 de novembro (CARNEIRO, 1936a, p.3).

Carneiro registra ainda a festa dedicada a Mãe d’Água realizada em Itapuã, neste mesmo ano de 1936, na qual ocorre a presença marcante de uma entidade tupinambá, o “caboclo” Seu Tupy, encarnado no pai-de-santo Manoel Paim:

O candomblé começou pouco depois, na sala de barro batido da casa onde devíamos ficar. O pai de santo Manoel Paim e a feita Lindaura dirigiam e animavam a vadiação dos demais, dançando, puxando cânticos. Feito o despacho de Exú, todos os demais orixás tiveram as suas três cantigas regulamentares. Principalmente os orixás das águas: Iemanjá, Oxum, Nanan (Anamburucú) e Ôxunmaré. Também os caboclos consentiram em baixar na aldeia. Ômolú, o velho Ômolú, desceu no pai de santo Paim. E os presentes curvaram-se, reverentes, para “salvar o velho”, que esperava sentado sob uma toalha estendida, o momento de conversar com seus filhos. Além de outros orixás

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que poucas vezes surgem, como Ogum Marinho, Ogum de Ronda e Tempo (CARNEIRO, 1936b, p.5).

Carneiro descreve ainda a procissão que de Itapuã se deslocava para a Lagoa do Abaeté, onde o presente seria depositado em suas águas:

De manhã, talvez às sete horas, o presente saiu da casa carregado pela dona, d. Germina do Espírito Santo, e acompanhado por toda a população humilde do lugar A procissão dos fiéis parou alguns momentos na igrejinha da Senhora da Conceição, para este fim mandada abrir pelo subdelegado local, deixando na porta os tabaques e o agogô. Depois de algumas cantigas de ritmo dolente (ingôrôssi), a marcha continuou rumo do Abaeté, pelo areial. Na praia, uma enorme multidão esperava a chegada dos filhos das águas. Os tabaques rufavam. E os cânticos tomaram outra vez o tom litúrgico. E invocavam os orixás das águas – Dandalunda, Nanan, Oxum... D. Germina do Espírito Santo entregou o presente ao seu filho, o qual, já em roupa de banho, junto com um rapaz do lugar, entrou na água, nadando para fora. No momento de deixar o presente submergir, todos se viraram de costas para o mar. O presente desceu. E cá na praia, as mulheres receberam seus santos, orixás africanos e caboclos, Nanan, Cosme e Damião, Tupinambá, Oxum... O cântico pedia para o presente, um destino feliz: Deus te dê boa viagem / bom vento para navegar (CARNEIRO, 1936b, p.5).

Aos poucos a festa da “Mãe d’Água, realizada pelos pescadores do Rio Vermelho, foi ganhando um maior destaque em relação às demais e popularizando a divindade cultuada na Casa do Peso, como dá notícia o Estado da Bahia em fevereiro de 1938:

Entre os pontos de adoração mais conhecidos está o Rio Vermelho, uma das “águas” onde os devotos devem colocar presentes para a mãe d’água, afim de se darem quites com ela. Hoje, o dia magno da amável dona Maria, a colônia de pescadores do Rio Vermelho, às 11 horas do dia, depositou nas águas o seu costumeiro presente à poderosa rainha do fundo limoso do Calunga (Estado da Bahia, 2/fev/1938, n.323, p.8).

Neste período, além de Itapuã e do Rio Vermelho, realizava-se uma festa nas Cabeceiras da Ponte pelos moradores do local:

Todos os anos, neste mês de setembro, realiza-se a tradicional festa da Sereia, nas Cabeceiras da Ponte, ao Lobato, devido aos bons ofícios de alguns devotos da Rainha do Mar. Este ano a comissão organizadora das festas, presidida pelo sr. Edgard Silva, promete brilho excepcional aos festejos da grande Senhora

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das Águas. O presente será entregue à Rainha do Mar às 12 horas de amanhã, havendo nessa ocasião animado candomblé. Durante o dia, no Lobato, haverá batucadas, girandolas de foguetes, quermesses, etc. O presente será oferecido como todos os anos pelo sr. Jacinto Boaventura dos Santos (Estado da Bahia, 17/set/1938, p.8).

Na década de 1940, ocorre um gradual esvaziamento da maioria das festas dedicadas à Mãe d’Água, à exceção da realizada no Rio Vermelho. Ainda vistas como “pagãs”, a festa da Mãe d’Água tem registrados os seus componentes, um todo orgânico, conforme artigo do Estado da Bahia:

Essa festa de ritmo pagão, em algum tempo já atingiu maior esplendor. Batuques, sambas, capoeira e cachaça nunca faltavam nessas reuniões alegres dos pretos da “Boa Terra”. Embora mais reduzidas, as cerimônias de entrega de presentes ainda são realizadas em Amaralina, na Pedra Furada em Monte Serrat, no Abaeté, em Itapuã, em São Bartolomeu, na lagoa da Vovó, perto de São Gonçalo. E com a monotonia das suas canções dolentes as crioulas conservam a tradição de seus avós da África (Estado da Bahia, 3/fev/1941, p.3).

Ainda na década de 1940, a festa do Rio Vermelho vai deixando de ser conhecida como da Mãe d’Água, que como vimos possuía várias designações sincréticas, e vai adotando mais claramente a devoção ao orixá Iemanjá. O seu prestígio como principal ritual festivo dedicado à divindade das águas salgadas começa por atrair pesquisadores estrangeiros interessados nas manifestações religiosas “rigorosamente” africanas, como é o exemplo do francês Roger Bastide:

Maria Antônia Moreira, a mãe de santo, e Olavo Amorim Dória, o pai de santo, encarregados este ano dos festejos de Iemanjá, não escondem sua satisfação. É que o sinal aprovativo de Iemanjá recaí sobre eles, é que a Rainha do Mar aceitou sua festa, seus encargos, seus trabalhos. Bendita Iemanjá que coroa com tanta euforia a riqueza de setenta anos de Maria Antônia ou de Olavo! Junto a eles está o professor Roger Bastide, que em tão pouco tempo captou a confiança e a amizade de todos os pais e mães de santo dos candomblés da Bahia. Está o professor ilustre da nossa França, quase pai de santo mesmo porque ali ele não é um estranho. É um captador de todas as emoções e todos os sentimentos de uma raça, que amaciou de vez todas as arestas de um povo. (...) E junto à “Casa do Peso”, iniciam-se as cerimônias rigorosamente afros, que as mais respeitáveis mães de santo

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levam a efeito. Falam línguas que a multidão talvez não entenda mais, porque é privilégio de poucos, mas está no seu sangue (Estado da Bahia, 3/fev/1944, p.3). (Grifos nossos)

Bastide faz referência à esta festa, em seu livro Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto, período em que inicia seus estudos sobre a cultura afro-brasileira, em Salvador.

A cerimônia a que assisti foi a do dia 2 de fevereiro, que tem lugar na praia do Rio Vermelho. Temeu-se, durante algum tempo, que ela não pudesse se realizar, pois, enquanto se preparava a festa, a pessoa encarregada de dar o presente, D. Emília (Emília Bugan, do terreiro Língua de Vaca), morreu (...) Dificilmente esquecerei o espetáculo da multidão acumulada, sob um sol de rachar, em cima do penhasco que domina o oceano (BASTIDE, 1945, p.122).

É interessante notar o tom claramente literário de Bastide na descrição da Festa do Presente. Temos aqui o fascínio de um estudioso estrangeiro pela devoção dos negros baianos à divindade das águas do “grande Calunga”. Acompanhemos este trecho, onde tanto a festa quanto a divindade são vistas pela lente da sensualidade, com tons repletos de mistério:

Um imenso ramalhete de flores, agitando-se ao sopro da brisa, vestidos vermelhos, vestidos brancos, vestidos amarelos, rendas nas blusas, baianas carregadas de ouro e prata, as saias arrastando pela grama ressecada, corpos lascivos que esboçavam sobre a areia morna passos de dança, negrinhos inteiramente nus, dentro d´água, que, a cada onda, se vestiam com uma renda efêmera de espuma. A multidão feliz trocava, de um grupo a outro, risos, olhares divertidos, conversas despreocupadas e cânticos de Carnaval (...) Procuro adivinhar, entre as escamas louras de luz, entre as metamorfoses de azul, de verde e branco do oceano que se move, os cabelos desfeitos de Iemanjá, divisar a aparição de sua cauda de peixe, uma vaga que vem a ser o peito, a entrega à carícia das águas de dois seios brancos, floridos por bicos rosados. Perto de mim minha amiga Joana de Ogum também olha para o mistério do mar, o grande Calunga (BASTIDE, 1945, p.122-123). (Grifos nossos)

Em meados da década de 1950 a festa do Rio do Rio Vermelho consolida-se no imaginário popular tendo cada vez mais espaço nas páginas dos jornais. A Casa do Peso

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torna-se uma referência na devoção à Iemanjá, materializada em imagens de sereias de pele clara e longos cabelos escuros e olhos verdes. deitada geralmente sobre um recife:

Dentre as festas baianas das mais típicas, a que se realiza nesta data, todos os anos pelos pescadores do Rio Vermelho, é sem dúvidas das mais encantadoras, pela sua representação, cores, beleza, e alegria que enchem o populoso bairro superlotando o tradicional Largo de Santana, onde se ergueu em torno a igreja, as barracas de comida; vendedores de pipoca e amendoim, e todo um mundo de curiosidades, muito da alma popular da “boa terra”. Debruçada quase, sobre o penhasco, lá no fundo da balaustrada, a casinha de Iemanjá e o ponto de referência do povo em geral, em cujo recinto, são depositados os mais diversos presentes para a mãe d’agua. A festa é, toda ela, dos pescadores, é uma autêntica festa dos homens do mar, bronzeados pelo sol dos trópicos, que amam e que vivem do que o coração das águas lhe oferece todo dia. Em roda da casa todo mundo dança, samba, sapateia, joga capoeira, ao som dos pandeiros, atabaques, agogôs e berimbau. E se divertem até as 16 horas, quando as embarcações floridas , sob o espocar de foguetes e ao som dos mais diversos instrumentos e canções, se fazem ao mar para jogar, fora da barra, os regalos para a mulher de cabelos longos e olhos verdes que habita o reino encantado dos peixes, das pérolas e dos mistérios (Estado da Bahia,2/fev/1956, n.5618, p.3).

O conceito de Iemanjá surge mesclado da ideia de mãe fecundada pelas relações incestuosas com o irmão, Aganjú, e o filho, Orugã. Em seu artigo Carneiro defende que, segundo as lendas africanas sobre o surgimento dos orixás, da união de Obatalá, o céu, mais Odudua, a terra, nasceram Aganjú, a terra firme, e Iemanjá, as águas. E da união destes dois nasceu Orugã, o ar, tudo que existe entre a terra e o céu – “o qual se apaixonou seriamente por Iemanjá, sua mãe, até conseguir violá-la. Fugindo às propostas do filho, Iemanjá perseguida por ele, morreu – e dos seus seios, tornados enormes, nasceram dois rios”, que se reuniram posteriormente, formando uma lagoa, ao passo que, “do ventre rompido, surgiram todos os orixás” que povoam a imaginação do povo baiano.

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BASTIDE, Roger. Imagens do Nordeste místico em branco e preto. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica O Cruzeiro, 1945.

CARNEIRO, Édison. O culto da mãe d´água. In: Jornal Estado da Bahia, n.124, 2/junho/1936a.

___. O mito das águas. In: Jornal Estado da Bahia, n.138, 19/junho/1936b.

CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: UNESP, 2004.

COUTO, Edilece S. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860-1940). Salvador: EDUFBA, 2010.

ESTADO DA BAHIA. Festa da Mãe d´Água no Rio Vermelho. n.323, 2 de fevereiro de 1938, p.8.

___. Um presente para a Senhora das Águas. n.512, 17 de setembro de 1938, p.8. ___. Dona Janaína recebeu um belo presente. n.1110, 3 de fevereiro de 1941, p.3. ___. Ao som dos atabaques o povo saúda num grande canto: Iemanjá, Iemanjá.

n.2022, 3 de fevereiro de 1944, p.3.

___. Regalos para Iemanjá. n.5618, 2 de fevereiro de 1956, p.3.

___. Presente para a Mãe d’ Água: convite. n.5918, 2 de fevereiro de 1957, p.3. FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: EdUnB, 2001.

LANDES, R. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002 (1947).

PINHEIRO, L. S. de L. A construção do conhecimento histórico: o discurso do Jornal O Estado de São Paulo sobre a guerra de Canudos e sobre as comemorações do seu centenário. Salvador: EDUFBA, 2015.

RAMOS, Cleidiana P. C. Festa de verão em Salvador: um estudo antropológico a partir do acervo documental do jornal A Tarde. Tese (Doutoramento em Antropologia), Salvador, PPGA-UFBA, 2017.

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