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Câmera de segurança: questionamentos e reapropriações do dispositivo de vigilância na videoinstalação virtual "MIRADAS"1

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Câmera de segurança: questionamentos e reapropriações do dispositivo de vigilância na videoinstalação virtual "MIRADAS"1

Maruzia Dultra2

Karla Brunet3

Universidade de São Paulo Universidade Federal da Bahia

Resumo

Este trabalho discute a vigilância produzida pelo uso das micro-câmeras, a partir da realização da videoinstalação virtual “Miradas”. A obra traz a estrutura arquitetural do Panóptico para explicitar os sistemas de monitoramento baseados na geração de imagem por dispositivos fixos. Desta configuração é gerada uma visibilidade constante, nos espaços públicos e privados, que torna o indivíduo vigilante e vigiado.

Palavras-chave

Vigilância; panóptico; gamearte; videoinstalação virtual; vídeo.

Introdução

As tecnologias imagéticas e digitais têm ampliado as formas de vigilância, trazendo profundas conseqüências sociais. Câmeras de segurança por um lado “protegem”, mas por outro registram constantemente o trajeto e rotina dos transeuntes; é um rastreamento fragmentado, já que esses dispositivos não acompanham todo o percurso do indivíduo, mas que, por recortes, constroem uma narrativa comportamental de quem está “sorrindo e sendo filmado”. Com essas e outras tantas potencialidades, os aparatos geradores de visibilidade multiplicam-se e popularizam-multiplicam-se cada vez mais, retroalimentando positivamente o consumo visual desenfreado.

1 Artigo científico apresentado ao eixo temático “Vigilância, ciberativismo e poder”, do III Simpósio Nacional

da ABCiber.

2 Jornalista, videoartista e pesquisadora no campo da Arte e Novas Mídias. Bacharel em Comunicação Social

pela Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA). Atualmente é aluna especial do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/ USP).[maruziadultra@gmail.com]

3 Professora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências/UFBA e do Programa Multidiciplinar de

Pós-Graduação de Cultura e Sociedade. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Poética Tecnológica na Dança. Doutora em Comunicação Audiovisual (UPF - Espanha) e mestre em Artes Visuais (AAU – Estados Unidos). [karlab@ufba.br]

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À imagem e semelhança dos Reality Shows da programação televisiva, imensos “panópticos eletrônicos”, os sistemas de segurança baseados na imagem são cada vez mais comuns e incrustados no espaço urbano. Além dos meios de transporte coletivos, estabelecimentos habitacionais e comerciais, ambientes públicos também passam a ser monitorados. Na cidade de Salvador, Bahia, o quadro foi composto no início de 2008, com um investimento de um milhão de reais na instalação de câmeras em locais que não foram revelados à população para evitar a degradação dos equipamentos.4

Nesse contexto, foi concebida a obra artística “Miradas”5, composta por vídeos exibidos num

ambiente computacional em 3D. Essas imagens foram produzidas em videoperformances realizadas em espaços coletivos soteropolitanos. Nos vídeos instalados, o fruidor depara-se com situações cotidianas de vigilância, nas ruas, ônibus e estabelecimentos comerciais.

Miradas: videoinstalação virtual

Com o tema “A vigilância perene na sociedade das visibilidades”, a obra traz a estrutura de vigilância do Panóptico6 [Figura 1] para explicitar sistemas de monitoramento baseados na

geração de imagem por câmeras de segurança. Do lugar do vigilante, o público vê sistemas de segurança ativados, que, na metáfora proposta pela instalação, representam ambientes de prisão. A escolha do título “Miradas” foi feita a partir do binômio “Vigiar e punir”, cunhado por Michel Foucault (1999) no livro que leva este nome. Em português, o verbo “mirar” remete às ideias de alvo e armamento. A esta palavra, pode ser agregada ainda o significado de “olhar”, da língua espanhola. Esta associação semântica relaciona os elementos temáticos da obra: a vigilância e a imagem.

4 Fontes: Jornal A Tarde, Caderno 01, Sessão Salvador, 28/08/08, “Câmeras vigiarão 24 localidades” / Jornal

Correio, Caderno 24h, Sessão Salvador, 28/08/08, “Áreas de Salvador serão monitoradas por câmeras de segurança”.

5 “Miradas” está disponível para download em http://www.miradas.facom.ufba.br. Para executar a obra, a

configuração mínima do computador é: Processador DualCore 1,8GHz; Memória RAM 2GB; Placa de vídeo aceleradora 3D, além do sistema operacional Windows XP ou superior.

6 O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural da composição: na periferia uma construção em anel; no

centro, uma torre; esta é vazada em largas janela que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo `as janelas da torre; outra que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um

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[Figura 1. O Panóptico, de JeremyBentham.]

“Miradas” é uma videoinstalação virtual composta por quatro vídeos instalados num ambiente computacional modelado especificamente para a obra. O espaço ocupado pelo fruidor, chamado de “torre central”, possui uma catraca giratória unidirecional, onde este objeto de passagem e delimitação configura, em sua materialidade, um ambiente de confinamento, e em sua função, um ambiente de segurança. A rotação da catraca é ativada pelo contato do fruidor com a parte central da torre [Figura 2]. Essa dinâmica foi pensada de forma a propiciar a sensação de enclausuramento e involuntarismo no público, por isso ela é unidirecional e sensível ao “toque” do fruidor: toda vez que o cursor encosta no centro da catraca, ela gira até que o navegador saia desta posição. Para rever o vídeo anterior, é preciso dar a volta completa no ambiente.

[Figura 2. Vista superior do ambiente.]

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O deslocamento do fruidor no ambiente acontece através da manipulação do mouse. O movi-mento de “rastejamovi-mento” lateral do aparelho corresponde ao olhar do fruidor; o clique no bo-tão esquerdo, movimenta-o para frente, no bobo-tão direito, para trás. Em cada quadrante, o frui-dor pode ver as imagens exibidas em formas diversas. O primeiro ambiente da navegação contém imagens da videoperformance “Perene”, realizada em ônibus da cidade [Figura 3]. O vídeo está “projetado” como se estivesse numa grande tela. Esta escolha foi feita para situar inicialmente o navegador, fornecendo mais informações visuais na exibição dos quadrantes seguintes.

[Figura 3. Primeiro quadrante: vídeo “Perene”.]

O segundo vídeo, “Trânsito”, é um mosaico composto por imagens de escadas em espaços pú-blicos; ele está “projetado” numa superfície que possui relevos com dobraduras [Figura 4]. Esta foi a solução encontrada para dar diferentes profundidades a esse vídeo e quebrar os pe-quenos quadros que o formam. A ideia original, no entanto, era que ele estivesse projetado numa escada modelada a partir do desenho “Relatividade”, de Escher [Figura 5]; esta obra, assim como tantas outras deste artista, tem como princípio fundamental a construção de espa-ços arquitetonicamente impossíveis. Para que ela fosse usada como “suporte” de projeção, no entanto, seria necessário executar um arquivo de vídeo em cada face do objeto (a escada mo-delada), o que inviabilizaria a navegação por demandar muita memória virtual do computa-dor.

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[Figura 4. Segundo quadrante: vídeo “Trânsito” em “tela com dobraduras”.]

[Figura 5. “Relatividade” (1953), de Escher, e modelagem em 3D do desenho (à direita).]

No terceiro quadrante, a videoperformance “Das lupas, lunetas e solitárias” feita numa situa-ção de confinamento, é exibida em cubos suspensos em diferentes alturas, além da tela maior. Como a edição deste vídeo primou pelo uso de recortes na imagem, o aspecto xadrez do vídeo foi acentuado pelos objetos geométricos de exibição da imagem [Figura 6].

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[Figura 6. Terceiro quadrante: vídeo “Das lupas, lunetas e solitárias”.]

O último quadrante, “Video loss” é composto por uma videoperformance realizada num mer-cado através do monitor de segurança deste estabelecimento. Além da projeção grande, este quadrante possui monitores de TV empilhados uns sobre os outros exibindo o mesmo vídeo. A princípio estes monitores eram móveis e podiam ser empurrados pela catraca e pelo fruidor. No entanto, esta mobilidade causava falhas na exibição das outras imagens por questões de execução do software, por isso foram imobilizados [Figura 7].

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Modelagem 3D: arquiteturas videográficas

A modelagem do ambiente foi feita no software livre Blender7. Foi utilizada uma versão experimental8do programa, que acrescenta a possibilidade de compor a textura do ambiente

com vídeos. Inicialmente, a navegação foi configurada no teclado com a possibilidade do olhar do navegador movimentar-se em plongée e contra-plogée; no entanto, observou-se que estas opções não favoreciam a navegabilidade. Para compensar a restrição desses movimentos, utilizou-se uma “lente grande angular” para aumentar o campo de visão do olhar subjetivo no ambiente.

Sobre as texturas do ambiente, correspondentes à “pintura” das paredes, chão e catraca, percebeu-se a importância de oferecer ao público referências geométricos que indicassem o deslocamento dentro desse espaço. Desta forma, optou-se por sinalizar a catraca com uma seta que apontasse para o lado de giro dela. Para o chão, foram dispostos círculos circunscritos, que funcionaram como referenciais de deslocamento e compuseram esteticamente a instalação [Figuras 8 e 9].

[Figura 8. Ambiente sem texturas (vista superior e diagonal).]

7 Disponível em http://www.graphicall.org/builds/index.php

8 As versões experimentais são não-oficiais e implementam novas ferramentas ou facilidades de uso das

ferramentas já existentes; são disponibilizadas para teste e compartilhamento de experiência entre usuários do software e programadores.

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[Figura 9. Texturas em vídeo e com figuras geométicas.]

A utilização de um mapa localizador, na base inferior esquerda da tela de navegação, com a visão superior do ambiente foi fundamental para auxiliar os fruidores. Uma seta vermelha representa o navegador e se move de acordo com a navegação. A princípio colocou-se uma figura em preto e branco para simular o ambiente no mapa; porém, para tornar o ícone de localização mais intuitivo, foi utilizado um mapa com as imagens correspondentes do “Miradas” [Figura 10]. Durante o processo de construção do plano interativo no ambiente 3D, foram feitos três testes de navegação com usuários que desconheciam a estrutura da obra; de acordo com a observação dos aspectos mencionados, a acessibilidade de navegação na obra foi avaliada como adequada.

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Ambiente instalativo: imersão e interação

A videoinstalação foi o formato escolhido para a elaboração de “Miradas” porque agrega à perspectiva audiovisual uma pesquisa plástica, de ambientação do vídeo, e não somente a exibição deste. Essa foi uma convergência iniciada há mais de 40 anos por Nam June Paik e que fez emergir a chamada “videoarte”. Considerada por Machado (2007) como precursora da artemídia9, a videoarte caracteriza-se por explorar a fisicalidade do suporte vídeo na

realização da obra.

Seguindo a tendência de extrapolar o uso da tela do vídeo, as videoesculturas e videoambientes (MARTIN, 2006) passaram a apresentar a proposta de interagir com o público, o que foi potencializado pelo computador. Esses sistemas interativos, segundo Edmond Couchot (2003), apresentam a característica de elementos (pessoa, máquina, informação digital) com “temporalidades” distintas que se intercruzam na proposta artística. A partir da manipulação de bits e bytes através da interface computacional, as possibilidades de produção artística se expandem, na chamada arte numérica10. Uma vertente deste fenômeno

é a gamearte11, que busca propiciar à sensorialidade humana uma experiência para além do

entretenimento típico dos games (LAURENTIZ, 2008). Através da técnica de modelização de objetos, a imagem passa a ser produzida através de uma descrição matemática:“A fonte da imagem não é mais, então, nem uma imagem nem um objeto real, mas um processo computacional.” (COUCHOT, 2003, p.162).

Em “Miradas”, entende-se que a proposta de superação do plano no vídeo é alcançada através da relação entre as “multiprojeções” dispostas e interconectadas por suportes da instalação.

9A “artemídia” é conceituada por Arlindo Machado (2007) como um campo fértil que diz respeito a produções

artísticas que acompanham o desenvolvimento dos artefatos tecnológicos atuais. O conceito, no entanto, extrapola o mero uso destes recursos. Na artemídia, os artistas buscam subverter a funcionalidade dos instrumentos ao produzirem suas obras, a fim de por em questão a lógica industrial produtiva que permeia tais aparatos.

10A arte numérica emerge no universo da lógica informacional. A “numerização” reconfigura a relação entre

imagem e objeto, incluindo entre eles operações computacionais; as imagens numéricas “são calculadas pelo computador e capazes de interagir (ou de dialogar) com aquele que as cria ou que as olha.” (COUCHOT, 2003, 160).

11Na gamearte, são realizadas reapropriações artísticas dos jogos eletrônicos; esta passa, então, a ser uma poética

que inclui aspectos da fruição e da construção estética. Embora não haja um consenso nas bases conceituais da área, nem mesmo na nomenclatura (Gameart ou Gamearte?), as diversas definições e análises trazidas por Matteo Bittanti (2006), Lúcia Leão (2005), Suzete Venturelli (2008), entre outros, apontam para o estudo crescente dessa empreitada artística. (LAURENTIZ, 2008)

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Além disso, o desenho de som também remete a uma multiprojeção: a trilha sonora distribuída de forma tridimensional permite que o áudio de cada vídeo possa ser ouvido separadamente ou em composição com as outras; a distinção entre as trilhas acontece pela aproximação do fruidor em cada quadrante.

A montagem audiovisual no ambiente foi orientada pelas concepções de imersão e interação propostas por Janet Murray (2003) e Oliver Grau (2008), proporcionando ao vivenciador da obra novas sensações e requisitando dele atenção na medida em que explora o ambiente de “Miradas”. O público não é considerado somente espectador, mas agente na obra. A perspectiva de uma obra imersiva e interativa é trazida por Murray (2003) para dizer sobre a realização artística que leva em conta um arrebatamento sensorial mais profundo do vivenciador da obra e que gera uma demanda de atenção específica por parte deste.

'Imersão' é um termo metafórico derivado da experiência física de estar submerso na água (...) a sensação de estarmos envolvidos por uma realidade completamente estranha, que se apodera de nossa atenção, de todo nosso sistema sensorial. Num meio participativo, a imersão implica a fazer as coisas que o novo meio torna possíveis. (MURRAY, 2003, P.102)

A autora utiliza os termos para os ambientes virtuais de simulação. Sobre este tipo de estrutura, Grau (2008) traz a idéia de “espaços imagéticos”12, que enclausuram e causam a

sensação de imersão através de multiprojeções que agregam imagens e fruidores. Como possibilidade de transposição dos conceitos de imersão e interação para a obra, foi criado um ambiente imagético representando o Panóptico, com vídeos projetados no lugar das “celas”.

Vídeos: a câmera como personagem

O argumento de cada vídeo instalado em “Miradas” foi definido a partir do tema da obra: “A vigilância perene na sociedade das visibilidades”. Foram realizadas videoperformances em ambiente fechado, captura de imagens cotidianas produzidas por câmera de segurança, além de gravação de intervenções performáticas em espaços públicos que possuíam esses dispositivos. Em cada proposta, as câmeras desempenharam papéis específicos de interação com os performers e atuaram como personagens da narrativa audiovisual.

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Em “Perene”, a quebra da linearidade temporal foi construída num veículo de transporte coletivo monitorado por câmeras de segurança, onde o personagem se encontra sem estar na condição de passageiro. Este fato apaga a característica de mobilidade do ônibus, trazendo uma situação de permanência e enclausuramento. Um conjunto de câmeras observa tudo, mostrando que as pessoas passam e o personagem fica. A todo momento este se aproxima dos dispositivos de segurança, questionando sua presença naquele ambiente.

“Das lupas, lunetas e solitárias” foi produzida pelo confinamento do performer por 30 minutos num espaço delimitado por duas câmeras. Em ritmo frenético, esse corpo confinado move-se de forma não-linear tanto no ambiente de gravação, como no espaço da tela: as cenas foram usadas de forma recortada, em composição variável que sempre apresentam o aspecto visual de quadros divididos que remete a uma textura em xadrez.

Já “Trânsito”, traz a quebra da linearidade espacial através de escadas e corredores que constituem um ambiente de aprisionamento em que uma das “paredes” é sempre o olhar vigilante da câmera. Esse espaço criado é um paradoxo entre mobilidade e fixidez, já que o personagem transita e as peças desse espaço são mutáveis (variam com o tempo), no entanto não há como o personagem se deslocar para outro ambiente. Ele sobe a escada em um quadro e, no outro quadro, continua subindo ou mesmo desce, com uma trajetória sempre restrita ao espaço da tela.

Por fim, em “Video loss”, hábitos cotidianos e íntimos são expostos em público. A história é “sintonizada” num monitor de câmeras de segurança, que se assemelha ao mosaico oferecido em programas de Reality Show pelos canais fechados. A imagem capturada por essa “antena pirata” revela a rotina íntima de dois personagens que se encontram num espaço social, um mercado. Eles desenvolvem narrativas paralelas que têm em comum a relação dissonante entre tipo de comportamento (particular) e de lugar (coletivo).

Seja como parede, olhar revelador ou deletante, corpo-intruso naturalizado ou não, a câmera de segurança é evidenciada em “Miradas” numa tentativa de trazer à tona sua presença já quase, paradoxalmente, invisibilizada. O dispositivo aparece como um elemento-limite; o apagamento de sua artificialidade esgassa as fronteiras da privacidade e da intimidade. Com

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os “amigáveis” avisos compulsórios “Sorria, você está sendo filmado”, as câmeras de segurança deflagram situações comportamentais restringidas pelas normas que as regem; ou por outro lado, desvelam nuances individuais ou coletivas que ficariam apenas no âmbito particular.

Estado vigilante

Sobre a vigilância, este trabalho destaca as discussões trazidas por Foucault (1999) sobre o aspecto disciplinar da construção social. Para o autor, o corpo é a primeira instância para o exercício do poder; é, portanto, sobre o corpo do indivíduo que agem os mecanismos de regulação. Através do processo de disciplinarização, o corpo é educado até que sirva ao Estado sem causar danos e prejuízos ao sistema.

Neste sentido, as instituições sociais (escolas, fábricas, hospitais, prisões) desempenham papel fundamental na imposição da ordem desejada sobre os indivíduos; através do binômio “vigiar e punir”, eles seriam adestrados à normalização do comportamento. Regras verticais e contundentes, geridas pela lógica do confinamento, estariam permeando as relações sociais nos diversos âmbitos – familiar, sexual, de trabalho, etc. À luz destas reflexões, Foucault (1999) analisou o modelo do Panóptico como fundador das estruturas arquiteturais das instituições sociais disciplinadoras.

O princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz do dia e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. (...) um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício. (FOUCALT, 1999, p.166)

No contexto eletrônico-digital, esse arcabouço de monitoramento é atualizado pelos dispositivos tecnológicos, entre eles a “câmera de segurança”. Uma vigilância que já era programadamente constante torna-se cada vez mais sofisticada: imagens armazenadas,

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e outros procedimentos contribuem para o crescente controle de presença dos transeuntes, anônimos ou não, todos “visibilizados” por sistemas traçados para monitorar.

De acordo com Deleuze (1992), o conceito de sociedade disciplinar não é mais suficiente para abarcar todo o contexto contemporâneo13, pois, além da vigilância exercida pelas instituições,

outros aparatos tecnológicos contribuem para um crescente acompanhamento (nem sempre consciente) do indivíduo. A partir de adventos como os chips pré-programados, a telemática e a hiperconectividade, a sociedade tem sua dinâmica de regulação reconfigurada – dispersa em rizomas, mas mundialmente conectada e controlada. O autor, portanto, descreve a noção de “sociedade de controle”:

Um controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro. Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade. (DELEUZE, 1999)

Numa análise comparativa com o Panóptico descrito por Foucault (1999), Zeffiro (2006) destaca as transformações da vigilância: enquanto as tecnologias antigas de vigilância eram “visíveis e imóveis”, as novas são “invisíveis e pervasivas – estão em nenhum lugar e ao mesmo tempo por toda parte – reconfigurando a dinâmica entre o ver e ser visto; alguém é 'assistido' a todo tempo por ninguém e de nenhum lugar em específico”14 (ZEFFIRO, 2006).

Ainda assim, Deleuze (1992) afirma que a sociedade disciplinar se mostra aplicável a diversos âmbitos sociais. Como destacado neste trabalho, os panópticos eletrônicos estabeleceram-se como dispositivos difundidos de vigilância nas sociedades contemporâneas; eles continuam trazendo implicações sociais e importantes questionamentos éticos. Todas essas questões apontam para a relevância de se estar atento às novas formas de vivência e inter-relação proporcionadas pela tecnologia.

13A partir da conectividade propiciada através das máquinas, é possível propor o conceito de “era das conexões”

(Weinberger, 2003 apud LEMOS, 2004): “(...) Trata-se da ampliação de formas de conexão entre homens e homens, máquinas e homens, e máquinas e máquinas motivadas pelo nomadismo tecnológico da cultura contemporânea (...). A era da conexão é a era da mobilidade. A internet sem fio, os objetos sencientes e a telefonia celular de última geração trazem novas questões em relação ao espaço público e espaço privado (...).” (LEMOS, 2004)

14Tradução nossa do original: “in third generation computing, technologies of surveillance are invisible and

pervasive – nowhere and yet everywhere – reconfiguring the dynamic between seer and seen; one is ‘watched’ all the time, yet by no one and from nowhere is particular” (ZEFFIRO, 2006).

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Referências bibliográficas

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CZEGLEDY, Nina (org.). Digitized Bodies - Virtual Spetacles. Budapest: Ludwig Museum Budapest - Museum of Contemporary Art, 2001.

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