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A gênese de O Diário de Anne Frank – um legado para a humanidade

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Academic year: 2020

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A gênese de O diário de Anne Frank – um legado para a humanidade The genesis of Anne Frank's Diary – a legacy for humanity

Elcio Loureiro Cornelsen*

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) | Belo Horizonte, Brasil cornelsen@letras.ufmg.br

Resumo: Nossa contribuição visa a uma breve apresentação da gênese de O diário

de Anne Frank, uma das obras mais lidas desde sua primeira publicação, no final

dos anos 1940. Além de enfocarmos as estações da vida de Anne Frank e de sua família, desde a fuga da Alemanha em 1933, a vida na Holanda e o confinamento em um esconderijo a partir de 1942, quando Amsterdã foi invadida por tropas do exército alemão, até a prisão e a deportação para os campos de concentração e de extermínio nazistas em agosto de 1944, discorreremos também sobre as especificidades das quatro versões do diário, bem como sobre algumas estratégias adotadas por Anne Frank para produzir seu relato íntimo sobre as agruras do confinamento e de um mundo que desmoronava a sua volta.

Palavras-chave: Anne Frank. Diário. Shoah.

Abstract: Our contribution aims at a brief presentation of the genesis of Anne Frank's Diary, one of the most read works since its first publication in the late 1940s. In addition to focusing on the life stages of Anne Frank and her family, since the escape from Germany in 1933, the life in Holland and the confinement in a hiding place from 1942, when Amsterdam was invaded by German army troops, until arrest and deportation to the Nazi concentration and death camps in August 1944, we will also discuss the specificities of the four versions of the diary, as well as some strategies adopted by Anne Frank to produce her intimate account of the hardships of confinement and a world that crumbled around her.

Keywords: Anne Frank. Diary. Shoah.

1 Escritas de si como sobrevivência e memória em tempos sombrios

O século XX, designado pelo historiador britânico Eric Hobsbaum como o mais letal dos séculos,1 foi um tempo que evidenciou que a humanidade havia atingido um novo patamar no nível de destruição. O aceleramento do progresso tecnológico

* Professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. 1 HOBSBAWM, 1995.

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e científico, impulsionado desde meados do século XIX, com verdadeiras conquistas nos mais variados âmbitos, não impediu que o homem fizesse uso dos avanços movido não só pelo ímpeto de construir, mas também de destruir. Duas guerras de âmbito mundial, a Shoah como um genocídio conduzido a partir de uma lógica industrial – nas chamadas “fábricas da morte” –, várias guerras civis, revoluções, golpes de Estado, ditaduras das mais diversas colorações, políticas coloniais e exploratórias com alto índice de destruição e morticínio deixam um saldo de milhões de vítimas e de mortos por todas as partes do globo.

Várias vítimas dos morticínios e de políticas opressoras do século XX e das primeiras décadas do novo milênio lançaram mão das escritas de si, de caráter autobiográfico, para não só registrar suas vivências – no calor dos acontecimentos ou no passado evocado pelas reminiscências, como também para sobreviver, mesmo que em forma de memória e escrita, a todo tipo de opressão, violência, conflitos bélicos e processos genocidários. Se fossemos enumerar as vítimas, a lista aqui seria infinita. Todavia, podemos elencar alguns nomes que, em certa medida, guardam relações de similaridade entre si: Anne Frank, Nina Lugovskaia, Lena Mukhina, Zlata Filipovíc, Imaculée Ilibagiza, Marjane Satrapi, e Malala Yousafzai. Embora pertencentes a várias gerações, todas essas jovens e mulheres lançaram mão da escrita de si para dar testemunho de vivências traumáticas e de toda sorte de opressões e violências a que foram expostas. Algumas registraram tais vivências em obras de caráter memorialista, como é o caso da ruandesa Imaculée Ilibagiza em Sobrevivi para contar: o poder da fé me salvou de um massacre,2 obra escrita com o apoio do jornalista norte-americano Steve Erwin, e também da iraniana Marjane Satrapi no graphic novel Persépolis,3 bem como da paquistanesa Malala Yousafzai no relato autobiográfico Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à

educação e foi baleada pelo Talibã,4 escrita em parceria com a jornalista e escritora britânica Christina Lamb. Assim, essas autoras-sobreviventes de regimes opressores como o dos Aiatolás e dos Talibãs, ou mesmo do genocídio em Ruanda promovido pelo regime sob o comando do Movimento Nacional Republicano para Democracia e Desenvolvimento e por extremistas hutus contra a minoria tutsi durante a guerra civil que assolou o país, rememoram os momentos de agrura na infância e na adolescência, que lhes deixaram marcas para o resto da vida.

2 ERWIN; ILIBAGIZA, 2008. Título original: Left to Tell (2006). 3 SATRAPI, 2007. Título original: Persepolis (2000).

4 LAMB; YOUSAFZAI, 2013. Título original: I am Malala: The Story of the Girl Who

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Se, neste caso, a memória se torna primordial no processo de escrita de si e da dor, há outro gênero, igualmente de caráter autobiográfico e testemunhal, em que as vivências são narradas pelas autoras no calor dos acontecimentos: o diário. Como bem aponta Denise Borille de Abreu, “diários funcionam como locais transformadores, onde opera uma espécie de negociação entre a persona pública e os desejos privados de quem os escreve”, e, também em forma de diário, “as narrativas de vida parecem preencher uma lacuna onde a justiça falhou em cumprir com direitos humanos; vindo em auxílio, e até mesmo servindo como um benefício terapêutico”.5

Aqui, podemos exemplificar o gênero com obras como O diário de Nina: o terror

stalinista nos cadernos de uma menina soviética,6 da russa Nina Lugovskaia, O diário de

Lena: a história real de uma adolescente durante a Segunda Guerra,7 da russa Lena Mukhina, O diário de Zlata: a vida de uma menina na guerra,8 da bósnia Zlata Filipovíc, e, por fim, O diário de Anne Frank,9 da jovem alemã de origem judaica Anne Frank, objeto deste breve estudo. Neste pequeno conjunto de obras, temos uma constelação de conflitos, opressão e violência: em termos espaciais, seus centros são a Moscou de Nina Lugovskaia sob a égide do Stalinismo nos anos 1930, a Leningrado sitiada (atual São Petersburgo) sob o cerco das tropas alemãs durante

5 ABREU, 2016, p. 65.

6 LUGOVSKAIA, 2005. Título original: The Diary of a Soviet Schoolgirl (2003). 7 MUKHINA, 2015. Título original: Сохрани мою печальную историю (2011).

8 FILIPOVÍC, 1994. Título original: Zlata's Diary: A Child's Life in Wartime Sarajevo (1994).

9 FRANK, 2004. Título original: Het Achterhuis (1947). Para nossas considerações, usaremos a tradução alemã de Mirjam Pressler do texto original em Holandês, publicada pela Editora Fischer. Trata-se da versão completa do diário, que transmite uma imagem impressionante dos sentimentos e dos pensamentos de Anne Frank, e mesmo de seus progressos como potencial escritora em meio a um mundo que se desmoronava a sua volta. Cabe aqui uma crítica em relação à tradução brasileira, publicada pela Editora Record pela primeira vez em 1995, que se encontra na 75ª edição: trata-se de uma tradução de segunda mão – chamada de “Edição Definitiva” –, pois não advém do texto original em holandês, mas da tradução inglesa da edição autorizada por Otto H. Frank, pai de Anne, e por Mirjam Pressler. Isso, infelizmente, demonstra a falta de responsabilidade editorial perante uma obra singular da literatura universal.

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a Segunda Guerra Mundial, Sarajevo sob bombardeio durante a Guerra da Bósnia e Amsterdã sob a ocupação nazista.

Alguns aspectos podem, aqui, ser mencionados a título de similaridades entre as autoras desses diários: Nina Lugovskaia, durante a adolescência, registrou em seu diário, de outubro de 1932 a janeiro de 1937, a vida cotidiana marcada pelo regime totalitário sob a batuta de Josef Stalin; a adolescente Lena Mukhina escreveu em seu diário, de setembro de 1941 a maio de 1942, sobre o cerco de sua cidade natal durante a “Operação Barbarossa”, título dado pela cúpula nazista à campanha de invasão da União Soviética, em que grassavam a fome e a iminência da morte; dos 11 aos 13 anos, de setembro de 1991 a dezembro de 1993, Zlata Filipóvic narrou em seu diário o cotidiano da guerra civil em uma Sarajevo igualmente sitiada e sob fogo da artilharia disparada por milícias sérvias e pelo Exército Popular Iugoslavo; por fim, Anne Frank escreveu seu diário de junho de 1942 a agosto de 1944, num esconderijo em Amsterdã, praticamente isolada do mundo com outras sete pessoas – a família Frank, a família Van Pels e Fritz Pfeffer, um amigo, todos companheiros de infortúnio, todos judeus alemães, na iminência de serem descobertos pela polícia de ocupação nazista.

Outras similaridades se fazem presentes: não é por acaso que, na “Introdução” de

O diário de Zlata, a jornalista Janine di Giovanni, correspondente de guerra, se refira

à jovem bósnia como “a Anne Frank de Sarajevo”.10 E mesmo sendo pertencente a gêneros distintos, o relato autobiográfico de Imaculée Ilibagiza, por certas circunstâncias, parece dialogar, igualmente, com o diário de Anne Frank: assim como esta, Imaculée teve de viver confinada em um esconderijo durante 91 dias (o genocídio em Ruanda durou 100 dias), com mais sete pessoas, no banheiro da própria casa onde morava, do “tamanho de um armário”,11 cujo acesso havia sido revestido de gesso e madeira para não ser descoberto. Também Nina Lugovskaia e Lena Mukhina evidenciam certas similaridades, pois tiveram seus diários publicados posteriormente: o diário de Nina, falecida em 1993, fora encontrado em 2003 por Irina Ostpova, nos arquivos da NKVD, a polícia política da era stalinista; o diário de Lena foi igualmente publicado após sua morte, em 1991, pois foi parar no Arquivo Público em 1962 e só foi descoberto em 2011 por Sergei Yarov.

Entretanto, há algo de singular no caso de Anne Frank: diferentemente das demais, não sobreviveu ao mundo de ódio, opressão, preconceito e violência em que, por fim, pereceu. Seu diário, por assim dizer, é o símbolo extremo da sobrevivência e

10 FILIPOVÍC, 1994.

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da memória, pela escrita de si, daqueles tempos sombrios, uma escrita de vida que, pela abrupta interrupção em agosto de 1944, torna implícitos os traços da morte. A seguir, discorreremos, brevemente, sobre a trajetória de Anne Frank e daqueles que, como ela, “viveram” confinados no esconderijo, em Amsterdã. Nesse caso, o verbo “viver”, grafado entre aspas, atenua um pouco a imprecisão da expressão do que teria sido aquelas centenas de dias sob o temor, o medo, e sob todo tipo de privações.

2 Os Frank: uma trajetória de fuga, confinamento e morte sob a égide do nazismo

Annelies Marie Frank nasceu em 12 de junho de 1929, na cidade alemã de Frankfurt a.M. Desde cedo, Anne vivenciou o horror da perseguição e os medos da época no aconchego do lar. Com a chegada dos nazistas ao poder em 30 de janeiro de 1933, quando Hitler foi nomeado Chanceler pelo então Presidente alemão Paul von Hindenburg, os pais de Anne, Edith Frank Holländer e Otto Frank, judeus de origem, decidiram deixar Frankfurt, pois temiam que a política racial e o antissemitismo veiculado pela propaganda nazista antes de 1933 fossem colocados em prática e atingissem a família, sobretudo as filhas Margot e Anne.12

Assim, os Frank decidiram seguir para a capital holandesa, Amsterdã, como fizeram vários outros compatriotas, não só de origem judaica, mas opositores ao regime de Hitler, que tencionaram permanecer nos países vizinhos por acreditarem que o nazismo seria um fenômeno político passageiro, e que a normalidade democrática retornaria ao cenário político alemão tão logo a população reconhecesse o absurdo da política de extrema direita do partido nazista, então no poder.

Primeiramente, apenas Otto Frank seguiu para a capital holandesa, no intuito de preparar as condições para que a esposa e as filhas pudessem se juntar a ele. Nem mesmo o fato de se sentir arraigado à cultura alemã, e por ter sido condecorado, no passado, por bravura ao combater como soldado alemão na Primeira Guerra Mundial, fez com que Otto Frank desistisse da emigração, que mais se assemelhava a uma fuga por motivos de sobrevivência. Ele logo montou em Amsterdã a Opekta S.A., uma empresa para produção de pectina, um ingrediente para fabricação de geleia, tornando-se seu diretor. Edith, Margot e Anne deixaram

12 DAS KURZE LEBEN VON ANNE FRANK. Disponível em: <https://www.annefrank.org/de/anne-frank/das-kurze-leben-von-anne-frank>. Acesso em: 30 mar. 2019.

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Frankfurt primeiramente rumo à cidade de Aachen, localizada na fronteira entre a Alemanha e a Holanda, onde a avó de Anne residia. A mãe e a irmã de Anne foram para a Holanda em dezembro de 1933, enquanto ela seguiu para a capital holandesa somente em fevereiro de 1934, com alguns meses faltando para completar cinco anos de idade. 13

A primeira residência da família Frank em Amsterdã situava-se no número 37 da

Merwedeplein. Anne e a irmã frequentaram a Escola Montessori. Quando a Holanda

foi invadida e ocupada pelo exército nazista em 10 de maio de 1940, uma série de leis raciais discriminatórias foi imposta à população judia. No mesmo ano, Margot e Anne foram obrigadas a deixar a Escola Montessori e ir para o Liceu Judaico. Por temer o que ainda estava por vir, e sem ter perspectiva de deixar a Holanda, Otto Frank decidiu esconder a família, com amigos, num anexo de fundos de um prédio localizado no número 263 da Prinsengracht, em Amsterdã, onde funcionava o escritório da firma Opekta, de sua propriedade. Para isso, Otto Frank contou com o auxílio de quatro funcionários da Opekta, leais a ele: Viktor Kluger, Johannes Kleiman, Miep Gies e Elisabeth (Bep) Voskuijl. O anexo secreto era composto de andares: dois habitáveis, além de um sótão. O acesso a ele era possível através de uma porta secreta escondida atrás de uma estante de livros.14

Cabe ressaltar que, no início da Segunda Guerra Mundial, cerca de 140.000 judeus viviam na Holanda. Imediatamente após a ocupação do país pelas tropas alemãs, os cidadãos judeus perderam seus direitos plenos e foram obrigados a se registrarem junto às autoridades nazistas de ocupação. Em julho de 1942, começaram as deportações. Muitos seguiram primeiramente para o campo de trânsito de Westerbork, localizado na própria Holanda. De lá, muitos foram deportados para os campos de concentração e de extermínio na Polônia. Ao todo, cerca de 100.000 judeus foram deportados da Holanda até o final de 1943. Em torno de 25.000 judeus escaparam à deportação imediata escondendo-se e passando a viver na clandestinidade. Dentre eles, estima-se que 9.000 caíram nas mãos da polícia nazista. A maioria foi delatada através de cartas e telefonemas anônimos dirigidos às autoridades alemãs de ocupação. Dos 140.000 judeus que viviam na

13 DAS KURZE LEBEN VON ANNE FRANK. Disponível em: https://www.annefrank.org/de/anne-frank/das-kurze-leben-von-anne-frank/;

acesso em: 30 mar. 2019.

14 DAS HINTERHAUS. Disponível em: https://www.annefrank.org/de/anne-frank/das-hinterhaus/; acesso em: 30 mar. 2019.

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Holanda até o início da guerra, cerca de 102.000 morreram em campos de concentração e extermínio.15

No caso dos Frank, o fato que determinou a necessidade imediata da mudança da família para o esconderijo foi um comunicado da autoridade nazista de ocupação convocando Margot para trabalhar na Alemanha, conforme relatado por Anne Frank em apontamento feito no diário, em 08 de julho de 1942.16 A mudança ocorreu no dia 6 de julho de 1942 e está registrada com detalhes no diário de Anne, cujas anotações foram iniciadas no dia 12 de junho daquele ano, precisamente no dia de seu 13º aniversário, quando ganhara de presente um diário com capa em xadrez vermelho e branco.17 Nele, Anne descreve o dia a dia no esconderijo, ou seja, a tentativa de sobrevivência de oito pessoas num espaço limitado e os conflitos decorrentes da própria situação, além de suas crises pessoais.

Mas seu diário registra também uma série de acontecimentos que marcaram o processo de discriminação e deportação de judeus rumo aos campos de concentração e de extermínio. O diário documenta também o talento para escrever de uma jovem, que pretendia se tornar, no futuro, jornalista e escritora. No diário, encontramos os mais variados temas: religião, natureza, sexo, relação entre pais e filhos, antissemitismo, guerra, entre outros.

O último apontamento no diário data de 1º de agosto de 1944.18 Após delação, cuja autoria até hoje permanece incerta, o esconderijo foi descoberto na manhã de 04 agosto de 1944, entre 10h00 e 10h30, quando um automóvel estacionou diante do prédio número 263 da Prinsengracht. Dele desembarcaram o sargento da SS Karl Josef Silberbauer, trajando seu uniforme, e pelo menos três auxiliares holandeses da Grüne Polizei (“Polícia Verde”), polícia de ocupação alemã, em trajes civis, todos armados. Não há dúvida de que o esconderijo fora delatado. O funcionário do depósito W. G. van Maaren tornou-se o suspeito número um da delação, inclusive, por ter sido relatado por Anne Frank sobre suas desconfianças em apontamento datado de 16 de setembro de 1943.19 Todavia, dois processos de investigação foram

15 CHRONOLOGIE DES HOLOCAUST. Disponível em: <http://www.holocaust-chronologie.de/chronologie/uebersicht/langfassung.html>. Acesso em: 30 mar. 2019.

16 FRANK, 1994, p. 33. 17 FRANK, 1994, p. 11. 18 FRANK, 1994, p. 311-313. 19 FRANK, 1994, p. 140.

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conduzidos contra ele, sem que se chegasse a algum resultado que, de fato, o incriminasse.20

Assim, foram presas todas as oito pessoas que estavam escondidas, bem como duas das pessoas que as ajudaram: Viktor Kluger e Johannes Kleiman. Além disso, levaram todos os objetos de valor e o dinheiro disponível que encontraram no local. Porém, Miep Gies e Elisabeth (Bep) Voskuijl, funcionárias da Opetka que também auxiliavam os Frank, não foram detidas. No mesmo dia, Viktor Kluger e Johannes Kleiman foram conduzidos à Casa de Detenção de Amstelveenweg, e um mês mais tarde foram transferidos para a Prisão localizada na Weteringschans em Amsterdã. Sem qualquer processo, ambos foram, por fim, transferidos para o campo de confinamento transitório Amersfoort em 11 de setembro de 1944. Kleiman foi libertado em 18 de setembro de 1944 por motivos de saúde. Ele faleceu em 1959, em Amsterdã. Kluger conseguiu fugir do campo em 28 de março de 1945, pouco antes de ser enviado para executar trabalhos forçados na Alemanha. Em 1955, emigrou para o Canadá, vindo a falecer em 1981 na cidade de Toronto.21 Elisabeth (Bep) Wijk-Voskuijl faleceu em 1983 na cidade de Amsterdã. A austríaca Miep Gies-Santrouschitz faleceu em 2010 na cidade de Hoom, na Holanda.

Após a descoberta do esconderijo e as prisões decorrentes, todos os confinados permaneceram poucos dias detidos na Holanda, primeiramente na Casa de Detenção de Amsterdã, localizada na rua Weteringschans. Em seguida, foram transferidos para o chamado “Campo de Trânsito de Judeus” (Judendurchgangslager) em Westerbork, de onde foram deportados para Auschwitz-Birkenau, o maior campo de extermínio localizado nas proximidades da cidade polonesa de Cracóvia, em 03 de setembro de 1944, com o último comboio de trens que seguiu da Holanda para os campos de extermínio no Leste Europeu.22

Após transcorridos três dias, ao chegarem a Auschwitz, Anne, a irmã e a mãe foram separadas de Otto Frank na seleção ocorrida na rampa de entrada do campo. Elas seguiram para o “bloco 29” do chamado Frauenlager (“Campo de Mulheres”). Em 30 de outubro de 1944, as irmãs deixaram Auschwitz num transporte que tinha por destino o campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Margot faleceu nos últimos dias de fevereiro e Anne Frank, provavelmente, morreu no início de março de 1945 em Bergen-Belsen, ambas vitimadas pelas péssimas condições de higiene no campo, agravadas por uma epidemia de tifo que grassou

20 PRESSLER, 1994a, p. 315. 21 PRESSLER, 1994a, p. 315. 22 PRESSLER, 1994a, p. 315.

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no inverno de 1944/1945. Os corpos de ambas, provavelmente, foram enterrados nas valas comuns de Bergen-Belsen. Em 12 de abril de 1945, o campo de concentração foi libertado por tropas inglesas.23

Por sua vez, a mãe de Anne teve o mesmo destino que as filhas: Edith morrera dois meses antes, em 06 de janeiro de 1945, em Auschwitz, vítima das péssimas condições com que os prisioneiros eram tratados. O único das oito pessoas do esconderijo que sobreviveu aos campos da morte e à guerra foi Otto Frank, libertado pelo exército soviético com os demais prisioneiros de Auschwitz em 25 de janeiro de 1945. 24

Após deixar Auschwitz, Otto Frank seguiu de navio para Marselha. Em 03 de junho de 1945, regressou a Amsterdã, já sabendo que a esposa estava morta, mas tinha a esperança de que Margot e Anne tivessem sobrevivido à Shoah, até receber um comunicado oficial da morte das filhas em Bergen-Belsen. Otto Frank viveu em Amsterdã até 1953. Depois, transferiu-se para a Suíça, residindo na Basiléia, onde viviam seu irmão, sua irmã e alguns parentes. Ele casou-se com Elfriede Geiringer, austríaca de Viena, que, assim como ele, havia sobrevivido a Auschwitz, e que havia perdido esposo e filho no campo de concentração de Mauthausen. Até sua morte em 19 de agosto de 1980, Otto Frank viveu em Birsfelden, uma pequena cidade próxima da Basiléia, e dedicou-se ao diário de sua filha Anne e à divulgação da mensagem nele contida. 25

Além de Edith, Margot e Anne Frank, os outros quatro integrantes do esconderijo – Hermann, Auguste e Peter van Pels, e Fritz Pfeffer – também não sobreviveram: Hermann van Pels (van Daan), sócio de Otto Frank na Opekta, segundo comprovações posteriores da Cruz Vermelha da Holanda, foi assassinado na câmara de gás poucas horas após a chegada do transporte, em 06 de setembro de 1944. Porém, segundo depoimentos de Otto Frank, Hermann foi assassinado somente algumas semanas mais tarde, em outubro ou novembro de 1944, pouco antes do fim das mortes nas câmaras de gás; Auguste van Pels foi transferida de Auschwitz para Bergen-Belsen, em seguida para Buchenwald e, por fim, em 09 de abril de 1945 para Theresienstadt. Provavelmente, foi transferida ainda para outro campo. Não se sabe a data e o local de sua morte; Peter van Pels (van Daan) foi transferido em 16 de janeiro de 1945, em uma marcha de evacuação – a chamada “marcha da morte” (Todesmarsch) – de Auschwitz para o campo de concentração de

23 PRESSLER, 1994a, p. 315-316. 24 PRESSLER, 1994a, p. 316. 25 PRESSLER, 1994a, p. 316.

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Mauthausen, na Áustria, onde faleceu em 05 de maio de 1945, apenas três dias antes da libertação do campo; Fritz Pfeffer (Albert Dussel) morreu em 20 de dezembro de 1944 no campo de concentração de Neuengamme. Segundo consta, esteve primeiramente nos campos de concentração de Buchenwald e de Sachsenhausen, na Alemanha.26

A seguir, teceremos algumas considerações sobre a gênese de O diário de Anne

Frank, como uma obra que, igualmente, rende homenagem a estas e a tantas outras

vítimas da Shoah.

3 O diário de Anne Frank: breve história de uma gênese

No mesmo dia em que o esconderijo foi descoberto e todos foram detidos, Miep Gies e Bep Voskuijl, funcionárias da Opekta e auxiliares dos Frank, encontraram os apontamentos de Anne Frank em meio a papéis revirados, livros, revistas e jornais velhos largados no chão, que foram deixados para trás no esconderijo pela “Polícia Verde”. Miep Gies os guardou em sua escrivaninha e, mais tarde, sem tê-los lido, os entregou a Otto Frank, quando já se tinha certeza de que Anne não mais vivia.27 Existem duas versões do diário, ambas escritas de próprio punho por Anne Frank. A segunda versão resultou de correções, supressões e enxertos da primeira, que não preenchia mais as exigências de Anne Frank em relação a seu texto inicial. Além disso, o pai de Anne, Otto Frank, suprimiu algumas passagens do diário por motivo de discrição nas primeiras edições publicadas.28

Conforme comentado anteriormente, Anne Frank ganhou do pai um diário por ocasião de seu 13º aniversário. Segundo os apontamentos, Anne fez anotações em seu diário de 12 de junho de 1942 a 1º de agosto de 1944, portanto, num período um pouco superior a dois anos. Até a primavera de 1944, ela escreveu suas anotações para si mesma. Foi quando ouviu, em 29 de março de 1944, uma transmissão da BBC pelo rádio, na qual o ministro da educação holandês no exílio, Bolkestein, conclamou a população a juntar todo o tipo de material sobre o sofrimento do povo holandês durante a ocupação alemã, para que fosse publicado posteriormente, após o término da guerra. Um dos exemplos mencionados na transmissão foi justamente o de diários e cartas.29

26 PRESSLER, 1994a, p. 315-316. 27 PRESSLER, 1994b, p. 5. 28 PRESSLER, 1994b, p. 5. 29 FRANK, 1994, p. 233-234.

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Sob o impacto desse pronunciamento, Anne Frank decidiu que publicaria um livro após o final da guerra. Seu diário deveria servir de base para a redação do livro, que levaria o título holandês de Het Achterhuis (“O Anexo Secreto”).30 A partir de então, Anne começou a processar alterações e correções na primeira versão do diário, suprimiu algumas passagens que considerava de pouco interesse, e introduziu outras passagens baseando-se na própria memória. Ao mesmo tempo, ela deu sequência às anotações no primeiro diário, que na edição crítica publicada pelo Rijksinstituut voor Oorlogsdocumentatie (Instituto Federal Holandês para Documentação de Guerra) figura como “versão a”, que, por sua vez, difere da “versão b”, ou seja, do segundo diário re-trabalhado.31

Após longa reflexão, Otto Frank decidiu realizar o desejo de sua filha e publicar seus apontamentos em forma de livro. Para isso, baseando-se na versão original (“versão a”) e na versão re-trabalhada por Anne (“versão b”), Otto Frank elaborou uma terceira versão (“versão c”) resumida.32 O texto deveria ser publicado numa série, cuja dimensão foi determinada pela editora holandesa Uitgeverij Contact.33 Quando Anne Frank escreveu sua segunda versão (“versão b”), ela determinou quais pseudônimos atribuiria às pessoas no caso do diário vir a ser publicado em forma de livro. Ela própria, de início, quis atribuir para si o nome Anne Aulis e, posteriormente, Anne Robin. Otto Frank não adotou esses nomes na versão resumida, mas sim manteve os nomes de sua família. Em contrapartida, o pai de Anne Frank levou em consideração as sugestões de nomes propostas pela filha para as demais pessoas. As pessoas que os ajudaram, que se tornaram conhecidas no mundo inteiro, são nomeadas no livro com seus próprios nomes. Os nomes das demais pessoas correspondem à edição crítica: nos casos em que as pessoas quiseram permanecer anônimas, elas foram indicadas no texto por letras iniciais escolhidas aleatoriamente pelo Instituto Holandês. Os nomes corretos dos que estiveram escondidos são: Família van Pels (originária de Osnabrück/Alemanha): Auguste (nascida em 29/09/1890), Hermann (nascido em 31/03/1889), e Peter (nascido em 08/11/1926) van Pels; estes foram indicados por Anne no diário sob os seguintes pseudônimos: Petronella, Hans e, respectivamente, Alfred van Daan; no livro: Petronella, Hermann e Peter van Daan; Fritz Pfeffer (nascido em 1889 na

30 FRANK, 1994, p. 234. 31 PRESSLER, 1994b, p. 6.

32 Para uma datação precisa sobre as três versões, ver: ABREU, 2016, p. 67. 33 PRESSLER, 1994b, p. 5-6.

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cidade alemã de Gießen), nomeado por Anne e indicado no livro como Albert Dussel.

A lista de Anne Frank contendo as mudanças dos nomes é a seguinte: Anne = Anne Aulis Robin

Margot = Betty Aulis Robin Pim = Frederik Aulis Robin Mutter = Nora Aulis Robin G. v. Pels = Petronella v. Daan H. v. Pels = Hans v. Daan P. v. Pels = Alfred v. Daan F. Pfeffer = Albert Dussel J. Kleiman = Simon Koophuis V. Kugler = Harry Kraler Bep = Elly Kuilmans Miep = Anne v. Santen Jan = Henk v. Santen Gis & Co = Kolen & Cie Opekta = Travies34

Quando o livro foi publicado em junho de 1947 na Holanda, ainda não era comum que se escrevesse sobre temas sexuais, sobretudo em livros tidos como infanto-juvenis. Outro motivo importante que levou Otto Frank a não incluir na versão resumida passagens inteiras ou certas formulações presentes no diário foi o fato de querer preservar a memória de sua esposa e dos outros companheiros de infortúnio, que viveram no esconderijo. Anne escreveu o diário dos 13 aos 15 anos e expressou em seus apontamentos suas aversões e dissabores de maneira explícita, da mesma forma que suas simpatias. De início, o livro teve grande impacto mundial, sendo traduzido em 55 idiomas.35

Em 1952, o diário foi publicado nos Estados Unidos com o título The Diary of a

Young Girl (“O Diário de uma Jovem”), num tom romantizado. Em 1955, foi escrita

e encenada uma peça de teatro intitulada The Diary of a Young Girl, nos Estados Unidos. Em 1959, foi a vez de o Cinema lançar o filme The Diary of Anne Frank, com direção de George Stevens e com participação da atriz Millie Perkins no papel principal. Em 2009, o diário ganhou nova filmagem, desta vez como minissérie

34 PRESSLER, 1994b, p. 7. 35 PRESSLER, 1994b, p. 6.

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produzida pela BBC juntamente à emissora France 2, adaptado por Deborah Moggach e dirigido por Jon Jones, e tendo a atriz inglesa Ellie Kendrick no papel principal. Em 1960, o anexo secreto de Amsterdã se tornou museu, que, atualmente, conta com uma página na Internet e disponibiliza informações preciosas, em diversos idiomas, sobre o diário.36 Em 1986, foi lançada a versão crítica e definitiva do diário (“versão d”), contendo todos os apontamentos feitos por Anne Frank nas diversas versões.

Otto Frank faleceu em 1980. Ele legou os apontamentos originais de sua filha em testamento ao Rijksinstituut voor Oorlogsdocumentatie (Instituto Federal Holandês para Documentação de Guerra) em Amsterdã. Em virtude do questionamento da autenticidade do diário, iniciado nos anos 1950, estudiosos ligados ao referido instituto submeteram todos os apontamentos atribuídos a Anne Frank a um exame minucioso. Somente após a autenticidade ter sido definitivamente comprovada, o instituto autorizou a publicação completa dos apontamentos feitos por Anne Frank em seu diário, com os resultados de suas pesquisas. Os estudiosos examinaram, entre outros, os contextos familiares, as condições da prisão e da deportação, os materiais empregados na redação do diário, e a própria caligrafia de Anne Frank, bem como consideraram o impacto da divulgação do diário.37

A Fundação Anne Frank, localizada na cidade suíça da Basiléia, que herdou de Otto Frank todos os direitos autorais de sua filha, decidiu, então, inserir outras passagens dos textos disponíveis numa nova versão (“versão d”). O trabalho editorial desempenhado por Otto Frank, que colaborou para a grande divulgação e para o significado político do diário, não foi de maneira alguma diminuído. A escritora e autora Mirjam Pressler foi incumbida da redação da nova versão, que partiu da versão resumida de Otto Frank e a ampliou por meio de inserção de outras passagens das versões “a” e “b” do diário. A versão apresentada por Mirjam Pressler e autorizada pela Fundação Anne Frank tem uma dimensão cerca de ¼ mais densa que a edição vigente até então. A nova versão, considerada como definitiva por seus promotores, possibilita ao leitor uma impressão mais profunda do mundo de Anne Frank.38

36 Disponível em: <https://www.annefrank.org/de/museum/>. 37 PRESSLER, 1994a, p. 316.

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4 O diário de Anne Frank: um legado para a humanidade

O diário de Anne Frank é, ao mesmo tempo, símbolo e documento: símbolo de todas as vítimas do racismo, do antissemitismo e do genocídio cometido pela Alemanha nazista contra o povo judeu e, ao mesmo tempo, documento do destino de uma família judia marcada por uma vida confinada e absurda numa Holanda ocupada pelas tropas nazistas.

Em 12 de junho de 2000, foi institucionalizado o Anne-Frank-Friedenstag (“Dia da Paz de Anne Frank”) pela Anne-Frank-Fonds, com sede na Basiléia, e celebrado na cidade de Bergen, onde se localiza o antigo campo de concentração de Bergen-Belsen, em que Anne esteve confinada nos seus últimos meses de vida. As comemorações foram organizadas pela cidade de Bergen e pela Fundação Konrad Adenauer. O evento foi direcionado, sobretudo, para jovens em idade escolar, no sentido de refletirem sobre a necessidade premente de se alcançar a paz entre os diversos países, povos e religiões.

Críticos, como Albrecht Goes, são unânimes em apontar que o leitor encontra nos diários a dicção de uma jovem na puberdade, entre seus treze e quinze anos de idade, que possui um caráter inusitado pela dimensão de seu poder de reflexão, de sentimento profundo, de esperteza e de amadurecimento precoce, além da precisão na observação do que acontecia à sua volta e da determinação em registrá-lo em seu diário, sem deixar de manter, mesmo nos momentos mais difíceis, um toque de humor. “Trata-se do destino de uma criança que esperamos não encontrar nunca mais, suficientemente ruim”.39

Todavia, o encontramos aqui em forma de relato, uma escrita de si, do relato sobre uma família judia, que precisou deixar a Alemanha em 1933 por questões de sobrevivência, e que encontrou exílio na Holanda, “vivendo”, por fim, incógnita por mais de dois anos num anexo de fundos do prédio localizado no número 263 da Prinsengracht, em Amsterdã. Suas vidas tornaram-se um destino comum, que os condenou não a viver, mas a tentar sobreviver, dia após dia, num espaço confinado. Lá fora, a guerra prosseguia. Os aliados já não se encontravam mais distantes de Amsterdã quando, numa manhã de agosto de 1944, a polícia alemã descobriu o esconderijo. Mas para Anne Frank e todas as outras pessoas a libertação chegou tarde demais. Restou-lhes apenas o caminho para a morte, a

39 GOES, 1975, p. 5. No original em alemão: Dem Schicksal aber, dass diesem Kind

zugeteilt worden ist, möchten wir hinfort nicht mehr gerne begegnen, schlimm genug.

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deportação para campos de concentração e extermínio no Leste Europeu e, posteriormente, da própria Alemanha.

O que restou foi justamente o diário, um documento notável e comovente, escrito por uma adolescente em fase de amadurecimento, repleto de anotações aparentemente despretensiosas, e é justamente por essa aparente despretensão que ele se tornou um marco na representação do extremo absurdo a que a Europa foi lançada pela Alemanha nazista. É um documento tocante, fruto da unidade composta pelo destino de uma família perseguida e da vida de uma garota sensível e dotada de um dom para a escrita. Parece que a existência ameaçada e a presença constante da morte aguçaram a vivência e a capacidade de percepção de Anne Frank, dotando-lhe de uma força de expressão extraordinária.

Ao lermos o diário, estamos diante de diálogos de uma adolescente consigo mesma, que cria uma personagem como sua interlocutora íntima, a quem endereçaria suas “cartas”: “Kitty”, conforme ressalta Denise Borille de Abreu, a “interlocutora imaginária que viria a fazer-lhe companhia nos dias longos e tortuosos de sua reclusão”,40 uma espécie de alterego, um apoio para construir seus relatos sobre os aspectos que elegia como relevantes e dignos de serem anotados no diário, como também para delimitar a própria dicção da formulação desses aspectos a partir de seu próprio estado de ânimo. Tal estratégia de escrita, aliás, seria adotada mais tarde pela adolescente bósnia Zlata Filipovíc em seu diário, ao criar uma “interlocutora” discursiva chamada Mimmy.41 Portanto, Anne escrevia para si mesma, para aquela parte mais íntima que denominava de “Kitty”, conforme apontamento no diário, datado de 20 de junho de 1942.42 E mesmo que Kitty só existisse na imaginação de Anne, a invenção dessa interlocutora já seria um indício suficiente de que Anne precisaria de um “Outro” que tomasse parte nos diversos questionamentos a que ela impôs a si própria no diário. Devemos lembrar que, como aponta Michael Foucault, a escrita de si “atenua os perigos da solidão; dá o que se viu ou pensou a um olhar possível; o facto de se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro, ao suscitar o respeito humano e a vergonha”.43

Tal imposição se originou daquilo que de mais íntimo possuía sua vida, das condições do momento, do destino comum daquelas poucas pessoas que tentavam

40 ABREU, 2016, p. 65. 41 FILIPÓVIC, 1994. 42 FRANK, 1994, p. 20-23. 43 FOUCAULT, 1992, p. 130.

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apenas sobreviver. É uma confrontação do Eu consigo mesmo, entre um ser extremamente sensível e um Outro que parece ser forte e perspicaz. E é, ao mesmo tempo, a confrontação do Eu com o meio que o circunda, uma confrontação que é conduzida com uma exatidão minuciosa. Ninguém deixará de ouvir em seus relatos o tom agressivo; mas ninguém poderá deixar de ouvir também o tom de uma verdadeira força afetiva. Como bem aponta Albrecht Goes, para tornar o diário possível, o diário de Anne Frank fez-se premente dois componentes: um tempo extraordinariamente maligno e um ser humano extraordinário: o legado de Anne Frank é essa obra lida por milhões no mundo inteiro, um diário de uma adolescente, que, “sem qualquer falso ingrediente, nos diz a verdade, nada mais que a verdade, toda a verdade”,44 diríamos, de um mundo de cabeça para baixo. Referências

ABREU, Denise Borille de. Fronteiras de identidades: a escrita do eu em ‘O diário de Anne Frank’. Anuari de Filologia. Literatures Contemporànies. Barcelona, v. 6, 2016,

p. 63-70. Disponível em:

<http://revistes.ub.edu/index.php/AFLC/article/view/AFLC2016.6.7>. Acesso em: 30 mar. 2019.

CHRONOLOGIE DES HOLOCAUST. Disponível em: <http://www.holocaust-chronologie.de/chronologie/uebersicht/langfassung.html>. Acesso em: 30 mar. 2019.

DAS HINTERHAUS. Disponível em: <https://www.annefrank.org/de/anne-frank/das-hinterhaus/>. Acesso em: 30 mar. 2019.

DAS KURZE LEBEN VON ANNE FRANK. Disponível em:

<https://www.annefrank.org/de/anne-frank/das-kurze-leben-von-anne-frank/>. Acesso em: 30 mar. 2019.

ERWIN, Steve; ILIBAGIZA, Imaculée. Sobrevivi para contar: o poder da fé me salvou de um massacre. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

FILIPOVÍC, Zlata. O diário de Zlata: a vida de uma menina na guerra. Trad. Antonio de Macedo Soares, São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FOUCAULT, Michael. A escrita de si. In: _____. O que é um autor? Trad. Antônio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Lisboa: Passagens; Vega, 1992. p. 129-160.

44 GOES, 1975, p. 6. No original: [...] dieses Buch, das ohne jede falsche Zutat die

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FRANK, Anne. Anne Frank Tagebuch. Ed. de Otto H. Frank e Mirjam Pressler. Trad. Mirjam Pressler. Frankfurt a.M.: Fischer, 1994.

FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Trad. Ivanir Alves Calado. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2004.

GOES, Albrecht. Vorwort. In: FRANK, Anne. Das Tagebuch der Anne Frank. Trad. Anneliese Schütz, Frankfurt a.M.: Fischer, 1975. p. 5-6.

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LAMB, Christina; YOUSAFZAI, Malala. Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

LUGOVSKAIA, Nina. O diário de Nina: o terror stalinista nos cadernos de uma menina soviética. Trad. Joana Angélica D’Ávila Melo, Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

MUKHINA, Lena. O diário de Lena: a história real de uma adolescente durante a Segunda Guerra. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2015.

PRESSLER, Mirjam. Nachwort. In: FRANK, Anne. Anne Frank Tagebuch. Ed. de Otto H. Frank e Mirjam Pressler. Trad. Mirjam Pressler. Frankfurt a.M.: Fischer, 1994a. p. 315-316.

PRESSLER, Mirjam. Zu diesem Buch. In: FRANK, Anne. Anne Frank Tagebuch. Ed. de Otto H. Frank e Mirjam Pressler. Trad. Mirjam Pressler, Frankfurt a.M.: Fischer, 1994b. p. 5-7.

SATRAPI, Marjane. Persépolis. Trad. Paulo Werneck, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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Recebido em: 30/03/2019. Aprovado em: 16/04/2019.

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