• Nenhum resultado encontrado

O antropólogo como autor: as convergências com a escrita literária e a importância da pessoalidade

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O antropólogo como autor: as convergências com a escrita literária e a importância da pessoalidade"

Copied!
43
0
0

Texto

(1)

Escola de Ciências Sociais e Humanas

Departamento de Antropologia

O antropólogo como autor: as convergências com a escrita

literária e a importância da pessoalidade

Tiago Anderson Amorim

Dissertação submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia

Orientadora: Prof.a Dra. Rosa Maria Perez – Instituto Universitário de Lisboa

(2)

Escola de Ciências Sociais e Humanas

Departamento de Antropologia

O antropólogo como autor: as convergências com a escrita

literária e a importância da pessoalidade

Tiago Anderson Amorim

Dissertação submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia

Orientadora: Professora Doutora Rosa Maria Perez Professora Associada (com Agregação)

Instituto Universitário de Lisboa

(3)
(4)

Resumo

Esta dissertação propõe mais um diálogo entre duas áreas de conhecimento distintas: Antropologia e Literatura. Tomando os dois tipos de escrita como base, apontas semelhanças e convergências de forma e conteúdo entre ambas, numa tentativa de evidenciar a “zona tensional” a que tanto um quanto outro pertencem, no sentido de serem expressões da multidisciplinaridade e complexidade do grande objeto da sua atenção: a vida humana. Também reflete sobre a noção de autoria e a pertinência, em trabalhos como o de Renato Rosaldo, da pessoalidade na elaboração do texto científico.

Abstract

This dissertation proposes another dialogue between two different areas of knowledge: Anthropology and Literature. Taking their types of writing as a ground, it points out similarities and convergences of form and content between both of them, in an attempt to highlight the "tension zone" to which they belong together, in the sense of being expressions of the multidisciplinarity and complexity of the crucial object of their attention: human life. The dissertation also analyses the notion of authorship, and the relevance of the self in the production of the scientific text in books such as the one by Renato Rosaldo.

Palavras-chave: Antropologia e Literatura; etnoliteratura; autoria; critérios de veracidade; escrita antropológica.

Keywords: Anthropology and Literature; ethnoliterature; authorship; criteria of veracity; anthropological writing

(5)

Índice

Introdução

Capítulo I

Real, língua, realidade

O amadurecimento do modo dizer

James Clifford e Hayden White

Capítulo II

Críticas à etnografia que não “dialoga” O contributo de Córdoba

O apartheid metodológico e a reunificação sem perda de identidade

A literatura como conhecimento

Capítulo III

O que Renato Rosaldo nos deu?

Nova lucidez: pontos iluminadores em Culture and Truth

O emprego das técnicas literárias na escrita do texto antropológico

Conclusão

(6)

Introdução

Esta tese parte de um pressuposto que considero evidente, do qual decorre a argumentação aqui apresentada: a experiência concreta é indizível. Dito isto, a premissa maior é a de que, confessada a incomunicabilidade daquilo que alguém testemunha, faz ou sofre, resta à linguagem oferecer caminhos de aproximação entre o sujeito que experimenta e o que recebe o seu relato articulado, mediado não só pela língua e a sua estrutura, como por todos os outros elementos de cultura que tornam significantes o acontecimento transmitido. É essa tensão entre o que de fato aconteceu e o que se consegue traduzir com a narrativa, que subjaz a todos os tipos de conhecimento humano partilhado. E ao longo da história, o homem teve a presciência dessa condição limitadora, reconhecendo, de diferentes maneiras, que a base da conversação era, em última instância, a fé no testemunho do outro, que poderia ou não conduzi-los a um lugar comum que tomavam como verdadeiro.

Entretanto, a revolução científica, que abriu as portas para a Modernidade, gerou uma quebra nessa crença coletiva: o verdadeiro passa a ser sinônimo de verificável, e o desenvolvimento das ciências naturais um seu correlato. A baliza do certo ou indubitável cartesiano é a lógica dos experimentos e processos de análise pelos quais a realidade, então fracionada entre os diversos campos da ciência, tem de passar para ser crível. Do Organum de Aristóteles para o Organum de Francis Bacon dá-se um salto na direção do intelecto matemático, repleto de dados e estatísticas, assombrado por qualquer insinuação de incerteza, poesia e verossimilhança, que enxerga como opostos no caminho de perseguição da “verdade”. A linguagem, especialmente a numérica, tem de ser exata. É este o novo credo, capaz de influenciar as outras áreas do conhecimento, nascidas desde o século XIX, entre as quais a Antropologia. Qualquer breve história desta disciplina atesta, sem maiores contradições, a irrupção do método etnográfico como forma de conhecimento objetivo, ancorado nos relatos imparciais dos seus agentes primeiros. Motivada pelo espírito da época, a ciência de Malinowski era mais um testemunho, entre muitos, da nova fé científica – aquilo que Ortega y Gasset, filósofo espanhol, abordaria em A rebelião das massas (ORTEGA Y GASSET, 1989), criticando o tecnicismo laboratorial das primeiras décadas do século XX, forma mentis que açambarca o homem moderno e contamina quase todas as expressões da vida humana.

No primeiro capítulo desta tese, comentarei algumas “viragens metodológicas” que a Antropologia sofreu (as mais pertinentes para o objetivo desta dissertação), justamente quando

(7)

essa perspectiva moderna, cientificista, já não parecia responder a contento aos dramas e tensões vividos pelo etnógrafo nos mais diversos trabalhos de campo, ou mesmo nas salas de aula e departamentos académicos em que se punha a refletir a sua prática. Do objetivismo aludido acima, chegou-se aos relativismos de diferentes matizes e às consequentes proposições teóricas que marcaram as últimas décadas do século passado. A chamada “Antropologia das emoções”, por exemplo, não seria possível sem que esse reexame tivesse acontecido e as sugestões de outras abordagens recepcionadas pela comunidade científica.

Afinal, o que quer dizer Renato Rosaldo quando menciona um “desgaste das normas clássicas” (ROSALDO, 2000)? Por que se percebe, aqui e acolá, um movimento de remodelagem da Antropologia, encarnada em trabalhos atuais como o de Tim Ingold (INGOLD, 2011), para quem ela é, na verdade, uma filosofia viva? E como filosofia, um campo “entre campos”, transversal, multidisciplinar, muito mais marcado pelo modus operandi do que pelos limites do seu objeto – ou, na sugestão de Philippe Descola (DESCOLA, 2005), mais propriamente um tipo de olhar sobre a vida humana.

Daí que esta filosofia viva não deva excluir, no exercício da sua produção científica, os diferentes modos de dizer a experiência – mesmo que esta seja, como já sabemos, incomunicável na sua inteireza. É desejável, neste sentido, que o antropólogo se muna das formas de comunicação que melhor traduzam o conhecimento, diminuindo o hiato com o seu leitor. É exatamente neste ponto que incluo a Literatura, abrindo o diálogo interdisciplinar proposto nesta tese: a sabedoria em narrar, pródiga entre os grandes ficcionistas da história, pode iluminar – e até mesmo modelar, como se verá adiante – as narrativas etnográficas. As estruturas literárias respeitam um tipo de “código real” que permite ao leitor a compreensão do texto e identificação com os personagens e suas aventuras. É isto que afirmam, por exemplo, Tzvetan Todorov (TODOROV, 1968; 2014), Northrop Frye (FRYE, 2014), Hayden White (WHITE, 2003), Joseph Campbell (CAMPBELL, 2005), Christopher Vogler (VOGLER, 2015) e tantos outros cientistas humanos e críticos literários que estudaram, sob diferentes perspectivas, a correspondência natural ou não entre as estruturas narrativas e a experiência comunicada. A respectiva aplicação teria muitas expressões, de uma ponta à outra das ciências não naturais. Parafraseando Hayden White, deve-se relacionar uma estrutura de trama específica com um conjunto de acontecimentos históricos para dotá-los de um tipo especial de significado (WHITE 2003, 107). Este seria o labor do historiador, por exemplo: uma espécie de operação literária, extensível, de alguma maneira, à Antropologia.

(8)

O antropólogo terá melhores condições de dizer se o seu texto não preterir as formas artísticas. O grau de “sucesso” da sua comunicação com o leitor destinatário, portanto, não depende apenas de um bom trabalho de campo e do respeito pelas “normas clássicas” académicas: depende, também, da estrutura subjacente do dizer escolhida por ele quando dedicado à escrita etnográfica.

Por que razão teria a arte esse papel, mesmo em trabalhos de cunho estritamente científico? É o que podemos responder a partir da obra de Vilém Flusser, filósofo a que recorri para abordar essas e outras questões que aparecem ao longo da tese. Num artigo que escreveu para o seu curso “Les phénomènes de la communication” (FLUSSER, 1975), proferido nos anos de 1975 e 1976, Flusser faz importantes observações sobre o que considera a necessidade da arte como possibilidade do dizer. Esclarece o autor:

“O exemplo mostra do que se trata na arte. Trata-se da elaboração e da comunicação de modelos para nossas experiências concretas do mundo. Toda experiência é modelada, programada pela arte. Todos os nossos prazeres e tristezas, todas as experiências das cores, dos sons, das formas, das tessituras, dos perfumes que nós temos, todo sentimento de amor e de raiva, têm um modelo artístico. Nosso mundo é estruturado não somente pela nossa informação genética, mas também por nossa informação estética. Onde não há modelo estético, nós estamos “anestesiados” = nós não temos experiência nenhuma. Nós dependemos da arte para poder perceber o mundo” (FLUSSER, 1975, 10).

Aliada à sua concepção de linguagem, de que trato logo no primeiro capítulo deste trabalho, a noção de arte apresentada pelo filósofo tcheco é fundamental para a minha arguição: as estruturas dos textos narrativos não são apenas modelos de criação, aos quais os antropólogos poderiam recorrer uma vez por outra se quisessem ordenar melhor a sua escrita. Vai além disso. O ponto é que sem arte não há ordem, no sentido de que não há discurso significativo sobre o mundo. A estruturas textuais correspondem, portanto, às estruturas desse mundo que primeiro os artistas dispuseram, estabelecendo, de forma dinâmica e histórica, os parâmetros do dizível e do indizível, materializando pelas suas obras o sentido humano de criação.

O antropólogo, o historiador ou o sociólogo, não podem se referir a esse mundo sem a mediação da cultura que foi desenvolvida a partir das possibilidades informadas pelos artistas. “É que se não há pintor paisagista, não há paisagem”, afirma Flusser (FLUSSER 1975, 10). E prossegue:

“a arte é, portanto, na expressão de Heidegger, nosso órgão para sorver a realidade. Diríamos que a comunicação estética deve preceder toda comunicação ética e epistemológica. Pois o artista é o produtor da realidade que será julgada pelo político e pesquisada pela cientista” (idem, 11).

(9)

Disto decorre que a escrita antropológica, mais do que simplesmente “influenciada” pela literária, é acima de tudo possível a partir dela. Num esforço de formulação e generalização, poderíamos dizer que a estrutura subjacente ao texto de O coração das trevas, de Joseph Conrad, é a que permite a apreensão, pelo leitor, de Tristes trópicos, de Lévi-Strauss.

Não se põe em causa aqui, como se verá ao longo de toda a tese, as intenções de um e outro autor, nem as diferenças evidentes entre um tipo e outro de texto. Mas anuncia-se, com todo esse cuidado, a convergência entre ambos e a relação causal, no sentido de Flusser, entre a narrativa ficcional (mítica) e a científica (lógico-racional). E não só.

Esta tese culmina, depois de um capítulo que pretende esclarecer as relações práticas entre Antropologia e Literatura (e as produções enriquecedoras da chamada etnoliteratura), com uma reflexão sobre o sentido de autoria. O mesmo pressuposto destacado no início desta introdução – de que a experiência é indizível – tem um segundo ponto correlato, desenvolvido, então, na terceira parte do trabalho, na qual figura o exemplo de Renato Rosaldo, como que a personificar aquilo que aqui se aventa e se propõe teoricamente.

Seja pela sua antropologia das emoções, seja pelo seu envolvimento pessoal e biográfico com o campo estudado, Rosaldo é um homem de carne e osso que faz etnografia e pensa-a desde a própria experiência. O seu Cultura e Verdade é um monumento à escrita viva, transbordante; registra e modela, com capacidade de tradução admirável, aquilo que ele mesmo chama “novas categorias”, numa alusão ao uso da experiência pessoal como perspectiva de análise do povo ilongot.

Para além de tudo o que se sabe das relações entre linguagem e fato bruto, das mediações da arte e toda a cultura decorrente, a força do texto de Rosaldo reside majoritariamente na sua autoria – força, a meu ver, análoga à de Tchekov comentando sua viagem pela Ilha de Sacalina, ou à de Cecília Meireles ao poetizar a Inconfidência Mineira, ou à de Cervantes ao descrever as paisagens de La Mancha - vetor existencial sincero e expressão imorredoura de alguém. O “eu” continua a ser a primeira baliza de veracidade nas artes e nas ciências, antes mesmo de toda palavra.

(10)

Capítulo I

Real, língua, realidade

“Apreender palavras é formar intelecto. As palavras apreendidas começam a formar uma superestrutura sobre os sentidos, começa a surgir um Eu no sentido estrito. As palavras apreendidas têm significado. Por sobre o caos dos dados brutos sem significado, dentro do qual vivem os sentidos, surge o cosmos simbólico das palavras, dentro do qual vive o intelecto” (FLUSSER 2012, 59).

É o que Gustavo Bernardo reproduz no prefácio escrito para a reedição de Língua e Realidade (idem, 2012), ensaio publicado originalmente na década de sessenta, considerado por muitos estudiosos a obra-prima de Vilém Flusser, filósofo tcheco radicado no Brasil.

Sabemos a que drama intelectual este trecho alude – ou pelo menos a que históricos e imbricados debates que algumas áreas do conhecimento travaram acerca da relação entre linguagem e realidade, texto e autoria, sujeito e objeto. Esclareça-se, entretanto, que a teoria de Flusser não se junta aos relativismos de tipo nietzschiano, muito menos à “negação do real” objetivo: o que se depreende da sua referida obra, e que nos interessa nesta tese, é outra proposição teórica. Vejamos, por exemplo, este excerto de abertura de um artigo publicado pelo filósofo em agosto de 1966, n’O Diário de Ribeirão Preto:

“Considerem a famosa sentença de Newton: hypotheses non fingo (minhas hipóteses não são inventadas). E considerem, em contrapartida, a sentença de Wittgenstein: “as ciências nada descobrem: inventam”. A contradição entre as duas sentenças desvenda uma profunda modificação do nosso conceito da realidade e ficção, da descoberta e invenção, do dado e do posto. Com efeito, desvenda a perda de uma fé em realidade dada e descobrível. E mostra a nossa situação como ficção inventada e posta por nós” (FLUSSER 1966, 01).

Ou seja: a sua perspectiva é, no fundo, de crítica aos construtivismos radicais, de tipo wittgensteiniano, em que “tudo é linguagem”. Parece-me, muito mais – e aqui o diálogo com todas as ciências humanas, em especial a Antropologia, torna-se muito interessante -, que Flusser fala mesmo de pontes entre sujeito e objeto, entre real e homem, o que abarca a atividade científica e todas as outras ações humanas que discorrem sobre o mundo.

Em Língua e Realidade temos, sim, a defesa da palavra, mas enquanto elemento formador do “cosmos simbólico” de cada falante, como ponte entre o real e o sujeito – daí que

(11)

Flusser indique ser a realidade conquista da representação, ou seja, da linguagem. Daí, também, que caiba falar em ficção, lato sensu, que não é mais do que a produção da cultura que torna significante para as comunidades aquilo que do real postula significado.

Dito de outra forma: o intelecto, através das palavras que aprende e soma ao seu repertório – alargado conforme esforço pessoal, influência e ação da cultura e do meio – confere sentido, traduz e até mesmo ordena os dados brutos do real. Este, portanto, existe, independente do sujeito (por isso Flusser não se inscreve no rol de pensadores que abolem o real de seus sistemas epistemológicos, nas várias formas do “idealismo do sujeito” que faz o seu mundo próprio). Mais uma vez, a perspectiva de Flusser é sensivelmente diferente disto. O real, segundo defende, torna-se realidade através das palavras, a partir do intelecto que se realiza agrupando-as, reconhecendo os seus significados e conferindo sentido às sentenças formuladas. Essas sentenças, anúncios, conceitos e afirmações, são no fundo as narrativas que os homens, ao longo do tempo e nos diferentes espaços, teceram sobre o mundo que testemunhavam. Em última instância, Flusser está dizendo que o real é, existe, mas que dele fazemos as nossas próprias “ficções”.

O mundo, entendido como uma espécie de “comentário humano sobre o real”, não existe por si só; existe porque falado, porque metaforizado em palavras, nunca em oposição ao representado, mas numa relativização que passa, sim, pela mediação da cultura, do tempo histórico, do consórcio de tantos outros fatores quantos são as diferenças humanas percebidas. Sendo assim, uma prévia conclusão se faz necessária: o texto antropológico é também ficção, portanto; e como tal, independente do esforço do etnógrafo em transmitir ao leitor a veracidade da experiência de “ter estado lá”; é balizado por estruturas, notas elementares, princípios, formas e meios, que são aqueles que encontramos em todo e qualquer texto ficcional com que nos deparemos. De maneira mais clara: a escrita antropológica, ainda que científica num sentido, é ficcional num outro, e partilha com os textos de caráter indubitavelmente literário – como romances e contos – um mesmo fundo, abrangente e genérico, de significados, representações, limites e possibilidades donde nasce a palavra que se perfaz num comentário sobre o real. Assumida a perspectiva teórica de Flusser, é possível falar nesses termos, e propor a aproximação do texto de origem científica com o de origem literária.

Para espanto de muitos, por certo, afirmo nesta tese que, guardadas as diferenças amplamente reconhecidas, o texto antropológico e o texto literário são, cada qual à sua maneira, ficcionais; e que, justamente por isso, as fronteiras marcadas, que por um longo tempo

(12)

acreditou-se existirem entre eles, doravante revelam-se mais confluentes, comunicantes e por vezes indistintas (como se verá no capítulo seguinte, num breve comentário à obra de Ruy Duarte de Carvalho). A Antropologia, a meu modo de ver, seria mesmo a “boundless discipline” a que se referiu George Stocking (STOCKING, 1995), e os seus textos um monumento confirmador dessa fusão e abrangência que configuraria esta ciência.

Esta amplidão ou “falta de limites estritos” que parece ser um elemento imprescindível da prática e escrita antropológica estariam, outrossim, muito próximos da criação artística – sem demérito algum para aquela, antes pelo contrário: as correspondências formais entre ficcionista e etnógrafo, no momento da escrita, são, na perspectiva que adotamos, riqueza; maior capacidade de dizer, expressar, investigar a vida humana sem algumas amarras que, talvez por muito tempo, dificultaram a produção científica quando demasiado “canónica”, objetiva, “imparcial”. A escrita antropológica mais atual, da qual destacamos o exemplo de Renato Rosaldo (a ser comentado no terceiro capítulo) estaria, para voltar a Flusser, mais adequada à realização pela linguagem daquilo que é o real. Ainda: que o antropólogo, implicado no trabalho de campo, envolvido com o real observado, experimentado e até sofrido de alguma maneira, ao se comprometer com o espaço humano estudado, envolvendo-se pessoal e subjetivamente com ele, eleva a noção de autoria que podemos reconhecer em grandes escritores literários que, ao longo da história, falaram de si e dos outros por meio da fantasia criada. Se a palavra, conteúdo do intelecto agente, é a ponte para realização do real, como diria Flusser, a autoria, no sentido de envolvimento e subjetividade aqui expostos, é a baliza da veracidade.

Colocamos, assim, noutro patamar a afirmação de Clifford Geertz (GEERTZ 2009) sobre o “ter estado lá”: sendo a Antropologia a ciência interpretativa do fenómeno humano - e o testemunho do cientista indispensável para a elaboração desse conhecimento -, as fronteiras, limites, divisões e categorizações que marcam as humanidades de maneira a “objetivá-las”, na concorrência com as ciências naturais, não importam tanto. Servem, sem dúvida, para legitimar questões académicas e organizar dados coletados e produções científicas realizadas. Entretanto, o que importa sobremaneira, em se tratando da escrita antropológica como testemunho do que “se viu”, é a autoria: a capacidade do antropólogo de dizer-se junto com a alteridade estudada, prática que julgo fundamental na percepção do nós que supera as oposições mais excludentes e menos frutíferas da insuficiente apreciação “eu x eles”. A generalização necessária que marca a etapa final do trabalho científico, a indução que acontece desde um caso particular, não deve preterir ou obliterar o eu do antropólogo, único instituto capaz de reconhecer o nós. Se todo

(13)

conhecimento começa num espanto, como diria Platão, ou estranhamento – necessária oposição do sujeito e do objeto -, defendo neste ponto que ele termina, para o bem do homem, numa síntese ou universalização. O engajamento do antropólogo com o meio, inclinação prática bem vista hoje em dia, é uma expressão dessa comunhão humana que legitima o tipo de ciência que visamos, e só o realiza o cientista que percorre o trajeto pessoal do eu – que chega, estranha e observa – até o nós – que justifica, se altera e reconhece a lei que unifica.

Exemplos académicos do que estamos falando não faltam. Os departamentos de Antropologia, através dos seus investigadores, têm produzido largo material sobre o assunto – as fronteiras maleáveis, as confluências entre áreas antes díspares, o diálogo enriquecedor entre arte e ciência, os novos paradigmas das humanidades etc. – como se pode comprovar numa rápida coleção de teses, artigos e outras publicações encontradas nas redes, ao acessar bibliotecas, repositórios e revistas especializadas. Muito interessante, a título de ilustração, é o artigo do Prof. Dr. Clark Mangabeira (Mangabeira 2016), da UFMT, chamado “Amor de pessoa: ficção, escrita antropológica e amor no diálogo epistolar entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz” em que o autor consegue demonstrar, a partir de uma análise das cartas entre o poeta português e sua amada, as indistinguíveis noções do amor, então metaforizado por Pessoa a partir de sua escrita, ao mesmo tempo que sentido profundamente enquanto homem. O resultado, como se lê no artigo do referido antropólogo, é um tipo de interpretação-exposição-confissão do amor, em que ciência, poesia e filosofia confluem sem marcarem as suas divisões.

Ao que me parece, a Antropologia percorreu um longo e complexo trajeto até aqui, precisamente onde estamos: este lugar metodológico e conceitual que, ainda que não unânime, conduz a nossa ciência para esse eixo de comunicabilidade, atravessamento e alargamento do próprio espectro.

O amadurecimento do modo de dizer

O caminho percorrido pela Antropologia desde a sua marcada manifestação como ciência autónoma em Malinowski não se fez independente do longo processo que as humanidades, num geral, viveram desde os tempos iniciais e suas respectivas propostas de explicação e investigação da natureza humana. A própria hermenêutica, na qual toca uma parte desta tese ao abordarmos as questões de linguagem e representação do mundo, precede a

(14)

Antropologia. Fosse com Scheleimeier, Dilthey ou Heidegger (este já um contemporâneo de importantes etnógrafos), a reflexão sobre a verdade nas ciências humanas e a capacidade de expressá-la tinha já os seus exemplos de exposição e método, alguns bastante áridos, profundos e abrangentes.

Filipe Verde, em Explicação e Hermenêutica (Verde, 2009), faz um excelente resumo de como essas diferentes e históricas noções de verdade, objetividade e perspectivismo nas ciências humanas afetaram e se imiscuíram no desenvolvimento da Antropologia. Ressalta, por exemplo, o caráter objetivista da obra de Malinowski, num contexto em que as ciências naturais ditavam os contornos do real e de como aceder a ele. Era preciso, assim, que ao fim e ao cabo o método etnográfico fosse uma “tradução”, em termos universais, do observado pelo antropólogo. A busca por padrões, a explicação de estruturas sociais, funções etc., eram as abordagens consideradas válidas naquela altura. Disto isto, qualquer aproximação do texto final do trabalho de campo do texto ficcional, literário, seria obsceno ou pele menos irrespeitável nas circunstâncias temporais aludidas.

Mas a viragem antropológica acontece, como sabemos. No século XX, a Antropologia percebeu o caráter interpretativo do que fazia, dando início a uma crítica ao objetivismo precedente. Foi Clifford Geertz, com a publicação de A interpretação das culturas (GEERTZ, 1989), quem decididamente marcou de maneira mais contundente esse ponto de viragem metodológica – ainda que não excluindo a antecessora, nem outras propostas nascidas ao longo da segunda metade do século. Para Geertz, o homem era então um animal suspenso em teia de significados que ele próprio tece, sendo a cultura o correlato nominal para o conjunto de teias. A Antropologia, desta forma, não seria uma ciência experimental em busca de leis, mas uma interpretação em busca de sentido (idem).

Nasce, depois disso e em oposição ao passado “objetivista”, pretensioso, a hermenêutica reflexiva que, como diz Filipe Verde no capítulo três da mencionada obra, dá origem ao relativismo narrativo, quando importa sobremaneira a interpretação dada subjetivamente pelo etnógrafo, pelo nativo etc.

Não é difícil, assim, perceber como foi possível, depois de uma trajetória complexa e de propostas metodológicas diferentes que nos trouxeram até o estado presente, rediscutir, com novo fôlego e agora sem os receios de outrora, as proximidades, congruências e permissividades entre ciência e arte, nos moldes que se destacam aqui. O conhecimento antropológico, mais uma vez, põe-se em causa não por uma questão de dúvida a respeito da sua legitimidade, mas

(15)

de refundação dos seus contornos. Philippe Descola (2005), Renato Rosaldo (2000), James Clifford (1991), Didier Fassin (2014), Ruth Behar (2012) e tantos outros iminentes antropólogos – além de movimentos nascidos dentro de departamentos de Antropologia, como o que se verá no capítulo seguinte, sobre a Universidade de Córdoba -, realimentam o debate sobre as fronteiras entre uma e outra forma de conhecimento, e acrescentam valiosas e pertinentes reflexões sobre o “modo de conhecer” do antropólogo. Ainda, e mais importante para esta tese: sobre o conhecimento produzido, escrito, rico em significados e subjetividade tanto nessa ciência quanto na literatura, por exemplo.

A questão não é confundir, mas advogar uma interdisciplinaridade que me parece bastante desejável. Aproximar os autores desses diferentes textos sob a tutela da narrativa que, legitimada de autoria pessoal, comunica a vida humana.

James Clifford e Hayden White

A introdução escrita por James Clifford para a obra Writing Culture - The Poetics and Politics of Ethnography, publicada originalmente em 1986 (CLIFFORD e MARCUS 1991), é outro importante marco na trajetória que rastreamos neste capítulo, e da qual também extraímos as reflexões e perspectivas teóricas que foram acumulando, ao longo dos anos, novos entendimentos da prática etnográfica e consequentemente da sua escrita.

A edição organizada por Clifford e Marcus explora as fronteiras do artístico e do científico. Como diz o primeiro na referida introdução, “se assume, neste livro, que o poético e o político são coisas inseparáveis; e que o científico está implícito nisso, nas suas margens” (CLIFFORD e MARCUS 1991, 26). É como uma adesão intelectual a um novo paradigma científico – no sentido de Thomas Kuhn -, incrivelmente mais grego antigo do que moderno, haja vista a noção de paideia predominante naquela sociedade, que assumia o conhecimento como expressão de um todo, um conjunto indivisível que a ciência moderna, por seu turno, fragmentou pela ação da revolução empreendida a partir do século XV.

Não afirmo, com isto, que Clifford propõe um retorno à antiguidade; apenas que o olhar assumido em Writing Culture é mais próximo da noção de “complexidade” vigente em tempos idos, tão bem explicada por Edgar Morin no seu monumental O Método (MORIN, 1977), e que

(16)

nada mais era do que uma noção pedagógica da integralidade da vida, que requer meios de apreensão abrangentes, não sectários, menos fronteiriços e mais interdisciplinares.

É o próprio James Clifford quem o afirma: “a etnografia é um fenômeno interdisciplinar emergente” (CLIFFORD, 1991, 27). E é também este autor que, conduzindo seu argumento introdutório através das relações entre ciência e arte, acrescenta:

“O processo literário (a utilização da metáfora, a figuração, o narrativo), afeta a todas as vias do fenômeno cultural, desde as primeiras notas, desde as primeiras observações, até o livro já concluído. É, precisamente, o que dá sentido às exposições, às teorias; é o que determina e facilita a leitura” (idem, 29).

Aqui se chega a um ponto importantíssimo: a vizinhança declarada entre um tipo de texto e outro; quer dizer, a visão de Clifford sobre a estrutura do texto literário, metafórico e significante, como estrutura desejável e emprestada à narrativa científica. A “exposição de teorias”, nas suas palavras, então facilitada pelo modo de dizer ficcional. Seriam os etnógrafos, como indicam os sociólogos, “fabuladores realistas”, e o contato com qualquer produção escrita de antropólogos como Lévi-Strauss ou Evans-Pritchard (ambos excelentes “contadores de histórias”), um exemplo pujante dessa realização que torna o texto etnográfico próximo do literário.

Afinal, a representação cultural feita pelo antropólogo é, em última medida, representação. Por caminhos outros, depende das mesmas “regras do jogo” linguístico, das possibilidades e limitações das palavras para indicar o real, fazendo as pontes a que alude o trabalho de Flusser. Culturas, como propõe Clifford (CLIFFORD, 1991), são paradigmas discursivos; e estes paradigmas, se inspirados pelas realizações literárias dos grandes autores – aqueles indispensáveis para a compreensão da trajetória narrativa ocidental, por exemplo, como elencados por Harold Bloom em sua obra O Cânone Ocidental (BLOOM, 2011) -, são ainda mais capazes de dizer, ou seja, estabelecer relação entre o leitor que fica a saber existir um povo nativo chamado Anambé, e o real onde Darcy Ribeiro estivera e o qual representara como bom escritor, além de cientista.

A seguinte passagem de Clifford é extremamente esclarecedora deste ponto:

“A transcrição dos diálogos, a fabulação, inclusive através dos mesmos, tem a virtude de transformar o texto cultural que comunique as observações (ritos, instituições, história, comportamentos e hábitos de conduta) para convertê-lo num discurso pessoal no qual o científico se esforça não em

(17)

contar o visto, mas em explica-lo à luz de suas próprias inseguranças, de suas próprias certezas e dos conhecimentos devidos à sua bagagem cultural” (CLIFFORD, 1991, 44).

A proposta do autor não poderia estar mais clara: reconhecer as dimensões poéticas da etnografia, fruto da admissão de que a antropologia é uma expressão também da interdisciplinaridade. A atividade etnográfica perfaz-se, assim, como hiper-escrita, atividade textual que dialoga, sem o autoritarismo de outrora, mas com a autoridade pessoal do eu estive lá e vi a todos nós, acrescentaria.

O próprio James Clifford sugere o trabalho do historiador Hayden White como exemplo daquilo a que essa perspectiva mais abrangente e poética das humanidades pode oferecer aos presentes envolvidos com a escrita – da História ou da Antropologia. O conhecido princípio de White afirma que a história é criação literária, o que, por si só, carrega um mundo de questões decorrentes e que puseram a sua e outras disciplinas académicas numa espécie de autoanálise (WHITE, 2003).

Afinal, diz este autor, o passado só existe na forma como ele é escrito pelos historiadores. As “pistas de interpretação” – os registros e documentos tidos por históricos – não são garantidores do real, mas, no máximo, da narrativa sobre o real (para mais uma vez aludir ao pensamento de Flusser). Sendo a história escrita um empreendimento literário – por trazer em seu bojo o quociente de ficção compositora de todo o tempo e espaço que separa o cientista do objeto estudado – a forma narrativa escolhida pelo historiador é a via de acesso que se oferece ao leitor interessado; e esta via já é uma organização de quem a realizou. A discussão sobre “lugar de fala”, “personagens”, “vozes”, “colonialismos” e, em última instância, a velha dicotomia entre universal e relativo, são, desta maneira, possíveis a partir da adoção dessa perspectiva de White, que confere não simplesmente à linguagem, mas principalmente ao modo e estrutura da narrativa, o poder da ordem sobre os fatos.

Não seria isto uma enorme incerteza? Haja vista serem muitas as narrativas e tanto quanto os narradores, o que resta à História ou à Antropologia? Qual a segurança possível?

White reconhece e considera sublime essa incerteza. É a falta de um significado claro que, segundo ele, permite todas as mudanças de interpretação ao longo do tempo (e essas mudanças não aconteceriam também, por exemplo, entre os antropólogos, mesmo quando se referem às mesmas populações e comunidades estudadas?).

Na explicação de Gabriela de Assis e Marcus Silva da Cruz, num artigo publicado na revista Mosaico, pela PUC Goiás,

(18)

“A atividade do historiador seria ao mesmo tempo poética, científica e filosófica, incorporando em sua narrativa argumentativa modelos de análises literários, destacando seus enredos (romance, comédia, tragédia e sátira), seus tropos retóricos (metáfora, metonímia, sinédoque e ironia) e relacionando-os a modos de explicação e atitudes políticas” (ASSIS e CRUZ 2010, 115).

Quer dizer: uma visão da História – que estendemos à Antropologia na sua forma escrita – como narrativa portadora de ficção. Mais: que essas ficções académicas respeitam, em sua grande maioria e para maior efeito, os modos narrativos literários, por serem eles contundentes e experientes “formas fixas de contar”, tal como amplamente argumentado, por exemplo, na obra do crítico Northrop Frye e a sua teoria dos modos1 (FRYE 2014).

Como ressaltam Assis e Cruz, isto não destitui a História – e, por extensão, a Antropologia – de valor. Antes reforça que toda a forma de conhecimento contém elementos de imaginação e de ficção (ASSIS E CRUZ, 2010). A poética, portanto, não é oposta à lógica, tão celebrada como reduto último e isolado da ciência moderna, na perspectiva cartesiana arraigada na nossa civilização.

White, no já citado O texto histórico como artefato literário, afirma que as narrativas históricas são “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados como encontrados e cujas formas têm mais em comum com seus homólogos na literatura do que com os nas ciências” (WHITE 2003, 109). E essa “estrutura da trama”, que tanto White quanto Frye identificam na literatura – seja mítica, seja irônica – parece estar presente nos textos de origem não artística, como são os históricos e os etnográficos. Ambos os cientistas são, a esse modo, narradores; precisam de uma imaginação construtiva para dar sentido aos fatos espelhados, brutos, carentes de organização hermenêutica. Em última análise, a escrita do antropólogo, quando atende a esses esquemas narrativos, realiza-se como trama – ainda que de origem diversa da artística -, aproxima-se, ao fim e ao cabo, do poético na sua estrutura.

Nenhum acontecimento histórico é trágico em si mesmo, como nenhum costume ou tradição de qualquer povo nativo. A configuração dos fatos que sobressaem aos olhos de historiadores e antropólogos, assim como de escritores literários, é uma preferência e uma decisão, mais ou menos livre, mais ou menos motivada, do seu autor. O leitor – destino final de

1 Em Anatomia da Crítica, Frye (1912 – 1991) apresenta os requisitos baseados no que ele chama de modo ficcional,

o qual constitui a “tonalidade subjacente de uma obra de ficção”, agrupados em Modos Ficcionais Trágicos ou Cômicos, que se dividem ainda em cinco, a depender da natureza do tipo de herói/protagonista da narrativa: o mítico, lendário, mimético elevado, mimético baixo e irônico.

(19)

qualquer desses textos -, compreende o relato de Joseph Conrad, Lévi-Strauss ou Edward Gibon porque percebe, segundo White, a estrutura subjacente.

Daí que, mais uma vez, a confluência entre Antropologia e Literatura esteja não só justificada, como também reconhecida, desde que assumidas as “viragens metodológicas” aludidas ao longo deste capítulo. Importa agora tratar mais especificamente dessa relação entre os dois conhecimentos originariamente diferentes, mas irmanados pelo desejo de expressão ou comentário do que se percebe da condição humana.

(20)

Capítulo II

De alguma maneira, o que aqui proponho é uma reflexão sobre o papel da linguagem – e por extensão específica, da escrita – na representação da cultura. Ainda: como se relaciona e se identifica o autor com o seu texto de natureza científica? A literatura, por exemplo, e o seu modo admirável de dizer, contribui ou não para uma melhor articulação da cultura representada? Dominar a escrita como fazem os grandes autores literários, acrescendo as suas descrições e composições de imagens de componente estético próprio da experiência aprazível da leitura dos clássicos, colabora ou não com a escrita antropológica, antes um modo de escrita que, tradicionalmente, devia primar pela clareza e “objetividade”?

A contribuição de Geertz, comentada no capítulo anterior, é um dos entroncamentos decisivos que observamos nessa trajetória da Antropologia enquanto escrita. Sem dúvida, algumas das questões levantadas e aprofundadas nos seus livros e artigos contribuíram para abrir esse complexo e instigante diálogo entre o fazer antropológico e outros modos de escrita, nomeadamente a literária. As noções de autor como intérprete ou tradutor são caras ao desenvolvimento dessa linha de pensamento a que tenho me dedicado ao longo desta tese.

Em posse do itinerário histórico traçado no capítulo anterior, parto agora para a análise das aproximações, semelhanças e diferenças entre a escrita literária e a antropológica, buscando um lugar teórico que não só permita a relação entre as duas formas de conhecimento do humano, mas também valide um seu princípio comum de expressão da condição humana.

Maria Reyes García Del Villar Balón, antropóloga em atividade na Universidade de Córdoba, num texto sobre os métodos da Antropologia e da Literatura (BALÓN 2005), fala de uma crise de representação: segundo a pesquisadora, estaria em dúvida, nestes tempos, a capacidade do investigador para traduzir “outros códigos”. A pós-modernidade suscitaria, assim, através de outras vozes, novas perspectivas sobre a mesma necessidade de dizer, representar, demonstrar, explicar ou dar oportunidade de expressão aos personagens observados com maior ou menor participação por parte do cientista social.

A Literatura é um modo de dizer, sem dúvida. Segundo Balón, é a única competente o suficiente para não só dar imagem daquilo que as pessoas fazem, mas também daquilo que lhes acontece. Os literatos seriam aqueles que chegam ao real – o mesmo objetivo do cientista – desde o irreal (do não aparente, mas existente na teia cultural). Assim, os “limites” formais e

(21)

materiais que encontramos na Antropologia, na Sociologia ou na Crítica Cultural, são “dispensados” no momento da escrita literária; talvez por isso mesmo, permitam um tipo de conhecimento da condição humana a que as outras áreas referidas tenham maior dificuldade em aceder ou oferecer ao público leitor.

Portanto, podemos falar numa etnoliteratura: aquela que constrói uma antropologia “desde a experiência literária” (BALÓN 2005). A mesma antropóloga esclarece um ponto nevrálgico para esta tese: etnografia e literatura não se diferenciam pelas suas formas de escrita – e isto importa sobremaneira para o que estou a desenvolver aqui -, mas pelos objetivos do autor ao escrever o texto (idem). Ou seja: em si mesmo, o texto literário não é (ou não precisa ser) tão marcadamente diferente do etnográfico; o que os aparta e ajuda na identidade de composição é o destino pretendido: a contemplação estética que a arte permite ou o tipo de conhecimento racional a que as “descrições densas” abrem caminho.

Acredito que, de fato, há mais semelhanças do que diferenças entre a escrita antropológica e a literária. Apenas como reforço de argumento, podemos falar do "entendimento entre escritor e leitor”, ou código comum, ou a chave interpretativa compartilhada por aquele que emite e aquele que recebe o texto. Nas obras de grande sucesso literário há, sem dúvida, esse mútuo entendimento: o ficcionista “fala de mim” e “para mim” de alguma maneira, mesmo quando conta histórias de culturas e tempos distantes de mim. Na Antropologia, por sua vez, um mesmo entendimento é pedido e esperado, tacitamente, ou não há verdadeira comunicação entre o cientista e o seu hipotético leitor. Esta é uma das questões que levantamos, por exemplo, a partir do texto Where did Anthropology go?, em que Maurice Bloch pergunta, entre outras coisas, por que as pessoas têm, atualmente, um interesse sensivelmente menor pelas obras de antropologia quando comparado com o demonstrado tempos atrás (BLOCH, 2005). Seria, indago, em virtude de um afastamento, abstração, incomunicabilidade entre etnógrafo e “leitor real”? Faltaria ou não, aos antropólogos atuais em geral, o mesmo acordo tácito sobre a condição humana com o seu receptor textual? E mais: deveriam ou não esses mesmos cientistas inspirarem-se e aproximarem-se das linhas criativas dos escritores ficcionais a fim de comporem imagens atraentes, aprazíveis, próximas - ainda que distantes culturalmente – das “pessoas comuns”, não pertencentes ao ambiente académico? Por outras palavras, o mesmo questionou Didier Fassin: se a matéria de vida é a mesma, por que a pessoas leem Literatura e não Antropologia (FASSIN 2014)? Agrega à reflexão iniciada:

(22)

“Isso não quer dizer que antropólogos deixaram de acreditar na possibilidade de recuperar vida e vidas, mas tendem a fazê-lo de novas maneiras, informados pelos debates sobre narratividade e reflexividade, discutindo seus próprios projetos de escrita, propondo estilos de escrita sobre a mesma matéria, articulando fragmentos biográficos, arquivísticos e poéticos, ou associando texto, notas de campo e fotografias – isto é, distanciando-se da obviedade de suas relações para viver através da realidade e da verdade” (FASSIN 2014, 42).

O antropólogo francês supracitado é mais uma voz que reforça a “abertura” à interdisciplinaridade que se revela, por exemplo, nas arquiteturas de alguns dos mais recentes textos etnográficos. A preocupação de Fassin (2014) – “podem os cientistas sociais recapturar a vida?” – encontra nesse diálogo e intercomunicação que a Antropologia tem legitimado há alguns anos, aqui e acolá, uma possibilidade de resolução. “Etnografia e ficção têm tido um longo diálogo no seu comum esforço para entender a vida humana e a partir disso partilhar uma fundação na escrita” (idem, 40). Portanto, para além da etnoliteratura, o que se aventa com isto é a confissão de um fundo comum de onde partem e para onde vão os ficcionistas e os antropólogos: aquele que a escrita torna imagem e a que temos chamado condição humana.

“Como criador de quebra-cabeças, o etnógrafo como escritor reúne as muitas peças à sua disposição, incluindo as não etnográficas. É dessa perspectiva que defendo uma tentativa de defesa e ilustração da etnografia” (idem, 43).

É sobre esta admissão do quebra-cabeças que se resolve com a participação de “peças não etnográficas” que passo a falar agora, partindo dos trabalhos da Universidade de Córdoba, onde dirigiu os estudos interdisciplinares o professor Manuel de la Fuente Lombo2.

Críticas à etnografia que não “dialoga”

Logo numa das primeiras citações bibliográficas que fez no seu texto de abertura, o professor Manuel de la Fuente Lombo transcreveu um trecho de Carmelo Lisón-Tolosana, catedrático espanhol, autor de Antropologia Social y Hermenéutica: “El antropólogo es, por la

2 Falecido em 2001, atropelado por um carro em Marrocos, Lombo foi o diretor do Seminário de Etnoliteratura da

Universidade de Córdoba, Espanha. É marcante, para os estudos de etnoliteratura na comunidade ibérica, a publicação que organizara dos textos que integraram o primeiro Encontro desta temática promovido na Faculdade de Filosofia e Letras a que pertencia. Esta edição – Etnoliteratura, un nuevo método de Análisis en Antropologia – traz importantes contribuições dos académicos envolvidos no projeto, destacando-se para esta tese o texto do próprio professor Lombo, “La etnoliteratura como método antropológico” (LOMBO 1994).

(23)

naturaleza de su profesión un intérprete del significado, de la diferencia, un hermeneuta”, considerando a “Antropología hermana de la Poesia e hija de la empírica Filosofia” (LOMBO 1994, 54).

A crítica de abertura é a seguinte: os pós-modernos valorizaram demasiadamente a etnografia, subtraindo tempo à Antropologia. Lombo fala, assim, de sua impressão pessoal do “desdém” que os colegas antropólogos demonstravam aos que se dedicavam ao “fazer de gabinete”. O professor é taxativo ao dizer que o trabalho de campo, desde Malinowski, define e constitui o trabalho antropológico. Há, via de regra, um ritmo e um conteúdo que subjaz à prática científica, especialmente aquilo que inclui a recolha de dados, as descrições de comunidades etc. É o trabalho de campo, comenta Lombo, um “estado de graça fora do qual não há salvação alguma” (idem, 55).

Não é meu objetivo endossar integralmente esta crítica e tornar esta tese um monumento ao “intelectual de gabinete”. Estou apenas demarcando os lugares teóricos desde onde falo, ou de onde falam aqueles em que me apoio para lançar luz sobre a questão da escrita antropológica e o conhecimento da vida humana. Sem dúvida é rico, complexo e interessante o debate sobre a identidade da Antropologia como ciência social, se diluída ou não na etapa de observação etnográfica. Mas como se pode supor desde logo, pelo que discorri até aqui, é meu interesse destacar o ato de escrever em si, atividade que legitima, neste sentido, o propósito de o antropólogo lançar luz sobre o humano, esteja dentro de um gabinete apenas ou não.

E se importa sobremaneira o ato de escrever, também é verdade que este não pode se materializar sem algum desenho do terreno a que os antropólogos sentem pertencer quando escrevem. O texto, evidentemente, é fruto também do meio, algo que podemos entender como as circunstâncias gerais e específicas do escritor quando se põe a escrever (questões existenciais de momento, a sua identidade cultural, o público-alvo leitor, a magnitude da experiência vivida no campo ou durante a leitura de um romance etc.). O que Manuel de la Funte Lombo deseja, em última análise e para nosso proveito, é realocar o discurso antropológico como elemento necessário e subordinado, mas nunca suficiente por si. Esta é a tensão dramática de fundo que justifica suas pesquisas e o faz refletir, especialmente no texto do qual me aproprio, sobre o teor fundamental desse “documento” que os etnógrafos produzem.

Se o antropólogo é um “pensador da condição humana”, como afirma Lombo, não estaria nisto a primeira identificação com o ficcionista? Resguardados os métodos e os destinos

(24)

do texto, como antes mencionei, não tratam as duas escritas de “escribir qué son los hombres?”, e não simplesmente “como son los hombres?” (idem, 57).

Talvez um exemplo ajude. Ruy Duarte de Carvalho é figura simbólica e reveladora, de modo pessoal, dessas tensões que fazem jus ao diálogo e às arquiteturas interdisciplinares do texto a que tenho me referido. Em 2008, por ocasião de um ciclo de estudos e homenagens a RDC no Centro Cultural de Belém, Miguel Vale de Almeida identificou a posição tensional do referido antropólogo e artista, dando interessantes contribuições sobre a reflexão aqui proposta. “O antropólogo ocupa o lugar mais ambíguo no quadro das ciências sociais”, escreveu. E mais adiante: “A autoria despida da autoridade da hiperdefinição literária ou antropológica é, afinal de contas, o que evita a ferida” (ALMEIDA 2008, página de web3).

Qual ferida? A deste lugar ambíguo suscitado pela identidade da Antropologia que, pelo que venho tentando dizer, é ciência do humano ou da condição humana, o que requer, para seu desenvolvimento mais rico, pleno e verdadeiro, a afluência consciente e desejada de discursos e perspectivas outras a que por vezes se submeta, por vezes se sobreponha, na insistente busca da imagem dos homens. É o que Philippe Descola chamou “soul-searching” num de seus textos: é tanta a variedade e riqueza da produção antropológica que o “denominador comum”, por assim dizer, não pode estar simplesmente num conteúdo real ou hipotético geral (DESCOLA 2005). O conhecimento antropológico, diz Descola, é um certo estilo, um padrão de descoberta e um modo de sistematização que são suportados por um conjunto de habilidades requeridas ao antropólogo. Daí que o texto, por si só, produto de um trabalho de campo ou reflexão empreendidos pelo profissional da área, não seja a marca inconfundível da Antropologia – e por isso não a constrange a aproximação com a Literatura, por exemplo. O que partilham todos os antropólogos, conclui, e particulariza o conhecimento em tela, é um modus operandi, aprendido em parte nas experiências de terreno, em parte no mergulho em outros textos pregressos (idem, 73).

Voltando ao ponto e resumindo o itinerário: a etnografia é um fenómeno interdisciplinar, como diria James Clifford (1991), e o encontro com a literatura se dá justamente no fato da escrita antropológica também forjar imagens representativas da cultura.

As mesmas afirmações, por outras palavras, expressam os antropólogos colombianos Orrego e Serje. No artigo “Antropologia y Literatura, travesias y confluencias”, os autores

3 Texto acessado em 20 de agosto de 2018, na home

(25)

afirmam que etnografia e antropologia são práticas narrativas, e que a escrita etnográfica é como uma “experiência de mudança e inventiva” (ORREGO e SERJE 2012, 20). Quer dizer: não se afasta, antes pelo contrário, a “invenção” do texto antropológico – outra aproximação importante do literário, ainda que ressalvadas as diferenças de teor e destino. Mais: se Antropologia é uma narrativa ou forma de dizer, o que trabalhos como o de Manuel de la Fuente Lombo ou a obra de Ruy Duarte de Carvalho propõem, entre outras coisas, é uma espécie de “libertação” das amarras narrativas, no sentido da auto permissão, especialmente pelo cientista social, da integração de peças não etnográficas à arquitetura do texto antropológico, abrindo, assim, novas possibilidade de “dizer e compor (ou mesmo inventar) a vida humana4.

Daí que a recusa em dialogar se torne, especialmente para a Antropologia, uma espécie de sepultamento a priori. É como se as sucessivas incursões sobre a vida e seus múltiplos significados estivessem fadadas ao fracasso se, ao invés de interdisciplinaridade e abertura aos vários “modos de dizer”, os antropólogos insistissem em posições isolacionistas, metodológica e intelectualmente. Estas afirmações de minha parte poderiam ser interpretadas, aqui, como desnecessárias – haja vista a consciência que tantos representantes da Antropologia já demonstraram ter desse mesmo problema (e da consequente solução). Entretanto, é preciso ainda que antropólogos em atividade continuem a dizer e reafirmar o mesmo ponto referido, tornando evidente o quanto essa “verdade” a respeito da condição mesma da nossa ciência ainda não é um lugar-comum entre seus praticantes. Tim Ingold é um exemplo que corrobora o exposto: em 2011, publicou numa coletânea um artigo intitulado “Etnografia não é Antropologia” (INGOLD, 2011); nele, aborda aquilo que considera ser a distinção marcante entre uma e outra (em resumo, a primeira é mesmo descritiva, a segunda, uma investigação sobre as possibilidades e condições da vida humana no mundo). Entre outras coisas, Ingold retoma a questão da escrita antropológica, e afirma textualmente que a “etnografia é livre, não adstrita a apenas um método” (idem, 20). Ainda: que a Antropologia é uma filosofia viva.

Dito assim, por um antropólogo bastante reconhecido pela comunidade internacional, a questão da interdisciplinaridade, das transversalidades de discurso, das confluências de métodos, das muitas formas de construir narrativas e compor (inventar) textos etnográficos, é não apenas avalizada, como impulsionada para novas e novas discussões atuais que respondam

4 No capítulo seguinte abordarei a questão da inventividade, também presente no discurso do cientista social. A

partir das reflexões propostas pelo historiador Hayden White (1928 – 2018) e seus herdeiros teóricos, buscarei integrar a noção de “criação”, tão cara aos literatos quando escrevem seus textos, à escrita antropológica, e

(26)

a conflitos e problemas de agora, sem que se caia em meras repetições teóricas ou fidelizações acríticas a escolas passadas.

O contributo de Córdoba

O texto do professor Lombo – La etnoliteratura como método antropológico – foi eleito em virtude da síntese reflexiva que faz daquilo que se consideram os progressos do grupo de estudos iniciado na Universidade de Córdoba, anos antes do encontro de 1994. Assim, os parágrafos que se seguem são, em parte, compiladores do que ali está registrado.

A investigação de Lombo diz respeito à Antropologia possível a partir da Literatura. Não é este o meu enfoque, como se sabe. Porém, as reflexões teóricas e metodológicas propostas para justificar a perspectiva do catedrático espanhol são muito pertinentes para a questão de fundo que sustento nesta tese, a ser melhor compreendida no próximo capítulo. Daí que agora me valha de algumas dessas circunstâncias argumentativas desenvolvidas no texto mencionado.

O apartheid metodológico e a reunificação sem perda de identidade

“El documento escrito le interesa como exponente de la relación entre el escritor y su invención de la realidade”, afirma Lombo (LOMBO 1994, 57). O que o professor aponta é que o texto etnográfico não deixa de ser invenção ou, no mínimo, composição feita pelo seu autor (aqui sentimos quase de imediato as ressonâncias com o ofício dos literatos). A afirmação nada tem de chocante ou nova: Roy Wagner ou James Clifford já o disseram de maneiras diferentes. Mas o que Lombo acrescenta à ideia, com alguma coragem, é que as semelhanças e congruências seriam ainda maiores entre Antropologia e Literatura, e assim o revela a própria história: antes do apartheid metodológico, como chama o autor, realizado no século XX, antropólogos e literatos não se distinguiam com tão marcadas tintas e os famosos relatos de viagem não deixavam de ser um terreno comum, habitado livremente por quem dali extraísse ideias para romances ou informações para teses. Se é inquestionável o amadurecimento histórico da disciplina antropológica e o seu consequente movimento de individuação, não é

(27)

necessariamente positiva a quase oposição que os modernos, via de regra, estabeleceram entre o seu trabalho e as obras de imaginação dos ficcionistas. É para isto que chama a atenção o professor de Córdoba, ao apartheid que ultrapassou gerações e que mesmo no alvorecer de um novo século (tempo em que Lombo escrevera o artigo em causa) ainda encontrava fortes resistências paradigmáticas.

“Sospechosos de acercarse a la literatura en el sentido que ésta tiene de ficción, los etnógrafos, por generaciones, empezaron sus trabajos marcando la diferencia entre los viajeros o escritores y ellos mismos en su calidad de profesionales de la objetividade, hasta que esa obsesión llegó a convertirse en um tópico – precisamente – literario, de la escritura etnográfica” (LOMBO 1994, 59).

O distanciamento continua, diz o autor. A ponto de os modernos – no sentido de “atuais” – sentirem-se detentores de uma suposta verdade que apenas à sua ciência é revelada, rejeitando qualquer disputa ou crítica que coloque em causa a sua segurança. A virada para o século XXI parece ter trazido um novo paradigma científico, e as resistências até a década de noventa tão fortemente percebidas parecem, pouco a pouco, arrefecerem ou simplesmente perderem as forças diante de novas narrativas.

“No implica de ninguna manera que nos convirtamos en escritores ni que los escritores se transformen en antropólogos; es un encuentro sin prestaciones mutuas, sin dejación de nuestra identidade: muy ao contrario, el estúdio de la condición humana desde esta perspectiva – la experiencia de la no apariência – puede favorecer el rehacimiento de esa identidad”, esclarece Lombo (idem, 59).

A literatura como conhecimento

Citando escritores como Fernando Pessoa e Marguerite de Yourcenar, Manuel de la Fuente Lombo prossegue com o seu objetivo de dar a perceber ao leitor a grande confluência ou unidade de interesses que familiariza Antropologia e Literatura. É justamente do poeta português (in Livro do Desassossego) a frase “toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real”. A ideia de base, retransmitida pelo antropólogo espanhol, é a de que as coisas à volta do homem são efetivamente percebidas quando tiradas da opacidade e do “limbo de experiências gerais” pela literatura; ou seja: quando tornamos as impressões do mundo literárias, salvamo-las do esquecimento, tiramo-las da confusão, lançamo-las na “eternidade” do que nos faz sentido.

(28)

Desta capacidade literária – tornar as coisas visíveis ao homem – nasce a intenção da etnoliteratura: devolver à Antropologia o “mundo humano” algures perdido. O “antropólogo de biblioteca”, diria Lombo, apoia-se na novela, no teatro e na poesia para reposicionar a Antropologia – e fá-lo porque extrai desse outro tipo de teias criativas as imagens fortes com as quais o homem revê o humano.

Acrescente-se também o fato incontestável de muitos escritores, ao longo dos séculos, terem proposto a si mesmos temas antropológicos, por assim dizer (Joseph Conrad, num sentido, Dostoyevsky, noutro). O que importa reconhecer é que diferentes áreas das chamadas Humanidades têm concordado, nas últimas décadas, no que se refere ao papel fundamental da literatura na compreensão do fenómeno humano, ou, nas palavras do filósofo Julián Marías, estas áreas do conhecimento têm homologado a literatura na sua capacidade de memória histórica, inclusive outorgando-lhe um papel interpretativo da realidade social (MARÍAS, 1977). Em resumo, o espírito de uma época, os dramas de uma sociedade no período entre guerras: T.S. Eliot ou D. H. Lawrence são fontes de um conhecimento rico e profundo dessas realidades históricas a que podemos pretender enquanto sujeitos, antropólogos ou não.

O romance ou a novela, portanto, interpretam; não deixam de ser “teoria”: o texto inventado é também testemunho daquilo que o seu autor viu do mundo ou da realidade particular que lhe tocava naquele momento. Assim, pratica o ficcionista uma espécie de Ciência do Homem que, pelo nome, não há como se apartar da Antropologia. A pertinência dos textos literários para o conhecimento da vida humana é justamente alcançar a realidade submersa, como diria Lombo, tantas vezes arredia aos métodos e instrumentos formais da ciência moderna. A vida, por outras palavras, é maior, e exige daquele que por ela se interessa uma especial devoção que amplia, necessariamente, o rol de lentes pelas quais se enxerga a mesma vida. A literatura, contra todo o relativismo, informa sobre a condição humana. Daí a afirmação de Manuel Lombo: “a literatura é uma via de conhecimento” (LOMBO 1994, 66).

Como reforço do argumento até aqui desenvolvido, transcrevo o seguinte trecho: “Carmelo Lisón, en su libro ‘Antropologia Social y hermeneutica’, desde el reconocimiento implícito del diferente modus operandi del escritor y el antropólogo, como sujetos diferenciables, aborda sin embargo el tema de la inseparatidad Literatura-Antropologia; para Lisón, ‘si el antropólogo hace de poeta, el poeta antropologiza. Los dos coinciden en que mucho de lo que se tiene por real no lo es, y los dos bucean para alcanzar el significado último submergido debajo de la cáscara de las cosas” (idem, 62).

(29)

A conclusão de Manuel de la Fuente não poderia ser outra: a Antropologia não pode abrir mão da sua “terra firme”, o que significa dizer que, ao fim e ao cabo, estamos buscando conhecer a condição humana. A Literatura, muito especialmente, oferece um discurso sobre a vida, o que faz emergir aqueles conteúdos antes escondidos da superfície desinteressada, do olhar prosaico sobre aquilo que nos toca e nos diz respeito. Os escritores, através das suas obras, fazem-nos participar da existência de uma forma mais plena, correspondente e real; e isto, sem sombra de dúvidas, torna-a indispensável para aquele que se propõe descrever e falar sobre as expressões do humano, tal como é o ofício do antropólogo5.

Lombo chama a Antropologia à radicalidade da sua existência: dados alguns reveses teóricos ao longo da história, segundo a sua perspectiva, precisaria ou não ser “substantivada” como o estudo da condição humana? (idem) E se sim – se em alguma medida, e por algum tempo, os antropólogos perderam-se em relativismos outros, mais ou menos justificáveis devido a situações históricas e problemas de diferentes ordens -, não é a literatura um instrumento de resgate do “verdadeiro” terreno?

Se, segundo Geertz, o que distingue o autor é o fato de ter estado lá, “onde” está o ficcionista quando escreve sobre aspectos do humano, e “onde” pode estar também o antropólogo quando escreve seu texto científico?

5 Apenas a título de ilustração: não seria isto – o profundo tipo de conhecimento que um antropólogo pode

encontrar na literatura – o percebido e empreendido por Edward Said e seu reconhecido “Joseph Conrad and the fiction of Autobiography”?

(30)

Capítulo III

O que Renato Rosaldo nos deu?

Num artigo publicado em 2012, What Renato Rosaldo Gave Us (BEHAR, 2012), Ruth Behar faz uma sensível reflexão pessoal sobre aquilo que considera a grande contribuição do autor de Culture and Truth para o desenvolvimento da Antropologia desde os finais dos anos noventa. Logo de imediato, Behar aponta para o fato de Rosaldo provocar, com o seu trabalho inovador em vários sentidos, uma academia norte-americana apegada às normas clássicas e guardiã das fronteiras científicas, indo noutra direção – uma em que coração e mente não sejam entendidos como rivais dentro do homem: “an academy where our hearts didn’t have to be checked at the gate as if they were a danger to institutions of higher learning” (BEHAR 2012, 205).

Behar é contundente na exposição daquilo que considera a contribuição mais importante de Rosaldo para a Antropologia. Fala de uma abertura de olhos proporcionada pela obra do colega e mestre, tendo em Culture and Truth uma espécie de viragem metodológica, mais uma dentre aquelas que apontei nos capítulos anteriores e que são importantes para o argumento desta tese. Voltando às palavras de Ruth Behar:

“Culture and Truth opened my eyes to the borders and border guards that had sprung up all over the terrain of our supposedly open society. With my eyes open, and holding Renato’s map in my hands, I dared to cross different borders – geographic, intellectual, emotional, compositional – sometimes provoking the fury of the border guards. Thanks to Renato, I understood the reasons for their fury and was only a little bit scared of the guards” (idem, 205). Feita uma autocrítica sincera, é difícil não concordar com a perspectiva de Behar acerca da academia e o seu modus operandi, bastante rígido quanto às prerrogativas metodológicas assumidas como válidas, objetivas, “científicas” dentro do espectro das humanidades. Entretanto, conceitos como os de “nostalgia imperialista”, “posição do sujeito” ou “narrativas de fronteiras”, hoje admitidos como parte da antropologia contemporânea, são justamente perspectivas que Rosaldo, a partir das reflexões propostas em Culture and Truth, defendeu ao longo dos anos – antes mesmo de que fossem admitidos de forma mais ampla no seio acadêmico.

(31)

O que me parece relevante a partir dessa reflexão de Ruth Behar é destacar a contribuição de Rosaldo para uma mudança de eixo na forma como se pode realizar a escrita etnográfica e antropológica. Quer dizer: a maneira como as narrativas, então, podem assumir um protagonismo em si, especialmente se permeadas de subjetividade (de uma expressão de vozes dos personagens envolvidos). É isto o que de mais próximo consigo ver da noção de autoria a que aludi anteriormente nesta tese, possibilitando um lugar de escrita comum a literatos e antropólogos. Ambos, quando escrevem em primeira pessoa, são vozes comprometidas, expressivas, carregadas de nuances emocionais, distantes de alguma rigidez objetiva que possa limitar sua forma de contar a experiência humana vivida ou testemunhada.

O que se denota, tanto a partir da leitura de Behar, quanto dos textos originais de Renato Rosaldo, é uma particular e instigante defesa da voz pessoal no ato de contar a história ao leitor. É assim que se manifesta a autora do artigo em questão:

“After I finished reading, I realized that what was so radical about it wasn’t simply that Renato included, within an ethnographic argument delivered to an academic audience, the account of a tragic personal loss – the death of his wife Michelle Rosaldo. To speak in a personal voice and mourn publicly hadn’t been attempted before by an ethnographer in an academic setting” (BEHAR 2012, 206).

É esse envolvimento ou confissão pessoal que Behar identifica nos textos de Rosaldo – especialmente em Culture and Truth -, de algum ineditismo segundo ela, que torna a escrita do referido antropólogo um feito novo, profundamente marcado pela força das emoções e por uma outra perspectiva da verdade antropológica: a de que para saber é preciso também sentir. A análise social, o trabalho de campo, as pesquisas realizadas, a elaboração de ideias e conceitos sobre este ou aquele grupo, esta ou aquela comunidade, precisa, desse modo, de um conhecimento que seja multidimensional; como recorda Behar, “the process of knowing involves the whole self” (idem, 206). E se nas décadas passadas os antropólogos usaram de um suposto “objetivismo” para dar legitimidade à disciplina que desenvolviam, é perceptível que as viragens metodológicas empreendidas – algumas apontadas no texto desta tese – puseram a figura desse cientista e a sua produção escrita num lugar novo, interessantemente tensional, arredio às limitações extremamente herméticas, categorizadoras, como se supunha ser noutros tempos. A admissão de que o seu processo de conhecimento envolve todo o eu é um convite ao diálogo entre disciplinas. Mais: ao reconhecimento de que existe, no momento da escrita, uma indissociável pessoalidade que atravessa e tonifica todo o texto, ficcional ou científico, e que nem por isso o macula de inverdades. O que defendo é justamente a hipótese de a realidade experimentada por um (autor/observador) ser acessível por outro (leitor) porque precisamente

Referências

Documentos relacionados

A Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis, por intermédio da Divisão Multidisciplinar de Assistência ao Estudante (DIMAE/PROAES) torna público o lançamento do presente edital

Entende-se por materiais esportivos o material de consumo diretamente relacionado à prática da(s) modalidade(s) olímpica(s) e/ou paraolímpica(s) para a formação dos

Berta os vinhos DONA BERTA RESERVA TINTO VINHAS VELHAS DONA BERTA GRANDE ESCOLHA DONA BERTA RABIGATO VINHAS VELHAS DONA BERTA SOUSÃO DONA BERTA VINHA CENTENÁRIA BRANCO DONA BERTA

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Apothéloz (2003) também aponta concepção semelhante ao afirmar que a anáfora associativa é constituída, em geral, por sintagmas nominais definidos dotados de certa

A abertura de inscrições para o Processo Seletivo de provas e títulos para contratação e/ou formação de cadastro de reserva para PROFESSORES DE ENSINO SUPERIOR

The purpose of this study is to recognize and describe anatomical variations of the sphenoid sinus and the parasellar region, mainly describing the anatomy of

Como já destacado anteriormente, o campus Viamão (campus da última fase de expansão da instituição), possui o mesmo número de grupos de pesquisa que alguns dos campi